segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

São João Crisóstomo - Homilias sobre a Natividade do Senhor - Oitava Homilia: Livro da geração de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abrahão - Capítulo II, versículos 11 a 16






1.      O que levou São Lucas a dizer que o menino estava deitado numa manjedoura? É o seguinte: como José e Maria não conseguiram abrigo numa causa, por causa do grande número de estrangeiros chegados a Belém devido ao recenseamento, eles se refugiaram num estábulo; a Virgem então trouxe ao mundo o menino-Deus, e o acomodou na manjedoura do estábulo. Essa é a explicação que o próprio São Lucas dá, dizendo: “Ela acomodou a criança na manjedoura porque não havia lugar para eles na hospedaria[1]”. Mas em seguida ela a tirou de lá e a pôs sobre seus joelhos.  

Mas chegados a Belém, a Virgem deu à luz; essa circunstância não tem nada de fortuito, ela faz parte do plano divino relativo ao mistério da encarnação, e é necessária para o cumprimento das profecias.

Mas o que levou os magos a adorar o menino? Não foi o aspecto exterior da Virgem, que não tinha nada de extraordinário, nem a aparência da habitação, que estava longe de ser magnífica, nem o conjunto das coisas que acompanhavam a circunstância, em que não havia nada que pudesse tocar e cativar. Entretanto, eles não apenas o adoraram, como lhe abriram seus tesouros e lhe deram presentes, talvez mais como a um Deus do que a um homem, porque o incenso e a mirra são especificamente devidos a Deus. O que foi, então, que fez com que eles se prosternassem diante de uma criança, senão a mesma coisa que os fez deixar suas casas para fazer uma viagem tão longa, vale dizer, primeiro a estrela, e depois a própria luz de Deus derramada em suas almas, e que os conduziu pouco a pouco, para iluminá-los depois? Mas, como ali não havia nada de grande que pudesse ser percebido pelos sentidos – porque os olhos não viam mais do que uma manjedoura, um estábulo, uma mãezinha pobre – a grande sabedoria dos magos, pura e simplesmente, brilhou ainda mais, e é preciso que vocês compreendam que não foi para um puro homem que eles vieram, mas para o próprio Deus, para o Salvador do mundo. Foi com essa fé viva que, longe de se ofender com a simplicidade exterior, eles se prosternaram diante da criança, e lhe ofereceram presentes que nada tinham de carnal, como as oferendas dos Judeus. Pois eles não lhe imolaram cordeiros nem bezerros, mas dons misteriosos muito mais próximos da graça e da excelência da Igreja, e que são os símbolos da ciência, da obediência e da caridade.

“E, tendo recebido em sonho uma advertência do céu para que não voltassem a encontrar Herodes, eles retornaram ao seu país por outro caminho”. Admirem ainda aqui a fé dos magos. Pois, como não ficaram eles escandalizados ou surpresos com esse aviso? Como permaneceram firmes na obediência, sem se perturbar e sem avaliar a situação por si mesmos?

Se aquela criança tivesse alguma coisa de grande, se tivesse qualquer poder, por que seriam eles obrigados a fugir e se retirar secretamente? Por que, depois de terem aparecido livremente e ousadamente diante de todo um povo, sem temer o barulho e o espanto da cidade nem o furor do tirano, veio agora um anjo expulsá-los dali, como se fossem escravos e fugitivos? Mas eles não tiveram esses pensamentos na alma, nem essas palavras na boca. Pois é exatamente nisso que consiste a fé, em não buscar as razões daquilo que nos dizem, mas simplesmente obedecer ao que nos é ordenado.

2.      “Ora, depois que os magos se foram, o anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, e lhe disse: “Levante-se, tome o menino e sua mãe e fuja para o Egito, e lá permaneça ate que eu lhe diga que pode partir”. Aqui podemos ficar em suspenso, considerando tanto os magos como a criança. Pois, ainda que eles não tivessem se perturbado, recebendo com fé o que lhes foi dito, não podemos nos perguntar por que Deus não os salvou soberanamente da fúria de Herodes, tanto a eles como à criança, sem que uns fossem obrigados a fugir para a Pérsia, e o outro ao Egito com sua mãe? Mas o que vocês querem que Deus fizesse nesse encontro? Que Jesus Cristo caísse nas mãos de Herodes, e que, não obstante, não sofresse ali nenhum mal depois de ser capturado? Se ele tivesse agido assim, jamais acreditariam que ele tivesse verdadeiramente tomado nossa carne, e haveria espaço para duvidar da verdade de sua encarnação. Pois, se apesar daquilo que ele fez, e de todas as provas que ele deu de sua humanidade, alguns ainda ousaram dizer que sua encarnação não passou de uma fábula, em quanta impiedade não incorreriam esses, se ele sempre houvesse agido como Deus, em toda a extensão de seu poder?

Assim é que o anjo enviou os magos, tanto para fazer deles pregadores de Jesus Cristo em seu país, como para ao mesmo tempo fazer ver a Herodes que seu desígnio cruel não teria sucesso jamais; que ele estava tentando algo impossível; que seu furor era vão, e que todos os seus trabalhos não teriam efeito algum. Pois é digno da grandeza e do poder de Deus, não apenas vencer soberanamente e sem esforço a seus inimigos, como ainda iludi-los e surpreendê-los. Foi assim que outrora ele enganou os Egípcios por meio dos Judeus, e que, ainda que pudesse fazer passar visivelmente todas as suas riquezas para as mãos dos Israelitas, ele preferiu fazê-lo secretamente e por meio de um estratagema, que não lançou menos terror no espírito de seus inimigos, do que os prodígios que fizera antes?

3.      Com efeito, os Ascalonitas e os outros povos vizinhos, quando se apoderaram da arca e foram atingidos por uma grande praga, aconselharam à nação que não lutassem contra Deus, que não lhe resistissem, e, entre outras maravilhas, lhes recordaram como Deus agira com os Egípcios: “Por que, disseram eles, oprimem seus corações, como outrora o Egito do Faraó? Quando Deus agiu com eles, não deixaram eles que seu povo se fosse dali?”. Eles falaram assim, persuadidos que essa conduta direta não era inferior a tantos prodígios espantosos, nem menos apropriada para demonstrar o poder e a grandeza de Deus.

Oque aconteceu a Herodes na ocasião dos magos não era de natureza tal a tocá-lo fortemente? Ver-se assim enganado e manipulado pelos magos, não era para explodir de raiva? Se ele não se tornou melhor, não foi por falta de Deus lhe ter propiciado essa lição; devemos atribui-lo ao excesso de loucura do tirano que, longe de ceder a essas advertências, e de abandonar sua maldade, mergulhou ainda mais fundo no crime e não se deteve pelo temor de incorrer num castigo, ainda mais severo pelo excesso de endurecimento e de demência.

Mas, por que Deus escolheu o Egito para enviar para lá a criança? O Evangelho aponta a razão principal, que era a de cumprir com essas palavras: “Eu chamei meu filho do Egito[2]”. Foi também para anunciar desde logo a toda a terra as grandes esperanças que ela poderia esperar do futuro. Pois, como o Egito e a Babilônia tinham queimado com as chamas da impiedade mais do que todo o mundo, Deus quis apontar primeiro que ele haveria de converter a ambos, e que os purificaria de seus vícios, e para dar com isso uma esperança de uma transformação similar a toda a terra. Foi por isso que ele enviou seus magos à Babilônia, e foi ele próprio ao Egito com sua mãe.

 Além dessas razões, temos aqui uma instrução muito útil para nos estabelecer numa sólida virtude: é para nos preparar desde os primeiros dias de nossa vida para as tentações e os males. Pois, considerem que já desde o berço Jesus Cristo se viu obrigado a fugir. Ele mal nascera, e a fúria de um tirano se inflamou contra ele, obrigando-o a se salvar num país estrangeiro, com sua mãe, tão pura e inocente constrangida a fugir e a viver no meio de bárbaros.

 Essa conduta de Deus nos ensina que quando temos a honra de sermos empregados em qualquer assunto espiritual, e que nos vemos oprimidos por males e cercados de perigos, não devemos nos perturbar, mas dizermos a nós mesmos: por que estou sendo tratado assim, eu que esperava a coroa, os elogios, a glória, as recompensas brilhantes, depois de ter cumprido tão bem a vontade de Deus? Mas que esse exemplo os anime a sofre generosamente, e os faça conhecer que a sequência normal das vocações espirituais fielmente cumpridas, é o sofrimento, e que as aflições são companheiras inseparáveis da virtude.

Observem hoje essa verdade, não apenas na mãe de Jesus, mas ainda nos magos. Pois eles se retiraram em segredo como fugitivos, e a Virgem, que jamais havia saído do recolhimento de uma casa, foi constrangida a fazer um caminho penoso, por causa daquela gravidez totalmente espiritual e divina. Admirem essa estranha maravilha. A Judeia perseguiu Jesus Cristo, e o Egito o recebeu e o salvou daqueles que o perseguiam. Isso permite ver que Deus não apenas traçou nos filhos dos patriarcas as imagens do futuro, como ainda no próprio Jesus Cristo, pois é certo que muitas das coisas que ele viria a fazer então eram imagens do que ele faria depois; citarei, como exemplo, a jumenta e o jumentinho que ele montou para fazer sua entrada em Jerusalém.

Assim é que o anjo apareceu, não a Maria, mas a José, e lhe disse: “Levante-se, pegue a criança e sua mãe”. Ele não diz, como antes: “Pegue Maria, sua esposa”, mas “tome a mãe da criança”, porque já não restava a José nenhuma dúvida depois da gravidez, e ele acreditava firmemente na verdade do mistério. O anjo, portanto, falou-lhe com mais liberdade, e já não mais chamou Maria de “sua esposa”, mas de “mãe da criança”. “E fuja para o Egito, disse ele, acrescentando o motivo: pois Herodes está buscando a criança para matá-la”.

4.      Escutando essas palavras, José não ficou escandalizado. Ele não disse ao anjo: essa é uma coisa bem estranha. Você me disse não faz muito tempo que essa criança salvaria seu povo, e hoje ela não pode sequer salvar a si mesma. É preciso que nos retiremos a uma terra estranha. O que você me ordena fazer é contrário à sua promessa. José não disse nada disso, porque ele era um home fiel. Ele não mostrou nenhuma curiosidade para saber o tempo de seu retorno, ainda que o anjo não tenha especificado um determinado momento, mas que ele disse: “Fique lá até que eu lhe diga para partir”. Ele tampouco demonstrou menos ardor em crer e obedecer e sofreu com alegria todas essas provas. A bondade de Deus misturou aí a alegria e a tristeza e temperou uma com a outra. É assim que ele costuma agir com seus santos: ele não os deixa sempre, nem em perigo, nem em segurança, mas faz de suas vidas como que um tecido e uma cadeia admirável de bens males. É isso que ele fez com José, e eu lhes peço que guardem isso.

Ele viu a gravidez de Maria, e logo ficou perturbado e sofrendo, suspeitando que sua jovem esposa fosse adúltera; mas o anjo veio em tempo e o curou de suas suspeitas e o livrou de seus temores. Em seguida nasceu a criança. Ele ficou numa alegria extrema; mas logo se seguiu uma dor estranha, quando ele viu toda a cidade conturbada e um rei furioso resolvido a matar a criança. Pouco tempo depois, essa tristeza foi temperada pela alegria causada pela estrela e a adoração dos magos; e novamente ela foi transmutada em novos temores, quando lhe foi dito que Herodes buscava a criança para matá-la, e então o anjo o obrigou a fugir.

Pois Jesus Cristo devia então agir de uma maneira humana. O tempo de agir como Deus ainda não havia chegado. Se ele começasse a fazer milagres desde cedo, ninguém acreditaria que ele fosse homem. É por isso que ele não chegou ao mundo de supetão: mas, primeiro, ele foi concebido, depois passou nove meses no seio de Maria, nasceu, foi nutrido de leite, escondeu-se durante tanto  tempo e aguardou que com o passar dos anos ele se tornasse homem, a fim de que essa conduta persuadisse a todos da verdade de sua encarnação. Mas por que, dirão vocês, apareceram de início alguns milagres? Foi por causa de sua mãe, de José, de Simão que estava prestes a morrer, dos pastores, dos magos e dos próprios Judeus, porque se esses tivesse examinado com cuidado tudo o que se passava, teriam extraído daí grandes benefícios. Se vocês não encontram nada nos profetas, relativo aos magos, não se espantem. Os profetas não precisavam prever tudo, nem nada prever. Se tantos prodígios tivessem se operado de uma vez sem serem anunciados, eles teriam atingido com muita força os homens, e atrapalhado suas ideias. Por outro lado, se eles tivessem conhecido previamente todos os detalhes dos mistérios, eles teriam acolhido os acontecimentos com indiferença, e os Evangelistas não teriam nada de novo para dizer.

“José, tendo se levantado, tomou o menino e sua mãe durante a noite e se retirou para o Egito, onde permaneceu até a morte de Herodes, a fim de que essa palavra que o Salvador disse pelo Profeta se realizasse: Eu chamei meu filho do Egito”. Se os Judeus duvidam dessa profecia e pretendem que as palavras “eu chamei meu filho do Egito[3]” devem ser entendidas como se referindo a eles próprios, nós responderemos que o costume dos profetas é de dizer coisas que não seriam cumpridas por aqueles mesmos a quem eles falam. Assim quando a Escritura fala de Simão e de Levi: “Eu os dividirei em Jacó e os dispersarei em Israel[4]”, essa profecia não se cumpriu com esses dois patriarcas, mas somente com seus descendentes. O que Noé disse de Canaã também não se cumpriu nele, mas nos Gabaonitas que saíram dele. A mesma coisa podemos ver também no patriarca Jacó. Pois essa bênção que seu pai lhe deu: “Seja o senhor de seus irmãos, e que os filhos de seu pai o adorem[5]”, certamente não se realizou nele, porque, bem ao contrário, Jacó tinha medo de seu irmão Esaú, e vemos na Escritura que ele se prosternou por terra muitas vezes para adorá-lo; mas isso aconteceu com seus filhos.

Podemos dizer aqui a mesma coisa. Pois qual dos dois é verdadeiramente o Filho de Deus, o que adorou o bezerro de ouro, que se consagrou ao culto de Belfegor e que imolou crianças ao demônio, ou o que é Filho de Deus por natureza, e que prestou uma soberana honra a seu Pai? É por isso que, se Jesus Cristo não tivesse vindo, essa profecia não teria sido cumprida dignamente. E observem que o Evangelista insinua isso, ao dizer: “a fim de que a palavra do profeta se realizasse”, mostrando assim que ela não teria se realizado se o Filho de Deus não tivesse vindo.

5.      Isso é o que demonstra extraordinariamente a glória da Virgem, porque só ela possui, por um título todo especial, uma vantagem de que o povo judeu se vangloriava grandemente, anunciando que Deus o havia retirado do Egito. O Profeta frisa isso de modo obscuro quando diz: “Não mandei eu vir os estrangeiros da Capadócia, e não tirei os Assírios da fossa?[6]”. É nisso que reside, como eu disse, a vantagem e o privilégio especial da Virgem. Podemos mesmo dizer que esse povo, outrora, e o patriarca Jacó, não desceram ao Egito nem retornaram de lá, senão para que fosse a imagem do que viria a acontecer com Jesus Cristo. Esse povo foi ao Egito para evitar a morte pela fome, que o ameaçava; Jesus Cristo foi também, mas para evitar a morte com que Herodes o ameaçava. Aquele povo se livrou da fome, mas Jesus Cristo, ao entrar no Egito, santificou todo o país com sua presença. Mas admirem, eu lhes peço, como Jesus Cristo alia a insignificância do homem com a grandeza de Deus. Pois o anjo disse a José e Maria: “Fujam para o Egito”; mas ele não lhes prometeu que os acompanharia nessa viagem, nem no seu retorno; isso dava a entender que eles tinham consigo um grande guia, a saber, o menino, que desde seu nascimento mudou toda a ordem das coisas e que forçou seus maiores inimigos a contribuir para a execução de seus desígnios. Pois os magos, que eram bárbaros e idólatras, deixaram todas as suas superstições para vir adorá-lo; e o imperador Augusto fez, com seu edital, com que Jesus Cristo nascesse em Belém.

O Egito o recebeu em sua fuga e salvou-o de seu inimigo, e tirou de sua presença como que uma disposição a se converter, de modo que, logo que ouviu os apóstolos anunciar sua fé, pôde se gabar de ter sido o primeiro a abraçá-la. Tal privilégio deveria ser da Judéia, mas o Egito o arrebatou por seu zelo. Se vocês forem hoje aos mais distantes lugares do Egito, encontrarão lá um deserto transformado em paraíso, mais belo do que todos os jardins do mundo; verão tropas inumeráveis de anjos revestidos de corpos; povos inteiros de mártires; assembleias de virgens; enfim, toda a tirania do demônio destruída, e o reino de Jesus Cristo florescendo em toda parte.

Vocês verão esse Egito, a mãe dos poetas, dos filósofos e dos mágicos, que se vangloriava de ter encontrado todas as sortes de superstições e de tê-las ensinado aos outros, se glorificar agora de ser fiel discípulo de pescadores, de renunciar a toda a ciência dos falsos sábios, de ter sempre nas mãos os escritos de um publicano e de um fabricante de tendas, e de colocar toda sua glória na cruz de Jesus Cristo. São milagres que o Egito mostra, não apenas nas cidades, mas mais ainda nos desertos. Por todo lado vemos soldados de Jesus Cristo, uma assembleia real e augusta de solitários e uma imagem da vida dos anjos.

Essa glória não é particular aos homens, as mulheres as dividem com eles. Elas não têm menos força do que os homens, não para montar a cavalo e para manejar armas, como ordenavam os mais graves dentre os legisladores e filósofos gregos, mas para empreender uma guerra bem mais rude e penosa, que elas têm em comum com os homens. Pois, como eles, elas devem combater o próprio demônio e as potências das trevas, e sem que a fraqueza de seu sexo as possa livrar desses combatem, porque eles não demandam a força do corpo, mas a boa disposição da alma e do coração. É por isso que vemos nesse tipo de guerra as mulheres demonstrarem mais coragem e generosidade do que os homens, obtendo elas as mais gloriosas vitórias.

6.      O céu não brilha com uma variedade tal de estrelas como hoje brilham os desertos do Egito com uma infinidade de mosteiros e de casas santas. Que se lembrar de como era outrora aquele Egito tão rebelde a Deus, tão mergulhado na superstição, que chegava mesmo a adorar os gatos, que tinha um temor respeitoso pelas cebolas e o alho poró, compreenderá, comparando-o com o que vemos hoje, quão grande é a força e a onipotência de Jesus Cristo. Não precisamos nem trazer à memória os séculos passados, para ver a que ponto chegava o excesso de superstições do Egito, das quais não restam senão poucos traços entre seus habitantes.

Aqueles mesmos que viviam mergulhados nesses desregramentos tão estranhos, hoje não se ocupam senão das coisas do céu, e do que está acima do céu. Eles têm horror dos costumes ímpios de seus pais. Eles sentem compaixão por seus avós, e só mostram desprezo por todos os seus sábios e seus filósofos. Pois enfim eles reconheceram por experiência que as máximas daqueles sábios não era mais do que imaginações de pessoas embriagadas, ou de contos semelhantes aos que as tias velhas contam às crianças, enquanto que a sabedoria verdadeira e digna do céu é aquela que os pescadores lhes ensinaram.

Por isso eles unem ao amor extremo pela verdade o brilho de uma vida disciplinada e perfeita. Depois de terem sido despojados de tudo e de se crucificarem para o mundo, eles levaram seu zelo ainda mais longe: e trabalharam com suas próprias mãos, para ter com o que sustentar os pobres. Eles não pretendem que, por jejuarem ou velarem, eles podem ser ociosos ao longo dos dias; mas eles empregam toda a noite a cantar hinos e a vigiar, e o dia a trabalhar com as mãos, imitando assim o zelo do grande Apóstolo. Pois, ainda que toda a terra o visse como o pregador da verdade, ele preferia se ocupar como artesão, e trabalhar com suas mãos, até passar as noites sem dormir para ganhar algo com que pudesse aliviar os pobres; quanto mais nós, dizem esses santos homens, que desfrutamos da solidão, e que não temos nada em comum com o tumulto das cidades, não devemos consagrar esse repouso a algum trabalho útil e espiritual?

Envergonhemo-nos nós, pobres e ricos, de que, enquanto que esses santos solitários, que não possuem mais do que seus corpos e seus braços, se violentam para encontrar em seu trabalho algo para ajudar na subsistência dos pobres, nós, que possuímos tantos bens em nossas casas, não empreguemos mais do que o supérfluo para mitigar os miseráveis. Como nos desculparemos por tamanha dureza? Como poderemos obter o perdão?

Lembrem-se de como o Egípcios de antes eram avaros, como eram escravos da intemperança da boca e dos outros vícios. Havia lá, como diz a Escritura, “travessas cheias de carne[7]”, de que os Judeus tinham saudades no deserto. A intemperança dominava o Egito. E, no entanto, assim que quiseram, converteram-se e se transformaram, e, tendo sido abrasados pelo fogo de Jesus Cristo, foram elevados ao céu. Depois de terem sido mais coléricos e voluptuosos do que todos os outros povos, eles agora imitam os anjos por sua temperança e por todas as outras virtudes.

Todos os que já visitaram esse país sabem que o que eu digo é verdade. Mas se alguém não teve a felicidade de ver seus santos mosteiros, considere o grande e bem-aventurado Antônio, que é hoje admirado por toda a terra, e que o Egito produziu, quase igual aos apóstolos. Que se lembre que esse santo homem nasceu no mesmo país do Faraó, e que nem por isso foi menos santo. Ele foi inclusive considerado digno de que Deus se tenha mostrado a ele de modo especial, e toda a sua vida se resumiu a uma prática exata daquilo que Jesus Cristo ordenou no Evangelho.

 Os que lerem sua Vida reconhecerão a verdade do que eu digo, e verão em muitas partes que ele teve o dom da profecia. Pois ele descobriu e previu os males que a heresia ariana iria produzir na Igreja, tendo Deus o revelado, colocando o futuro diante de seus olhos. Dentre todas as outras provas da verdade da Igreja, essa é uma das mais claras, porque não encontramos entre os heréticos um único que se assemelhe a ele. Mas, para que vocês não tenham que acreditar só em mim, leiam o livro de sua Vida, e verão todas essas ações em detalhe, além de muitas outras coisas que poderão levá-los ao cúmulo da virtude.

Meditemos sobre essa vida tão santa, e cuidemos de imitá-la, sem nos escusarmos jamais, seja pelo lugar onde vivemos, seja pela nossa educação falha, seja pelo desregramento de nossos pais. Pois, se vigiarmos cuidadosamente sobre nós mesmos, nenhuma dessas coisas poderá nos prejudicar. Abrahão tinha um pai ímpio e idólatra, e ele não herdou sua impiedade. Exéquias era filho do detestável Rei Acás, o que não o impediu de se tornar amigo de Deus. José, em pleno Egito, obteve a coroa de uma castidade inviolável. E aqueles três jovens no meio da Babilônia e em plena corte, não deixaram, por causa das comidas deliciosas que lhes eram servidas, de conservar um amor firme e inquebrantável pelas mais altas virtudes. Também Moisés viveu no Egito, e Paulo em todos os lugares da terra, sem que suas virtudes tenham sido menos perfeitas por ter vivido entre pessoas más.

Sigamos esses exemplos, deixemos de alegar falsas desculpas; afastemos todos os falsos pretextos; abracemos generosamente todos os trabalhos necessários a que nos estabeleçamos numa vida santa. É assim que faremos Deus nos amar cada vez mais, e que o levaremos a nos sustentar nos combates, para que ao final recebamos esses bens eternos que eu desejo a vocês, pela graça e bondade de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem pertencem a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém.


[1] Lucas 2: 7.
[2] Oséias 2: 1.
[3] Oséias 11: 1.
[4] Gênesis 49: 7.
[5] Gênesis 27: 29.
[6] Amós 9: 7 (Versão 70)
[7] Êxodo 16: 3.

Nenhum comentário:

Postar um comentário