terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Alexandre Schmemann - O Espírito Santo



A teologia define o Espírito Santo como a Terceira Pessoa da Trindade; no Credo, nós o confessamos como procedente do Pai; o Evangelho nos ensina que ele é enviado por Cristo para ser o Consolador, para nos fazer “alcançar a verdade por inteiro[1]” e para nos unir a Cristo e ao Pai. Nós começamos cada serviço litúrgico por uma prece ao Espírito Santo, invocando-o como “Rei Celestial, Consolador, Espírito de verdade, presente em toda parte e ocupando todo lugar, tesouro dos bens e dispensador da vida”. São Serafim de Sarov descreve toda a vida cristã como a “aquisição do Espírito Santo”. São Paulo define o Reino de Deus como “justiça, paz e alegria no Espírito Santo[2]”. Nós dizemos que os santos são portadores do Espírito Santo e queremos que nossa vida seja espiritual, ou seja, inspirada pelo Espírito.

Na verdade, o Espírito Santo está no próprio coração da Divina Revelação e da vida cristã. E, no entanto, quando queremos falar Dele, nos é extremamente difícil encontrar as palavras justas – tão difícil que para muitos cristãos o ensinamento da Igreja sobre o Espírito Santo enquanto Pessoa perdeu todo significado concreto e existencial, de maneira a que eles o concebem como uma potência divina: não como Ele ou Tu, mas como um divino Isso. Mesmo a teologia, ainda que mantendo evidentemente a doutrina clássica das Três Pessoas divinas ao falar de Deus, prefere, quando trata da Igreja e da vida cristã, falar da graça, e não do conhecimento e da experiência pessoal do Espírito Santo.

Ora, no sacramento da unção, nós recebemos o próprio Espírito Santo, e não apenas a graça: é isso que a Igreja sempre ensinou. Foi exatamente o Espírito Santo, e não alguma potência divina, que desceu sobre os apóstolos no dia do Pentecostes. É ele, e não a graça, que invocamos na prece pela qual adquirimos um reforço espiritual. Assim, é evidente que o mistério último da Igreja consiste em conhecer o Espírito Santo, em recebê-Lo, em estar em comunhão com Ele. E o cumprimento do batismo na unção consiste na vinda do próprio Espírito Santo que se revela ao homem e nele habita. Mas então, a questão é a seguinte: o que significa conhecer o Espírito Santo, possuí-lo, estar Nele?

O melhor modo de responder a essa questão é comparar o conhecimento do Espírito santo ao de Cristo. É claro que para conhecer a Cristo, para amá-Lo, para aceitá-Lo enquanto sentido último, mantenedor e alegria de minha vida, eu devo em primeiro lugar saber algumas coisas referentes a Cristo. Ninguém pode crer em Cristo sem que tenha ouvido falar Dele e de Seu ensinamento, e é esse conhecimento referente e Cristo que recebemos pela predicação apostólica, pelo Evangelho e pela Igreja. Mas não seria exagerado dizer que no que diz respeito ao Espírito Santo, essa sequência – conhecimento referente, de pois conhecimento de, e por comunhão com – é invertida. Nós não podemos conhecer coisa alguma referente ao Espírito Santo. Mesmo o testemunho daqueles que O conheceram verdadeiramente e que estiveram em comunhão com Ele nada significa para nós se não tivermos tido a mesma experiência. De fato, o que podem significar as palavras que, na prece eucarística de São Basílio, designam o Espírito Santo: “...o Dom da adoção, a Promessa da herança por vir, as primícias dos bens eternos, a Força vivificante, a Fonte da santificação...”? Quando um amigo pediu a São Serafim de Sarov que lhe explicasse o Espírito Santo, o santo não lhe deu uma explicação, mas o fez partilhar de uma experiência que seu discípulo descreveu como “de extraordinária doçura”, “uma extraordinária alegria em todo o meu coração”, “um extraordinário calor” e “uma extraordinária suavidade”, e que são a experiência do Espírito Santo; pois, como disse São Serafim, “quando o Espírito de Deus desce sobre o homem e o recobre com Sua plenitude, a alma humana transborda de uma alegria inexprimível, porque o Espírito de Deus transforma em alegria tudo o que Ele toca”.

Tudo isso significa que conhecemos o Espírito Santo por Sua presença em nós, presença que se manifesta principalmente por uma alegria, uma paz e uma plenitude inexprimíveis. Mesmo na linguagem comum, essas palavras – alegria, paz, plenitude – implicam algo que é justamente inefável, que por sua própria natureza está além das palavras, das definições e das descrições. Elas se referem a esses momentos da vida em que a vida está plena de vida, quando nada falta, nem se deseja seja o que for, quando não existe angústia, temor ou frustração. O homem fala sempre de felicidade e, na verdade, a vida é a busca da felicidade, a aspiração à plenitude. Podemos assim dizer que a presença do Espírito Santo é a realização da verdadeira felicidade. E como essa felicidade não resulta de uma “causa” identificável e exterior, como é o caso de nossa pobre e frágil felicidade terrestre que desaparece quando desaparece a causa que a produziu, como ela não resulta de nada que seja desse mundo, e no entanto se traduz numa alegria a respeito de todas as coisas, essa felicidade deve ser o fruto em nós da vinda, da presença e da estada de Alguém que seja Ele próprio Vida, Alegria, Paz, Beleza, Plenitude e Felicidade.

Esse Alguém é o Espírito Santo. Não existe ícone Dele, nenhuma representação, porque Ele não se fez carne, não se fez homem. E, no entanto, quando Ele vem e está presente em nós, tudo se torna Seu ícone e Sua revelação, comunhão com Ele, conhecimento Dele. Pois é Ele que faz com que a vida seja vida, que a alegria seja alegria, que o amor seja amor e a beleza, beleza, é Ele que por conseguinte é a Vida da vida, a Alegria da alegria, o Amor do amor e a Beleza da beleza, é Ele que, estando acima e além de todas as coisas, faz do conjunto da criação um símbolo, o sacramento, a experiência de Sua presença: encontro do homem com Deus e sua comunhão com Ele. Ele não está “à parte”, ou “em algum lugar”, porque é Ele que santifica todas as coisas, mas Ele revela a Si mesmo nessa santificação como se estivesse para além do mundo, além de tudo o que existe. Graças à santificação, nós O conhecemos verdadeiramente, a Ele e não a algum divino e impessoal “Isso”, embora as palavras humanas não possam definir e isolar soba forma de uma objeto Aquele cuja revelação mesma enquanto Pessoa consiste em que Ele revela cada um e cada coisa como coisa única e pessoal, como sujeito e não objeto, e transforma todas as coisas em um encontro pessoal com o divino e inefável Tu.

Cristo prometeu que o coroamento de Sua obra seria a descida, a vinda do Espírito Santo. Cristo veio para restabelecer em nós a vida que havíamos perdido devido ao pecado, para nos dar novamente a vida “em abundância[3]”. E o conteúdo dessa vida é assim o Reino de Deus e o Espírito Santo. Quando vier o grande e último dia do Pentecostes, serão a vida em abundância e o Reino de Deus que serão verdadeiramente inaugurados, ou seja, que nos serão manifestados e comunicados. O Espírito Santo, que Cristo possui por toda eternidade como Sua Vida, nos é dado como nossa vida. Nós permanecemos nesse mundo, continuamos a partilhar de sua existência mortal; entretanto, como recebemos o Espírito Santo, nossa verdadeira vida está “oculta com Cristo em Deus[4]”, e desde já somos participantes do Reino eterno de Deus, que, para esse mundo, ainda está por vir.

Agora compreendemos porque, quando vier o Espírito Santo, Ele nos unirá a Cristo, nos fará entrar no Corpo de Cristo, fará de nós participantes da Realeza, do Sacerdócio e da Profecia de Cristo. Pois o Espírito Santo, sendo Vida de Deus, é verdadeiramente a Vida de Cristo; Ele é, de maneira única, Seu Espírito. Cristo, ao nos dar Sua Vida, nos deu o Espírito Santo; e o Espírito Santo, ao descer sobre nós e habitar em nós, nos dá Aquele de Quem é Ele a Vida.

Esse é o dom do Espírito Santo, o significado de nosso Pentecostes pessoal no sacramento da santa unção. Ele nos sela – vale dizer, nos faz, revela, confirma – como membros da Igreja, Corpo de Cristo, cidadãos do Reino de Deus, participantes do Espírito Santo. E, por meio desse selo, Ele nos dá verdadeiramente nossa própria identidade, e ordena a cada um de nós para que sejamos, por toda a eternidade, aquilo que Deus deseja que sejamos, revelando nossa verdadeira personalidade e, portanto, nossa realização única.

O dom é concedido plenamente, em abundância, em profusão: “Deus concede o Espírito sem medida[5]”, e: “De Sua plenitude, todos recebemos, e graça sobre graça[6]”. Agora, nós devemos nos apropriar desse dom, recebê-lo verdadeiramente, torná-lo nosso. É esse o objetivo da vida cristã.

Dizemos “vida cristã” e não “espiritualidade”, porque essa última palavra se tornou ultimamente ambígua e enganadora. Para muitos, ela implica uma atividade misteriosa e autônoma, um segredo que é possível atingir pelo estudo de certas técnicas espirituais. O mundo hoje em dia é teatro de uma busca inquieta por espiritualidade e misticismo e, nessa busca, tudo está longe de ser são – fruto dessa sobriedade espiritual que sempre foi a fonte e o fundamento da verdadeira tradição espiritual cristã. Muitos sábios e autoproclamados mestres espirituais, explorando aquilo que com frequência é uma busca autêntica e ardente pelo Espírito, arrastam seus discípulos a perigosos impasses espirituais.

É importante, assim, afirmar uma vez mais que a própria essência da espiritualidade cristã é que ela se aplica sobre a vida inteira. A vida nova que São Paulo define como sendo “viver pelo Espírito e caminhar sob o impulso do Espírito[7]”, não é outra vida, nem um sucedâneo dessa: é a mesma vida que nos foi dada por Deus, mas renovada, transformada e transfigurada pelo Espírito Santo. Todo cristão – seja monge num eremitério ou engajado nas atividades do mundo – é chamado a não dividir sua vida entre espiritual e material, mas a lhe devolver sua integridade, a santificá-la por inteiro pela presença do Espírito Santo. Se São Serafim de Sarov era feliz nesse mundo, se sua vida terrestre se tornou, ao final das contas, uma torrente luminosa de alegria, se ele se regozijava com cada árvore e cada animal, se ele acolhia cada um que vinha procurá-lo dizendo “minha alegria”, é porque em tudo isso ele via o arrebatamento Daquele que está infinitamente  além de tudo, mas que faz de todas as coisas experiência, alegria e plenitude de Sua presença.

“O fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, bondade, bem-aventurança, fé, doçura, domínio de si...[8]”. esses são os elementos da espiritualidade autêntica, a finalidade de todo verdadeiro esforço espiritual, o caminho da santidade que é o fim último da vida cristã. “Santo”, mais do que “Espírito”, é o termo que define o Espírito Santo, pois a Escritura fala também de “espíritos do mal”. E como esse é o nome do Espírito Divino, é impossível dar a Ele uma definição em linguagem humana. Ele não é sinônimo de perfeição e bondade, virtude e fidelidade, embora contenha e implique tudo isso. Ele é o fim de toda linguagem humana porque Ele é a própria Realidade na qual tudo o que existe encontra sua realização.

“Um só é Santo”. E, no entanto, é a Santidade que recebemos como sendo verdadeiramente o novo conteúdo de nossa vida na unção do próprio Espírito Santo; e é por Sua santidade, elevando-nos sem cessar nela, que podemos realmente transformar e transfigurar, tornar plena e santa a vida que Deus nos deu.



[1] João 16: 13.
[2] Romanos 14: 17.
[3] João 10: 10.
[4] Colossenses 3: 3.
[5] João 3: 34.
[6] João 1: 16.
[7] Gálatas 5: 25.
[8] Gálatas 5: 22.

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