segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

São João Crisóstomo - Homilias sobre a Natividade do Senhor - Oitava Homilia: Livro da geração de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abrahão - Capítulo II, versículos 11 a 16






1.      O que levou São Lucas a dizer que o menino estava deitado numa manjedoura? É o seguinte: como José e Maria não conseguiram abrigo numa causa, por causa do grande número de estrangeiros chegados a Belém devido ao recenseamento, eles se refugiaram num estábulo; a Virgem então trouxe ao mundo o menino-Deus, e o acomodou na manjedoura do estábulo. Essa é a explicação que o próprio São Lucas dá, dizendo: “Ela acomodou a criança na manjedoura porque não havia lugar para eles na hospedaria[1]”. Mas em seguida ela a tirou de lá e a pôs sobre seus joelhos.  

Mas chegados a Belém, a Virgem deu à luz; essa circunstância não tem nada de fortuito, ela faz parte do plano divino relativo ao mistério da encarnação, e é necessária para o cumprimento das profecias.

Mas o que levou os magos a adorar o menino? Não foi o aspecto exterior da Virgem, que não tinha nada de extraordinário, nem a aparência da habitação, que estava longe de ser magnífica, nem o conjunto das coisas que acompanhavam a circunstância, em que não havia nada que pudesse tocar e cativar. Entretanto, eles não apenas o adoraram, como lhe abriram seus tesouros e lhe deram presentes, talvez mais como a um Deus do que a um homem, porque o incenso e a mirra são especificamente devidos a Deus. O que foi, então, que fez com que eles se prosternassem diante de uma criança, senão a mesma coisa que os fez deixar suas casas para fazer uma viagem tão longa, vale dizer, primeiro a estrela, e depois a própria luz de Deus derramada em suas almas, e que os conduziu pouco a pouco, para iluminá-los depois? Mas, como ali não havia nada de grande que pudesse ser percebido pelos sentidos – porque os olhos não viam mais do que uma manjedoura, um estábulo, uma mãezinha pobre – a grande sabedoria dos magos, pura e simplesmente, brilhou ainda mais, e é preciso que vocês compreendam que não foi para um puro homem que eles vieram, mas para o próprio Deus, para o Salvador do mundo. Foi com essa fé viva que, longe de se ofender com a simplicidade exterior, eles se prosternaram diante da criança, e lhe ofereceram presentes que nada tinham de carnal, como as oferendas dos Judeus. Pois eles não lhe imolaram cordeiros nem bezerros, mas dons misteriosos muito mais próximos da graça e da excelência da Igreja, e que são os símbolos da ciência, da obediência e da caridade.

“E, tendo recebido em sonho uma advertência do céu para que não voltassem a encontrar Herodes, eles retornaram ao seu país por outro caminho”. Admirem ainda aqui a fé dos magos. Pois, como não ficaram eles escandalizados ou surpresos com esse aviso? Como permaneceram firmes na obediência, sem se perturbar e sem avaliar a situação por si mesmos?

Se aquela criança tivesse alguma coisa de grande, se tivesse qualquer poder, por que seriam eles obrigados a fugir e se retirar secretamente? Por que, depois de terem aparecido livremente e ousadamente diante de todo um povo, sem temer o barulho e o espanto da cidade nem o furor do tirano, veio agora um anjo expulsá-los dali, como se fossem escravos e fugitivos? Mas eles não tiveram esses pensamentos na alma, nem essas palavras na boca. Pois é exatamente nisso que consiste a fé, em não buscar as razões daquilo que nos dizem, mas simplesmente obedecer ao que nos é ordenado.

2.      “Ora, depois que os magos se foram, o anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, e lhe disse: “Levante-se, tome o menino e sua mãe e fuja para o Egito, e lá permaneça ate que eu lhe diga que pode partir”. Aqui podemos ficar em suspenso, considerando tanto os magos como a criança. Pois, ainda que eles não tivessem se perturbado, recebendo com fé o que lhes foi dito, não podemos nos perguntar por que Deus não os salvou soberanamente da fúria de Herodes, tanto a eles como à criança, sem que uns fossem obrigados a fugir para a Pérsia, e o outro ao Egito com sua mãe? Mas o que vocês querem que Deus fizesse nesse encontro? Que Jesus Cristo caísse nas mãos de Herodes, e que, não obstante, não sofresse ali nenhum mal depois de ser capturado? Se ele tivesse agido assim, jamais acreditariam que ele tivesse verdadeiramente tomado nossa carne, e haveria espaço para duvidar da verdade de sua encarnação. Pois, se apesar daquilo que ele fez, e de todas as provas que ele deu de sua humanidade, alguns ainda ousaram dizer que sua encarnação não passou de uma fábula, em quanta impiedade não incorreriam esses, se ele sempre houvesse agido como Deus, em toda a extensão de seu poder?

Assim é que o anjo enviou os magos, tanto para fazer deles pregadores de Jesus Cristo em seu país, como para ao mesmo tempo fazer ver a Herodes que seu desígnio cruel não teria sucesso jamais; que ele estava tentando algo impossível; que seu furor era vão, e que todos os seus trabalhos não teriam efeito algum. Pois é digno da grandeza e do poder de Deus, não apenas vencer soberanamente e sem esforço a seus inimigos, como ainda iludi-los e surpreendê-los. Foi assim que outrora ele enganou os Egípcios por meio dos Judeus, e que, ainda que pudesse fazer passar visivelmente todas as suas riquezas para as mãos dos Israelitas, ele preferiu fazê-lo secretamente e por meio de um estratagema, que não lançou menos terror no espírito de seus inimigos, do que os prodígios que fizera antes?

3.      Com efeito, os Ascalonitas e os outros povos vizinhos, quando se apoderaram da arca e foram atingidos por uma grande praga, aconselharam à nação que não lutassem contra Deus, que não lhe resistissem, e, entre outras maravilhas, lhes recordaram como Deus agira com os Egípcios: “Por que, disseram eles, oprimem seus corações, como outrora o Egito do Faraó? Quando Deus agiu com eles, não deixaram eles que seu povo se fosse dali?”. Eles falaram assim, persuadidos que essa conduta direta não era inferior a tantos prodígios espantosos, nem menos apropriada para demonstrar o poder e a grandeza de Deus.

Oque aconteceu a Herodes na ocasião dos magos não era de natureza tal a tocá-lo fortemente? Ver-se assim enganado e manipulado pelos magos, não era para explodir de raiva? Se ele não se tornou melhor, não foi por falta de Deus lhe ter propiciado essa lição; devemos atribui-lo ao excesso de loucura do tirano que, longe de ceder a essas advertências, e de abandonar sua maldade, mergulhou ainda mais fundo no crime e não se deteve pelo temor de incorrer num castigo, ainda mais severo pelo excesso de endurecimento e de demência.

Mas, por que Deus escolheu o Egito para enviar para lá a criança? O Evangelho aponta a razão principal, que era a de cumprir com essas palavras: “Eu chamei meu filho do Egito[2]”. Foi também para anunciar desde logo a toda a terra as grandes esperanças que ela poderia esperar do futuro. Pois, como o Egito e a Babilônia tinham queimado com as chamas da impiedade mais do que todo o mundo, Deus quis apontar primeiro que ele haveria de converter a ambos, e que os purificaria de seus vícios, e para dar com isso uma esperança de uma transformação similar a toda a terra. Foi por isso que ele enviou seus magos à Babilônia, e foi ele próprio ao Egito com sua mãe.

 Além dessas razões, temos aqui uma instrução muito útil para nos estabelecer numa sólida virtude: é para nos preparar desde os primeiros dias de nossa vida para as tentações e os males. Pois, considerem que já desde o berço Jesus Cristo se viu obrigado a fugir. Ele mal nascera, e a fúria de um tirano se inflamou contra ele, obrigando-o a se salvar num país estrangeiro, com sua mãe, tão pura e inocente constrangida a fugir e a viver no meio de bárbaros.

 Essa conduta de Deus nos ensina que quando temos a honra de sermos empregados em qualquer assunto espiritual, e que nos vemos oprimidos por males e cercados de perigos, não devemos nos perturbar, mas dizermos a nós mesmos: por que estou sendo tratado assim, eu que esperava a coroa, os elogios, a glória, as recompensas brilhantes, depois de ter cumprido tão bem a vontade de Deus? Mas que esse exemplo os anime a sofre generosamente, e os faça conhecer que a sequência normal das vocações espirituais fielmente cumpridas, é o sofrimento, e que as aflições são companheiras inseparáveis da virtude.

Observem hoje essa verdade, não apenas na mãe de Jesus, mas ainda nos magos. Pois eles se retiraram em segredo como fugitivos, e a Virgem, que jamais havia saído do recolhimento de uma casa, foi constrangida a fazer um caminho penoso, por causa daquela gravidez totalmente espiritual e divina. Admirem essa estranha maravilha. A Judeia perseguiu Jesus Cristo, e o Egito o recebeu e o salvou daqueles que o perseguiam. Isso permite ver que Deus não apenas traçou nos filhos dos patriarcas as imagens do futuro, como ainda no próprio Jesus Cristo, pois é certo que muitas das coisas que ele viria a fazer então eram imagens do que ele faria depois; citarei, como exemplo, a jumenta e o jumentinho que ele montou para fazer sua entrada em Jerusalém.

Assim é que o anjo apareceu, não a Maria, mas a José, e lhe disse: “Levante-se, pegue a criança e sua mãe”. Ele não diz, como antes: “Pegue Maria, sua esposa”, mas “tome a mãe da criança”, porque já não restava a José nenhuma dúvida depois da gravidez, e ele acreditava firmemente na verdade do mistério. O anjo, portanto, falou-lhe com mais liberdade, e já não mais chamou Maria de “sua esposa”, mas de “mãe da criança”. “E fuja para o Egito, disse ele, acrescentando o motivo: pois Herodes está buscando a criança para matá-la”.

4.      Escutando essas palavras, José não ficou escandalizado. Ele não disse ao anjo: essa é uma coisa bem estranha. Você me disse não faz muito tempo que essa criança salvaria seu povo, e hoje ela não pode sequer salvar a si mesma. É preciso que nos retiremos a uma terra estranha. O que você me ordena fazer é contrário à sua promessa. José não disse nada disso, porque ele era um home fiel. Ele não mostrou nenhuma curiosidade para saber o tempo de seu retorno, ainda que o anjo não tenha especificado um determinado momento, mas que ele disse: “Fique lá até que eu lhe diga para partir”. Ele tampouco demonstrou menos ardor em crer e obedecer e sofreu com alegria todas essas provas. A bondade de Deus misturou aí a alegria e a tristeza e temperou uma com a outra. É assim que ele costuma agir com seus santos: ele não os deixa sempre, nem em perigo, nem em segurança, mas faz de suas vidas como que um tecido e uma cadeia admirável de bens males. É isso que ele fez com José, e eu lhes peço que guardem isso.

Ele viu a gravidez de Maria, e logo ficou perturbado e sofrendo, suspeitando que sua jovem esposa fosse adúltera; mas o anjo veio em tempo e o curou de suas suspeitas e o livrou de seus temores. Em seguida nasceu a criança. Ele ficou numa alegria extrema; mas logo se seguiu uma dor estranha, quando ele viu toda a cidade conturbada e um rei furioso resolvido a matar a criança. Pouco tempo depois, essa tristeza foi temperada pela alegria causada pela estrela e a adoração dos magos; e novamente ela foi transmutada em novos temores, quando lhe foi dito que Herodes buscava a criança para matá-la, e então o anjo o obrigou a fugir.

Pois Jesus Cristo devia então agir de uma maneira humana. O tempo de agir como Deus ainda não havia chegado. Se ele começasse a fazer milagres desde cedo, ninguém acreditaria que ele fosse homem. É por isso que ele não chegou ao mundo de supetão: mas, primeiro, ele foi concebido, depois passou nove meses no seio de Maria, nasceu, foi nutrido de leite, escondeu-se durante tanto  tempo e aguardou que com o passar dos anos ele se tornasse homem, a fim de que essa conduta persuadisse a todos da verdade de sua encarnação. Mas por que, dirão vocês, apareceram de início alguns milagres? Foi por causa de sua mãe, de José, de Simão que estava prestes a morrer, dos pastores, dos magos e dos próprios Judeus, porque se esses tivesse examinado com cuidado tudo o que se passava, teriam extraído daí grandes benefícios. Se vocês não encontram nada nos profetas, relativo aos magos, não se espantem. Os profetas não precisavam prever tudo, nem nada prever. Se tantos prodígios tivessem se operado de uma vez sem serem anunciados, eles teriam atingido com muita força os homens, e atrapalhado suas ideias. Por outro lado, se eles tivessem conhecido previamente todos os detalhes dos mistérios, eles teriam acolhido os acontecimentos com indiferença, e os Evangelistas não teriam nada de novo para dizer.

“José, tendo se levantado, tomou o menino e sua mãe durante a noite e se retirou para o Egito, onde permaneceu até a morte de Herodes, a fim de que essa palavra que o Salvador disse pelo Profeta se realizasse: Eu chamei meu filho do Egito”. Se os Judeus duvidam dessa profecia e pretendem que as palavras “eu chamei meu filho do Egito[3]” devem ser entendidas como se referindo a eles próprios, nós responderemos que o costume dos profetas é de dizer coisas que não seriam cumpridas por aqueles mesmos a quem eles falam. Assim quando a Escritura fala de Simão e de Levi: “Eu os dividirei em Jacó e os dispersarei em Israel[4]”, essa profecia não se cumpriu com esses dois patriarcas, mas somente com seus descendentes. O que Noé disse de Canaã também não se cumpriu nele, mas nos Gabaonitas que saíram dele. A mesma coisa podemos ver também no patriarca Jacó. Pois essa bênção que seu pai lhe deu: “Seja o senhor de seus irmãos, e que os filhos de seu pai o adorem[5]”, certamente não se realizou nele, porque, bem ao contrário, Jacó tinha medo de seu irmão Esaú, e vemos na Escritura que ele se prosternou por terra muitas vezes para adorá-lo; mas isso aconteceu com seus filhos.

Podemos dizer aqui a mesma coisa. Pois qual dos dois é verdadeiramente o Filho de Deus, o que adorou o bezerro de ouro, que se consagrou ao culto de Belfegor e que imolou crianças ao demônio, ou o que é Filho de Deus por natureza, e que prestou uma soberana honra a seu Pai? É por isso que, se Jesus Cristo não tivesse vindo, essa profecia não teria sido cumprida dignamente. E observem que o Evangelista insinua isso, ao dizer: “a fim de que a palavra do profeta se realizasse”, mostrando assim que ela não teria se realizado se o Filho de Deus não tivesse vindo.

5.      Isso é o que demonstra extraordinariamente a glória da Virgem, porque só ela possui, por um título todo especial, uma vantagem de que o povo judeu se vangloriava grandemente, anunciando que Deus o havia retirado do Egito. O Profeta frisa isso de modo obscuro quando diz: “Não mandei eu vir os estrangeiros da Capadócia, e não tirei os Assírios da fossa?[6]”. É nisso que reside, como eu disse, a vantagem e o privilégio especial da Virgem. Podemos mesmo dizer que esse povo, outrora, e o patriarca Jacó, não desceram ao Egito nem retornaram de lá, senão para que fosse a imagem do que viria a acontecer com Jesus Cristo. Esse povo foi ao Egito para evitar a morte pela fome, que o ameaçava; Jesus Cristo foi também, mas para evitar a morte com que Herodes o ameaçava. Aquele povo se livrou da fome, mas Jesus Cristo, ao entrar no Egito, santificou todo o país com sua presença. Mas admirem, eu lhes peço, como Jesus Cristo alia a insignificância do homem com a grandeza de Deus. Pois o anjo disse a José e Maria: “Fujam para o Egito”; mas ele não lhes prometeu que os acompanharia nessa viagem, nem no seu retorno; isso dava a entender que eles tinham consigo um grande guia, a saber, o menino, que desde seu nascimento mudou toda a ordem das coisas e que forçou seus maiores inimigos a contribuir para a execução de seus desígnios. Pois os magos, que eram bárbaros e idólatras, deixaram todas as suas superstições para vir adorá-lo; e o imperador Augusto fez, com seu edital, com que Jesus Cristo nascesse em Belém.

O Egito o recebeu em sua fuga e salvou-o de seu inimigo, e tirou de sua presença como que uma disposição a se converter, de modo que, logo que ouviu os apóstolos anunciar sua fé, pôde se gabar de ter sido o primeiro a abraçá-la. Tal privilégio deveria ser da Judéia, mas o Egito o arrebatou por seu zelo. Se vocês forem hoje aos mais distantes lugares do Egito, encontrarão lá um deserto transformado em paraíso, mais belo do que todos os jardins do mundo; verão tropas inumeráveis de anjos revestidos de corpos; povos inteiros de mártires; assembleias de virgens; enfim, toda a tirania do demônio destruída, e o reino de Jesus Cristo florescendo em toda parte.

Vocês verão esse Egito, a mãe dos poetas, dos filósofos e dos mágicos, que se vangloriava de ter encontrado todas as sortes de superstições e de tê-las ensinado aos outros, se glorificar agora de ser fiel discípulo de pescadores, de renunciar a toda a ciência dos falsos sábios, de ter sempre nas mãos os escritos de um publicano e de um fabricante de tendas, e de colocar toda sua glória na cruz de Jesus Cristo. São milagres que o Egito mostra, não apenas nas cidades, mas mais ainda nos desertos. Por todo lado vemos soldados de Jesus Cristo, uma assembleia real e augusta de solitários e uma imagem da vida dos anjos.

Essa glória não é particular aos homens, as mulheres as dividem com eles. Elas não têm menos força do que os homens, não para montar a cavalo e para manejar armas, como ordenavam os mais graves dentre os legisladores e filósofos gregos, mas para empreender uma guerra bem mais rude e penosa, que elas têm em comum com os homens. Pois, como eles, elas devem combater o próprio demônio e as potências das trevas, e sem que a fraqueza de seu sexo as possa livrar desses combatem, porque eles não demandam a força do corpo, mas a boa disposição da alma e do coração. É por isso que vemos nesse tipo de guerra as mulheres demonstrarem mais coragem e generosidade do que os homens, obtendo elas as mais gloriosas vitórias.

6.      O céu não brilha com uma variedade tal de estrelas como hoje brilham os desertos do Egito com uma infinidade de mosteiros e de casas santas. Que se lembrar de como era outrora aquele Egito tão rebelde a Deus, tão mergulhado na superstição, que chegava mesmo a adorar os gatos, que tinha um temor respeitoso pelas cebolas e o alho poró, compreenderá, comparando-o com o que vemos hoje, quão grande é a força e a onipotência de Jesus Cristo. Não precisamos nem trazer à memória os séculos passados, para ver a que ponto chegava o excesso de superstições do Egito, das quais não restam senão poucos traços entre seus habitantes.

Aqueles mesmos que viviam mergulhados nesses desregramentos tão estranhos, hoje não se ocupam senão das coisas do céu, e do que está acima do céu. Eles têm horror dos costumes ímpios de seus pais. Eles sentem compaixão por seus avós, e só mostram desprezo por todos os seus sábios e seus filósofos. Pois enfim eles reconheceram por experiência que as máximas daqueles sábios não era mais do que imaginações de pessoas embriagadas, ou de contos semelhantes aos que as tias velhas contam às crianças, enquanto que a sabedoria verdadeira e digna do céu é aquela que os pescadores lhes ensinaram.

Por isso eles unem ao amor extremo pela verdade o brilho de uma vida disciplinada e perfeita. Depois de terem sido despojados de tudo e de se crucificarem para o mundo, eles levaram seu zelo ainda mais longe: e trabalharam com suas próprias mãos, para ter com o que sustentar os pobres. Eles não pretendem que, por jejuarem ou velarem, eles podem ser ociosos ao longo dos dias; mas eles empregam toda a noite a cantar hinos e a vigiar, e o dia a trabalhar com as mãos, imitando assim o zelo do grande Apóstolo. Pois, ainda que toda a terra o visse como o pregador da verdade, ele preferia se ocupar como artesão, e trabalhar com suas mãos, até passar as noites sem dormir para ganhar algo com que pudesse aliviar os pobres; quanto mais nós, dizem esses santos homens, que desfrutamos da solidão, e que não temos nada em comum com o tumulto das cidades, não devemos consagrar esse repouso a algum trabalho útil e espiritual?

Envergonhemo-nos nós, pobres e ricos, de que, enquanto que esses santos solitários, que não possuem mais do que seus corpos e seus braços, se violentam para encontrar em seu trabalho algo para ajudar na subsistência dos pobres, nós, que possuímos tantos bens em nossas casas, não empreguemos mais do que o supérfluo para mitigar os miseráveis. Como nos desculparemos por tamanha dureza? Como poderemos obter o perdão?

Lembrem-se de como o Egípcios de antes eram avaros, como eram escravos da intemperança da boca e dos outros vícios. Havia lá, como diz a Escritura, “travessas cheias de carne[7]”, de que os Judeus tinham saudades no deserto. A intemperança dominava o Egito. E, no entanto, assim que quiseram, converteram-se e se transformaram, e, tendo sido abrasados pelo fogo de Jesus Cristo, foram elevados ao céu. Depois de terem sido mais coléricos e voluptuosos do que todos os outros povos, eles agora imitam os anjos por sua temperança e por todas as outras virtudes.

Todos os que já visitaram esse país sabem que o que eu digo é verdade. Mas se alguém não teve a felicidade de ver seus santos mosteiros, considere o grande e bem-aventurado Antônio, que é hoje admirado por toda a terra, e que o Egito produziu, quase igual aos apóstolos. Que se lembre que esse santo homem nasceu no mesmo país do Faraó, e que nem por isso foi menos santo. Ele foi inclusive considerado digno de que Deus se tenha mostrado a ele de modo especial, e toda a sua vida se resumiu a uma prática exata daquilo que Jesus Cristo ordenou no Evangelho.

 Os que lerem sua Vida reconhecerão a verdade do que eu digo, e verão em muitas partes que ele teve o dom da profecia. Pois ele descobriu e previu os males que a heresia ariana iria produzir na Igreja, tendo Deus o revelado, colocando o futuro diante de seus olhos. Dentre todas as outras provas da verdade da Igreja, essa é uma das mais claras, porque não encontramos entre os heréticos um único que se assemelhe a ele. Mas, para que vocês não tenham que acreditar só em mim, leiam o livro de sua Vida, e verão todas essas ações em detalhe, além de muitas outras coisas que poderão levá-los ao cúmulo da virtude.

Meditemos sobre essa vida tão santa, e cuidemos de imitá-la, sem nos escusarmos jamais, seja pelo lugar onde vivemos, seja pela nossa educação falha, seja pelo desregramento de nossos pais. Pois, se vigiarmos cuidadosamente sobre nós mesmos, nenhuma dessas coisas poderá nos prejudicar. Abrahão tinha um pai ímpio e idólatra, e ele não herdou sua impiedade. Exéquias era filho do detestável Rei Acás, o que não o impediu de se tornar amigo de Deus. José, em pleno Egito, obteve a coroa de uma castidade inviolável. E aqueles três jovens no meio da Babilônia e em plena corte, não deixaram, por causa das comidas deliciosas que lhes eram servidas, de conservar um amor firme e inquebrantável pelas mais altas virtudes. Também Moisés viveu no Egito, e Paulo em todos os lugares da terra, sem que suas virtudes tenham sido menos perfeitas por ter vivido entre pessoas más.

Sigamos esses exemplos, deixemos de alegar falsas desculpas; afastemos todos os falsos pretextos; abracemos generosamente todos os trabalhos necessários a que nos estabeleçamos numa vida santa. É assim que faremos Deus nos amar cada vez mais, e que o levaremos a nos sustentar nos combates, para que ao final recebamos esses bens eternos que eu desejo a vocês, pela graça e bondade de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem pertencem a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém.


[1] Lucas 2: 7.
[2] Oséias 2: 1.
[3] Oséias 11: 1.
[4] Gênesis 49: 7.
[5] Gênesis 27: 29.
[6] Amós 9: 7 (Versão 70)
[7] Êxodo 16: 3.

domingo, 30 de dezembro de 2018

São João Crisóstomo - Homilias sobre a Natividade do Senhor - Sétima Homilia: Livro da geração de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abrahão - Capítulo II, versículos 4 a 12





1.      Veem vocês, meus irmãos, como tudo nessa história conduz à condenação dos Judeus? Enquanto eles não viram a Jesus Cristo, enquanto a inveja não se apoderou deles, eles seguiram fielmente o que os profetas haviam predito; mas quando eles viram a sua glória estabelecida por seus milagres, sua inveja preconcebida fez com que traíssem a verdade. Porém, quanto mais obstáculos ela encontrou, mais se elevou, e as perseguições não serviram senão para propagá-la.

Mas admirem agora um espantoso efeito da sabedoria de Deus. Vimos os Judeus e aqueles estrangeiros se instruírem mutuamente. Os Judeus aprenderam dos magos que uma estrela havia anunciado o Messias em seu país; e os magos aprenderam dos Judeus que Aquele a quem a estrela anunciava havia sido predito há muito tempo pelos profetas. Essa informação exata de Herodes foi causa de que uns e outros conhecessem com mais clareza a verdade. Os mesmos que a combatiam foram forçados contra a vontade a ler as Escrituras que a demonstravam, e a interpretar as profecias, ainda que o tenham feito de forma imperfeita. Pois, depois de ter dito que Jesus nasceria em Belém, e que daí sairia o pastor de Israel, eles suprimiram, para agradar a Herodes, as palavras que o Profeta acrescentou: “Daí sairá, desde o começo dos dias da eternidade[1]”.

Vocês me dirão, talvez: se o Messias devia sair de Belém, por que ele se demorou em Nazaré pouco depois de seu nascimento, lançando assim alguma escuridão sobre as profecias? Eu lhes responderei que não se trata de obscurecer a verdade, mas ao contrário, de descobri-la. Com efeito, se ele nasceu em Belém, embora normalmente sua mãe residisse em Nazaré, não é esse um sinal da ação misteriosa da divina Providência? É por isso que ela não deixou Belém imediatamente após o nascimento, mas permaneceu aí por quarenta dias, a fim de dar a quem quisesse se dar a esse trabalho, a faculdade de fazer uma enquete exata e completa a respeito.

Havia muitas razões para que os Judeus fizessem essa pesquisa, se quisessem se dedicar a isso. Quando os magos chegaram, toda a cidade e o próprio rei ficaram espantados. Foram consultados os profetas, reuniram-se os doutores da lei, sem contar muitos outros fatos que São Lucas relata com exatidão, como o que ele diz de Ana, de Simão, de Zacarias, dos anjos e dos pastores, todas coisas que bastariam para que pessoas minimamente curiosas tivessem aí uma ocasião para conhecer o que se passava. Se os magos, que vinham da Pérsia, puderam encontrar o local do nascimento, quanto mais aqueles que estavam na região não poderiam ter se instruído facilmente?

Ele se revelou assim logo após seu nascimento, por muitos milagres; mas como eles fecharam os olhos para não os ver, o Salvador se ocultou por algum tempo, a fim de se mostrar depois de um modo mais intensa. Já não serão os magos, nem a estrela, mas o próprio Pai o revelará e anunciará sobre o rio Jordão. O Espírito Santo descerá sobre a sua cabeça quando for batizado, e lhe dará testemunho por meio de uma voz vinda do céu. João, o precursor, o anunciará por toda a Judéia em alta voz, e o barulho de sua predicação encherá o deserto e os lugares habitados; seus milagres lhe darão testemunho, e a terra, o mar, e todas as criaturas elevarão suas vozes para dar a conhecer sua grandeza. Não é que ao tempo de seu nascimento ele não tenha feito milagres suficientes para revelar quem ele era. Com efeito, para que os Judeus não pudessem dizer que não sabiam quando ou onde ele havia nascido, Deus fez vir os magos, com tudo o que se passou então, para torná-los inteiramente indesculpáveis por terem negligenciado se instruírem a respeito de tudo o que se passava.  

2.      Mas observem com que exatidão o Profeta falou. Ele não disse que o Messias habitaria em Belém, mas apenas que ele sairia daí; isso significava expressamente que não faria mais do que nascer ali.

Alguns temerários ousaram sustentar que essa profecia dizia respeito a Zorobabel e não a Jesus Cristo. Mas quais razões eles podem apresentar, se não se pode dizer de Zorobabel o que foi dito de Jesus Cristo: que ele “saiu dali, desde o começo dos dias da eternidade”? Como poderia também essa palavra ser verdadeira: “Virá de Judá um Rei[2]”, se Zorobabel não nasceu na Judéia, mas na Babilônia, circunstância à qual ele deve seu nome, como sabem os que conhecem a língua siríaca?

Mas, além dessas provas, toda a sequência do tempo confirma essa profecia. O que diz a profecia? “Tu não és menor entre as cidades de Judá”; por que? De onde virá tal glória? Daquele que “sairá de ti”. Ora, dessa pequena vila não saiu ninguém que a tenha tornado ilustre e gloriosa, senão unicamente Jesus Cristo. Pois agora, depois desse nascimento admirável, chegam pessoas das extremidades da terra para ver esse estábulo e o lugar onde estava a manjedoura. É o que o Profeta indicou com as palavras: “Você não é a menor dentre as cidades de Judá”, ou seja, entre os príncipes das tribos, e que compreendiam a própria Jerusalém.

Porém os Judeus não deram atenção alguma a um acontecimento que deveria lhes importar muitíssimo. E é por isso que as profecias de início insistiram menos na grandeza de Jesus Cristo do que nas graças que ele deveria trazer aos Judeus. Quando ele ainda estava no seio da Virgem, o anjo disse a José: “Vocês o chamarão de Jesus, pois será ele que salvará seu povo dos seus pecados”. Deus preferiu, nesse começo das coisas, usar de condescendência em sua linguagem para não escandalizar ninguém, e, para melhor atrair os Judeus, anunciou primeiro o que dizia respeito à sua salvação.

Da mesma forma as primeiras profecias citadas pelo Evangelista, as que se relacionam com o tempo de seu nascimento, não falam nada de grande nem de sublime a seu respeito; não acontece o mesmo com as que se referem ao período de tempo em que se manifestariam seus milagres: essas falam de sua divindade com muito mais clareza. Quando o Profeta fala das crianças que cantaram no templo louvores ao Salvador depois das obras milagrosas que ele realizou, ele diz: “Você tirou seu louvor da boca de crianças que ainda mamavam[3]”, mas em seguida ele acrescenta: “Eu verei seus céus, que são obra de suas mãos”, para marcar claramente que ele é o criador de todas as coisas. Da mesma forma as profecias que falam de sua ascensão fazem ver sua igualdade com o Pai, como vemos pelas palavras: “O Senhor disse ao meu Senhor: assente-se à minha direita[4]”. Também Isaías fala: “Ele se elevou a fim de ser o Príncipe das nações, e as nações esperaram por ele[5]”.

Mas como o Profeta diz que Belém não é a menor dentre as cidades de Judá, se ela iria se tornar célebre não somente na Judéia, mas por todo o mundo? É porque o Profeta não fala senão aos Judeus, e é por isso que ele acrescenta: “Ele será o pastor do meu povo de Israel”, embora ele viria a sê-lo de toda a terra. Mas, como eu já disse, ele não queria ofender os Judeus desde o início, e assim escondeu de propósito o mistério da vocação dos Gentios. E como, dirão vocês, ele não se tornou pastor do povo Judeu? Ao contrário, ele o foi, porque com e termo “Israel” o Evangelho entende os Judeus que creram em Jesus Cristo. É nesse sentido que São Paulo usa o termo, ao dizer: “Nem todos os que são de Israel são Israelitas, mas apenas os que nasceram pela fé que tiveram nas promessas[6]”. Se ele não foi o rei de todos os Israelitas, foi unicamente pela falta e o crime desses. Pois, em lugar de adorá-lo junto com os magos, e de render glória a Deus por enfim ter chegado o tempo da remissão de seus pecados – porque não lhes foi falado do terror dos julgamentos de Deus, nem de sua vingança, mas foi Jesus Cristo representado como um pastor dulcíssimo – eles ao contrário provocaram perturbações e tumultos, lançando-lhe mil armadilhas para tentar perdê-lo.

“Então Herodes, tendo chamado os magos em segredo, inquiriu-os com grande cuidado sobre o tempo em que a estrela lhes havia aparecido”. Ele queria matar essa criança por um desejo tão cruel como extravagante. Porque tudo o que acontecera e o que lhe foi dito a respeito dessa criança, deveria bastar para que ele desistisse dessa empreita.

Não se pode explicar humanamente o que se passou. Uma advertência enviada do céu aos magos por meio de uma estrela, uma viagem tão longa empreendida por estrangeiros para vir adorar uma criança envolta em panos e deitada numa manjedoura, enfim, esses acontecimentos anunciados tanto tempo antes pelos profetas, nada havia aí que não ultrapassasse o humano. Não obstante, nada deteve Herodes. Sua maldade era tão grande que ele combatia contra si mesmo, e se lançou teimosamente ao impossível.

3.      Mas, vejam o absurdo. Se Herodes acreditou na profecia, se ele estava persuadido de que nada poderia evitar sua efetivação, ele deveria também compreender a inanidade de seus esforços para impedir o que não podia ser impedido. Se, ao contrário, ele não desse fé e não contasse com que essas coisas previstas devessem acontecer, porque se preocupar e temer, porque tecer tantos embustes? Assim, de um modo ou de outro, sua astúcia era supérflua. Seria também o cúmulo da extravagância esperar que os magos se importariam mais com ele do que com a criança pela qual haviam empreendido tão longa viagem. Se, antes mesmos de tê-la visto, eles testemunharam tanto ardor por encontrá-la, como esperar que, depois de tê-la visto, e de ter disso confirmados em sua fé pelos profetas, eles a trairiam e a entregariam ao seu inimigo? Malgrado tantas razões que deveriam detê-lo, o tirano continuou com seu plano.

“Ele chamou os magos em segredo”. Ele guardou o segredo, porque pensava que os Judeus tentariam salvar essa criança, e acreditava que eles não estavam tão afundados na loucura a ponto de entregar às mãos de um tirano aquele que viria a ser seu Salvador, seu protetor e o libertador de seu país. É por isso que ele “os chamou em segredo e se informou com cuidado sobre o tempo”, não da criança, mas “da estrela”; o tigre faz uma volta para saltar com mais certeza sobre sua presa. Pois me parece que deveria fazer muito tempo desde que a estrela se mostrara pela primeira vez. Como os magos deveriam empregar muito tempo na viagem, e como seria útil, para dar mais brilho a esse acontecimento, que eles adorassem a criança enquanto ela ainda estava de fraldas, era preciso que a estrela lhes tivesse aparecido muito tempo antes. Se ela só tivesse começado a aparecer no Oriente quando Jesus Cristo nascesse na Judeia, a distância do caminho não lhes teria permitido chegar em tempo de vê-lo envolto em panos. Não nos espantemos que Herodes tenha mandado matar as crianças com menos de dois anos. De resto, o medo e o furor que o agitavam o levaram, para maior segurança, a acrescentar mais tempo ao tempo indicado pelos magos, a fim de que nenhuma criança dessa idade pudesse lhe escapar.

“E enviando-os a Belém, ele lhes disse: Vão e se informem exatamente sobre essa criança, e quando a houverem encontrado me avisem, para que eu possa ir adorá-la”. Vejam que falta de senso! Se você fala com sinceridade, por que o faz em segredo? E, se é com o objetivo de lançar alguma armadilha, como não perceber que os magos iriam desconfiar depois dessas informações tão secretas? Mas, como eu já disse, o excesso de paixão leva uma alma ao cúmulo da loucura.

Ele não lhes disse: “Vão e se informem a respeito desse rei”, mas “dessa criança”, porque ele não conseguia sequer se resolver a chamá-la de rei. Porém os magos, bons e sinceros, não suspeitaram dessas palavras. Com efeito, como supor que um homem seja levado a tal excesso de malícia, tentando se opor à mais maravilhosa obra da bondade divina? Eles saíram de diante de Herodes sem pensar nada de mal, julgando por sua própria sinceridade a dos outros.

“Depois dessas palavras do rei eles partiram, e logo a estrela que haviam visto no Oriente começou a seguir diante deles, até que se deteve sobre o lugar onde estava a criança”. Ela só se ocultou para que, privados desse guia, eles fossem forçados a interrogar os Judeus, e assim anunciarem esse nascimento diante de todo o mundo. Mas, desde que eles interrogaram os Judeus, e que esses ficaram sabendo, a estrela logo voltou a aparecer. Admirem, eu lhes peço, a conduta de Deus nesse encontro. Logo que eles deixaram de ser conduzidos pela estrela, os Judeus os receberam com seu rei, e lhes relataram as profecias que falavam dessa criança. Depois que os profetas os instruíram, o anjo retornou e os informou de tudo; e essa mesma estrela os conduziu ainda de Jerusalém a Belém. Novamente ela fez o caminho com eles, para que compreendamos que não se tratava de uma estrela comum. De fato, em que outra estrela observamos algo parecido? Ela não brilhava simplesmente como as outras, mas ia adiante dos magos e os conduzia em plena luz do dia.

4.      Mas que necessidade, dirão vocês, tinham eles dessa estrela, uma vez que já sabiam o local de nascimento de Jesus Cristo? Já não era simplesmente para saber qual a cidade, mas para saber especificamente o lugar onde pudesse estar a criança. Pois a casa onde ela estava não tinha nada de grande, e sua mãe não tinha nada que atraísse os olhares ou a atenção. Era preciso então que a estrela se detivesse sobre o teto da casa. É por isso que eles voltaram a vê-la ao saírem de Jerusalém, e ela não se deteve mais até chegar ao estábulo, acrescentando assim um milagre a outro, o milagre da adoração dos magos ao milagre dos magos guiados por uma estrela. Esse duplo milagre me parece tão grande, que por si só ele deveria atrair para Jesus Cristo mesmo as almas de pedra. Se os magos tivessem dito que eles souberam do nascimento pelos profetas, ou que os anjos lhes haviam anunciado, eles não teriam tido crédito, mas a aparição de uma estrela no céu era um prodígio capaz de fechar a boca aos mais impudentes. Quando a estrela se colocou acima do Salvador, ela se deteve mais uma vez; ora, esse poder não costuma acontecer entre os astros, de sumir e aparecer novamente, e de parar onde queira. Vendo isso, os magos sentiram crescer sua fé. Eles se alegraram de ter por fim encontrado aqueles a quem tanto buscaram, de ter sido os pregadores da verdade, e de não terem empreendido inutilmente uma viagem tão longa; e essa alegria nasceu do amor que os queimava por Jesus Cristo.

A estrela se deteve sobre a cabeça do menino, para mostrar que ele era o Filho de Deus. Ela levou a adorá-lo não simples estrangeiros, mas os mais sábios de todos. Com isso vocês podem ver porque a estrela voltou a lhes aparecer, porque eles necessitavam dela mesmo depois do testemunho dos profetas, e das instruções que haviam recebido dos escribas e dos príncipes dos sacerdotes.

Que o herético Marcião, que o ímpio Paulo de Samosate se envergonhem, eles que não quiseram reconhecer aquilo que viram os magos, esses primeiros Padres da Igreja. Pois eu não enrubesço chamando-os assim. Que Marcião se cubra de vergonha, vendo um Deus adorado em sua carne, e que o ímpio Paulo seja confundido, vendo ser adorado como Deus Aquele em quem ele não acredita senão como homem. Os panos e a manjedoura bastam para ver que se tratava de um homem; mas a adoração que os magos lhe prestaram nos mostra que ele era mais do que um homem. E eles demonstram suficientemente que ele é Deus, oferecendo-lhe já na sua infância presentes que só são oferecidos a Deus. Que os Judeus se envergonhem com eles, Marcião e Paulo, vendo que esses magos e esses bárbaros os superaram, e que eles sequer tiveram fé bastante para segui-los. Mas o que se passava então era uma imagem do futuro, que sublinhava que os Gentios haviam de superar na fé o povo Judeu.

Por que, então, me dirão vocês, Jesus Cristo não disse logo aos seus apóstolos: “Vão e ensinem a todas as nações[7]”, mas reservou esse mandamento para o fim de sua vida? É porque aquilo que aconteceu aos magos constituía, como eu disse, uma previsão do futuro. Era mais justo que de início o povo Judeu abraçasse a fé de Jesus Cristo. Mas, tendo esse povo renunciado à graça que lhe era oferecida, Deus mudou a ordem das coisas. Sem dúvida, não era a ordem mais natural, que os magos adorassem Jesus Cristo antes dos Judeus; que homens tão afastados se adiantassem àqueles que tinham a criança em seu meio; e que estrangeiros que nunca haviam ouvido esses mistérios levassem vantagem sobre aqueles que foram nutridos no conhecimento dos profetas. Mas como eles desconheceram o tesouro que haviam recebido de Deus, os Persas o arrebataram em pleno centro de Jerusalém.

É isso que São Paulo lhes censura: “Era a vocês que deveríamos anunciar em primeiro lugar a palavra de Deus, mas, como vocês se consideram indignos, nós nos voltaremos para os Gentios[8]”. Com toda a incredulidade que eles mostraram até então, eles deveriam ao menos, depois de terem visto os magos, seguir seu exemplo e correr para Jesus Cristo. Mas eles não quiseram; e os magos os preveniram e se apressaram em ir ao Salvador, enquanto que os outros se entorpeceram num sono profundo.

5.      Sigamos nós com os magos. Deixemos o país bárbaro de nossos maus hábitos, e façamos uma longa viagem para ver Jesus Cristo, porque, se os magos não tivessem percorrido um longo caminho, eles não teriam tido essa felicidade. Separemo-nos de todos os embaraços da terra. Enquanto os magos permaneceram na Pérsia, eles não viram senão uma estrela, mas quando eles deixaram seu país, eles mereceram ver o próprio Sol de justiça. E podemos dizer que aquela estrala não teria ficado muito tempo com eles, se eles não tivessem prontamente deixado seu país.

Levantemo-nos, também nós, e quando toda a terra estiver mergulhada em confusão, apressemo-nos em ir à casa dessa criança. Quando os reis, os povos, os tiranos quiserem nos cortar o caminho, não deixemos que se extinga nosso ardor por causa desses obstáculos, pois é assim que os venceremos. Se os magos não tivessem sido constantes até o final, e não tivessem visto a criança, eles não teriam evitado o mal com o qual lhes ameaçava Herodes. Eles estavam cercados de temores, perigos e problemas, antes de adorar o menino, mas logo depois ficaram em paz e calma. Já não foi uma estrela que os instruiu, mas um anjo que lhes falou, porque eles haviam se tornado sacerdotes, adorando a Jesus Cristo e lhe oferecendo seus dons.

Também vocês, deixem para trás o povo Judeu; deixem essa cidade complicada, esse tirano de sangue alterado, e todo brilho vão desse século, para correr a Belém, a essa casa do pão celeste e espiritual. Ainda que vocês não passem de pastores, se se apressarem a chegar a esse estábulo, aí vocês verão a criança. Mas mesmo que sejam reis, se não vierem aqui, sua púrpura não poderá lhes salvar. Ainda que sejam estrangeiros e bárbaros como os magos, nada os impedirá de ver o menino, desde que vocês venham para adorar o Filho de Deus, e não para pisoteá-lo, como disse São Paulo, e que vocês se apresentem diante dele com temor e alegria, duas coisas que podem muito bem andar juntas.

Mas evitem se parecer com Herodes, e, dizer, como ele, que vieram para adorar, mas vindo para matar. Todos os que se aproximam indignamente dos mistérios sagrados se tornam semelhantes a esse tirano: “Quem come indignamente desse pão, diz São Paulo, é culpado do corpo e do sangue do Senhor[9]”. Pois esses têm em si mesmos um tirano que é ainda pior do que Herodes, e mais inimigo da glória e do reino de Jesus Cristo: é o demônio da avareza. Esse tirano pretende reinar em nossa alma, e envia seus emissários para adorar a Jesus Cristo em aparência, mas para de fato matá-lo.

É preciso que tenhamos temor em ser adoradores de Deus na aparência, mas possuir uma disposição totalmente contrária. Renunciemos a tudo, se quisermos adorar Jesus Cristo. Se tivermos ouro, ofereçamos-lhe ao invés de escondê-lo na terra. Se os magos o presentearam em sua honra e em sua homenagem, com que se parecerão vocês, se lhe recusarem, enquanto ele é pobre? Se aqueles homens fizeram uma viagem tão longa para vir adorar o menino, que desculpa têm vocês para dar três passos e visitar um doente, ou um cativo na prisão? Nossos inimigos demonstram compaixão quando estão doentes ou cativos; e vocês não demonstram o mesmo em relação ao seu Senhor, que lhes concede tantas graças, quando o veem nesse estado?

Os magos lhe deram ouro, e vocês lhe dão no máximo um pouco de pão. Quando eles viram a estrelas, ficaram extasiados de alegria, e quando vocês veem a Cristo desnudo diante de seus olhos, não se sentem nem um pouco tocados? Quem de vocês, depois deter recebido tão grandes graças do Salvador, fez por ele um caminho tão longo como esses estrangeiros e bárbaros, que de fato eram mais sábios do que os próprios sábios? Mas que digo eu, um longo caminho? A maior parte das mulheres de hoje em dia vive em tão grande preguiça, que não são elas capazes de dar três passos para vir adorá-lo sobre essa manjedoura sagrada do altar, sem se fazer transportar por mulas. Outros, que não economizam passos, preferem, entretanto, os negócios do século do que sua própria salvação, e o teatro à igreja.

6.      Mas como! Os magos fizeram uma viagem tão penosa antes mesmo de ver Jesus Cristo, e vocês não os querem imitar, mesmo tendo-o visto? Vocês o deixam para correr aos espetáculos, pois eu não temo voltar a esse assunto. Vocês deixam a Jesus Cristo, a quem viram na manjedoura, para ir ver mulheres impudicas no teatro. Que suplícios serão grandes o bastante para punir tamanho excesso? Digam-me, eu lhes peço, se alguém os convidasse a ir ao palácio real, e conduzi-lo até o rei em seu trono, vocês prefeririam ir ao teatro? De resto, o que ganham vocês nesses espetáculos? Aqui, ao contrário, vocês encontram uma fonte de fogo, uma fonte espiritual que brota do altar. E apesar disso vocês não receiam deixá-la para correr ao teatro, para ver mulheres que se banham, e para serem testemunha dessa infâmia pública e que desonra a natureza?

Jesus Cristo está aqui presente, sentado próximo dessa fonte celeste, para falar, não a uma só mulher, como outrora à Samaritana, mas a todo um povo. Mas talvez ele não esteja para mais do que uma única pessoa, porque ninguém se dá ao trabalho de vir vê-lo. Alguns vêm, mas somente de corpo, e outros, nem assim. Porém, Cristo não se retira; ele permanece, e não cessa de nos convidar a beber, não da água, mas de nossa santificação, da qual ele está sedento. Pois ele está aqui para dar aos santos as coisas santas. Ele não nos apresenta aqui, dessa divina fonte, uma água corruptível para beber, nas seu próprio sangue vivo, que é ao mesmo tempo símbolo de sua morte e causa de nossa vida.

Entretanto vocês deixam essa fonte de sangue divino, essa bebida terrível, para ver na mesma água banhar-se uma prostituta, e a sua alma aí mergulha e morre de modo infeliz. Pois essa água é um mar de impudicícia, onde todos os dias se perdem não os corpos, mas as almas. Essas mulheres se atiram nessas águas, e vocês se perdem olhando-as. São armadilhas do demônio. Ele submerge nessas águas não somente os que descem a elas, mas também os que se mantêm acima para ver esse espetáculo. Ali eles perecem mais cruelmente do que o Faraó pereceu no Mar Vermelho, “quando os cavalos e os cavaleiros foram sepultados sob as águas[10]”. Se as almas fossem visíveis, vocês as veriam mortas nas águas, como outrora os corpos dos Egípcios.

Mas o que é mais deplorável é que essa peste se faz passar por divertimento, e chamamos a esse abismo de perdição de mar de volúpia. É mais fácil escapar dos recifes do Mar Egeu e do Tirreno, do que aos perigos desses espetáculos. O demônio primeiro inquieta os espíritos toda noite com a espera; depois, fazendo-os ver tudo o que tanto desejaram, ele os acorrenta e os toma como cativos. Não creiam não ter cometido crime por não ter se aproximado dessas pessoas infames. Todo o mal foi produzido na disposição da vontade. Se a impureza os possui, é como se colocassem azeite na sua chama. Ainda que vocês pudessem assistir a essas coisas sem receber delas uma impressão, vocês ainda seriam mais culpáveis, por se tornarem causa de escândalo e de queda para outros, convidando-os a esses espetáculos com seu exemplo, e neles maculando seus olhos e sua alma.

Mas basta de lhes mostrar suas feridas. Vejamos agora o modo de curá-las. Onde buscaremos remédios para esse mal? Hoje eu vou enviá-los às suas esposas, a fim de que elas os instruam, ao contrário de serem vocês seus mestres, como diria São Paulo. Mas, como o pecado inverteu essa ordem, e que o corpo ficou por cima e a cabeça por baixo, utilizemos esse caminho para restabelecer as coisas. Se vocês enrubescerem por se tornarem discípulos de suas esposas, deixem de pecar, e subirão outra vez ao trono em que Deus os colocou anteriormente. Enquanto vocês forem escravos do pecado, a Escritura os enviará para que se instruam, não apenas às suas esposas, mas ainda aos mais vis dentre os animais. Com efeito, a Escritura não receia enviar o homem, ainda que tenha sido honrado com a razão, à escola das formigas. Se existe alguma desordem nisso, a falta não é da Escritura, mas do homem que permitiu que sua grandeza degenerasse.

É, portanto, para seguir esse exemplo que nós os tornaremos discípulos de suas esposas; e, se vocês desprezarem suas instruções, nós os enviaremos à escola dos animais, e lhes mostraremos como os animais do ar, do mar e da terra são mais castos e reservados o que vocês. Se essa comparação os enrubesce, caiam em si, e que a lembrança daquilo que são, o temor do abismo do inferno e desse rio de fogo os façam renunciar para sempre às águas mortíferas do teatro. Pois é essa água que precipita no inferno e que acende esse fogo que não se apagará jamais.

7.      Se quem olha para uma mulher para desejá-la já comete adultério, como não se tornará mil vezes adúltero aquele que vai vê-la nessa nudez? O próprio dilúvio de outrora não submergiu tantos homens como essas mulheres que se banham os submergem hoje na vergonha. Se as águas do dilúvio mataram os corpos, elas detiveram o desregramento das almas; mas essas de hoje matam as almas, sem perder os corpos.

Quando se trata da honra de sua cidade, vocês estão prontos a colocá-la acima de tudo na terra, porque ela foi a primeira que deu aos fiéis o nome de cristãos; mas quando se trata da virtude e da modéstia cristãs, vocês toleram que a menor das vilas os superem.

Dirão vocês, o que querem que façamos? Devemos ir às montanhas e nos tornarmos monges? É isso mesmo que eu deploro, que vocês imaginem que é preciso ser solitário para se tornar casto. As leis que Jesus Cristo estabeleceu são comuns a todos. Quando ele disse: “Se alguém olha para uma mulher com maus desejos[11]”, ele não o disse a um solitário, mas a alguém casado, porque a montanha sobre a qual ele transmitiu essas leis divinas estava cheia de pessoas casadas.

Considerem então pela fé o que se passa nesses teatros, e renunciem para sempre a esses espetáculos diabólicos. Não acusem minhas palavras de severidade. Então lhes proíbo o casamento, não os impeço de se divertir, mas peço somente que o façam com modéstia, e não de modo brutal e vergonhoso. Eu não os obrigo a que se retirem para os desertos e as montanhas, mas peço que sejam modestos, regrados, humildes e caritativos quando na cidade.

Todos os preceitos do Evangelho nos são comuns com os religiosos, com a exceção do matrimônio; nesse ponto, São Paulo nos iguala a eles, quando diz: “Que aqueles que possuem esposas, sejam como se não as possuíssem, porque a figura desse mundo passa[12]”; é como se ele dissesse: eu não lhes ordeno fugir para as montanhas, ainda que isso fosse desejável, porque as cidades de hoje em dia imitam os crimes de Sodoma e Gomorra; não é isso que eu exijo de vocês; mas permaneçam nas suas casas com suas esposas e filhos; não desonrem sua esposa, não corrompam os filhos, e não infectem sua família com essa peste do teatro.

Vocês não escutaram São Paulo dizer que “o homem não tem poder sobre seu corpo, mas sua esposa é que tem[13]”, impondo assim aos dois um dever recíproco? No entanto, se suas esposas vão frequentemente à igreja, vocês as acusam como se fosse um crime; mas acham que ela não tem o direito de acusá-los quando passam o dia inteiro no teatro. Vocês pedem às suas esposas
Uma continência absoluta, ao mesmo tempo em que extrapolam seus limites, e não as permitem que saiam, mesmo que tenham necessidade de fazê-lo; mas acham que, para vocês, tudo é permitido. São Paulo não permite isso a vocês, porque nesse ponto ele concedeu à esposa o mesmo poder que o marido: “Que o homem preste à sua esposa a honra que lhe é devida[14]”. Que respeito vocês mostram por suas esposas, quando entregam a uma prostitua o que pertence a elas? Pois o corpo de vocês pertence à esposa. Como esperam prestar a ela a honra que lhe é devida, se vocês introduzem em si próprios o tumulto e a desordem, quando, contando em casa o que fizeram na cidade, vocês cobrem de confusão suas esposas e filhas que os escutam, e a vocês ainda mais do que elas? Seria melhor se calar, do que dizer o que não pode ser falado sem enrubescer, e o que seria digno de punição se saísse da boca de um escravo. Que desculpa lhes restará, quando vocês vão assistir com tanto ardor esses objetos infames, e preferem acima de tudo aquilo que não é permitido sequer mencionar?

Termino aqui meu discurso, para não parecer demasiado severo. Mas se vocês não se corrigirem, eu me servirei de um ferro ainda mais cortante, e lhes farei uma incisão mais profunda. Eu não lhes darei descanso enquanto não conseguir fechar esse teatro diabólico, a fim de tornar pura e sem mácula a assembleia de nossa igreja. É assim que nos veremos livres de todos os desregramentos dessa vida, e que mereceremos a felicidade da outra, pela graça e a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem pertencem a glória e o poder por todos os séculos dos séculos. Amém.


[1] Miquéias 5: 2.
[2] Mateus 2: 6.
[3] Salmo 8: 4.
[4] Salmo 109: 1.
[5] Isaías 20: 10.
[6] Romanos 9: 6.
[7] Mateus 28: 9.
[8] Atos 13: 46.
[9] I Coríntios 2: 27.
[10] Êxodo 15: 1.
[11] Mateus 5: 28.
[12] I Coríntios 7: 29.
[13] I Coríntios 7: 4.
[14] I Coríntios 7: 3.