domingo, 13 de julho de 2014

Filocalia Tomo II Volume 3 - Gregório Palamas: Sobre a prece e a pureza do coração

GREGÓRIO PALAMAS

SOBRE A PRECE E A PUREZA DO CORAÇÃO


1, Uma vez que o divino é a bondade mesma e propriamente a compaixão e o abismo de doçura, ou antes, é o que abraça este abismo, na medida em que ultrapassa todo nome que pode ser nomeado[1] e toda coisa concebível, não é possível encontrar a compaixão senão unindo-se a ele.

Ora, o modo de nos unirmos a ele, na medida do possível, consiste em partilhar com ele as virtudes semelhantes, partilhando o pedido e a união na prece a Deus.

A partilha das virtudes torna naturalmente o menos fervoroso apto a receber o divino por semelhança. Mas ela não conduz à união. É o poder da oração que celebra esta comunhão e realiza a tensão do homem em direção ao divino e sua união com ele, pois ela é um laço que amarra ao Criador as criaturas dotadas de razão quando, por uma ardente compunção, os movimentos da prece superam as paixões e os pensamentos. Pois é impossível ao intelecto passional unir-se a Deus.

Assim, o intelecto, na medida em que não se encontra em estado de prece, é incapaz de descobrir a compaixão. Mas quanto mais ele se desembaraça dos pensamentos, mais ele alcança a tristeza. E, na medida desta tristeza, ela participa da compaixão que a consola. Se, com humildade, ela consagra seu tempo a esta ascese, ela transforma a parte passional da alma.

2. Quando a unidade do pensamento se torna tripla ao mesmo tempo em que permanece uma, então ela se une à Unidade trinitária da divina Origem, depois de haver fechado rodas as entradas do erro e de se ter colocado acima da carne, do mundo e daquele que mantém o mundo sob seu domínio. Escapando assim aos seus projetos, ela permanece em si e em Deus: na medida em que ela permanece sendo o que é, ela desfruta da alegria espiritual que brota do coração.

Mas a unidade do intelecto se torna tripla ao mesmo tempo em que permanece uma quando este se volta para si mesmo e quando, através de si próprio, se eleva a Deus. Ora, o retorno do intelecto sobre si mesmo é sua própria proteção. Sua elevação para Deus de início é operada pela prece e, na medida em que a prece se desenvolve, pode acontecer que ele se expanda subitamente, o que exigirá mais trabalho. Mas se perseverarmos neste desdobramento do intelecto e na sua tensão em direção ao divino, à custa de nos violentarmos para avançarmos pouco a pouco até a reflexão divina, será assim que, por meio do intelecto, nos aproximaremos de Deus: descobriremos o indizível, provaremos do século futuro e conheceremos pelo próprio sentido do intelecto que o Senhor é bom, como disse o Salmista: “Provem e vejam que o Senhor é bom[2]”.

Descobrir o intelecto triplo ao mesmo tempo em que se conserva a identidade única, guardando e orando por sua guarda, não é, portanto, uma coisa muito difícil. Mas perseverar longamente neste estado pela geração do indizível é da mais alta dificuldade. Todos os outros esforços exigidos pelas demais virtudes são mínimos e suportáveis comparados a este. É por isso que muitos, por recusarem o que existe de mais estreito e estrito nas virtudes orantes, não alcançam além dos carismas. Mas aos que perseveram, os socorros divino os protegem, tornando-os maiores e, transportando-os e sustentando-os, os conduzem adiante com prazer, e assim tornam a eles mais acessível a difícil capacidade de orar, a fazem por assim dizer angélica e dão à nossa natureza a força de dialogar com o sobrenatural, como disse o profeta: “Os que perseverarem renovarão sua força. E receberão asas[3]”.

3. O que é chamado de intelecto é a energia desta inteligência suscitada nos raciocínios e nos pensamentos. O intelecto é também a potência que coloca em movimento estes pensamentos, e que a Escritura chama de coração. Por intermédio do coração, a mais importante das nossas potências interiores, o intelecto é a alma dotada de razão que está em nós.

É claro que a energia do intelecto nos pensamentos se estabelece e se purifica facilmente naqueles que se consagram à oração, em especial à prece do nome único de Deus. Mas o poder que suscita esta prece não pode se purificar se não o forem as demais potências da alma, pois a alma constitui uma única e mesma atividade com múltiplas potências. Assim, ela se mancha inteira quando sobrevém o mal, por qualquer uma das potências que existem nela, uma vez que todas comunicam com a potência única na unidade da alma.

Uma vez que cada uma das potências dispensa uma energia diferente, é possível, vigiando-a, purificar qualquer uma delas no momento em que ela age, mas nem por isso esta potência se tornará pura. Pois, comunicando-se com as demais, esta potência pura pode se tornar outra vez impura. É por isso que quando alguém, dedicando-se à oração, purifica a energia do intelecto e se torna numa certa medida iluminado pela luz do conhecimento ou pela iluminação intelectual, esta pessoa se perde se enganar a si própria pensando estar por causa disso purificada; por sua presunção ela estará abrindo de par em par a porta àquele que tenta nos enganar todo o tempo. Mas se, conhecendo a impureza de seu próprio coração, ele não se satisfizer com esta pureza mitigada e solicitar a ajuda das demais potências da alma, ele verá com mais pureza sua impureza e progredirá na humildade, acrescentando a tristeza e encontrando o remédio que convém a cada potência da alma: ele purificará por si própria a potência prática por meio da ação, a potência cognitiva pelo conhecimento, a potência contemplativa pela oração, e chegará assim à perfeita, verdadeira e certíssima pureza do coração e do intelecto que só pode ser concedida pela perfeição na ação, pela constante aplicação, pela contemplação e pela prece na contemplação.



[1] Cf. Efésios 1: 21.
[2] Salmo 33 (34): 9.
[3] Isaías 40: 31.

Filocalia Tomo II Volume 3 - Gregório Palamas - Sobre os Santos hesiquiastas

GREGÓRIO PALAMAS

SOBRE OS SANTOS HESIQUIASTAS


Questão:
Você fez bem, ó Pai, em citar as palavras dos santos a propósito de minha pergunta. De fato, quando o escutei solucionar minhas incertezas, admirei a evidência da verdade, mas uma reflexão deslizou entre os meus pensamentos: uma vez que toda palavra combate outra palavra, como você disse, uma palavra poderá também contestar aquilo que você disse. No entanto, eu não temo isto. Eu sei que só o testemunho dos santos é incontestável, e já ouvi santos dizerem a mesma coisa que você. Pois quem não foi convencido por eles, como será ele próprio digno de fé? Como não rejeitará este o Deus dos santos? Pois foi Deus quem disse aos apóstolos, e, por intermédio deles, aos santos que os seguiram: “Quem os rejeitar, estará rejeitando a mim[1]”, ou seja, estará rejeitando a própria verdade[2]. Portanto, como poderão os que buscam a verdade aprovar alguém que se opõe à verdade? É por isso que lhe peço, Pai, que me exponha cada um dos argumentos que ouvi destes homens que perseguem a educação helênica por toda a vida, e que depois me diga o que você pensa, acrescentando ainda a opinião dos santos.

Estes homens afirma que estamos errados em nos esforçar por conter no corpo nosso intelecto. É fora do corpo, dizem eles, que devemos coloca-lo de alguma maneira. Por isso eles fustigam duramente alguns dos nossos. Eles escrevem contra eles, exortando os noviços a olhar para si mesmos e fazer penetrar neles seu próprio intelecto por meio da inspiração do sopro. Eles dizem que o intelecto não está separado da alma; mas como fazer penetrar aquilo que não está separado, mas unido? Eles acrescentam que os nosso falam em introduzir pelas narinas e alojar neles a graça divina. Mas eu sei que suas alegações nos caluniam, pois ouvi isto de um dos nossos, o que me levou a penar que em outros domínios seu comportamento deve ser também perverso. Pois é a mesma coisa forjar o que não está à vista dos homens, e perverter o que está. Mas ensine-me, Pai: por que escolhemos tão ardentemente fazer penetrar em nós o intelecto, e não pensamos no mal que existe em contê-lo no corpo?

Resposta:
Aos que escolheram colocar sua atenção sobre si próprios na hesíquia, não é inútil se esforçar para manter seu intelecto no interior de seu corpo.

Irmão, você ouviu o Apóstolo dizer: “Nosso corpo é o templo do Espírito Santo que reside em nós[3]”, e também: “Somos a morada de Deus, conforme Deus disse: Eu habitarei e marcharei neles e serei seu Deus[4]”. Então, porque, se temos a inteligência, nos indignar que a inteligência habite naquilo que se torna naturalmente a morada de Deus? E de que maneira fez Deus habitar a inteligência no corpo desde o princípio? Terá ele feito mal? Estas questões, irmãos, cabe aos heréticos colocarem, eles que dizem que o corpo é mau e que ele é obra do maligno. Quanto a nós, pensamos que o intelecto é mau nos pensamentos corporais, mas que ele não é mau no corpo, uma vez que o corpo não é mau. É por isso que, com Davi, cada um que se liga a Deus por toda a vida chama por Deus assim: “Minha alma tem sede de ti. Quantas vezes te desejou minha carne![5]”. E: “Meu coração e minha carne se regozijam junto ao Deus vivo[6]”. E com Isaías: “Meu seio ressonou como uma cítara, e tudo o que há dentro de mim como um muro de bronze que reconstruístes[7]”. E: “Por temor a ti, Senhor, concebemos o Espírito de tua salvação[8]”. Confiando-nos a ele, não tombaremos.

Cairão aqueles que falam a linguagem da terra e que mentem atribuindo à terra as palavras e as condutas celestes. Pois se o Apóstolo chama o corpo de “morte” (com efeito, ele disse: “Quem me libertará deste corpo de morte?[9]”) é por que o pensamento material e corporal tem realmente a forma do corpo. É por isso que, comparando-o ao pensamento espiritual e divino, ele o chamou de corpo, e não apenas de corpo, mas de corpo de morte. Isto ele já havia demonstrado claramente um pouco antes, ao acusar não a carne, mas o impulso faltoso suscitado pela transgressão. Ele disse: “Eu fui vendido ao pecado[10]”. Ora, quem é vendido não é escravo por natureza. E mais: “Eu sei que o bem não habita em mim, ou seja, na minha carne[11]”. Veja, ele não diz que a carne é má, mas que é mau aquilo que reside no corpo, ou seja, esta lei que vive em nossos membros e que se opõe à lei do intelecto[12].

É por isso que, ao nos opormos à lei do pecado, nós a fazemos sair dos domínios do corpo e aí colocamos a atenção do intelecto. Por meio dela damos a cada potência da alma sua lei própria e a cada um dos membros do corpo aquilo que lhe convém. Aos sentidos, damos aquilo que eles devem perceber, e em qual medida: esta obra da lei se chama “temperança”. Na parte passional da alma, suscitamos o melhor estado, que se chama “amor”. E melhoramos também a razão, recusando tudo o que impede a reflexão de se elevar a Deus, e chamamos esta parte da lei de “sobriedade e vigilância” (nepsis). Aquele que purificou o corpo pela temperança, que fez do amor e do desejo uma oportunidade de virtude por meio do amor, que apresentou diante de Deus um intelecto despojado pela prática da prece, adquire e vê em si mesmo a graça prometida aos corações puros. Então ele poderá dizer com Paulo: “Deus, que disse: ‘Que a luz brilhe do fundo das trevas’, fez brilhar a luz em nossos corações, para que resplandeça o conhecimento da glória de Deus sobre a face de Jesus Cristo[13]”. Mas, diz ele ainda, trazemos este tesouro em vasos de barro[14]: nossos corpos. Se retivermos nosso intelecto dentro do corpo, estaremos agindo de uma maneira indigna da nobreza do intelecto? Quem poderá afirmar uma coisa destas, não digo do espiritual, mas daquele que possui um intelecto desprovido da graça divina, e, no entanto, um intelecto de homem?

A partir do momento em que nossa alma constitui uma existência única dotada de diversas potências, e que ela se serve do corpo, que vive naturalmente em relação com ela, como se fosse um órgão, de quais órgãos se serve em sua atividade a potência da alma a que denominamos “intelecto”? Ninguém jamais supôs que a atividade do intelecto se situasse nas unhas ou nas pálpebras, nem nas narinas ou nos lábios. Todos concordam em que ela se encontra dentro de nós. Mas alguns se puseram a debater para saber de qual órgão, dentre os que se encontram dentro de nós, ele se erve em primeiro lugar. Alguns o colocam no cérebro, como numa espécie de acrópole. Outros lhe dão como veículo o próprio centro do coração, onde não existe o sopro terrestre. Quanto a nós, sabemos que nossa razão não está nem dentro de nós como num vaso, por que ela é incorpórea, nem fora de nós, por que está ligada a nós, mas que ela reside no coração como se este fosse seu órgão. Não aprendemos isto de um homem, mas d’Aquele mesmo que criou o homem e que disse no Evangelho: “Não é o que entra, mas o que sai da boca que suja o homem[15]”. Pois “é do coração, completa ele, que vêm os pensamentos[16]”. O grande Macário diz a respeito a mesma coisa: “O coração dirige todo o organismo, e quando a graça ocupa as pastagens do coração ela reina sobre todos os pensamentos e todos os membros. Pois aí está o intelecto e aí estão todos os pensamentos da alma[17]”.

Assim é que nosso coração é o lugar do pensamento, e o primeiro órgão carnal da razão. Assim, quando nos esforçamos para examinar e endireitar nossa razão por meio do rigor da sóbria vigilância, com que a examinaremos, se não reunirmos nossa inteligência dispersa no exterior pelos sentidos, e não a conduzirmos para o interior, para o próprio coração, o lugar dos pensamentos? É por isso que Macário, que não tem este nome à toa[18], logo depois do que foi citado acima, acrescenta: “É, portanto, aí que se deve observar se a graça gravou as leis do Espírito[19]”. Aí aonde? No órgão diretor, sobre o trono da graça, onde estão o intelecto e todos os pensamentos da alma, ou seja, no coração. Veja como é necessário, para os que escolheram estar atentos a si próprios na hesíquia, reunir e conter o intelecto no corpo, e, em especial, neste corpo que está no fundo último do corpo, ao qual chamamos de “coração”.

Se, conforme o salmista, toda a glória da filha do rei vem de dentro[20], porque iríamos buscá-la fora? E se, de acordo com o Apóstolo, Deus colocou em nossos corações seu Espírito que clama “Abba, Pai[21]”, como não iremos orar com o Espírito em nossos corações? E se, enfim, conforme o Senhor dos profetas e dos apóstolos, o Reino dos céus está dentro de nós[22], como poderia se colocar fora deste Reino dos céus aquele que se esforça por extrair o intelecto daquilo que está no seu interior? O coração reto, disse Salomão, busca o sentido[23], que ele afirma em outra parte ser intelectual e divino, e ao qual nos conduzem todos os Padres, quando dizem: “A inteligência propriamente intelectual se reveste do sentido intelectual. Não cessemos de buscar este sentido em nós e naquilo que não está em nós[24]”.

Como você pode ver, se nos esforçamos por nos opor ao pecado, para adquirir a virtude, para obter a recompensa do combate da virtude, ou melhor, a garantia da recompensa da virtude – que é o sentido intelectual – é preciso remeter para o interior do próprio corpo o intelecto. Quanto a extrair o intelecto, não para fora do sentimento corporal, mas para fora do próprio corpo, para obter visões espirituais, este é o mais grave erro dos helênicos, a raiz e a fonte de toda falsidade, uma invenção dos demônios, uma doutrina que gera a estupidez[25] e que provém da desorientação[26]. É por isso que aqueles que falem pelos demônios saem de si e não compreendem o que dizem. Quanto a nós, coloquemos o intelecto não apenas no interior do corpo e do coração, mas no interior dele mesmo.

Que falem, então, os que dizem que o intelecto não está separado da alma, mas que está unido a ela, e que perguntam como ainda é possível enviá-lo para o interior. Eles ignoram, ao que parece, que a essência do intelecto é uma coisa e que sua energia é outra coisa. OU antes, eles o sabem, se se colocam entre os impostores, jogando com a semelhança dos nomes. Pois ao não aceitarem a simplicidade da doutrina espiritual, eles, a quem a dialética tornou agudos na contradição, segundo o grande Basílio, invertem a força da verdade por meio de antíteses de falso conhecimento[27], sob a razão especiosa dos sofismas. É disto que se tornam mutuamente devedores aqueles que não são espirituais e que se creem dignos de julgar o espírito e de ensinar. Pois eles esqueceram que não ocorre com o intelecto o que acontece com o olho, que vê as demais coisas sensíveis mas não enxerga a si mesmo. O intelecto opera sobre outras coisas que ela pode observar: é o que Denis o Grande chama de seu movimento retilíneo. Mas ele retorna sobre si mesmo e opera sobre si mesmo, quando enxerga a si próprio: é o que o mesmo Denis chama de seu movimento circular[28]. Ora, este movimento constitui a melhor energia do intelecto, aquela que lhe é mais própria. Por meio desta energia é que o intelecto pode ultrapassar a si mesmo e chegar a estar com Deus. Pois “o intelecto, diz o grande Basílio, não se dispersa no exterior”. Como você vê, ele pode sair, e, se pode sair, é preciso que retorne. É por isso que ele acrescenta: “Ele retorna sobre si mesmo, e se eleva até Deus por si próprio[29]”, como caminhando por uma via que não se perde nem desvia. Denis, este infalível contemplador do inteligível, diz também que este movimento do intelecto não pode cair em erro algum[30].

O pai do erro deseja sempre desviar o homem deste movimento e conduzi-lo ao movimento que carrega seus erros. Ora, até hoje, que o saibamos, ele ainda não encontrara ninguém que o ajudasse e se esforçasse por atirar o homem a este movimento por meio de palavras sedutoras. É agora, ao que parece, que ele encontrou auxiliares, se é verdade, como você disse, que existem homens que chegaram a escrever tratados neste sentido e que tentam convencer a maior parte, e até os que abraçam a vida hesiquiasta mais elevada, de que é melhor manter fora do corpo o intelecto que ora. Eles não respeitam sequer o que disse João, que nos construiu com seus tratados a escada que leva aos céus, de maneira definitiva e decisiva: “O hesiquiasta é aquele que se esforça para conter o incorpóreo em seu corpo[31]”, que é o mesmo que unanimemente nos ensinaram nossos pais espirituais. Pois se o homem não for capaz de conter o incorpóreo em seu corpo, como poderá ele conter em si Aquele que se uniu ao corpo, e que progride, como uma forma natural, através de toda a matéria organizada, cuja exterioridade e cuja divisão não podem senão corresponder à essência do intelecto, dado que ao final esta matéria se torna viva após ver suscitada nela uma forma de vida votada para a união.

Você vê, irmão, de que modo João Clímaco mostrou que não é apenas de um modo espiritual, mas também de uma maneira humana, que é possível experimentar o modo como aqueles que escolheram ser e dar ao seu homem interior o nome de monge, devem enviar e manter em si o intelecto no interior do coração? Desta forma, ensinar aos noviços a ver em si mesmos e a enviar para o seu interior, pela inspiração, seu próprio intelecto, não é de modo algum fora de propósito. Nenhum homem de bom senso impediria o intelecto que ainda não contempla a si próprio de se recolher sobre si mesmo por certos meios. Pois o intelecto reunido escapa continuamente àqueles que acabam de se despojar para conduzir tal combate. É preciso, portanto, que eles o reconduzam para si continuamente também. Eles ignoram, por falta de experiência, que nada é mais difícil de contemplar nem mais móvel do que o intelecto. É por isso que alguns recomendam prestar atenção ao sopro, à inspiração e à expiração, retendo-a um pouco, de modo a reter igualmente o intelecto vigiando a respiração, até que, com a ajuda de Deus, depois de haver progredido, conseguir impedir o intelecto saia em direção ao que o cerca, e, purificando-o, conseguir reuni-lo num enovelamento que o unifique. Podemos ver nisto um efeito espontâneo da atenção do intelecto, pois este sopro entra e sai pacificamente quando todo pensamento que sustenta o combate está concentrado, sobretudo naqueles que vivem na hesíquia do corpo e da reflexão. Estes se entregam ao sabbat espiritual. Repousando de todas as suas obras próprias, na medida do possível, eles apagam das potências da alma todas as obras do conhecimento, mutantes e passageiras em sua diversidade, todas as percepções dos sentidos e em geral todas as atividades do corpo que dependem de nós. Quanto àquelas que não dependem inteiramente de nós, como a respiração, eles também de despojam delas, na medida do possível.

Tudo isto vem sem esforço e sem que seja preciso pensar, para aqueles que progrediram na hesíquia. Pois tudo isto é necessária e espontaneamente suscitado pela perfeita entrada da alma sobre si mesma. Mas entre os noviços nada do que descrevemos é possível sem fadiga. Como a paciência é uma consequência do amor – pois o amor suporta tudo[32] e aprendemos a obter a paciência com todas as nossas forças, a fim de, graças a ela, alcançar o amor – o mesmo acontece aqui. Mas porque dizê-lo desde logo? Todos os que têm experiência riem dos que legislam se opondo a eles e à sua experiência. Pois o mestre destes homens não é a palavra, mas o esforço, e a experiência que provém das penas, que traz os frutos úteis e recusa as palavras estéreis dos que amam disputar e acusar.

Um dos grandes monges disse a respeito que “depois da transgressão o homem interior se adapta naturalmente às formas do exterior[33]”. A partir daí, aquele que se esforça por fazer retornar o intelecto sobre si mesmo, a fim de suscitar não o movimento linear, mas o movimento circular e infalível, ao invés de deixar seu olho passear por aí, como não encontrará ele um grande benefício em fixá-lo sobre o peito ou sobre seu umbigo como um suporte? Pois, além de se enrolar sobre si mesmo num círculo diretamente no mundo exterior, tanto quanto possível, à imagem do movimento interior do intelecto ao qual ele se aplica, ele enviará para dentro do coração, com esta disposição do corpo, a potência do intelecto que, pela vista, se dispersa no exterior. Pois se a potência do animal inteligível assenta-se no centro do ventre[34], uma vez que a lei do pecado aí exerce seu império e lhe concede pastar, porque não colocaríamos aí a lei do intelecto, que, armado com a prece, combate esta lei do pecado[35], a fim de que o espírito mau expulso pelo banho do novo nascimento não volte a se instalar aí com sete outros espíritos ainda piores e que nossa última condição não se torne pior do que a primeira[36]?

Esteja atento a si mesmo[37], disse Moisés, ou seja, a você mesmo por inteiro. Mas, por meio de qual órgão? Certamente, pelo intelecto. Pois por nenhum outro é possível estar atento a si mesmo por inteiro. Assim, coloque esta guarda sobre sua alma e seu corpo. É por meio dela, com efeito, que você se desembaraçará facilmente das más paixões corporais e psíquicas. Aplique-se, vigie a si mesmo, examine a si mesmo, ou antes, exponha-se, observe e verifique. É assim que você submeterá ao Espírito a carne que se revolta, e assim não haverá jamais palavra oculta no seu coração[38].

Se o espírito do dominador, ou seja, dos maus espíritos e das más paixões, se ergue contra você, diz o Eclesiastes, não abandone seu lugar[39], ou seja, não deixe nenhuma parte da alma, nenhum membro do corpo sem supervisão. Você se elevará assim acima dos espíritos que o ameaçam desde baixo e, por havê-los sondado, você se apresentará com segurança e sem ser você próprio sondado, diante d’Aquele que sonda os corações e os rins[40]. Paulo diz, com efeito: “Se julgarmos a nós mesmos, não seremos julgados[41]”. Provando desta bem-aventurada paixão de Davi, também você dirá a Deus: “As trevas, graças a você, não serão mais obscuras e a noite será para mim tão clara como o dia, pois você guarda meus rins[42]”. Não apenas, dizia ele, você tornou seu a tudo o que minha alma deseja, mas se um fogo em meu corpo reanimar a chama deste desejo, ele retornará para a origem, ele voará para você, meu Deus, e se ligará e se unirá a você. Da mesma forma, com efeito, como os que se dedicam aos prazeres corruptíveis dos sentidos esgotam na carne todo o desejo da alma, e se tornam inteiramente carne sem que seja possível ao Espírito de Deus habitar neles[43], também nos que elevaram o intelecto a Deus e ligaram a alma ao desejo divino, a carne, transformada, se eleva igualmente, desfruta da comunhão divina com a alma e se torna ela também o domínio e a morada de Deus, cessando de ser hostil a Deus e de desejar contra o Espírito[44].

Qual é, na carne e no intelecto, o lugar que mais convém ao espírito que sobe até nós desde baixo? Não é na carne, na qual nada de bom habita, conforme o Apóstolo, antes de que nela venha e permaneça a lei da vida[45]? Portanto, será sobre ela que deveremos atentar sem relaxamento. Como torná-la nossa? Como não abandoná-la? Como impedir o maligno de subir até ela, sobretudo nós que ainda não sabemos rejeitar o mal espiritualmente, pelos próprios caminhos do Espírito, senão nos educando sobre os caminhos da atenção sobre nós por intermédio da atitude exterior? Mas porque falar dos que acabam de começar, quando existem alguns mais perfeitos que adotaram esta atitude durante a oração e que foram atendidos pelo divino, não apenas dentre os que viveram depois de Cristo, mas dentre alguns que viveram antes que ele viesse a nós? O próprio Elias, o mais perfeito dentre os que receberam a visão de Deus, depois de haver apoiado a testa entre os joelhos e ter reunido seu intelecto em si e em Deus depois de muito esforço, colocou fim a uma seca de muitos anos[46].

Mas estes homens de que você fala, irmão, ouvindo-os falar assim, me parecem ter a doença dos fariseus. É por isso que eles não querem examinar nem purificar o interior da taça[47], ou seja, do coração. E ao mesmo tempo em que eles não seguem as tradições dos Padres, eles se esforçam por ter a primazia sobre todos[48], como se fossem novos doutores da lei. Eles mesmos desdenham esta forma de oração que foi justificada no publicano[49], e exortam os outros a não adotá-la quando oram. Com efeito, como disse o Senhor nos Evangelhos: o publicano não tinha coragem sequer para erguer os olhos aos céus[50]. Ora, é a ele que estão imitando os que em suas orações voltam o olhar sobre si próprios. E os que os chamam de “onfalopsíquicos” o fazem manifestamente para caluniá-los com esta acusação. Quem, dentre eles, jamais afirmou que a alma ficava no umbigo?

Assim, além de se entregarem a uma manifesta calúnia, eles se mostram como são: homens que ultrajam os que são dignos de louvor e que não corrigem os que se enganam, pois eles não escrevem pela causa da hesíquia e da verdade, mas pela vanglória, e não para conduzir à sóbria vigilância, mas para afastar dela. Por todos os meios, e partindo das correspondentes ações, eles se esforçam por desqualificar a própria obra e aqueles que a ela se dedicam corretamente. Tais homens chamariam facilmente de “coilopsíquicos” aquele que disse: “a lei de Deus está em meu ventre[51]”, e que confiou em Deus: “Meu ventre ressoará como uma cítara, e o que há em mim como um muro de bronze que você reconstruiu[52]”. Eles englobariam numa mesma acusação todos os que, por meio de símbolos corporais, representam, designam e buscam as coisas do intelecto, divinas e espirituais. Nisto, em nada eles prejudicam os hesiquiastas. Antes eles os cumularão de beatitudes e multiplicarão suas coroas nos céus. Mas eles próprios permanecerão fora dos véus sagrados, e não poderão contemplar sequer as sombras da verdade. E é de se temer que sejam passíveis do julgamento eterno, não apenas por terem se separado dos santos, mas ainda por tê-los combatido com suas palavras.

Você conhece a vida de Simeão o Novo Teólogo. Quase tudo ali é milagre, a tal ponto Deus o glorificou com milagres sobrenaturais. Você conhece também seus escritos: se os chamarmos de “escritos de vida” não estaremos longe da verdade. Você conhece também Nicéforo, este santo que passou longos anos no deserto e na hesíquia, que depois viajou pelas partes mais desérticas da Santa Montanha e que, tendo se consagrado a recolher todos os testemunhos dos Padres, nos transmitiu sua prática de sobriedade e vigilância. Ambos ensinaram aos que a escolheram esta via, que, segundo você disse, alguns recusam.

E o que dizer dos santos de antigamente? Homens que, pouco tempo antes de nós, testemunharam e experimentaram em si o poder do Espírito Santo e que nos transmitiram pela sua boca. Assim é este renomado teólogo de nossos dias, este verdadeiro teólogo, o mais seguro contemplador da verdade dos mistérios de Deus, este Teolepto “que recebeu de Deus”, como seu nome indica, bispo de Filadélfia, ou melhor, aquele que, desde Filadélfia, como um candelabro, ilumina o mundo. E Atanásio, que durante anos ornamentou o trono patriarcal, e cujo ataúde Deus honrou. E este Nilo, originário da Itália, imitador de são Nilo. E Sebiotas e Elias, que em nada lhes são inferiores. E Gabriel e Atanásio, que foram considerados dignos de um carisma profético. É deles certamente que quero lhe falar, e de muitos outros antes deles, com eles ou depois deles, louvando e exortando aos que desejam conservar esta tradição que os novos “mestres” da hesíquia, que dela não conhecem nem traço, tentam rejeitar, deformar, desqualificar, admoestando, não por sua experiência, mas pelo mero falatório, sem nenhum proveito para os que os escutam[53].

Ora, dentre estes santos existem alguns com que nós mesmos pudemos conversar, e que foram nossos mestres. Como poderemos considerá-los como nada, a eles que receberam o ensinamento da experiência e da graça, para ceder diante daqueles que se puseram a ensinar pelo orgulho e a disputa? Isto não pode acontecer, e não acontecerá jamais. Portanto, você também, afaste-se de tais homens[54]. E diga sabiamente a si próprio o que disse Davi: “Minha alma bendiz ao Senhor, e tudo o que existe em mim bendiga o seu santo nome[55]”. Deixe-se conduzir pelos Padres, e escute como eles o exortam sempre a interiorizar o intelecto.




[1] Lucas 10: 16.
[2] Cf. João 14: 16.
[3] II Coríntios 6: 19.
[4] II Coríntios 6: 16.
[5] Salmo 62 (63): 2.
[6] Salmo 83 (84): 3.
[7] Isaías 16: 11.
[8] Isaías 26: 18.
[9] Romanos 7: 24.
[10] Romanos 7: 1.4.
[11] Romanos 7: 18.
[12] Cf. Romanos 7: 23.
[13] II Coríntios 4: 6.
[14] II Coríntios 4: 7.
[15] Mateus 15: 11.
[16] Mateus 15: 19.
[17] São Macário, Homilias espirituais XV, 20.
[18] Macário significa “bem-aventurado”.
[19] São Macário, Op. cit.
[20] Cf. Salmo 44 (45): 13.
[21] Gálatas 4: 6.
[22] Cf. Lucas 17: 21.
[23] Cf. Provérbios 15: 14.
[24] João Clímaco, A escada santa XXVI, 17.
[25] Anoia: literalmente, ausência de inteligência.
[26] Aponoia: literalmente, a desorientação da inteligência.
[27] Basílio de Cesaréia, Hom. XII in Prov., PG 31,401 A.
[28] Nomes divinos IV, 9.
[29] Carta II.
[30] Nomes divinos IV, 9.
[31] João Clímaco, A escada santa, XXVII, 7.
[32] Cf. I Coríntios 13: 7.
[33] São Macário, Homilias espirituais, XVI, 7.
[34] Cf. 40: 16.
[35] Cf. Romanos 7: 23.
[36] Cf. Mateus 12: 45.
[37] Cf. Deuteronômio 15: 19.
[38] Cf. Deuteronômio 15: 9.
[39] Cf. Eclesiastes 10: 4.
[40] Cf. Salmo 7: 10.
[41] I Coríntios 11: 31.
[42] Salmo 138 (139): 12-13.
[43] Cf. Gênesis 6: 3.
[44] Cf. Gálatas 5: 17.
[45] Cf. Romanos 7: 18.
[46] Cf. II Reis 18: 42-43.
[47] Cf. Mateus 23: 25.
[48] Cf. Mateus 23: 6.
[49] Cf. Lucas 18: 9-14.
[50] Cf. Lucas 18: 13.
[51] Salmo 39 (40): 0.
[52] Isaías 16: 11.
[53] Cf. II Timóteo 2: 14.
[54] Cf. II Timóteo 3: 5.
[55] Salmo 102 (103): 1.