sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

São João Crisóstomo - Sermão sobre o Pai Nosso



 Mateus 6: 9-13


“Eis como deveis orar: Pai Nosso que estais nos Céus”. Vejam como ele começa por levantar os espíritos, chamando à nossa memória todas as graças que recebemos de Deus. Ao nos ensinar a chamar a Deus “nosso Pai”, ele sublinha com essa simples palavra a libertação dos suplícios eternos, a justificação das almas, a santificação, a redenção, a adoção no número de filhos de Deus, a herança de Sua glória que nos foi prometida, a associação ao Seu Filho único; e, por fim, a efusão do Espírito Santo. Pois é impossível a alguém que não tenha recebido todos esses bens chamar a Deus verdadeiramente de “seu Pai”. Assim é que ele nos atrai para Deus por meio de duas considerações poderosíssimas, tanto pela majestade daquele a quem invocamos, como pela grandeza dos dons que dele recebemos. Quando ele diz que Deus “está nos Céus”, não é no sentido de lançá-lo aos ares e aí circunscrevê-lo; mas é para retirar da terra o espírito daquele que ora e elevá-lo ao céu.

Ele nos ensina ainda a fazermos todas as orações em comum com nossos irmãos. Pois ele não diz: “meu Pai que está nos Céus”, mas “nosso Pai”, a fim de que nossa oração seja geral para todo o corpo da Igreja, e para que cada um não cuide de seu próprio interesse particular, mas do de todos. Ele ainda afasta dessa maneira todas as aversões e inimizades; ele reprime o orgulho, expulsa a inveja, e introduz a caridade nas almas, essa mãe divina de todos os bens. Ele ainda destrói todas as desigualdades e as diferenças de condições e de estados, e equipara admiravelmente o pobre ao rico, o cidadão com o príncipe; porque nos vemos todos unidos nas coisas mais importantes e necessárias, que são as coisas da salvação.

Em que pode nos prejudicar a condição de pobreza de nosso nascimento segundo a carne, se outro nascimento nos une a todos, sem que ninguém tenha vantagens sobre o outro, bem o rico sobre o pobre, nem o mestre sobre o servo; nem o magistrado sobre o cidadão, nem o rei sobre o soldado, nem o filósofo sobre o bárbaro, nem o mais sábio sobre o mais simples e ignorante? Pois Deus torna todos os homens igualmente nobres, porque ele deseja ser chamado igualmente de “Pai” por todos.

Assim, depois de haver apresentado aos seus discípulos a nobreza e a magnitude desse dom de Deus, a igualdade que deve reinar entre eles e a caridade que eles devem ter uns pelos outros, depois de tê-los erguido da terra para elevá-los ao céu, veremos o que ele lhes ordena pedir. É verdade que as primeiras palavras dessa prece parecem ser suficientes para tudo lhes ensinar. Pois é mais do que justo que alguém que chame a Deus de “seu Pai” – e um Pai comum a todos – viva de tal maneira que jamais pareça indigno de tão alta qualidade, e corresponda à excelência desse dom pela santidade de sua vida. Mas Jesus Cristo não se detém aí e acrescenta:

“Santificado seja o vosso nome”. É uma oração digna de um homem que acaba de chamar a Deus “seu Pai”, não ter nada em seu coração senão a glória desse Pai, e desprezar todas as outras coisas em comparação com ele. Pois as palavras “santificado seja” significam “glorificado seja”. Deus possui sua glória, que é sempre plena, sempre infinita, e que permanece para sempre a mesma. E no entanto ele ordena àquele que ora desejar que ele seja ainda honrado pela santidade de nossa vida. É algo que ele já havia dito em outros termos: “Que vossa luz brilhe diante dos homens, para que eles vejam vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está no céu[1]”. Quando os Serafins louvam a Deus, eles não dizem mais do que essas palavras: “Santo, santo, santo”. É por isso que essas palavras: “santificado seja o Vosso nome” significam que ele seja glorificado. É como se disséssemos a Deus: digna-te, se for de Teu agrado, regrar e purificar nossa vida de tal modo que, vendo a nós, todo o mundo Te glorificará. Tal é a perfeição do cristão: ser irrepreensível em todas as suas ações, de tal modo que quem quer que as veja dê a Deus a glória que lhe é devida.

“Venha a nós o Vosso reino”. Essa é outra oração de um verdadeiro filho de Deus, que não se agarra às coisas visíveis nem estima os bens presentes, mas que suspira sempre por seu Pai e deseja os bens por vir. Tal é o efeito de uma boa consciência e de uma alma desembaraçada da terra. Esse era o desejo permanente de São Paulo. Era isso que fazia com que ele dissesse: “Nós que recebemos as primícias do Espírito, suspiramos e gememos em nosso íntimo, na espera da adoção divina, da redenção e da libertação de nosso corpo[2]”. Quem se abrasa com esse desejo já não é capaz de valorizar as vantagens desse mundo, nem de se abater por seus males, mas, como se já estivesse no céu, não está mais sujeito a nem uma nem outra dessas desigualdades tão diferentes.

“Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu”. Existe uma admirável sequência nessas palavras. Ele nos ordena desejar os bens futuros, e de sempre tender ao céu; mas ele também quer que, enquanto aguardamos esse devir, imitemos sobre a terra a vida dos anjos do céu. Vocês devem, diz ele, desejar o céu e os bens que eu lhes preparei; mas eu lhes ordeno ainda que façam da terra um céu, e que aí vivam, falem e ajam como se já estivessem no céu. Essa é a graça que vocês devem me pedir. Ainda que vocês estejam na terra, devem entretanto se esforçar por viver como essas potências celestes, porque vocês podem estar ainda aqui em baixo e viver como elas. É isso que nos dizem essas palavras de Jesus Cristo. Assim como os anjos no céu obedecem livremente e sempre com o mesmo fervor – porque não são inconstantes, obedecendo numa ocasião e não em outra – submetendo-se sempre e permanecendo perfeitamente submissos, por serem “poderosos em virtude para cumprir as ordens de Deus[3]”, como disse o profeta, concede-nos a mesma graça a nós homens, para que não façamos Sua vontade parcialmente, mas integralmente, e em todas as coisas.

Considerem também como Jesus Cristo nos ensina a sermos humildes, fazendo-nos ver que nossa virtude não depende apenas de nosso trabalho, mas da graça de Deus. Ele ordena aqui a cada fiel que ora, fazê-lo para toda a terra. Pois ele não diz: “seja feita a Vossa vontade”, em mim ou em nós, mas “sobre toda a terra”, a fim de que o erro seja banido dela e que a verdade reine; que o vício seja destruído e que virtude floresça; e que a terra não seja diferente do céu. Pois se Deus chegasse a ser assim obedecido no mundo, ainda que os habitantes do céu sejam muito diferentes dos da terra, a terra tornar-se-ia um céu, e os homens seriam anjos, porque eles viveriam como anjos.

“O pão nosso de cada dia nos dai hoje”. Como ele acabara de dizer “seja feita a Vossa vontade assim na terra como no céu”, e porque ele falava a homens encerrados numa carne fraca, sujeitos a diversas necessidades e incapazes de usufruir ainda da impassibilidade dos anjos, ele quis nos ordenar que cumpríssemos a vontade de Deus tão perfeitamente como os anjos, mas, ao mesmo tempo ele fez uma concessão à fragilidade de nossa natureza: eu exijo de vocês, nos diz ele, a virtude de meus anjos, mas não sua impassibilidade; a fragilidade da sua natureza é incapaz disso, e ela necessita de um alimento que a sustente.

Mas vejam como ele deseja espiritualidade para nós, mesmo quando ele se refere ao corpo. Pois ele não nos ordena que peçamos riquezas ou prazeres, ou vestes preciosas, nem nada semelhante, mas apenas pão, e o pão de que necessitamos nesse dia que estamos vivendo, sem nos preocuparmos com o de amanhã. “O pão nosso de cada dia”, diz ele. E, não contente com isso, ele acrescenta: “nos dai hoje”, a fim de excluir por completo de nosso espírito a preocupação e a aflição pelo dia de amanhã.  Pois, por que nos atormentarmos por um dia que não temos a certeza de viver? Ele já havia falado a respeito, quando disse: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã”. Pois ele deseja que estejamos sempre vestidos para viagem, e prontos a empreender nosso voo para o céu, não dando ao corpo mais do que a necessidade nos pede.

E como um cristão não se torna impecável apenas pelo Batismo, Jesus Cristo nos dá aqui mostras de sua ternura, prescrevendo-nos essa oração para favorecer-nos com a bondade de Deus e pedir-lhe o perdão por nossos pecados.

“Perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos os nossos devedores”. Vejam até onde chega o excesso de amor que Deus dedica aos homens. Ele ainda considera dignos de perdão aqueles que o ofendem mesmo depois de terem sido libertos de tantos males, e de haver recebido tão inefáveis graças. Pois essa oração foi feita para os fiéis, como nos mostra o costume da Igreja, desde a primeira palavra, pois uma pessoa que não foi batizada não pode chamar a Deus de “seu Pai”. Assim sendo, se essa oração é para os fiéis, e se eles pedem a Deus o perdão pelos seus pecados, é visível que Deus não nos recusa, mesmo depois do Batismo, o remédio da penitência. Se ele não quisesse nos persuadir dessa verdade, ele não nos teria prescrito essa oração. Mas, ao falar de nosso pecados e nos ordenando que lhe peçamos perdão, ele nos mostra o meio de obtê-lo por uma via fácil, que consiste em perdoar as dívidas aos nossos devedores; é claro que ele quis nos mostrar com isso que os pecados podem ainda ser apagados depois do Batismo, e é para nos convencer disso que ele nos ordena orar dessa maneira. Fazendo com que nos lembremos de nossos pecados, ele nos inspira sentimentos de humildade. E ordenando-nos que perdoemos aos outros, ele apaga de nosso espírito a lembrança das injúrias. Prometendo-nos perdoar nossas faltas, ele alimenta nossas esperanças. E tornando-nos imitadores de sua doçura e de sua bondade inefável, ele nos eleva ao cúmulo da sabedoria.

Mas eis aqui algo extremamente importante: ao encerrar em cada uma dessas demandas toda a perfeição cristã, já estava implícita por isso mesmo a obrigação de perdoar as injúrias. Com efeito, como o resumo de toda virtude está contido nessa frase: “santificado seja o Vosso nome”; ou nessa outra: “seja feita a Vossa vontade, assim na terra como no céu”; ou no favor que ele nos concede em chamar a Deus de “nosso Pai”, podemos dizer que todas essas virtudes encerram também a obrigação de esquecer as injúrias que recebemos de nossos irmãos. E no entretanto ele não se contenta com essa recomendação implícita, e para mostrar como lhe é caro esse preceito, ele fez dela um artigo expresso da prece que nos prescreveu, e, tendo-a completado, é esse o único que ele irá repetir em outra ocasião, quando nos assegurar que “se perdoardes aos homens os males que eles vos fizeram, vosso Pai que está no céu também vos perdoará. Mas, se não perdoardes aos homens, o vosso Pai também não vos perdoará os males que houverdes feito[4]”.  

Assim é que Deus faz com que nosso fim dependa de nós, e ele nos torna mestres da sentença que ele pronunciará um dia. Pois a fim de que, por mais irracionais que vocês sejam, vocês não possam se lamentar de seja lá o que for do juízo que Deus irá pronunciar, ele deseja que, mesmo culpados, vocês sejam os mestres de suas sentenças. Do mesmo modo como vocês julgarão eu os julgarei, e se vocês perdoarem a um homem como vocês, eu prometo perdoá-los também. E no entanto Deus está igualando duas coisas bem desiguais. Pois vocês perdoam apenas porque necessitam ser perdoados; mas Deus concede a graça sem obrigação nenhuma. Vocês perdoam como servidor a quem é como vocês mesmos são; mas Deus perdoa como um mestre perdoa seu escravo. Vocês concedem a graça, porque estão carregados de pecados; Deus concede a graça por ser ele a própria santidade, e incapaz da menor falta.

E eis ainda aqui mais uma grande prova de sua bondade. Pois ele poderia tranquilamente perdoar os seus pecados; mas ao fazê-lo na mesma proporção em que vocês perdoam aos outros, ele concede a vocês mil ocasiões de exercer a doçura e a caridade. Ele dá espaço para que vocês extingam a cólera e sufoquem em seus corações tudo o que poderia haver de brutal e desumano, e os ensina assim a que se unam estreitamente aos seus irmãos, que com vocês

Depois disso, sob que desculpa vocês pretendem se esconder? Dirão que seu irmão os maltratou sem motivo? Isso está implícito, pois lhes foi ordenado perdoá-lo. Se houvesse justiça naquilo que ele fez, também não haveria pecado. É, portanto, sua injustiça, é seu pecado q eu vocês são chamados a perdoar, do mesmo modo como é por pecados semelhantes, e por muitos outros e maiores, que vocês pedem a Deus que os perdoe. Mas antes mesmo de lhes conceder o perdão ele lhes concede essa graça, ordenando a vocês que o peçam desse modo, e ensinando a vocês a serem doces e caridosos para com seus irmãos. Assim, ele lhes promete ainda uma enorme recompensa, assegurando a vocês que ele não pedirá conta dos seus pecados.

De quais suplícios seremos dignos então, se, depois de Deus ter colocado nossa salvação em nosso poder, traímos a nós mesmos e nos perdemos voluntariamente? Como podemos ousar pedir a Deus que seja doce e indulgente para conosco, se, num assunto que depende apenas de nós, nos mostramos tão cruéis e desumanos contra nós mesmos?

“E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal, porque a Vós pertencem o reino, o poder e a glória, pelos séculos dos séculos. Amém”. Nada mais adequado para nos fazer ver nossa baixeza e a abater nossa presunção, do que essas palavras que nos ensinam a não fugir dos combates, mas também a não nos atirarmos a eles confiando apenas em nós mesmos. É assim que será mais gloriosa nossa vitória, e mais vergonhosa para o demônio sua derrota. Pois, se somos forçados a combater, façamo-lo com firmeza e vigor; mas quando não somos chamados, devemos nos manter em repouso, aguardando o momento do combate, a fim de mostrarmos tanto a humildade como a coragem. Essa expressão “do mal” significa também “do maligno”, o espírito mau, e Jesus Cristo nos exorta a ter contra ele uma inimizade irreconciliável. Mas ele também nos ensona que ele não é mau por natureza; pois a maldade não é natural da criatura, mas ela provém da escolha da vontade. Jesus Cristo o chama definitivamente “o maligno”, porque ele de fato o é, no mais alto grau; e como, sem ter recebido de nós a menor injúria, ele nos guerreia sem trégua, o Senhor não nos faz dizer: “livrai-nos dos malvados”, mas “do maligno”, a fim de que não tenhamos ódio contra nossos irmãos nos males que sofremos, mas para que votemos toda nossa raiva contra esse espírito de maldade, autor e princípio verdadeiro de todos os males.

Depois de nos ter estimulado ao combate com a lembrança desse inimigo, ele nos exorta a fugir da preguiça e da negligência, e nos encoraja mais uma vez, levantando nossos espírito com a apresentação do rei a quem servimos, e nos fazendo ver que ele é o mais poderoso de todos: “Pois a Vós pertencem o reino, o poder e a glória”. Ora, se o poder pertence a Deus, nada há o que temer, pois ninguém é capaz de resistir-lhe, nem lhe tomar o poder supremo. Quando ele diz “Vosso é o reino”, ele nos faz ver que esse mesmo inimigo que nos ataca lhe está submetido, e que, se ele nos guerreia, é porque Deus tolera que seja assim. Ele pertence ao número dos seus escravos, ainda que condenado e reprovado por ele, e por mais furioso que seja, ele não ousaria atacar um homem, se não tivesse recebido esse poder de Deus. Ora, que digo eu, que ele não ousaria atacar um homem? Ele não ousou sequer entrar dentro dos porcos, sem antes ter recebido a permissão de Jesus Cristo; como ele não ousou tocar nos bois e nas ovelhas desse santo homem Jó, senão depois que Deus lhe concedeu esse poder. E Ainda que vocês fossem mil vezes mais fracos do que são, se forem justos, podem ter toda confiança servindo a tão grande rei, um rei que pode fazer por vocês qualquer coisa que ele queira.

“A Vós pertence a glória pelos séculos dos séculos. Amém”. Deus não apenas os liberta dos seus males, como ele ainda pode lhes conceder a glória. Como seu poder é infinito, sua glória é inefável, e ambas se estenderão por todos os séculos. Vejam, assim, quantas coisas ele nos propõe para nos estimular ao combate, e para nos inspirar firmeza e confiança.


[1] Mateus 5: 15.
[2] Romanos 8: 23.
[3] Salmo 102: 20.
[4] Mateus 6: 14-15

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Arquimandrita Sofronio - Excertos do Ensinamento de São Silouane o Athonita: A Oração Pura


INTRODUÇÃO

A Revelação nos diz: “Deus é Amor”, “Deus é Luz, nele não existe treva alguma[1]”.

Quão difícil é para nós, homens, aceitarmos essas palavras! Difícil, porque nossa própria vida e a do mundo inteiro que nos rodeia mostram o contrário.

Onde se encontra, com efeito, essa Luz de Amor do Pai, se, chegando ao ocaso de nossas vidas, com a amargura no coração, somos obrigados a reconhecer, como Jó: “Meus melhores projetos, os desejos mais queridos de meu coração, se desmancharam. Meus dias ruíram, minha casa será o lugar dos mortos... Onde está, pois, minha esperança? E aqui que, desde a minha juventude, secreta e ardentemente, meu coração perseguia, quem o verá?[2]”.

O próprio Cristo assegura que Deus, em sua Providência, vela atentamente por toda a criação. Ele se lembra do mais pequenino pássaro, e cuida mesmo da erva do campo. Sua solicitude pelos homens é entretanto incomparavelmente maior, até o ponto de que “todos os seus cabelos estão contados[3]”.

Mas onde está essa Providência que vela até os menores detalhes? Estamos desconcertados pelo espetáculo do desencadeamento irrefreável do mal pelo mundo. Milhões de vida, com frequência apenas iniciadas, e ainda antes que tenham qualquer consciência de si mesmas, são arrancadas com incrível crueldade.

Por que então essa vida absurda nos foi dada? A alma anseia por encontrar a Deus e dizer-lhe: “Por que me deste a vida? Estou coberto de sofrimentos, as trevas me rodeiam. Por que te escondes de mim? Sei que és bom, mas como podes ser tão indiferente à minha dor? Por que és tão cruel, tão implacável comigo? Não posso compreender-te”.

Um homem possuído pelo desejo de Deus vivia na terra. Seu nome era Simeão. Havia orado durante longo tempo, chorando sem cessar: “Tem piedade de mim”. Mas seu grito se perdia no silêncio de Deus.

Perseverou meses e meses nessa oração; as forças de sua alma estavam esgotadas. Chegou ao limite do desespero e gritou: “És inexorável!”. E quando, com essas palavras, algo se rompia em seu espírito destroçado pelo desespero, viu de repente, no relâmpago de um instante, a Cristo vivo. Seu coração e seu corpo foram invadidos por um fogo tão violento, que se a visão houvesse se prolongado um instante a mais, ele não teria sobrevivido. Desde então, ele nunca mais pôde esquecer o olhar de Cristo, um olhar de indizível doçura, infinitamente amoroso, cheio de alegria e de paz. E durante os muitos anos de sua vida que se sucederam desde então, ele testemunhou incansavelmente que Deus é Amor, Amor infinito e insondável.

É desse testemunho do amor divino que vamos falar.

[Os textos do Arquimandrita Sofrônio sobre os ensinamentos de São Silouane que vamos publicar a seguir encontram-se no livro: "São Silouane o Athonita, Monge do Monte Athos (1866-1938): Vida - Doutrina - Escritos" - Encuentro Editores, Madri - 1990 - Tradução de Joaquim Mauristany]




[1] I João 4: 8; 1, 5.
[2] Jó17: 11. 15.
[3] Mateus 10: 30.


A ORAÇÃO PURA

A vida inteira do santo Starets Silouane era de oração. Ele rezava ininterruptamente, mudando a forma da oração ao longo do dia, segundo as circunstâncias. Possuía também o dom do modo de oração mais elevado, o do hesiquiasmo, ao qual dedicava sobretudo as horas da noite, quando reinam o silêncio e a escuridão favoráveis à oração.

As diversas modalidades ou formas de oração constituem um dos pontos centrais do ascetismo em geral; assim acontecia com o Starets, e acreditamos ser nosso dever determo-nos um pouco a respeito.

Os três modos de oração
A oração é a criação suprema, a criação por antonomásia, e por isso apresenta uma variedade infinita de formas. No entanto, é possível distinguir um certo número delas seguindo a tendência ou a atitude interior das principais faculdades espirituais do homem; é assim que o fazem os Padres da Igreja.

Essas formas correspondem às etapas do desenvolvimento normal do espírito, a saber: o movimento do intelecto para o exterior, seu retorno a si e sua ascensão a Deus por intermédio do homem interior.
Essa ordem ternária serviu de base aos Santos Padres para definir três modos de oração. O primeiro é caracterizado pela imaginação, pois o intelecto ainda é incapaz de se elevar diretamente à contemplação pura; o segundo modo é caracterizado pela meditação, e o terceiro pela imersão na contemplação. Somente o terceiro modo é correto e fecundo, na opinião dos Padres. Mas, conscientes da incapacidade humana de alcançar a oração pura no início do caminho para Deus, eles consideraram naturais e úteis os dois primeiros, em seu devido tempo. Mas eles sublinham que, se o homem se limita ao primeiro modo e persiste em cultivá-lo, sua oração não só se tornará estéril, como ainda poderá gerar profundos transtornos espirituais. Quanto ao segundo modo de oração, ainda que supere o primeiro comparativamente, também fornece poucos frutos; por não apartar o homem de sua luta contínua contra os pensamentos que o assaltam, não o libera das paixões e tampouco lhe permite alcançar a contemplação pura. O terceiro modo de oração, o mais perfeito, consiste na permanência do intelecto no coração; ali, a pessoa que ora, na profundidade de seu ser e livre de toda imagem, está diante de Deus em oração pura.

O primeiro modo de oração mantém o homem em seus estado errante congênito perambulando por seu mundo ilusório, num domínio onírico, algo parecido com um “sonho poético”; o divino, a realidade espiritual em geral, aparece sob diversos aspectos imaginários e a própria vida humana concreta vai se impregnando pouco a pouco de elementos procedentes da vida imaginária.

O segundo modo de oração deixa o coração e o intelecto amplamente abertos à penetração das coisas que lhes são exteriores. Então o homem se encontra exposto constantemente a diversas influências estranhas, cuja natureza ele não compreende com exatidão; ignorando particularmente o modo como esses pensamentos e combates se originam nele, ele se mostra incapaz de resistir como deve ao assalto das paixões. Às vezes ele recebe, no transcurso desse modo de oração, a graça de ascender a um estado espiritualmente favorável, mas sua disposição interior defeituosa o impede de perseverar, satisfeito com alguns conhecimentos espirituais adquiridos e com sua conduta relativamente correta, ele se deixa arrastar pela teologia especulativa; e na medida em que progride nesse cainho, a luta interior contra as sutis paixões da alma, a vaidade e o orgulhos se complicam, e pouco a pouco a graça vai se perdendo imperceptivelmente. O desenvolvimento desse modo de oração, marcado pela concentração da atenção no cérebro, confina a consciência no nível de contemplação “filosófica”, e essa reduz novamente o intelecto à esfera dos conceitos abstratos e da imaginação. Esse aspecto conceitual e abstrato da atividade imaginativa é menos ingênuo, com certeza, menos opaco e, portanto, menos afastado da verdade do que o primeiro.

O terceiro modo de oração une o intelecto e o coração. Essa união constitui, em geral, no estado normal da vida religiosa, um estado desejado, buscado, recebido desde o alto. Todo fiel conhece esse estado quando ora com atenção, “do fundo do coração”; ele o experimenta na medida em que a compunção e a doce presença de Deus se apoderam dele. As lágrimas de compunção durante a oração são um indício certo da fusão entre intelecto e coração; um sinal de que a oração alcançou o primeiro lugar, o primeiro grau de sua elevação a Deus; por essa razão os ascetas têm as lágrimas em tão alta conta. Mas ao falarmos aqui desse terceiro modo de oração, devemos levar em conta algo maior: o intelecto, fixado pela atenção na oração, permanece no coração.

O aspecto distintivo desse movimento interiorizante do intelecto consiste na cessação da atividade imaginativa e na liberação por parte do intelecto de todas as imagens que aí haviam sido introduzidas. O intelecto se torna todo o olho e o ouvido, vê e escuta qualquer pensamento proveniente do exterior antes que penetre no coração. O intelecto em oração não apenas impede a entrada no coração dos pensamentos, como ainda os rechaça, colocando-se assim ao abrigo de qualquer “cumplicidade” com eles; dessa maneira se torna possível paralisar a ação das paixões em seu primeiro estado, a partir do momento em que elas começam a germinar.

Esse assunto é demasiado profundo e complexo para que possamos apresentar aqui mais do que uma breve consideração.


A evolução dos pensamentos

O pecado se atualiza através do processo interior de uma série de estágios.

O primeiro estágio consiste no surgimento, a partir do “exterior”, de um certo “influxo” espiritual, que de início pode ser distinto e sem forma. O primeiro momento de sua formação é a aparição de uma imagem no campo visual interno; como essa aparição não depende da vontade do homem, ela não lhe é imputada como pecado. As imagens rapidamente se revestem tanto de um aspecto visível como de uma estrutura mental; na maioria das vezes elas são de natureza mista. Como as primeiras aparições, imagens visíveis, se traduzem em tal ou qual representação intelectual, o asceta dá o nome de “pensamento” a todas as imagens.

O intelecto “soberano” de um homem purificado das paixões pode, enquanto faculdade cognitiva, deter o fluxo dos pensamentos sem perder o controle próprio e o resguardo de seu influxo. Mas se houver “lugar” no homem para o pensamento, se esse encontrar ali um terreno apropriado para seu desenvolvimento, sua energia tenderá a se apoderar do mundo psíquico, vale dizer, da alma. Ele o consegue suscitando na alma, que é predisposta ao vício, um certo “deleite”, correspondente a essa ou àquela paixão. É no deleite que reside a “tentação”. Esse instante de satisfação, embora já manifeste a imperfeição do homem, ainda não é considerado culpa sua, de acordo com a sagrada Escritura. “O pecado está à sua porta, como fera acuada, espreitando você; você pode dominá-lo?[1]”.

O desenvolvimento ulterior do pensamento pode ser descrito sumariamente conforme segue: o deleite proposto pela representação passional atrai a atenção do intelecto. Esse é um momento muito importante, pois a partir de agora o homem se torna responsável, conforme a pergunta proposta por Cristo aos seus discípulos: “Por que sobem esses pensamentos ao seu coração?[2]”. A cumplicidade” entre o intelecto e o pensamento favorece o desenvolvimento desse último. Se o intelecto, mediante um ato interior da vontade, não se aparta do deleite proposto, mas ao contrário permite que a atenção se fixe nele, a propensão ao deleite cresce e vai se convertendo num entretenimento agradável; o “trato” inclina a um “consentimento”, que pode desembocar num “acordo” total e ativo. Depois, sem deixar de evoluir, o deleite passional pode se apoderar do intelecto e da vontade, e então se produz o “cativeiro”. Depois disso, todas as forças do “cativo” convergem para uma realização mais ou menos imediata e deliberada do pecado atual ou, se um obstáculo externo o impede, na busca de uma possibilidade para realizá-lo.

O “cativeiro” a que nos referimos por permanecer em algo isolado e não se repetir; isso acontece quando ele é fruto da falta de experiência e quando o homem persevera na tensão e no combate. Mas se o “cativeiro” se repete, engendra o “hábito” da paixão; então, todas as forças naturais do homem se colocam a seu serviço.

O combate deve começar na primeira sedução da representação passional, a que chamamos anteriormente de “sugestão”; ele pode e deve se estabelecer, ademais, em qualquer estado do desenvolvimento da representação pecaminosa, porque essa pode ser vencida em qualquer deles e assim nunca chegar a se realizar. A matéria do pecado, sem embargo, se desenvolve a partir do momento em que a vontade vacila, e então será preciso a penitência para não perder a graça.
Para uma consciência inexperiente, o mau pensamento passa desapercebido nos primeiros estágios; ele só se torna discernível depois que adquiriu um certo poder, quando o perigo do pecado real é iminente.

Para não chegar a esse ponto, é preciso fixar o intelecto no coração por meio da oração. Isso se impõe a todo asceta que deseje consolidar-se na vida espiritual mediante a oração, porque esse comportamento permite sufocar o pecado na origem. Convém recordar aqui as palavras do Profeta: “Filha de Babilônia, a devastadora... Feliz daquele que toma seus filhos e os esmaga contra o rochedo[3]”; esse rochedo é o nome de Jesus Cristo.

Fechando a entrada do coração e colocando o espírito como sentinela, despojado de qualquer imagem ou reflexo, e armado com a oração e o nome de Jesus, o asceta luta contra toda influência e contra todo pensamento proveniente do exterior. Nisso consiste a sobriedade intelectual, cujo objetivo é a luta contra as paixões.

Num sentido mais amplo e universal, a vitória sobre as paixões é obtida com o cumprimento dos mandamentos de Cristo. Mas em nosso estado estamos nos referindo a uma forma particular de sobriedade espiritual, que começa depois que o asceta franqueou certas etapas do desenvolvimento espiritual e abandonou a oração em seus dois primeiros modos, depois de conhecer por experiência os limites desses.

Para guardar seu coração e seu intelecto livres de qualquer pensamento, o asceta sustenta um longo combate, extremamente árduo e sutil. O homem que vive submerso na multitude de influências e impressões as mais variadas não pode distinguir sua natureza nem avaliar sua força, por causa do desfile constante dessas coisas na corrente de sua vida. O asceta, ao contrário, praticando o silêncio do intelecto e apartando-se do exterior, concentra-se com todas as suas forças em sua vida interior e desde ali empreende um combate singular contra o pensamento. O homem cuja atenção exterior é insuficiente, cai fatalmente sob o influxo de um pensamento e se converte em seu escravo. Ao permitir que sua vontade se dobre ante suas sugestões, o homem se assemelha espiritualmente e inclusive se identifica com a energia da qual o pensamento se alimenta. Ao aceitar em sua alma um pensamento, que com muita frequência provém de uma influência demoníaca, o homem se converte em sua vítima.

O espírito de um homem que ora profundamente percebe às vezes que um espírito se aproxima desde fora; mas se ele não relaxar a atenção em sua oração, esse espírito se afasta sem deixar rastros. Dessa maneira, depois da oração, o homem não consegue saber quem veio, nem porque, nem com que fim. Durante a oração profunda podem acontecer fenômenos de difícil explicação. Aparições luminosas atravessam o horizonte do intelecto e tentam atrair sua atenção; se o intelecto não as considera, elas parecem dizer-lhe: “Eu lhe trago sabedoria e compreensão; se você não me aceita agora, não voltará a me ver”. Mas se o intelecto experiente não lhe presta nenhuma atenção, elas desaparecem sem que tenham sido aceitas nem identificadas. O espírito não sabe com certeza se foi um anjo ou um demônio, mas sabe por experiência que, na medida em que colocar sua atenção na brilhante ideia que se lhe apresenta, perderá a oração e não a recuperará senão a duras penas. A experiência ensina que durante a oração não é conveniente se fixar sequer nos bons pensamentos; o intelecto não deixará de encontrar em seguida outros pensamentos e, como dizia o Starets Silouane, “não sairá daí ileso”. A perda da oração pura é um prejuízo que nada é capaz de compensar.

Em luta pela sua liberdade, o asceta declara uma guerra tão intensa ao pensamento, que quem nunca viveu a mesma experiência não é capaz de imaginar. Nessa luta interior, nessa resistência direta ao pensamento, a alma do principiante, sofre em certas ocasiões, uma derrota parcial – mas, em outras, obtém vitórias significativas. O asceta tem oportunidade de estudar com sutileza surpreendente a natureza do pensamento. Desse modo, sem chegar a cometer o pecado que lhe é apresentado, ele conhece a energia de cada paixão com uma profundidade e sutileza que o homem que é possuído por ela não tem. Esse último pode observar o efeito dessa ou daquela paixão sobre si mesmo ou sobre os demais, mas, para conseguir um conhecimento mais profundo é necessário atingir o “lugar” espiritual onde se encontra aquele que ora segundo o terceiro modo de oração; é dali que o asceta enxerga qualquer paixão em sua gênese.

Essa obra admirável, desconhecida salvo raras exceções, que não é seguida inclusive por aqueles que a conhecem, não é realizável senão a custa de uma dedicação assídua, e só é adotada por uma minoria: “Estreita é a porta e apertado o caminho que conduz à vida, e poucos são os que o encontram[4]”. Essa obra não é simples nem fácil, com pode aparecer à primeira vista; voltaremos a isso outras vezes, em nosso intento de dar-lhe uma definição breve e clara, sem esperar esgotá-la ou expô-la de modo minimamente satisfatório.

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A essência do caminho ascético do Starets Silouane pode ser resumida brevemente assim: manter o coração ao abrigo de todo pensamento exterior com a ajuda da atenção do intelecto, com vistas a poder, uma vez rechaçadas todas as influências exteriores, apresentar-se diante de Deus em oração pura.

Essa obra é chamada de silêncio do intelecto. Os Santos Padres no-la legaram por intermédio da corrente da Tradição viva e parcialmente escrita, que remonta aos primeiros séculos da história da Cristandade. Portanto, falar do caminho ascético do Starets equivale, tal como ele o entendia, a falar do monarquismo ortodoxo em geral.

São Silouane dizia: “Se você for teólogo, sua oração será pura; se sua oração for pura, você é teólogo[5]”. Um monge asceta não é um teólogo na acepção acadêmica do termo, mas o é no sentido em que, através da oração pura, Deus o torna digno da verdadeira contemplação.

O caminho da oração pura começa com a luta contra as paixões. Na medida em que se purifica o intelecto, o combate contra os pensamentos se fortalece e a oração se torna mais estável. O coração, liberto da cegueira passional, contempla as realidades espirituais com uma clareza e pureza que vão crescendo até a certeza da intuição imediata.

O monge prefere esse caminho ao da ciência teológica; a seus olhos, a especulação – seja teológica ou metafísica, no sentido mais elevado do termo – conduz até aquele “limite” no qual aparece a impossibilidade de aplicar ao ser divino conceitos nascidos de nossos próprios recursos; isso permite alcançar aquele estado no qual o intelecto começa a “emudecer”; mas esse “silêncio” do intelecto no espiritual especulativo permanece muito abaixo da contemplação de Deus, por mais que se aproxime dela.

Não é possível, com efeito, chegar à contemplação verdadeira, que é transformadora, sem haver purificado o coração previamente. Somente um coração despojado de paixões, incluindo-se aí a paixão mental, está disposto ao estado de “rapto”, de “arrebatamento” ou de “estupor” que são característicos da consciência da incognoscibilidade de Deus, do conhecimento do Incognoscível, da suprema “nesciência”. Nessa “nesciência”, o intelecto, inundado de gozo, fica reduzido ao silêncio, desconcertado ante a grandeza do Contemplado.

O espiritual especulativo e o teólogo pensador, de um lado, e o monge asceta, de outro, seguem caminhos distintos. O intelecto desse último se abstém não só do pensamento discursivo, coo de qualquer dialética especulativa, de toda teoria metafísica; ele se limita, como um guardião, a vigiar para que nada exterior se introduza no coração. O nome de Jesus Cristo e seus mandamentos, e nenhuma outra coisa, constituem nesse “silêncio sagrado” o caminho no qual coração e intelecto vivem em uníssono uma só vida; e eles o fazem controlando tudo o que acontece no interior, com uma vigilância que não constitui um exame lógico, mas uma “sensação” espiritual sui generis.

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O intelecto unido ao coração se encontra num estado que lhe permite seguir cada movimento que se produz na esfera do “subconsciente” (tomamos esse termo da psicologia, embora essa não corresponda exatamente à perspectiva ortodoxa). O intelecto, descendo até o coração, percebe uma multidão de imagens e de representações, provenientes do entorno cósmico da realidade e que parecem querer se apoderar do coração e da inteligência do homem. Sob a forma de pensamento associado a tal ou qual imagem, aparece a energia própria de cada uma das potências do mundo ambiental. O assalto dos pensamentos que vêm de fora é de uma extrema violência; para repeli-lo, o monge é obrigado a proibir-se, ao longo do dia, qualquer olhar ou tendência de índole passional. Ele deve aspirar sem tréguas a reduzir ao mínimo o número de impressões exteriores (incluindo as especulativas); se não o fizer, na hora da oração contemplativa tudo o que ele acolheu irá acossar seu coração, formando um muro intransponível e submergindo-o num funesto desassossego.

O estado de permanente vigilância interior é o objetivo do monge. Alertado por longos anos de esforço, na verdade do mais árduo de todos os esforços ascéticos, o coração pode adquirir uma sutil sensibilidade, e o intelecto, regenerado pelas abundantes lágrimas derramadas, pode conquistar o poder de recusar qualquer sugestão mental ou passional; então o estado de oração se torna estável, porque a consciência de Deus, presente e atuante, adquire a partir desse momento força e claridade.
A espiritualidade “areopagítica” é de outra índole: nela a reflexão prevalece sobre a oração. Os que a adotam veem frequentemente frustradas suas expectativas: tendo assimilado com facilidade o conteúdo especulativo da teologia apofática, tendem a se contentar com o gozo espiritual que extraem disso. Inclinados a subestimar a importância das paixões não dominadas, estão convencidos de realizar a essência da obra do Areopagita, quando na verdade, no melhor dos casos, apenas exploraram a estrutura dessa teologia e penetraram em sua dimensão conceitual, sem proceder de modo existencial em relação Àquele que é o Fim necessário.

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O Starets via a essência da hesíquia não na reclusão em um lugar deserto, mas na permanência ininterrupta em Deus. Dada sua importância, o assunto merece ser considerado.

 A reclusão ou a vida eremítica não são mais do que meios, jamais um fim em si mesmo; podem contribuir para a eliminação de impressões e influências exteriores na medida em que afastam do tumulto desse mundo e favorecem a oração pura, mas com a condição de que o isolamento esteja de acordo com a vontade de Deus e não com a vontade própria. Do contrário, a vida eremítica ou qualquer outro esforço ascético se esvaziam de sentido, pois a substância de nossa vida não se mede pelo esforço que emana de nossa própria iniciativa, mas da obediência à vontade divina.

Muitos pensam que o modo de vida mais elevado é a hesíquia no deserto ou na reclusão; outros colocam acima de tudo a “loucura em Cristo”; outros no ministério sacerdotal; outros enfim, no saber teológico. Nenhum desses modos de ascese, segundo o Starets, é por si mesmo uma forma superior de vida espiritual; mas cada um pode sê-lo, para aquele a quem Deus destina.

Por diversa que seja a vontade divina sobre um ou outro homem, e seja qual for o modo de vida espiritual, o lugar ou o ministério, a aspiração à oração pura é, em qualquer caso, o que há de fundamental, e o fim último.

O Starets Silouane considerava pura a oração quando era oferecida com a compunção, vale dizer, quando o coração e o intelecto juntos viviam as palavras da oração e quando essa não era interrompida, nem pela atenção prestada às coisas exteriores, nem por uma reflexão sobre um assunto alheio à oração. Como já indicamos anteriormente, esse modo de oração é um estado religioso normal e muitos fiéis o conhecem em maior ou menor grau, mas é raro que se converta numa oração perfeita, sobre a qual cremos ser nosso dever falar, mesmo a despeito de nossa ignorância. O esforço constante que preside suas formas preparatórias depende em parte da vontade do homem. Tudo o que expusemos não constitui mais do que o aspecto negativo da oração hesiquiasta; em especial, o fato de perceber o pensamento antes de que esse se introduza no coração, o fato de controlar o “subconsciente”, de liberar-se do desassossego provocado por tantos influxos provenientes do profundo abismo da vida cósmica corrompida. Quanto à exposição de seu aspecto, ultrapassa qualquer conceituação humana.

Deus é Luz inacessível. O intelecto criado não chega até a inteligência incriada, a pessoa humana não encontra a pessoa divina se não for através do misterioso amor de Deus. Na oração perfeita, o homem, conduzido pelo amor de Deus, se esquece inteiramente do mundo e de seu próprio corpo, e não sabe, durante a oração, se vive em seu corpo ou fora dele[6].

Em seu aspecto positivo, a oração pura é um dom gratuito de Deus, raramente concedido; de modo algum depende de nosso esforço, mas é a força de Deus que chega e que, com ternura imperceptível e doçura inexplicável, eleva e introduz o homem no mundo da luz eterna; ou, mais exatamente, a luz divina se mostra ao homem, o envolve e o penetra inteiramente com um amor tal que ele já não se recorda de nada e se torna incapaz de pensar em seja o que for.

Esse é o estado ao qual se referia o Starets, ao dizer: “Aquele cuja oração é pura, este é teólogo”.

É necessário ter vivido essa experiência para compreender o que é a teologia enquanto visão de Deus. O intelecto que não conheceu a pureza, que jamais contemplou a luz eterna, por mais que tenha ascendido às alturas da experiência conceitual opera inevitavelmente em função de imagens mentais, de modo que suas tentativas de conhecer a Deus se mantém forçosamente em conjecturas; ele é tentado em não poucas ocasiões a ver autênticas contemplações e revelações divinas, mas não é capaz de discernir o aspecto mais sutil e insidioso da ilusão.


O fundamento da hesíquia reside no primeiro mandamento de Cristo

Em suas obras ascéticas alguns Padres distinguem duas formas de vida espiritual: uma ativa (praxis) e outra contemplativa (theoria); eles consideram típico da primeira a observância dos mandamentos.

O Starets Silouane pensava de maneira diferente. Ele dividia a vida em um aspecto ativo e outro contemplativo, mas reduzia ambos à observação dos mandamentos de Cristo. Para ele a hesíquia derivava, antes de tudo, das palavras do primeiro mandamento, que ordena amar a Deus de todo coração, com toda inteligência e com toda alma. O Starets escreveu: “Quem conheceu o amor de Deus dirá: ‘Não observei os mandamentos. Ainda quando eu rezo dia e noite e me esforço na prática da virtude, não observei o mandamento de amar a Deus. Não o cumpro senão raramente, mas minha alma desejaria perseverar nele constantemente’. Quando os pensamentos provenientes de fora entram em nosso espírito, nossa inteligência se divide entre Deus e as outras coisas, sinal de que o mandamento de amar a Deus com toda a inteligência e todo o coração não está sendo cumprido, mas quando o espírito está inteiramente imerso em Deus, sem estar distraído por outros pensamentos, o primeiro mandamento se realiza, mesmo que seja de modo imperfeito”.

O hesiquiasmo encontrou sempre, sobretudo no Ocidente, numerosos detratores. Não tendo experimentado aquilo de que falam, os adversários argumentam abstratamente e chegam a qualificar a oração de mecânica ou de técnica espiritual destinada a obter a contemplação. Nada existe de verdade nisso.

Deus, completamente livre, não poderia ser submetido a nenhum processo automático, nem a pressão alguma. A hesíquia exige uma renúncia total de si mesmo, incluindo o “direito” ao êxito da obra ascética. Essa decisão de aceitar tal sofrimento para melhor cumprir os mandamentos, é o que, de fato e de direito, atrai a graça de Deus, se o esforço for realizado com espírito humilde.

Um orgulhoso não obterá a união com Deus, sejam lá quais forem os procedimentos empregados. A aspiração humana enquanto tal é incapaz de unir o intelecto ao abismo do coração; mesmo que o homem lograsse penetrar ali por suas próprias forças, não veria mais do que a si próprio, só em sua beleza criada, sublime na medida em que modelada à imagem de Deus – mas na qual não encontraria a Deus.

Dessa maneira, em sua luta pela humildade, o santo Starets recorria àquela ordem que recebera de Deus: “Mantenha seu espírito no inferno e não se desespere”.

Esse homem, intelectualmente não refinado, mas “simples” e inculto, conheceu muitas vezes o estado de contemplação pura de Deus. Tinha autoridade, portanto, para dizer: “Se tua oração é pura, és teólogo”, ou então: “Existem muitos fiéis na terra, mas são raros os que conhecem a Deus”.

O Starets não entendia por conhecimento nem as teorias gnósticas nem as especulações teológicas, mas apenas a experiência da comunhão viva, a experiência da união real com a luz divina. O conhecimento é coexistência, ou seja, comunhão com a existência.


Fundamento antropológico da hesíquia

Seguindo, na medida do possível, a exposição da experiência positiva do Starets, desejamos evitar que nosso tratamento adquira uma aspecto técnico; evitamos conscientemente, por essa razão, paralelismos e citações dos escritos dos Santos Padres.

O presente estudo não tem outra pretensão do que oferecer um retrato do Starets e descrever seu caminho espiritual. Esse caminho, embora inserido plenamente na Tradição ascética da Igreja Ortodoxa, da qual é uma manifestação autêntica e viva, se reveste de um caráter único e original.

As questões dogmáticas não serão abordadas aqui com espírito sistemático. Apenas nos deteremos nelas na medida em que um ou outro dogma esteja organicamente unido a todo o processo da vida espiritual. Basta que mudemos um elemento de nossa consciência dogmática para ver como se modificam em seguida nosso ambiente espiritual e nossa evolução interior. Inversamente, o menor desvio da verdade em nossa vida interior desnaturaliza nossa perspectiva dogmática.

A propósito do silêncio do intelecto, que o Starets tinha em alta conta, acreditamos útil resumir, inspirando-nos na experiência, o fundamento antropológico dessa obra. As seguintes passagens de São Macário e de Santo Isaac o Sirio, cujos textos ele conhecia bem, traduzem essa antropologia:

“A alma não é nem de natureza divina nem da natureza das trevas enganadoras; ela é uma criatura inteligente (noeté), cheia de beleza, de grandeza e de mistério, imagem e semelhança harmoniosa de Deus; mas a malignidade das paixões tenebrosas penetrou nela como resultado da transgressão[7]”.

“Deus criou isento de paixões aquele que modelou à sua imagem (...); por isso, as paixões não pertencem à essência da alma, mas constituem algo acrescentado, e a responsabilidade cabe à alma. (...) Quando os sentidos estão em silêncio, você pode ver os tesouros encerrados na alma[8]”.

Dissemos anteriormente que o intelecto assentado na oração do coração percebe qualquer pensamento que se aproxima do coração antes de que penetre nele. Entendemos por “pensamento” a energia das “paixões malignas” que assaltam a alma desde fora, a qual, segundo o Starets, é algo “acrescentado”, adicional e não inerente à natureza da alma. A todos esses elementos adicionais, alheios, intrusos e que tendem a assenhorar-se do coração, o intelecto assentado nesse último lhes opõe da oração e, com o auxílio dela, os rechaça.

Mas uma interiorização mais profunda se produz quando o intelecto, sob o impulso divino, se une ao coração até o ponto de despojar-se inteiramente de imagens e conceitos, fechando o acesso ao coração a todo elemento extrínseco; então a alma penetra junto com o intelecto numa “treva” de índole muito particular, para em seguida ser considerada digna de estar de modo inefável diante de Deus.

Existe todavia um estado superior a esse, no qual o homem comunga existencialmente e com plena evidência da vida eterna e do repouso inexprimível em Deus. Mas o homem, sem embargo, não se mantém aí por muito tempo, se o Senhor, pelos desígnios que só ele conhece, quiser prolongar sua vida; ele retorna ao mundo e fala de sua morada interior em Deus, como São Pedro sobre o monte Tabor: “Senhor, é bom permanecer aqui contigo[9]”.


A experiência da eternidade

A hesíquia é uma vida de riqueza e esplendor tais que sua descrição se reveste sempre de um caráter de certo modo inconsequente e contraditório. Nos parece natural que as pessoas habituadas a se mover no plano lógico fiquem desconcertadas diante da ideia de que o homem possa ser introduzido, por algum tempo e com evidência existencial, na vida eterna. Com efeito, é paradoxal converter-se em eterno por um tempo. Sem embargo, vamos tentar uma explicação.

O tempo e a eternidade são, da perspectiva do asceta, dois modos diferentes do ser. O primeiro, o tempo, é o modo do ser criado misteriosamente por Deus do nada, que nasce continuamente e se desenrola no devir. O segundo, a eternidade, é o modo do ser divino, ao qual não são aplicáveis nossos conceitos de extensão e de sucessão. A eternidade é um ato único, de uma plenitude incomensurável; um ato do ser divino que transcende e engloba de uma só vez todas as modalidades de extensão do mundo criado. Somente Deus é eterno em sua própria natureza. A eternidade não é nem uma abstração nem uma entidade que exista por si e independente – ela é o próprio Deus em seu Ser. O homem, quando a benevolência divina lhe concede o dom da graça, se torna não só imortal, no sentido de um prolongamento indefinido de sua vida, como também “sem começo” (anarchos), participando da vida divina, na qual não existe nem começo, nem fim.

Quando dizemos que o homem se converte num ser “sem começo”, não estamos pensando na pré-existência da alma, nem numa transformação de nossa natureza criada em natureza divina incriada, mas na comunhão real com a vida divina, “sem começo”, em virtude da deificação da criatura pela graça.

Quando o intelecto e o coração, orientados para Cristo, se fundem numa misteriosa união – não por seu próprio esforço, mas pela ação de Deus – o homem se vê então a si próprio na raiz mais profunda de seu ser; intelecto deiforme, espírito semelhante a Deus, hipóstase imortal, ele contempla a Deus sem imagens. Mas enquanto permanecer atado à sua condição carnal, seu conhecimento não alcançará a perfeição e não conceberá o que há de ser sua existência eterna, depois de franquear a última etapa da vida terrestre, vale dizer, depois de se libertar do fardo da carne e ingressar na infinitude da luz divina, se Deus quiser recebe-lo nela. Porque a pergunta a respeito do que será a existência eterna não é colocada no momento da contemplação, quando a alma, imersa no Deus eterno, não sabe se está no corpo ou fora dele; a pergunta é colocada quando a alma retorna a esse mundo, quando se percebe novamente inserida na carne e quando, ao mesmo tempo, uma espécie de véu carnal a envolve outra vez.

Em si mesmo, nos limites da natureza criada, o homem não possui a vida eterna. Participando porém da vida divina pelo dom da graça, ele pode, desde aqui em baixo, viver a eternidade em maior ou menor grau.

Todas as expressões utilizadas aqui são paradoxais; poderíamos dizer, de forma mais expressa: somos tanto mais eternos quanto mais em Deus (onde “tanto” não significa uma quantidade, mas o dom de Deus).

A alma, em estado de visão, não pergunta. O ato inefável de sua elevação ao mundo divino, embora não aconteça por vontade própria (pois a vontade não poderia desejar aquilo que desconhece), requer, não obstante, sua participação. A participação da vontade consiste numa conformidade prévia com a vontade de Deus mediante o cumprimento dos mandamentos; essa conformidade é inerente à aspiração que temos por Deus, a visão de Deus é precedida por muitos sofrimentos e lágrimas abundantes, por lágrimas ardentes, que nascem do coração e consomem no home seu orgulho carnal, psíquico ou espiritual.

Enquanto vive na carne, o homem não é capaz de alcançar o conhecimento perfeito, mas Deus lhe concede uma experiência autêntica, segura e real, do Reino eterno; e ainda que esse conhecimento não seja, como dizia o Starets, mais do que parcial, deixa o asceta isento de dúvidas.

Falando da experiência da eternidade e da ressurreição da alma, pensamos na extraordinária benevolência divina que, derramando-se sobre o homem, “transporta-o” para o domínio da luz eterna e lhe concede viver com certeza sua liberação da morte, sua eternidade.

Mesmo que, no “retorno” dessa visão, um certo “véu” recobre outra vez o homem, sua consciência pessoal e sua percepção de mundo se encontram, sem embargo, radicalmente modificadas – e não poderia deixar de ser assim, por múltiplas razões. A experiência de sua queda e de seus sofrimentos lhe revela a mesma tragédia em cada ser humano. A experiência da imortalidade pessoal o leva a ver em cada homem seu irmão imortal. A experiência viva da eternidade e da contemplação interior de Deus, em abstração da criação, de modo incompreensível, cumula a alma de amor ao homem e a toda a criação. Revela-se a ele que só quem conheceu por experiência espiritual da grandeza de alma é capaz de valorizar e de amar ao seu próximo.

Eis aqui outro fenômeno inexplicável: no momento da visão, segundo as palavras do Starets, “o mundo é inteiramente esquecido”; o tempo no qual se situa a visão não coincide com o tempo em que opera o pensamento; a razão discursiva cessa nesse instante. A atividade intelectual subsiste, mas com características totalmente distintas. É surpreendente, portanto, que, quando essa experiência, que se situa inteiramente fora do mundo, finaliza, se reveste de pensamentos e de sentimentos. O estado de visão é a luz do amor divino; sob o efeito desse amor nascem na alma novos sentimentos e pensamentos sobre Deus e sobre o homem.

O primeiro “arrebatamento” que conduz à visão é concedido ao homem desde o alto, sem que este o busque, já que, por não possuir conhecimento disso, dificilmente ele poderia buscá-lo. Porém, mais tarde, ele já não consegue esquecê-lo e, com o coração dolorido, busca-o uma e outra vez, e não apenas para si, mas para todos os homens.


O começo da vida espiritual: a luta contra as paixões

Acrescentaremos ainda algumas palavras à antropologia da oração hesiquiasta, para explicar no que consiste essa “obra ascética”, e a quais resultados ela conduz.

O asceta em estado de oração, fixando toda sua atenção no coração, se esforça por conservar o intelecto livre de qualquer pensamento. Os pensamentos podem ser conaturais ao homem, dada sua condição terrestre, mas podem ser também efeito de influências demoníacas. Quando o asceta ora, renuncia durante um tempo, segundo suas possibilidades (que diferem umas das outras), a satisfazer suas necessidades naturais. Quanto aos pensamentos demoníacos, ele os exclui inteiramente. Daí resulta que o asceta rechaça durante a oração a todos os pensamentos, sejam eles naturais ou demoníacos.

Quando o asceta sucumbe à influência demoníaca, perde sua liberdade e se aparta da vida divina. Esse estado é designado na doutrina ascética como o termo de “paixão”. “Paixão” designa, por um lado, a ideia de passividade e de escravidão e, por outro, a ideia de sofrimento, no sentido de desintegração e morte. “Aquele que comete o pecado não permanece em casa para sempre, apenas o filho permanece em casa para sempre”. Assim, no estado de paixão pecaminosa, se dão dois tipos de sofrimentos: a escravidão e a desintegração; por esse motivo, o “escravo do pecado não pode ter uma consciência autentica da liberdade dos filhos de Deus.

As paixões têm poder de atração, mas o enraizamento na alma de não importa qual imagem ou pensamento passional jamais acontece sem o consentimento do homem, pois nada em toda a existência cósmica é suficientemente forte para privar o homem de sua capacidade de resistir ou recusar. Mas quando o pensamento ou uma imagem passional de implanta solidamente na alma, o homem se converte, em maior ou menor grau, num possuído. As paixões são “possessões”, com diferentes graus de intensidade.

A paixão atrai porque faz luzir o deleite daquele a quem ela tenta; a paixão, enquanto de integração, é consequência dos deleites passionais. O processo passional, se não começasse pelo momento deleitável, mas pelo sofrimento, seria incapaz de inclinar o homem para seu lado. A paixão, enquanto sofrimento e morte, s[o é identificada pelo homem espiritual que conheceu a ação vivificante da graça, que gera na alma uma repulsão e um “ódio” contra os movimentos que nela faz o pecado.

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O começo da vida espiritual é a luta contra as paixões. Essa luta seria fácil, se não estivesse ligada ao rechaço do deleite. Sua segunda etapa é ainda mais difícil: as paixões insatisfeitas começam a atormentar o homem com as enfermidades mais diversas. O asceta necessita então de uma longa e extraordinária paciência, pois os resultados positivos de sua resistência não chegam rapidamente.

Para o homem que vive nos condicionamentos do mundo, é normal a permanência nessa luta por toda a vida. Só em dois casos extremos não há lugar para ela. Primeiro, num homem impassível, já que o deleite proposto pela paixão não o tenta de modo algum, e tudo permanece no nível do simples pensamento. Segundo, no homem que está submetido ao assalto dos pensamentos, mas que permanece inacessível à sua força de atração, e que também pode ser chamado de impassível. Uma escravidão completa, por outro lado, se caracteriza também pela ausência de luta, já que em cada etapa do desenvolvimento passional o homem não só não oferece resistência, como vai ao encontro da paixão e vive com ela.

Na condição de sua existência carnal o homem tem paixões que não são pecaminosas; ou seja, sofrimentos e necessidades sem cuja satisfação a vida seria impossível (por exemplo, o alimento, o sono, etc.). o asceta, durante um período de tempo não demasiadamente prolongado, desdenha essas necessidades e, se sua voz começa a se tornar ameaçadora por causa das enfermidades, chega mesmo, no empenho de não se submeter a elas, ao extremo de enfrentar a morte. Convém notar, no entanto, que, em casos como esses, a morte não chega a acontecer; o homem é conservado por Deus em maior medida. A valente decisão de enfrentar a morte é parecida a uma espada de fogo. Normalmente o asceta oculta essa chama em sua alma, sem revelar seu poder. A presença dessa energia contida e não exteriorizada é indispensável, inclusive no contexto da vida cotidiana, para cumprir os mandamentos na medida do possível, e para libertar-se, ainda que temporalmente, do assalto dos pensamentos.

Imerso no coação profundo, o intelecto se aparta, pelo mesmo fato dessa imersão na oração, de toda imagem visual ou mental e, nesse estado de pureza, é aceito em se apresentar perante Deus; e o que nasce dessa profundidade que está além das imagens, mesmo que se vista sob a forma de pensamento ou se se revista de uma imagem, já não é uma paixão, mas a verdadeira vida de Deus.

Nesse estado descobrimos que a alma tende naturalmente para Deus, que ela é semelhante a ele e que é também essencialmente impassível.

Pela alternância de seus estados espirituais, de comunhão e de privação da graça, o home chega à convicção de que “não possui” sua própria vida, de que sua vida está em Deus; fora dele, está a morte. Quando a alma é agraciada pela chegada da luz divina, ela participa realmente da vida eterna, vale dizer, do próprio Deus; e, ali onde Deus está, se encontra uma liberdade que nossas palavras não podem expressar, porque nesse momento o homem vive para além da morte e do temor.

Nesse estado o homem conhece a si mesmo; e, conhecendo-se, ele conhece o homem em geral, em virtude da consubstancialidade do gênero humano.

Em suas profundidades, ali onde se descobre a autêntica semelhança do homem com Deus, ali onde se manifesta sua alta vocação, o asceta vê aquilo que é absolutamente desconhecido para o homem que jamais penetrou em seu próprio coração.

São João Damasceno diz no ofício litúrgico dos defuntos: “Choro e gemo quando penso na morte e quando vejo jazer na tumba a beleza, criada à imagem de Deus, inteiramente deformada e privada da graça”.

Assim chora e geme aqueles que conheceram em Deus a beleza paradisíaca do homem, quando, em seu retorno no inefável banquete espiritual na profunda câmara nupcial do coração, coloca seus olhos sobre esse mundo privado de beleza e de glória.

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[1] Gênesis 4: 7.
[2] Lucas 24: 38.
[3] Salmo 136: 8-9.
[4] Mateus 7: 14.
[5] Cf. Evagro o Pôntico.
[6] Cf. II Coríntios 12: 2.
[7] São Macário, Homilias 1, 7.
[8] Santo Isaac o Sírio, Logos 82.
[9] Mateus 17: 4.