quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Alexander Schmemann - Pela Vida do Mundo - Apêndice I

 


 

O CULTO NUMA ERA SECULAR

 

1

 

Colocarmos lado a lado – de modo a relacionar um ao outro – os termos culto e era secular, parece pressupor que existe um claro entendimento do que é um e do que é outro, que sabemos quais realidades cada qual denota, e que podemos trabalhar sobre um terreno sólido e já exaustivamente explorado. Mas será esse o caso? Eu comecei esse ensaio com uma pergunta porque estou convencido de que apesar da moderna preocupação geral com a “semântica”, existe uma grande confusão a respeito do significado exato de muitos termos que são usados em discussões.

 

Não apenas entre os cristãos em geral, mas mesmo entre os próprios Ortodoxos não existe de fato um consenso, nenhuma estrutura de referência aceita comumente em relação aos termos culto e secularismo, e assim também, a fortiori, sobre a questão de sua interrelação. Assim sendo, esse ensaio não constitui tanto uma tentativa de resolver o problema, quanto de esclarecê-lo, tornando isso possível através de uma perspectiva consistentemente Ortodoxa. Em minha opinião, os Ortodoxos, quando discutem os problemas trazidos por nossa presente “situação”, aceitam-nos com muita facilidade em sua formulação Ocidental. Eles parecem não se dar conta de que a tradição Ortodoxa permite acima de tudo uma possibilidade, e portanto uma necessidade, de reformulação desses mesmos problemas, colocando-os num contexto cuja ausência ou deformação na mente religiosa Ocidental pode ter se constituído na raiz de muitos de nossos “impasses” modernos, e, do modo como eu o vejo, em parte alguma essa tarefa é mais urgentemente necessária do que na gama de problemas relacionados ao secularismo e, mais propriamente, à autodenominada era secular.

 

 

2

 

O secularismo foi analisado, descrito e definido de muitas maneiras nos últimos anos, mas até onde eu saiba nenhuma dessas descrições enfatizou uma questão que eu considero essencial e que de fato revela mais do que tudo a verdadeira natureza do secularismo, de modo a poder dar um bom ponto de apoio à nossa discussão.

 

O secularismo, proponho eu, constitui antes de tudo uma negação do culto, da adoração. Eu enfatizo: não da existência de Deus, não de algum tipo de transcendência ou, por conseguinte, de algum tipo de religião. Se em termos teológicos o secularismo é uma heresia, trata-se basicamente de uma heresia a respeito do homem. Ele consiste na negação do homem como um ser que cultua, como homo adorans: como alguém para quem a adoração é um ato que tanto “afirma” sua humanidade, como a realiza. Ele consiste na rejeição, ontológica e epistemologicamente “decisiva” daquelas palavras que “sempre, em qualquer lugar e para todos” constituíram a verdadeira “epifania” da relação do homem para com Deus, para com o mundo e para consigo mesmo: “É justo e salutar que Te cantemos, Te bendigamos, Te adoremos, Te agradeçamos e Te  louvemos em todos os lugares do Teu domínio...”.

 

Essa definição de secularismo certamente demanda uma explicação. Porque ela obviamente não pode ser aceita por aqueles, tão numerosos hoje em dia, que consciente ou inconscientemente reduzem o Cristianismo a categorias meramente intelectuais (“o futuro da crença”) ou sócio-éticas (“cristãos devem servir ao mundo”), e que consequentemente pensam que deve ser ´possível encontrar não apenas algum tipo de acomodação, como ainda uma harmonia mais profunda entre a “era secular” de um lado, e a adoração de outro. Se os que propõem isso, que basicamente não passa da aceitação cristã do secularismo, estiverem certos. Então nosso problema será apenas o de encontrar ou inventar uma culto e uma adoração mais aceitáveis, mais “relevantes” para o ponto de vista secular do homem moderno. E, de fato, essa é a direção que adotam hoje a maior parte dos reformadores litúrgicos. O que eles procuram é um culto cujas formas e conteúdo “reflitam” as necessidades e as aspirações do homem secular, ou, melhor ainda, do próprio secularismo. Pois, repetimos, secularismo não é a mesma coisa que o ateísmo e, por paradoxal que pareça, pode se se mostrar como tendo sempre como que uma nostalgia de uma expressão “litúrgica”. Se minha definição estiver correta, por outro lado, toda essa busca dará em nada, senão num total nonsense. Então a própria formulação de nosso tema – o culto de adoração numa era secular – revelará, em primeiro lugar, uma contradição interna de termos, uma contradição que requer reavaliação radical de todo o problema, e uma drástica reformulação.  

 

 

3

 

Para demonstrar que minha definição de secularismo, como “negação do culto” está correta, devo primeiro provar dois pontos. Um se refere ao culto: é preciso provar que a própria noção de culto implica uma certa ideia de relação do homem, não apenas com Deus, mas também com o mundo. E outro, referente ao secularismo: é preciso provar que é precisamente essa ideia de culto que o secularismo rejeita, explícita ou implicitamente.

 

Primeiramente vamos considerar o culto. É irônico, embora revelador do estado atual de nossa teologia, que a principal “prova” seja fornecida não pelos teólogos, mas pela história e fenomenologia das religiões, cujos estudos a respeito do culto, seja nas suas formas ou nos seus conteúdos, foram virtualmente ignorados pelos teólogos. Mesmo nos seus períodos iniciais, quando a “ciência das religiões” possuía um viés fortemente anticristão, ela parecia conhecer mais a respeito da natureza e do significado do culto do que os teólogos, que continuavam a reduzir os sacramentos a categorias de “forma” e “matéria”, de “causalidade”, de “validade”, e que, de fato, excluíam a tradição litúrgica de suas especulações teológicas.

 

Por outro lado, não cabe dúvida de que, se à luz dessa fenomenologia da religião, hoje madura do ponto de vista metodológico, considerarmos o culto em geral e a leitourgia cristã em particular, seremos obrigados a admitir que o próprio princípio sobre o qual eles estão construídos, e que determinam seu formato e desenvolvimento, é o do caráter sacramental do mundo e do lugar do homem no mundo.

 

O termo “sacramental” significa aqui que a intuição básica e primordial que não apenas se expressa no culto, mas da qual todo o culto constitui de fato o “fenômeno” – a um tempo efeito e experiência – é que o mundo, seja em sua totalidade enquanto cosmo, seja em sua vida que se faz tempo e história, é uma epifania de Deus, um meio de Sua revelação, presença e poder. Em outras palavras, ela não apenas “coloca” a ideia de Deus como uma causa da existência racionalmente aceitável, como realmente “fala” Dele e constitui em si mesma um meio essencial, tanto de conhecimento de Deus como de comunhão com Ele, e é nisso que consiste sua verdadeira natureza e seu destino último. Sendo assim, o culto é verdadeiramente um ato essencial, e o homem é essencialmente um ser que adora, pois é somente no culto que o homem encontra a fonte e a possibilidade desse conhecimento que é comunhão, e dessa comunhão que se realiza como verdadeiro conhecimento: conhecimento de Deus e, por conseguinte, conhecimento do mundo, e comunhão com Deus, e consequentemente comunhão com tudo o que existe. Assim é que a própria noção de culto está baseada numa intuição e experiência do mundo como uma “epifania” de Deus, e é assim que o mundo – no culto – é revelado em sua verdadeira natureza e vocação como “sacramento”.  

 

Assim, de fato, será necessário lembrar que essas realidades, tão humildes, tão “ concedidas a nós” que mal chegam a ser mencionadas em nossas sofisticadas epistemologias teológicas, e que são totalmente ignoradas nas discussões a respeito das “hermenêuticas”, são aquelas das quais, não obstante, depende a própria existência da Igreja enquanto nova criação, como povo de Deus e templo do Espírito Santo? Precisamos de água e azeite, de pão e de vinho para entrarmos em comunhão com Deus e para conhecê-Lo. E inversamente – e é isso que ensina, senão os modernos manuais de teologia, mas a própria liturgia – é essa comunhão com Deus por meio da “matéria” que revela o verdadeiro significado da própria “matéria”, vale dizer, do mundo em si. Só podemos adorar no tempo, e é somente o culto que em última análise não apenas revela o significado do t empo, como realmente “renova” o próprio tempo. Não existe culto sem a participação do corpo, sem palavras e silêncios, luz e obscuridade, movimento e repouso – e é no culto e por intermédio dele que todas esses expressões essenciais do homem em sua relação com o mundo recebem seu “termo de referência” definitivo, revelado em seu mais alto e profundo sentido.

 

Portanto, o termo “sacramental” significa que o fato de que o mundo se torna meio de adoração e sentido da graça não é acidental, mas sim constitui a revelação de seu significado, a restauração de sua essência, a realização de seu destino. É a “sacramentalidade natural” do mundo que encontra sua expressão no culto e o transforma no ergon essencial do homem, o fundamento e a fonte de sua vida e de suas atividades enquanto homem. Sendo a epifania de Deus, o culto é também a epifania do mundo; sendo comunhão com Deus, ele é a única e verdadeira comunhão com o mundo; sendo conhecimento de Deus, ele é a realização e a plenitude última de todo o conhecimento humano.

 

 

4

 

Nesse ponto, e antes de adentrarmos em nosso segundo ponto – o secularismo como negação do culto – uma observação se faz necessária. Se antes eu mencionei a “ciência das religiões”, foi porque essa disciplina estabelece em seu próprio nível e de acordo com sua própria metodologia que essa é de fato a verdadeira natureza e o sentido do culto, não apenas cristão, como do culto em geral, do culto como fenômeno primordial e universal. Um teólogo cristão, porém, é obrigado a conceder – me parece – que isso é especificamente verdadeiro para a leitourgia cristã, cujo caráter único repousa em sua origem na fé na Encarnação, no grande e abrangente mistério do “Verbo feito carne”. De fato, é extremamente importante lembrarmos que essa singularidade, a novidade do culto cristão, não consiste em que ele não tenha continuidade com o culto “em geral” (como alguns apologistas extremamente zelosos tentaram provar quando a ciência das religiões simplesmente reduziu o Cristianismo e seu culto a mistérios e cultos pagãos), mas no fato de que essa continuidade se realiza em Cristo, recebendo seu novo, verdadeiro e definitivo significado a partir do momento em que o culto “natural” nele se encaminha para um fim. Cristo é a plenitude do culto enquanto adoração e prece, ação de graças e sacrifício, comunhão e conhecimento, porque Ele é a “epifania” definitiva do homem enquanto ser que adora, a plenitude da manifestação e da presença de Deus por intermédio do mundo. Ele é o Sacramento, verdadeiro e pleno, porque Ele é a plenitude da “sacramentalidade” essencial do mundo.

 

Se, por outro lado, essa “continuidade” da leitourgia cristã com todos os demais cultos do homem inclui em si um princípio igualmente essencial de descontinuidade, se o culto cristão, sendo a realização e o fim de todos os cultos constitui também seu princípio, um culto radicalmente novo, isso não acontece por causa de alguma impossibilidade ontológica do mundo ser o sacramento de Cristo. Não, é pelo fato de que o mundo rejeitou Cristo e O matou, e ao fazer isso ele rejeitou seu próprio destino e realização. E no entanto, se a base de todo o culto cristão é a Encarnação, seu verdadeiro conteúdo será sempre a Cruz e a Ressurreição. Através desses acontecimentos a nova vida em Cristo, o Senhor Encarnado, está “oculta com Cristo em Deus”, e se torna uma vida “que não é desse mundo”. O mundo que rejeitou Cristo deve morrer no homem se quiser se tornar outra vez meio de comunhão, meio de participação na vida que irradia do sepulcro, no Reino que não é “desse mundo”, e que, em termos desse mundo, ainda está para vir.

 

Assim, o pão e o vinho – o alimento, a matéria, o próprio símbolo desse mundo e seu conteúdo em nossa prósfora a Deus, que deve se transformar no Corpo e Sangue de Cristo e se tornar a comunhão com Seu Reino – devem se constituir na anáfora para “ascenderem” e serem levados “desse mundo”. E é apenas quando a Igreja, na Eucaristia, deixa esse mundo e ascende à mesa de Cristo em Seu Reino, é só então que ela vê e proclama os céus e a terra como estando cheios de Sua Glória, e a Deus como tendo “preenchido todas as coisas Consigo mesmo”. Assim, uma vez mais essa “descontinuidade”, essa visão de todas as coisas como novas, só é possível porque desde o começo houve continuidade e não negação, porque o Espírito Santo “tornou novas todas as coisas”, e não porque Ele tenha feito “coisas novas”. É pelo fato de que todo o culto cristão constitui sempre uma recordação de Cristo “na carne”, que ele consiste também numa lembrança, isso é, numa expectativa e antecipação, de Seu Reino. É somente porque a leitourgia da Igreja é sempre cósmica, vale dizer, que ela assume toda a criação em Cristo, e que ela e sempre histórica, isso é, que ela assume todos os tempos em Cisto, que ela pode ser também escatológica, ou seja, que ela nos torna participantes do Reino por vir.

 

Essa é, portanto, a ideia da relação do homem com o mundo implicada na própria noção de culto. O culto é, por definição e ato, uma realidade com dimensões cósmica, histórica e escatológica, uma expressão não só de “piedade”, mas de uma abrangente “visão de mundo”. E os poucos que assumiram o fardo de estudar o culto em geral, e o culto cristão em particular, certamente concordarão que no mínimo no nível da história e da fenomenologia, essa noção de culto é objetivamente verificável. Assim sendo, se o que hoje as pessoas chamam consistem em atividades, projetos e outras coisas que nada têm a ver com essa noção de culto, a responsabilidade por isso repousa na profunda confusão semântica típica de nossos tempos tão confusos.

 

 

5

 

Podemos agora passar para o segundo ponto. O secularismo, como eu disse, é acima de tudo uma negação do culto. E, de fato, se o que dissemos a respeito do culto é verdade, não será igualmente verdadeiro que o secularismo consiste exatamente na rejeição, explícita ou implícita, dessa ideia de homem e mundo que o culto tem por finalidade expressar e comunicar?

 

Essa rejeição, ademais, está na própria base do secularismo e constitui seu critério interno, mas, como eu disse, o secularismo de modo algum é idêntico ao ateísmo. Um secularista moderno muitas vezes aceita a ideia de Deus. O que, naturalmente, ele nega enfaticamente, é exatamente a sacramentalidade do homem e do mundo. Um secularista vê o mundo como algo que contém em si seu próprio sentido e os princípios do conhecimento e da ação. Ele pode deduzir sentido a partir de Deus e atribuir a Deus a origem do mundo e as leis que o governam. Ele pode mesmo admitir sem dificuldade a possibilidade da intervenção de Deus na existência do mundo. Ele pode acreditar na vida após a morte e na imortalidade da alma. Ele pode confessar a Deus suas aspirações mais elevadas, tais como a de uma sociedade mais justa, da liberdade e igualdade entre os homens. Em outras palavras, ele pode “referenciar” seu secularismo a Deus e torná-lo “religioso” – tema de programas eclesiásticos e de programas ecumênicos, de assembleias da Igreja e objeto de matérias de “teologia”. Tudo isso não muda nada na “secularidade” fundamental dessa visão de homem e de mundo, de um mundo que é entendido, experimentado, e que atua a partir de seus próprios termos imanentes e tendo em vista seu próprio interesse imanente. Tudo isso nada muda em sua rejeição fundamental da “epifania”: a intuição primordial de que tudo nesse mundo – e o próprio mundo – não apenas têm sua causa e se princípio em outra parte do que na sua existência, como ainda são eles próprios a manifestação e a presença dessa outra parte, e que nisso consiste de fato a vida de sua vida, de tal forma que, desconectadas daquela “epifania”, só resta a escuridão, o absurdo e a morte.

 

E em parte alguma essa essência do secularismo como negação do culto é melhor revelada do que no modo como o secularista lida com o culto. Por paradoxal que possa parecer, o secularista é, de certo modo, obcecado pelo culto. O “cume” do secularismo religioso no Ocidente – a Maçonaria – é constituído quase que inteiramente de cerimônias altamente elaboradas e saturadas de “simbolismo”. O mais recente profeta da “cidade secular”, Harvey Cox, sentiu a necessidade de dar sequência ao seu primeiro sucesso de vendas[1] com um livro “celebrativo[2]”. A celebração está realmente muito em voga atualmente. As razões para esse fenômeno aparentemente peculiar são na realidade muito simples. Elas não apenas não invalidam, como ao contrário confirmam meu ponto de vista. Pois, de um lado, esse fenômeno prova que, qualquer que seja seu grau de secularismo, ou mesmo de ateísmo, o homem permanece sendo um “ser que adora”, sempre nostálgico por ritos e rituais, não importa o quanto vazia e artificial seja a farsa oferecida a ele. Por outro lado, ao provar a incapacidade do secularismo em criar um culto genuíno, esse fenômeno revela a trágica e definitiva incompatibilidade do secularismo com a visão de mundo essencialmente cristã.

 

Essa incapacidade pode ser vista, em primeiro lugar, na própria perspectiva secular sobre o culto, em sua ingênua convicção de que o culto, como tudo o mais no mundo, pode constituir-se numa construção racional, coo resultado de planejamento, “troca de ideias” e discussões. Típico disso são as discussões da moda sobre novos símbolos (se símbolos são), por assim dizer “fabricados”, trazidos à existência por meio de deliberações de comitês. Mas a questão total aqui é saber se o secularista é constitutivamente incapaz de ver nos símbolos alguma coisa além de “suportes audiovisuais” para comunicação de ideias. No último inverno, um grupo de estudantes e professores de um famoso seminário passaram todo um semestre “trabalhando” numa “liturgia” centrada nos seguintes temas: o Sistema de Transporte Supersônico (SST), a ecologia, as enchentes no Paquistão. Não há dúvida de que eles estavam “bem intencionados”. O que estava errado eram seus pressupostos: que o culto tradicional pode não ter “relevância” para esses temas, e que nada tem a revelar sobre eles, e que, a menos que um “tema” seja de algum modo claramente exposto numa liturgia, ou que seja seu “foco”, ele estará obviamente fora do alcance espiritual da experiência litúrgica. O secularista de hoje é um apaixonado por termos como “simbolismo”, “sacramento”, “transformação”, “celebração” e toda uma panóplia de terminologia cultual. O que ele não se dá conta, é claro, é que o uso que faz deles revela, de fato, a morte dos símbolos e a decomposição do sacramento. E ele não percebe isso porque em sua rejeição da sacramentalidade do homem e do mundo, ele está reduzido a símbolos visuais como meras ilustrações de ideias e conceitos, coisa que eles não são de modo algum. Não pode haver celebração de ideias e conceitos, sejam eles “paz”, “justiça”, ou mesmo “Deus”. A Eucaristia não é um símbolo de amizade, de intimidade ou de qualquer outro estado de atividade de outro modo desejáveis. Uma vigília ou um jejum são, certamente, “simbólicos”: eles sempre expressam, manifestam e enchem a Igreja de expectativa, porque eles são, por si mesmos, expectativa e preparação. Transformá-los em “símbolos” de protesto político ou de afirmação ideológica, utilizá-los como meios para coisas que não são sua finalidade, pensar que os símbolos litúrgicos podem ser usados arbitrariamente – tudo isso implica a morte do culto, independentemente do sucesso óbvio e da popularidade desses “experimentos”.

 

Para qualquer um que tenha tido, ainda que uma única vez, a verdadeira experiência do culto, tudo isso se revela imediatamente como a falsificação que é. Ele sabe que o culto secularista que se quer transcendente é simplesmente incompatível com a real transcendência do culto. E é aqui, nessa miserável falência litúrgica, cujos pálidos resultados apenas começamos a ver, que o secularismo revela seu vazio religioso definitivo e, não podemos hesitar em dizê-lo, sua essência pesadamente anticristã.

 

 

6

 

Quererão essas coisas significar uma simples desistência de nosso próprio tema: “o culto numa era secular”? Será que isso significa que não haja nada que nós, Ortodoxos, possamos fazer nessa era secular, senão realizar aos Domingos nossos “velhas e coloridas” rituais, e viver de segunda-feira até sábado uma vida perfeitamente “secularizada”, partilhando de uma visão de mundo que nada tem a ver com nossos ritos?

 

Eu respondo a essa questão com um enfático “não!”. Estou convencido de que aceitar essa “coexistência[3]”, como hoje advogam muitos cristãos aparentemente bem intencionados, representaria não apenas uma traição à nossa fé, como ainda, cedo ou tarde (e provavelmente mais cedo do que tarde), levaria à desintegração exatamente daquilo que tentamos preservar e perpetuar. Estou convencido, ademais, que essa desintegração já começou e que ela se oculta atrás de muros à prova de graças de nossos “estabelecimentos” eclesiásticos (ocupados que estão em defender seus antigos direitos, privilégios e primazias, e condenando-se mutuamente como “não-canônicos”), retóricas de paz, e auto justificado pietismo. Voltaremos a esse último mais tarde.

 

O que é preciso entender aqui, antes de tudo, é que o problema que está em discussão é complicado ainda mais por algo que nossos bem intencionados “conservadores” não entendem, apesar de toda sua denúncia e condenação ao secularismo. Esse algo consiste na conexão bem real que existe entre o secularismo – em sua origem e desenvolvimento – e o Cristianismo. O secularismo – devemos sempre enfatizar – é um “filho postiço” do Cristianismo, como o são, em última análise, todas as ideologias seculares que hoje dominam o mundo – não, como clamam os apóstolos Ocidentais de uma aceitação cristã do secularismo, um filho legítimo, mas uma heresia. A heresia, contudo, consiste sempre numa distorção, num exagero e, por conseguinte, na mutilação de algo verdadeiro, na afirmação de uma “escolha” (aizesis significa escolha, em grego), um elemento às custas dos demais, o rompimento da catolicidade da Verdade. Mas uma heresia é sempre uma questão dirigida à Igreja, e que requer, para ser respondida, um esforço por parte do pensamento e da consciência cristã. Condenar a heresia é relativamente fácil, o que é mais difícil é detectar a questão implicada nela, e responder adequadamente a essa questão. E no entanto essa foi sempre a maneira da Igreja de lidar com as heresias – elas sempre provocaram um esforço de criatividade dentro da Igreja, de modo que a condenação se transformava num alargamento e num aprofundamento da própria fé cristã. Para combater o Arianismo, Santo Atanásio propôs o termo consubstancial, que antes, e num contexto teológico diverso, havia sido condenado como herético. Por causa disso ele recebeu uma violenta oposição, não apenas do Ariamos, como também dos “conservadores”, que viram nele um inovador e um “modernista”. Ao final, entretanto, ficou claro que foi ele quem salvou a Ortodoxia, e que os “conservadores” cegos, consciente ou inconscientemente, ajudaram os Arianos. Assim, se o secularismo é, como estou convencido que seja, a grande heresia de nosso tempo, ele requer da Igreja não meros anátemas, e com certeza tampouco compromissos, mas, acima de tudo, um esforço de entendimento de tal maneira a que seja definitivamente suplantado pela verdade.

 

O caráter próprio do secularismo, sua diferença em relação às grandes heresias da era patrística, está em que aquelas foram provocadas pelo encontro do Cristianismo com o Helenismo, enquanto que o primeiro é o resultado de uma “ruptura” interna ao próprio Cristianismo, de sua profunda metamorfose. A falta de tempo me impede de detalhar esse ponto. Devo me limitar assim a uma exemplo “simbólico” diretamente relacionado com nosso tema. No final do século XII um teólogo Latino, Berengário de Tours, foi condenado por seu ensinamento a respeito da Eucaristia. Ele sustentava que, por ser a presença de Cristo nos elementos eucarísticos “mística” ou “simbólica”, ela não era real. O Concílio de Latrão que o condenou – e, para mim, aqui está o ponto crucial da questão – simplesmente inverteu a fórmula. Proclamou-se que, uma vez que a presença de Cristo na Eucaristia é real, ela não pode ser “mística”. O que é verdadeiramente decisivo aqui é a desconexão e a oposição entre os dois termos verum e mystice, a aceitação, de ambos os lados, de que eles são mutuamente exclusivos. A teologia Ocidental declarou assim que o que é “místico” ou “simbólico” não é real, enquanto que o que é “real” não pode ser simbólico. Isso representou o colapso do mysterion cristão fundamental, a “junção” antinômica do símbolo e do simbolismo com a realidade. Representou o colapso do entendimento cristão fundamental da cristão em termos de sua sacramentalidade ontológica. E desde então, o pensamento cristão, na Escolástica e além dela, não cessou mais de opor esses termos, e de rejeitar, implícita ou explicitamente, o “realismo simbólico” e o “simbolismo realista” da visão cristã de mundo. “Como se Deus não existisse” – essa fórmula se originou, não com Bonhoeffer ou algum apóstolo moderno do “Cristianismo irreligioso”. De fato, ela já está implicada no Tomismo, com a distinção epistemológica básica entre a causa prima e a causa secunda. Aqui reside a verdadeira causa do secularismo, que afinal não passa da afirmação da autonomia do mundo, de sua autossuficiência em termos de razão, conhecimento e ação. A decadência do simbolismo cristão levou à dicotomia entre o “natural” e o “sobrenatural” como sendo a única estrutura do pensamento e da experiência cristã. E ainda que o natural” e o “sobrenatural” estejam de alguma forma relacionados por analogia entis, como diz a teologia Latina, ou quer essa analogia seja rejeitada, como quer Karl Barth, em última instância isso não faz diferença. Em ambas as visões o mundo deixa de ser o sacramento “natural” de Deus, e o sacramento sobrenatural deixa de ter qualquer “continuidade” com o mundo.

 

Mas não nos deixamos enganar, essa estrutura teológica Ocidental foi de fato aceita também pelo Oriente Ortodoxo e, desde o fim da era patrística nossa teologia se pareceu mais com o Ocidente do que com o Oriente. Se o secularismo pode ser apropriadamente chamado de uma heresia Ocidental, o próprio fruto do “desvio” Ocidental básico, nossa própria teologia escolástica também foi permeada por esse desvio ao longo de séculos, e isso apesar das violentas denúncias contra Roma e o papismo. E é de fato irônico, mas jamais acidental, que psicologicamente, os mais “Ocidentais” dentre os Ortodoxos de hoje sejam precisamente os ultra-conservadores “super Ortodoxos”, cujo formato mental é legalista e silogístico de um lado, e, de outro, é erigido sobre essas “dicotomias” cuja introdução no pensamento cristão constitui o “pecado original” do Ocidente. Uma vez que essas dicotomias são aceitas, já não importa, teologicamente falando, se “aceitamos” o mundo, como o entusiasmo Ocidental por um “Cristianismo secular”, ou se o “rejeitamos”, como no caso dos “super Ortodoxos”, profetas da condenação apocalíptica. O otimismo positivista de uns e o negativismo pessimista de outros são, de fato, suas faces da mesma moeda. Ambos, ao negar ao mundo sua “sacramentalidade” natural, e opor radicalmente o “natural” ao “sobrenatural”, tornam o mundo à prova de graça e, em última análise, o conduzem ao secularismo. E é aqui, dentro desse contexto psicológico e

 Espiritual, que o problema do culto em relação ao moderno secularismo adquire seu significado real.

 

 

7

 

Pois está claro que essa teologia profundamente “Ocidentalizada” teve um sério impacto sobre o culto, ou antes, sobre a experiência e a compreensão do culto, sobre aquilo que eu defini em outro estudo[4] como a piedade litúrgica. E ela teve esse impacto porque ela satisfaz um profundo desejo do homem por uma religião legalista que preencha sua necessidade, tanto do “sagrado” – uma sanção e garantia divinas – como do “profano”, isso é, de uma vida secular natural e protegida, como se fosse possível, dos constantes desafios e das demandas absolutas de Deus. Foi uma recaída nessa religião que garantiu, por intermédio de ordenadas transações com o “sagrado”, a segurança e a consciência limpa dessa vida, assim como os direitos racionais sobre o “outro mundo”, religião que Cristo denunciou em cada palavra de Seu ensinamento, e que ao final O levou à crucificação. De fato, é muito mais fácil viver e respirar dentro de distinções claras entre o sagrado e o profano, entre o natural e o sobrenatural, entre o puro e o impuro, é mais fácil entender a religião em termos de “tabus” sagrados, prescrições e obrigações legais, de retidão ritual e de “validade” canônica. É muito mais difícil perceber que essa religião não apenas não constitui ameaça alguma ao secularismo, como é, paradoxalmente, sua aliada.

 

E, entretanto, é exatamente o que acontece com nossa “piedade litúrgica”, mas não com o culto enquanto tal – com suas formas e estruturas, que são demasiado tradicionais, demasiado à parte da vida da Igreja para serem alteradas em qualquer grau que seja considerado – mas com nossa “compreensão” dessas formas, daquilo que nós esperamos e, portanto, recebemos, do culto. Se o culto, conforme estabelecido pela tradição litúrgica, a lex orandi da Igreja, permanece o mesmo, sua “compreensão” pelo fiel se torna mais e mais determinada pelas mesmas categorias que a tradição litúrgica Ortodoxa rejeita explicita ou implicitamente com todo seu mundo, todo seu “ethos”. E a profunda tragédia aqui é que a imposição dessas categorias é hoje aceita em tanta extensão que qualquer tentativa de denunciá-las, de mostrar sua incompatibilidade com o verdadeiro espírito e sentido da leitourgia, é recebida com acusações de modernismo e de outros pecados mortais. Mas isso não constitui apenas uma discussão verbal superficial, como uma dessas tempestades acadêmicas que em geral não chegam a perturbar a Igreja. Trata-se aqui de uma questão de vida ou morte, porque é aqui e somente aqui que essa assustadora heresia do secularismo pode encontrar seu diagnóstico cristão apropriado, e ser derrotada.

 

O pouco tempo de que disponho me obriga a limitar-me a um único exemplo para mostrar que as “dicotomias” mencionadas acima, que sem dúvida determinaram a profunda metamorfose de nossa piedade litúrgica, não apenas não nos “conectam”, nem nos relacionam mutuamente – Deus, o homem e o mundo -  unindo a todos numa única e consistente visão de mundo, mas, ao contrário, elas anulam todas as “comunicações” e “correspondências” entre eles.

 

Assim, por exemplo, benzer a água, transformando-a em “água benta”, pode ter dois sentidos completamente diferentes. Pode significar, por um lado, a transformação de algo profano, e por conseguinte religiosamente vazio ou neutro, em algo sagrado, caso em que o principal sentido religioso da “água benta” é precisamente o fato de não mais ser “mera” água, sendo realmente oposta a ela, assim como o sagrado é oposto ao profano. Aqui o ato de benzer não nos revela nada a respeito da água, nem a respeito da matéria do mundo, mas, ao contrário, as torna irrelevantes para a nova função da água como “água benta”. O sagrado estabelece o profano como sendo apenas profano, isso é, religiosamente insignificante.

 

Por ouro lado, o mesmo ato de benzer pode significar a revelação da verdadeira “natureza” e do “destino” da água e, dessa forma, do mundo – ele pode representar a epifania e a realização de sua “sacramentalidade”. Ao ser restaurada por meio da bênção à sua função própria, a “água benta” se revela como a verdadeira, plena e adequada água, e a matéria se torna outra vez um meio de comunicação e de conhecimento de Deus.

 

Agora, qualquer um que esteja familiarizado com o conteúdo e o texto da grande prece da bênção da água – no Batismo e na Epifania – sabe sem sombra de dúvida que eles pertencem ao segundo dos dois significados mencionados, que seu termo de referência não é a dicotomia entre o sagrado e o profano, mas o potencial “sacramental” da criação em sua totalidade, bem coo em cada um de seus elementos. E também qualquer um que esteja familiarizado com nossa piedade litúrgica – nesse caso, a “compreensão” pela imensa maioria dos fiéis do significado da “água benta” – sabe igualmente bem que é o primeiro sentido que triunfa aqui diante da virtual exclusão do segundo. E a mesma análise pode ser aplicada, com os mesmos resultados, a praticamente todos os aspectos do culto: aos sacramentos, à liturgia do tempo, ao calendário, etc. A “sacramentalidade” foi substituída em toda parte pela “sacralidade”, a “epifania” por uma quase mágica incrustação no tempo e na matéria (o “natural”), pelo “sobrenatural”.

 

O que é mais perturbador é que essa piedade litúrgica, esse entendimento e essa experiência do culto, não apenas não constituem um desafio ao secularismo, como é uma das suas fontes. Pois eles mantêm o mundo como profano, isso é, secular, no mais profundo sentido do termo: como sendo totalmente incapaz de qualquer comunicação real com o Divino, de qualquer transformação real, de qualquer transfiguração. Por não ter nada a revelar sobre o mundo e a matéria, sobre o tempo e a natureza, essa ideia e essa experiência de culto não “provocam” nada, não questionam nada, não desafiam nada, e, de fato, não se aplicam a nada. Assim sendo, elas podem tranquilamente “coexistir” com qualquer ideologia secular, com qualquer forma de secularismo. E praticamente não existe diferença entre os liturgistas “rigorosos”, ou seja, aqueles que estendem os ofícios ao máximo, que observam todas as rubricas e o Typicon, e os liturgistas “liberais”, sempre prontos e ansiosos para encurtar, adaptar e ajustar. Pois em ambos os casos o que se nega é simplesmente a continuidade entre “religião” e “vida”, a própria função do culto como poder de transformação, julgamento e mudança. Mais uma vez, paradoxal e tragicamente, esse tipo de perspectiva em relação ao culto e esse tipo de experiência litúrgica são, de fato, a fonte e o suporte do secularismo.

 

 

8

 

E tudo isso acontece num momento em que o secularismo começa a “rachar” de dentro para fora! Se estiver correta minha leitura da grande confusão de nosso tempo, essa confusão se deve, em primeiro lugar, à profunda crise do secularismo. E é verdadeiramente irônico, na minha opinião, que tantos cristãos estejam buscando uma acomodação com o secularismo no próprio momento em que ele se mostra como uma posição espiritual insustentável. Mais e mais sinais apontam para um fato de suprema importância: o famoso “homem moderno” continua a olhar para um caminho além do secularismo, está mais uma vez com sede e fome de “algo mais”. Mas muitas vezes essa fome e essa sede são satisfeitas não apenas com alimentos de qualidade duvidosa, mas ainda com substitutivos artificiais de todos os tipos. A confusão espiritual está no seu máximo. Mas não será porque a Igreja, e os próprios cristãos, tenham desistido desse único dom que somente eles – e mais ninguém – podem oferecer para esse mundo espiritualmente faminto e sedento de nossos dias? Não será porque os cristãos, mais do que todos hoje, defendem o secularismo e adaptam a ele sua própria fé? Não será porque, tendo acesso ao verdadeiro mysterion de Cristo, preferimos oferecer ao mundo conselhos vagos e de segunda mão sobre “política” e “sociedade”? o mundo precisa desesperadamente de Sacramento e Epifania, enquanto os cristãos embarcam em utopias mundiais tolas e vazias.

 

Minha conclusão é simples. Nós não precisamos de nenhum novo culto que seja, de algum modo, mais adequado ao nosso mundo secular. O que precisamos é de uma redescoberta do verdadeiro significado e do poder do culto, o que significa de suas dimensões e seu conteúdo cósmico, eclesiológico e escatológico. É certo que isso implica muito trabalho, muita “limpeza”. Implica estudo, educação e esforço. Implica desistir da lenha seca que carregamos conosco, vendo-a como se fosse a própria essência de nossas “tradições” e “costumes”. Mas uma vez que descobrimos a verdadeira lex orandi, o significado genuíno e o poder de nossa leitourgia, quando ela se torna outra vez a fonte dessa visão de mundo abrangente e o poder de atender às suas expectativas – somente então o único antídoto ao “secularismo” pode ser encontrado. E não há nada mais urgente hoje do que essa redescoberta, e do que esse retorno – não ao passado – mas para a luz e a vida, a verdade e a graça que são eternamente realizadas pela Igreja quando ela se tornar – em sua leitourgia – aquilo que ela deve ser.



[1] The Secular City: Secularization and Urbanization in Theological Perspective (1965), Collier Books.

[2] The Feast of Fools: A Theological Essay on Festivity and Fantasy (1969), Harvard University Press.

[3] A melhor ilustração disso é o argumento clássico dos partidários do “velho calendário”: em 25 de Dezembro partilhamos do Natal Ocidental “secularizado”, com sua árvore, sua reunião de família, sua troca de presentes, e então, a 7 de Janeiro temos o “verdadeiro” – porque religioso – Natal. Os que adotam esse ponto de vista não se dão conta, naturalmente, de que, se a Igreja primitiva partilhasse desse entendimento de sua relação com o mundo, ela jamais teria instituído o Natal, cuja proposta era exatamente de “exorcizar” e transformar em cristão  um festival pagão que existia então.

[4] Introduction to Liturgical Theology, Faith Press, 1966.

sábado, 23 de outubro de 2021

Alexander Schmemann - Pela Vida do Mundo - Capítulo VII

 

SOMOS AS TESTEMUNHAS

DESSAS COISAS

 

1

 

Não há necessidade de repetir aquilo que já foi dito tantas vezes e tão bem nos últimos anos: que a Igreja é missão e que ser missão constitui sua verdadeira essência, sua verdadeira vida. Mas é preciso, por outro lado, lembrar que algumas “dimensões” da missão cristã foram várias vezes esquecidas desde que a Igreja aceitou seu estabelecimento no mundo, sua respeitável posição como “religião do mundo”.

 

Mas comecemos com algumas palavras a respeito de nossa atual situação missionária. Quaisquer que tenham sido as realizações da missão cristã no passado, hoje devemos, com toda honestidade, admitir um duplo fracasso: fracassamos em obter qualquer “vitória” substancial sobre as demais grandes religiões do mundo, e fracassamos em superar o crescimento e o prevalecimento do secularismo em nossa cultura. Em relação às demais religiões, o Cristianismo continua sendo simplesmente uma a mais, e certamente foi-se o tempo em que os cristãos poderiam considerá-las como “primitivas” e destinadas a desaparecer diante da supostamente evidente “superioridade” do Cristianismo. Não apenas elas não desapareceram, como hoje mostram uma notável vitalidade, e “proselitizam” mesmo dentro das autodenominadas sociedades “cristãs”. Quanto ao secularismo, nada demonstra melhor nossa inabilidade em competir com ele quanto a confusão e a divisão que ele provoca entre os próprios cristãos: a total e violenta rejeição do secularismo entre todas as variedades de “fundamentalismo” cristão colide com sua igualmente entusiástica aceitação por numerosos intérpretes cristãos do “mundo moderno” e do “homem moderno”. Daí as intermináveis reavaliações, por parte dos cristãos, de seus métodos missionários, de seu lugar e sua função no mundo.

 

Aqui podemos discernir duas grandes tendências. Em primeiro lugar, existe a perspectiva religiosa de que falamos no primeiro capítulo. O objeto da missão é pensado como sendo a propagação de uma religião, considerada como uma necessidade essencial do homem. O que é significativo aqui é que mesmo as igrejas mais tradicionais, confessionais e “exclusivas” igrejas aceitam a ideia de um modus vivendi com outras religiões, com todos os tipos de “diálogos” e “aproximações”. Existe – esse é o pressuposto – uma religião básica, alguns “valores espirituais” e “religiosos”, e esses devem ser defendidos contra o ateísmo, o materialismo e outras formas de irreligião. Não apenas os cristãos “liberais” e “não denominacionais”, como também os conservadores, estão prontos a desistir da ideia de uma missão pregadora da única e verdadeira religião, que, como tal, se opõe a todas as outras religiões, e a substituí-la por uma frente comum contra o inimigo: o secularismo. Uma vez que todas as religiões estão ameaçadas por seu crescimento vitorioso, uma vez que a religião e os “valores espirituais” estão em declínio, os homens religiosos de todas as crenças devem esquecer suas diferenças e se unir para defender esses valores.

 

Mas quais são esses “valores religiosos básicos”? Se os analisarmos honestamente, não encontraremos um sequer que seja radicalmente diferente do que aquilo que o secularismo também proclama oferecer ao homem. Ética? Busca pela verdade? Fraternidade humana, solidariedade? Justiça? Abnegação? Com toda honestidade, existe mais interesse passional por todos esses “valores” dentre os “secularistas” do que nos corpos religiosos organizados, que com tanta facilidade se amoldam ao minimalismo ético, à indiferença intelectual, às superstições, ao tradicionalismo morto. O que resta é a famosa “ansiedade” e os inúmeros “problemas pessoais” com os quais a religião declara ser supremamente competente. Mas mesmo aqui, não é significativo – e já falamos a esse respeito – que, ao lidar com esse assuntos a religião é obrigada a emprestar todo o arsenal terminológico das diversas “terapêuticas” seculares? Não são, por acaso, os “valores” apresentados nos manuais de felicidade conjugal, tanto religiosos como seculares, idênticos de fato, em sua linguagem, imagens e técnicas?

 

Parece paradoxal, mas a religião básica que tem sido pregada e aceita como o único meio de combater o secularismo é, na verdade, uma rendição ao secularismo. Essa rendição pode acontecer – como de fato acontece – em todas as confissões cristãs, embora com um “colorido” diferente conforme seja uma “igreja comunitária” suburbana não denominacional ou uma paróquia litúrgica, confessional, hierárquica e tradicional. Pois a rendição consiste não em desistir dos credos, tradições, símbolos e costumes (coisas pelas quais o homem secular, cansado de seu ofício funcional, mostra às vezes grande atração), mas em aceitar a própria função da religião em termos de promoção do valor secular de ajuda, seja a ajuda na construção do caráter, para a paz mental, ou para a segurança de uma salvação eterna. É nessa “chave” que se dá a pregação da religião, e na qual ela é hoje aceita por milhões e milhões de crentes “medianos”. E é verdadeiramente notável quão pouca diferença existe na autoconsciência religiosa dos membros de confissões cujos dogmas parecem estar em radical oposição umas com as outras. Pois mesmo que um homem mude de religião, isso se dá normalmente porque ele encontra uma oferta maior de “ajuda” – não uma verdade maior. Enquanto os líderes religiosos discutem o ecumenismo no topo, existe na base uma ecumenismo de fato nessa “religião básica”. É aqui, nessa “chave” que encontramos a fonte do aparente sucesso das religiões em algumas partes do mundo, como na América do Norte, onde o “boom” religioso se deve principalmente à secularização da religião. Essa é também a fonte do declínio da religião nas partes do mundo onde o homem já não tem tempos para uma análise constante de suas ansiedades e onde o “secularismo” ainda mantém a grande promessa de pão e liberdade.

 

Mas se isso é religião, seu declínio continuará, seja tomando a forma de um abandono direto da religião ou a do entendimento da religião como um apêndice de um mundo que há muito deixou de referenciar, tanto a si mesmo como a toda sua atividade, a Deus. E nesse declínio geral da religião, as “grandes religiões” não cristãs possuem ainda maiores chances de sobrevivência. Pois podemos nos perguntar em que medida algumas “tradições espirituais” não-cristãs não constituem uma “grande ajuda” do ponto de vista daquilo que o homem de hoje espera de uma religião. O Islamismo e o Budismo oferecem uma excelente “satisfação” e “ajuda” não apenas para o homem primitivo, como também para o homem sofisticado e intelectual. Não é verdade que a sabedoria e o misticismo Orientais sempre exerceram uma atração quase irresistível para as pessoas religiosas em toda parte? É de se temer que alguns aspectos “místicos” da Ortodoxia devem sua crescente popularidade no Ocidente por causa de sua fácil – embora errônea – identificação com o misticismo Oriental. Os escritos ascéticos da Filocalia fazem tremendo sucesso em alguns grupos esotéricos que são supremamente indiferentes à vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. E as preocupações espirituais desses grupos esotéricos são, em última análise, pouco diferentes daquelas dos pregadores mais enfaticamente cristocêntricos quando falam da salvação pessoas e da “garantia da vida eterna”. Em ambos os casos o q eu se oferece é uma “dimensão espiritual” da vida que deixa intacta e inalterada a “dimensão material” – vale dizer, o próprio mundo – e os deixa intactos sem nenhum problema de consciência. Trata-se de uma questão muito séria, de fato, até que ponto, sob essa cobertura aparentemente tradicional, algumas formas da missão cristã contemporânea não estão de fato pavimentando o caminho para uma “religião mundial”, que na verdade terá pouquíssimo em comum com a fé que um dia venceu o mundo.

 

 

2

 

A segunda tendência consiste na aceitação do secularismo, de acordo com os ideólogos de um Cristianismo não religioso”, o secularismo não é o inimigo, ele não é o fruto da perda trágica da religião pelo homem, não um pecado ou uma tragédia, mas simplesmente o mundo que “chegou ao tempo” em que o Cristianismo deve reconhecê-lo e aceitá-lo como perfeitamente normal: “A honestidade pede que reconheçamos que devemos viver num mundo como se não existisse Deus”. Esse ponto de vista foi recentemente desenvolvido em muitos livros notáveis e não há necessidade de desenvolvê-lo aqui. O que importa para nós é que essa missão é entendida aqui primariamente em termos de solidariedade humana. Um cristão é um “homem devotado aos outros”. Ele partilha incondicionalmente e por completo da vida humana dentro de uma perspectiva conferida a ele pela história de Jesus de Nazaré. A missão cristã não consiste em pregar a Cristo, mas em ser cristão na vida.

 

Sem dúvida, existe uma “ênfase” valiosa nessa tendência. E, antes de tudo, o secularismo deve de fato reconhecê-la como um fenômeno “cristão”, como resultado de uma revolução cristã. Ele só pode ser explicado no contexto da história que começa no encontro entre Atenas e Jerusalém. De fato, um dos mais graves erros do antissecularismo religioso está em que ele não vê que o secularismo é feito de “verdades cristãs tornadas tolices”, de verdades cristãs que “enlouqueceram”, e, ao simplesmente rejeitar o secularismo, ele está de fato rejeitando junto algumas aspirações e esperanças fundamentalmente cristãs. É verdade que é por intermédio da “secularização”, e não num encontro religioso direto com o Cristianismo, que os homens das demais “grandes religiões” podem entender determinadas dimensões do pensamento e da experiência, sem as quais o Cristianismo não pode ser “ouvido”. É verdade também que em seu desenvolvimento histórico, o Cristianismo voltou às dicotomias pré-cristãs e fundamentalmente não cristãs entre o “sagrado” e o “profano”, o espiritual e o material, etc., tendo assim estreitado e viciado sua própria mensagem.

 

Ainda assim, quando tudo isso é reconhecido, permanece a verdade última, em relação à qual os partidários cristãos da secularização parece ser cegos. Essa verdade é que o secularismo – precisamente devido à sua origem “cristã”, ao selo cristã indelével que carrega – constitui uma tragédia e um pecado. Ele é uma tragédia porque, tendo provado do bom vinho, o homem preferiu e ainda prefere voltar à água; tendo visto a verdadeira luz, escolheu a luz de sua própria lógica. É também característico que os profetas e pregadores do “Cristianismo secularizado” constantemente se refiram ao “homem moderno” como sendo aquele que “usa a eletricidade”, que foi moldado pela “industrialização” e pela “visão científica do mundo”. A poesia e a arte, a música e a dança não se incluem aqui. O “homem moderno” “chegou à idade” como um adulto mortalmente sério, cônscio de todos os seus sofrimentos e alienações – mas não da alegria –, do sexo – mas não do amor –, da ciência – mas não do “mistério”. Uma vez que ele sabe que “não existe o céu”, ele é incapaz de compreender a prece ao nosso Pai que está nos céus, e a afirmação de que os céus e a terra estão cheios de sua glória. Mas a tragédia é também um pecado, porque o secularismo consiste numa mentira a respeito do mundo. “Viver no mundo como se não houvesse Deus” – mas a fidelidade ao Evangelho, a toda a tradição cristã, à experiência de todos os santos e de todo o mundo da liturgia cristã exige exatamente o oposto: viver num mundo vendo todas as coisas como uma revelação de Deus, um sinal de Sua presença, a alegria de Seu advento, o chamado para a comunhão com Ele, a esperança da plenitude Nele. Desde o dia de Pentecostes existe um selo, um raio, um sinal do Espírito Santo em tudo para aqueles que acreditam em Cristo e que sabem que Ele é a vida do mundo – e que Nele o mundo, em sua totalidade, se tornou outra vez uma liturgia, uma comunhão, uma ascensão. Aceitar o secularismo como a verdade sobre o mundo é, assim, alterar a fé cristã original tão profunda e radicalmente, que é preciso que se responda à questão: estamos nós falando do mesmo Cristo?

 

 

3

 

O único objetivo desse livro tem sido o de mostrar, ou melhor, de “assinalar” que a escolha entre essas duas reduções do Cristianismo – seja à “religião”, seja ao “secularismo” – não constitui a única escolha, e que na verdade se trata de um falso dilema. “Somos testemunhas dessas coisas...” – mas, de que coisas? Numa linguagem não muito adequada, tentamos falar a respeito disso. E estamos certos de que é na ascensão da Igreja para Cristo, na alegria do mundo futuro, na Igreja como o sacramento – o dom, início, presença, promessa, realidade, antecipação – do Reino, que está a fonte e o começo de toda a missão cristã. Somente quando retornamos da luz e da alegria da presença de Cristo podemos recuperar o mundo como um campo cheio de sentido de nossa ação cristã, que podemos ver a verdadeira realidade do mundo e então descobrir o que devemos fazer. A missão cristã está sempre nos seus começos. É hoje que sou enviado ao mundo em paz e alegria, “tendo visto a verdadeira luz”, tendo partilhado do Espírito Santo, tendo sido uma testemunha do divino Amor.

 

O que farei? O que deve a Igreja e cada cristão fazer nesse mundo? Qual é a nossa missão?

 

Não existem receitas práticas para responder a essas questões. “Tudo depende” de milhares de fatores – e, para termos certeza, todas as nossas faculdades humanas de inteligência e sabedoria, de organização e planejamento, têm que ser postas em ação. Mas – e esse é o ponto que quisemos frisar nessas páginas – “tudo depende” basicamente de que sejamos testemunhas reais da alegria e da paz do Espírito Santo, da nova vida da qual nos tornamos parte através da Igreja. A Igreja é o sacramento do Reino – não porque ela possua atos divinamente instituídos chamados de “sacramentos”, mas porque, antes de tudo, ela é a possibilidade dada ao homem de ver, no mundo e através do mundo, o “mundo do futuro”, de vê-lo e de “vivê-lo” em Cristo. Somente quando, na escuridão desse mundo, discernimos que Cristo já “preencheu todas as coisas Consigo mesmo”, é que essas coisas, quaisquer que sejam, se tornam reveladas e dadas a nós plenas de significado e beleza. Um cristão é alguém que, para onde quer que olhe, encontra Cristo e se regozija Nele. E essa alegria transforma todos os seus planos e programas humanos, todas as suas ações e decisões, transformando toda sua missão no sacramento do retorno do mundo para Aquele que é a vida desse mundo.

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Alexander Schmemann - Pela Vida do Mundo - Capítulo VI

 

DESTRUIR A MORTE COM A MORTE

 

1

 

Vivemos hoje em dia numa cultura que nega a morte. Podemos constatar isso pela aparência acolhedora das agências funerárias, que buscam se parecer com as outras lojas. Lá dentro, o organizador do funeral tenta cuidar das coisas de tal modo a que ninguém se dê conta da tristeza presente; e uma sala de estar é desenhada para transformar o funeral em uma experiência na medida do possível agradável. Existe uma estranha conspiração de silêncio concernente ao franco fato da morte, e o próprio cadáver é “embelezado” para disfarçar a morte. Mas existiram no passado, e até hoje existem – mesmo dentro de nosso mundo, que tanto afirma a vida – culturas “centradas na morte”, nas quais a morte é uma das maiores e mais abarcantes preocupações, e em que a vida é concebida principalmente como uma preparação para a morte. Se para algumas pessoas a agência funerária parece espantar os pensamentos da morte, para outras mesmo certas “utilidades”, como uma cama ou uma mesa, se tornam símbolos, lembranças da morte. A cama é vista como uma imagem do sepulcro, enquanto o caixão é posto sobre a mesa.

 

Onde entra o Cristianismo em tudo isso? Não há dúvida, por um lado, de que o “problema da morte” é central e essencial na sua mensagem, conforme anuncia a vitória de Cristo sobre a morte, e que o Cristianismo tem sua fonte nessa vitória. Mas, por outro lado, temos a estranha sensação de que, embora essa mensagem seja certamente ouvida, ela não possui um impacto real nas atitudes humanas básicas em relação à morte. Antes, foi o Cristianismo que se “ajustou” a essas atitudes, aceitando-as como suas. Não é difícil dedicar a Deus – num suave discurso Cristão – novos edifícios e feiras mundiais, ou desfrutar – quando não, promover – as forças progressivas de afirmação da vida que campeiam em nossa “era atômica”, de modo a fazer o Cristianismo passar pela própria fonte dessa atividade frenética e centrada na vida. Igualmente fácil, ao pregar num funeral ou num retiro, é apresentar a vida como um vale de lágrimas e vaidades, e apresentar a morte como uma libertação.

 

Um ministro Cristão, que nisso representa toda a Igreja, deve hoje em dia utilizar-se das duas linguagens, esposando ambas as atitudes. Mas, se ele for sincero, ele deve sentir francamente eu “algo está faltando” nessas atitudes, e o que de fato falta é o próprio elemento Cristão. Pois constitui uma falsificação da mensagem Cristã, apresentar e pregar o Cristianismo como sendo essencialmente uma afirmação da vida – sem referir essa afirmação à morte de Cristo e, portanto, ao próprio fato de morte; passar em silêncio o fato de que para o Cristianismo a morte não é apenas o fim, como a própria realidade desse mundo. Mas “confortar” as pessoas e reconciliá-las com a morte, fazendo desse mundo um cenário sem sentido que serve apenas à preparação individual para a morte também implica falsificá-lo. Pois o Cristianismo proclama que Cristo morreu pela vida do mundo, e não para um “descanso eterno” em relação a ele. Essa “falsificação” faz do próprio sucesso do Cristianismo (de acordo com os dados oficiais, a construção de igrejas e as contribuições dos fiéis nunca estiveram tão em alta) uma profunda tragédia. O homem mundano quer que o ministro seja um camarada otimista, sancionando a fé num mundo progressista e otimista. E o homem religioso o vê como alguém sério, tristemente solene e que denuncia solenemente a vaidade e a futilidade do mundo. O mundo não deseja uma religião, e a religião não deseja o Cristianismo. Um rejeita a morte, outra a vida. Daí provém a imensa frustração tanto com as tendências seculares do mundo que afirma a vida, quanto da mórbida religiosidade daqueles que se opõem a ele.

 

A frustração perdurará enquanto os Cristãos continuarem a entender o Cristianismo como uma religião cujo propósito é o de ajudar, enquanto eles continuarem a manter uma autoconsciência utilitária típica da “velha religião”. Pois essa era, de fato, uma das principais funções das religiões: ajudar, e em especial ajudar as pessoas a morrer. Por esse motivo a religião sempre constituiu uma tentativa de explicar a morte e, ao explicá-la, reconciliar o homem com ela. Platão penou em seu Fédon para mostrar a morte como algo desejável e mesmo bom, e quantas vezes isso ecoou na história das crenças humanas, quando confrontado com a perspectiva de libertação desse mundo de mudanças e sofrimentos! Os homens se consolaram racionalizando que Deus criou a morte e que portanto ela está certa, ou que ela faz parte do padrão da vida; eles encontraram vários significados na morte, e se convenceram de que a morte é preferível a uma idade decrépita; eles formularam doutrinas sobre a imortalidade da alma – ou seja, de que, se o homem morre, pelo menos uma parte sua sobrevive. Tudo isso constituiu uma longa tentativa de retirar a terrível singularidade da experiência da morte.

 

Por ser uma religião, o Cristianismo teve que aceitar essa função fundamental das religiões: “justificar” a morte, para assim ajudar. Ao fazer isso, ademais, ela assimilou em maior ou menor grau as explicações clássicas sobre a morte, comuns a virtualmente todas as religiões. Pois nem a doutrina sobre a imortalidade da alma, baseada na oposição entre o espiritual e o material, nem a da morte como libertação, nem a da morte como punição, são, de fato, doutrinas Cristãs. E sua integração à visão de mundo Cristã mais corrompeu do que iluminou a teologia e a piedade Cristãs. Elas “funcionaram” enquanto o Cristianismo viveu num mundo “religioso” – vale dizer, num mundo centrado na morte. Mas elas deixaram de funcionar assim que o mundo superou essa velha religião centrada na morte e se tornou “secular”. Mas o mundo se tornou secular, não porque tenha se tornado “irreligioso”, “materialista”, “superficial”, não porque tenha “perdido sua religião” – como muitos Cristãos pensam – mas porque as velhas explicações realmente nada explicam. Em geral os Cristãos não se dão conta de que eles próprios, ou melhor, o Cristianismo, foi o principal fato de libertação da velha religião. O Cristianismo, com sua mensagem que oferece a plenitude da vida, contribuiu mais do que qualquer coisa para a libertação do homem dos temores e do pessimismo da religião. O secularismo, nesse sentido, é um fenômeno dentro do mundo Cristão, um fenômeno que seria impossível sem o Cristianismo. O secularismo rejeita o Cristianismo na medida mesma em que o Cristianismo se identifica com a “velha religião”, e tenta impingir ao mundo essas “explicações” e “doutrinas” sobre a vida e a morte que o próprio Cristianismo destruiu.

 

Entretanto, seria um grande erro pensar no secularismo apenas como sendo uma ausência de religião. Ele próprio é, de fato, uma religião, e como tal uma explicação da morte e uma tentativa de reconciliação em relação a ela. Ela é a religião daqueles que estão cansados de ver o mundo explicado em termos de “outro mundo”, a respeito do qual ninguém sabe nada, e a vida explicada em termos de uma “sobrevivência” sobre a qual ninguém tem a menor ideia do que seja; cansados de ver, em outras palavras, a vida receber seu “valor” em termos de morte. O secularismo é uma “explicação” da morte em termos de vida. O único mundo que conhecemos é esse mundo, a única vida que nos foi dada é essa vida – assim pensa o secularista – e depende de nós torná-la tão significativa, rica e feliz quanto possível. A vida termina na morte. Isso é desagradável, mas uma vez que é natural – uma vez que a morte é um fenômeno universal – a melhor coisa que o homem pode fazer é simplesmente aceitá-la como algo natural. Enquanto está vivo, naturalmente, ele não deve pensar a respeito, mas deve viver a vida como se a morte não existisse. A melhor maneira de esquecer a morte é se mantendo ocupado, é ser útil, é se dedicar a coisas grandes e nobres, é construir um mundo cada vez melhor. Se Deus existe (e um grande número de secularistas acredita firmemente em Deus e na utilidade da religião para suas atividades pessoais e corporativas), e se Ele, sem Seu amor e misericórdia (pois todos nós temos nossas deficiências) quiser nos recompensar por nossa vida ocupada, útil e correta com algum tipo de férias eternas, tradicionalmente chamadas de “imortalidade”, isso cabe estritamente à Seu próprio interesse e graça. Mas a imortalidade é um apêndice (embora eterno) dessa vida, na qual estão todos os interesses reais e os verdadeiros valores que valem a pena ser encontrados. A “agência funerária” é de fato o próprio símbolo da religião secularista, porque ela expressa tanto uma tranquila aceitação da morte como algo natural (uma casa entre outras casas sem nada que a distinga particularmente) e a negação da presença da morte na vida.

 

O secularismo é uma religião porque ele é uma fé, com sua própria escatologia e sua própria ética. E ele “funciona” e “ajuda”. E, falando francamente, se “ajudar” é um critério, devemos admitir que o secularismo centrado na vida ajuda de fato mais do que a religião. Para competir com ele, a religião teve que se apresentar como um “ajustamento à vida”, um “enriquecimento”, um “aconselhamento”, ela teve que se anunciar em cartazes no Metrô e nos ônibus como uma valiosa adição ao “banco amigo” e a todos os tipos de “negociantes amigos”: experimente isso, isso ajuda! E o sucesso religioso do secularismo é tão grande que levou alguns teólogos Cristãos a “desistir” da própria categoria de “transcendência”, ou, em termos mais simples, da própria ideia de “Deus”. Esse é o preço que foi preciso pagar para a religião ser “entendida” e “aceita” pelo homem moderno, proclamam os Gnósticos desse século.

 

Mas é aqui que chegamos ao âmago da questão. Pois para o Cristianismo o critério não é ajudar. O critério é a Verdade. O propósito do Cristianismo não é o de ajudar as pessoas reconciliando-as com a morte, mas consiste em revelar a Verdade a respeito da vida e da morte, para que as pessoas possam ser salvas por meio dessa Verdade. A salvação, entretanto, não apenas não é idêntica à ajuda, como, de fato, é oposta a ela. O Cristianismo se opõe à religião e ao secularismo não porque esses ofereçam “pouca ajuda”, mas precisamente porque eles “bastam”, porque eles “satisfazem” as necessidades do homem. Se o propósito do Cristianismo fosse retirar do homem o medo da morte, reconciliá-lo com a morte, não haveria necessidade de Cristianismo, até porque outras religiões o fazem melhor do que ele. E o secularismo é capaz de produzir homens que morrem alegremente, até corporativamente – e não apenas vivem – pelo triunfo da Causa, qualquer que seja ela.

 

O Cristianismo não consiste na reconciliação com a morte, mas com a revelação da morte, e ele revela a morte porque ele é a revelação da Vida. Somente Cristo é Vida, que a morte é aquilo que o Cristianismo proclama como sendo, vale dizer, o inimigo a ser destruído, e não um “mistério” a ser explicado. A religião e o secularismo, tentando explicar a morte, concedem a ela um status, a tornam racional e “normal”. Somente o Cristianismo proclama que ela é anormal e que, portanto, verdadeiramente horrível. Cristo chorou diante do sepulcro de Lázaro, e quando chegou sua própria hora, “ele começou a suar abundantemente”. À luz de Cristo, esse mundo, essa vida estão perdidos e além de uma mera “ajuda”, não porque exista p mudo da morte nele, mas porque ele aceitou e normalizou a morte. Aceitar o mundo de Deus como um cemitério cósmico que deve ser abolido e substituído por “outro mundo”, que se parece igualmente a um cemitério – o “repouso eterno” – e chamar a isso de religião, viver num cemitério cósmico e “dispensar” diariamente milhares de cadáveres, ao mesmo tempo em que nos excitamos com a ideia de uma “sociedade justa” e ainda ficamos alegres – essa é a queda do homem. Não é a imoralidade dos crimes do homem que o mostram como um ser decaído; é seu “ideal positivo” – religioso ou secular – e sua satisfação com esse ideal. Essa queda, é claro, só pode ser verdadeiramente revelada por Cristo, porque somente em Cristo essa a plenitude da vida revelada a nós, e assim a morte se torna “abominável”, a própria queda da vida, o inimigo. É esse mundo (e não algum outro mundo), é essa vida (e não alguma outra vida) que foram dados ao homem para que sejam um sacramento da presença divina, dados como comunhão com Deus, e é somente por intermédio desse mundo, dessa vida, somente transformando-os em comunhão com Deus que o homem se torna o que ele é. O horror da morte é, assim, não o fato de que ela seja o “fim”, não a destruição física. Por ser a separação desse mundo e dessa vida, ela constitui a separação com Deus. A morte não pode glorificar a Deus. Em outras palavras, quando Cristo revela a Vida a nós, é então que podemos ouvir a mensagem Cristã sobre a morte como inimiga de Deus. É quando a Vida chora sobre o sepulcro do amigo, quando ela contempla o horror da morte, é ali que começa a vitória sobre a morte.

 

 

2

 

Mas antes da morte existe o morrer; o avanço da morte sobre nós, pela decadência física e a doença. Aqui, mais uma vez, a perspectiva Cristã não pode ser identificada com nada do mundo moderno, ou com qualquer coisa que caracterize uma “religião”. Para o mundo moderno e secular, a saúde é o único estado normal do homem; assim, a doença deve ser combatida, e o mundo moderno conduz esse combate muito bem. Hospitais e medicina estão entre suas maiores conquistas. Mas a saúde tem um limite, e esse limite á a morte. Chega um momento em que os “recursos da ciência” se esgotam – e isso o mundo moderno aceita tão simples e lucidamente quanto aceita a própria morte. Chega um momento em que o paciente é vencido pela morte, e ele deve ser removido da enfermaria, discretamente, apropriadamente e com toda higiene – como parte da rotina geral. Enquanto o homem está vivo tudo é feito para mantê-lo vivo e, mesmo nos casos em que não há mais esperança, isso não deve lhe ser revelado. A morte nunca deve ser parte da vida. E mesmo sabendo que as pessoas morrem em hospitais, o tome geral e o comportamento ali são de caloroso otimismo. O objeto dos cuidados da moderna e eficiente medicina é a vida, não a vida mortal.

 

A visão religiosa considera a doença, mais do que saúde, como sendo o estado “normal” do homem. Nesse mundo de matéria mutante e mortal o sofrimento, a doença e o luto são as condições normais de vida. Os hospitais e os cuidados médicos devem ser fornecidos, mas por motivos religiosos e não por causa de algum interesse real na saúde em si. A saúde e a cura são sempre considerados como a misericórdia de Deus, do ponto de vista religioso, e uma cura verdadeira é considerada “milagrosa”. E esse milagre é realizado por Deus, e mais uma vez não porque a saúde seja boa, mas porque ele “prova” o poder de Deus e conduz o homem de volta a Deus.

 

Em sua aplicação última, essas duas perspectivas são incompatíveis, e nada mostra melhor a confusão dos Cristão a esse respeito do que o fato de que hoje os Cristãos aceitam ambas como sendo igualmente válidas e verdadeiras. O problema do hospital secular é resolvido nele se estabelecendo uma capelania Cristã, e o problema do hospital Cristão é resolvido tornando-o tão moderno e científico – isso é, “secular” – quanto possível. De fato, porém, existe uma rendição progressiva a perspectiva religiosa perante a secular, por razões que já analisamos acima. O ministro moderno tende a se tornar não só um “assistente” do médico, como um “terapeuta” de seu próprio direito. Todos os tipos de técnicas de terapia pastoral, visitas hospitalares, cuidados com os doentes – que enchem os catálogos dos seminários teológicos – são uma boa indicação disso. Mas será essa perspectiva Cristã (e, se não for, devemos simplesmente retornar à antiga) a única “religiosa”?

 

A resposta é: não, ela não é a única; mas tampouco é o caso de “retornar”. Devemos descobrir a imutável, mas sempre contemporânea, visão sacramental da vida humana, e portanto de seu sofrimento e padecimentos – a visão que foi da Igreja, mesmo que os Cristãos a tenham esquecido e deixado de entender.

 

A Igreja considera a cura como um sacramento. Mas isso foi mal compreendido ao longo de séculos de total identificação da Igreja com a “religião” (uma incompreensão que todos os sacramentos sofreram, como sofreu a própria doutrina dos sacramentos), em que o sacramento do óleo se tornou de fato o sacramento da morte, um dos “últimos ritos” destinados a abrir uma passagem mais ou menos segura do homem para a eternidade. Existe o perigo, hoje em dia, como o crescente interesse dos Cristãos na cura, de que esse sacramento passe a ser entendido como um sacramento de saúde, um “complemento” útil para a medicina secular. E ambas as visões estão erradas, porque ambas esquecem precisamente a natureza sacramental desse ato.

 

Um sacramento – como já sabemos – é sempre uma passagem, uma transformação. Mas não se trata de uma “passagem” para uma “supernatureza”, mas para o Reino de Deus, o mundo por vir, para a verdadeira realidade desse mundo e de sua vida, conforme redimidos e restaurados por Cristo. Trata-se da transformação, não da “natureza” em “supernatureza”, mas do velho no novo. Portanto, um sacramento não é um “milagre”, por meio do qual Deus, por assim dizer, rompe com as “leis da natureza”, mas é a manifestação da Verdade última sobre o mundo e a vida, o homem e a natureza, Verdade essa que é Cristo.

 

E a cura é um sacramento porque seu propósito e finalidade é, não a saúde em si, a restauração da saúde física, mas a entrada do homem na vida do Reino, na “paz e alegria” do Espírito Santo. Em Cristo, tudo nesse mundo, incluindo a saúde e a doença, a alegria e o sofrimento, se torna uma ascensão e uma entrada nessa nova vida, na sua espera e na sua antecipação.

 

Nesse mundo o sofrimento e a doença não de fato “normais”, mas sua própria “normalidade” é anormal. Eles revelam a último e permanente derrota do homem e da vida, uma derrota que nenhuma vitória parcial da medicina, ainda que maravilhosa e quase milagrosa, pode superar em definitivo. Mas em Cristo o sofrimento não apenas é “removido”, como é transformado em vitória. A própria derrota se torna vitória, se torna uma via, uma entrada para o Reino, e essa é a única e verdadeira cura.

 

Eis aqui um homem que sofre em sua cama de dores, e a Igreja chega a ele para realizar o sacramento da cura. Para esse homem, como para todo homem por todo o mundo, o sofrimento representa uma derrota, uma via de rendição completa à treva, ao desespero e à solidão. Isso é morrer no verdadeiro sentido do t ermo. Mas esse também pode ser o momento de uma vitória definitiva para o Homem e para a Vida nele. A Igreja não vem para restaurar a saúde desse homem, simplesmente substituir a medicina onde ela esgotou todas as suas possibilidades. A Igreja vem para conduzir esse homem ao Amor, à Luz e à Vida em Cristo. Ela não vem para meramente “confortá-lo” em seus sofrimentos, não vem para “ajudá-lo”, mas para fazer dele um mártir, uma testemunha de Cristo em seus próprios sofrimentos. Um mártir é alguém que contempla “os céus abertos, e o Filho do Homem colocado à direita de Deus[1]”. Um mártir é alguém para quem Deus não é outra, e última, chance de deter a dor insuportável; Deus é sua própria vida, e assim tudo em sua vida conduz a Deus e ascende para a plenitude do Amor.

 

Nesse mundo é preciso que haja tribulação. Ainda que reduzido ao mínimo pelo próprio homem, ou mitigado pela promessa religiosa de uma recompensa no “outro mundo”, o sofrimento permanece, e segue sendo terrivelmente “normal”. Mas Cristo disse, “tenham coragem, pois Eu venci o mundo[2]”. Através de Seu próprio sofrimento, não apenas todo sofrimento adquiriu significado, como ainda nos foi dado o poder de torná-lo em si um signo, um sacramento, uma proclamação, o “advento” dessa vitória; a derrota do homem, seu falecer se torna um caminho para a Vida.

 

 

3

 

O começo dessa vitória está na morte de Cristo. Esse é o eterno Evangelho – a Boa Nova – e ele continua sendo “loucura”, não só para esse mundo, como para a religião, na medida em que é a religião desse mundo (“...a fim de que não se torne inútil a Cruz de Cristo...[3]”). a liturgia da morte Cristã não começa quando o homem chega ao inescapável fim e seu cadáver jaz na igreja para os últimos ritos enquanto o rodeamos, como tristes e resignadas testemunhas da remoção digna de um homem desse mundo dos vivos. Ela começa a cada Domingo na medida em que a Igreja, ascendendo aos céus, “afasta todos os cuidados mundanos”; ela começa a cada festa da Igreja; ela começa, em especial, na alegria da Páscoa. Toda a vida da Igreja é de certo modo o sacramento de nossa morte, porque todas essas coisas consistem na proclamação da morte do Senhor, na confissão de Sua ressurreição. Mas, ainda assim, o Cristianismo não é uma religião centrada na morte; ele não é uma “culto de mistério” no qual uma doutrina “objetiva” de salvação da morte é oferecida em belas cerimônias, que requerem que se acredite nelas para usufruir de seus “benefícios”.

 

Ser Cristão, acredita em Cristo, significa, como sempre significou, o seguinte: saber, mediante uma fé transracional e absolutamente certa, que Cristo é a Vida de toda vida, que Ele é a própria Vida e, portanto, que Ele é a minha vida. “Nele estava a vida; e a vida era a luz para os homens”. Todas as doutrinas Cristãs – as da encarnação, da redenção, da expiação – constituem explicações, consequências, mas não a “causa” dessa fé. Somente quando acreditamos em Cristo essas afirmações se tornam “válidas” e “consistentes”. Mas a fé em si implica a aceitação, não disso ou dessa “proposição” a respeito de Cristo, mas no próprio Cristo com a Vida e a luz da vida. “Porque a Vida se manifestou, nós a vimos, dela damos testemunho, e lhes anunciamos a Vida Eterna. Ela estava voltada para o Pai e se manifestou a nós[4]”. Nesse sentido a fé Cristã é radicalmente diferente da “crença religiosa”. Seu ponto de partida não está numa “crença”, mas no amor. Em si e por si toda crença é parcial, fragmentária, frágil. “Porque conhecemos em parte, e profetizamos em parte (...) Onde quer que existam profecias, elas poderão falhar; onde existam línguas, elas poderão cessar; onde houver conhecimento, ele poderá se apagar. Somente o amor nunca falha[5]”. E se amar alguém implica que eu coloco nessa pessoa a minha vida, ou antes, que ela se torna o “conteúdo” da minha vida, amar a Cristo significa conhecê-Lo e possuí-Lo como a Vida de minha vida.

 

Somente essa posse de Cristo como Vida, a “paz e a alegria” da comunhão com Ele, a certeza de Sua presença, dá sentido à proclamação da morte de Cristo e à confissão de Sua ressurreição. Nesse mundo a ressurreição de Cristo jamais pode ser um “fato objetivo”. O Senhor ressuscitado apareceu a Maria, e “ela o viu a seu lado mas não soube que era Jesus”. Ele estava na praia junto ao mar de Tiberíades, “mas os discípulos não sabiam que era Jesus”. E no caminho para Emaús os olhos dos discípulos “estavam como que cegados, e eles não o conheceram”. A pregação da ressurreição permanece sendo uma loucura para esse mundo, e não é de admirar que mesmo os próprios Cristãos a “expliquem” reduzindo-a virtualmente às doutrinas pré-Cristãs sobre a imortalidade e a subsistência. E, de fato, se a doutrina da ressurreição não passa de uma “doutrina”, se se deve acreditar nela com um acontecimento do “futuro”, como um mistério de “outro mundo”, ela não é substancialmente diferente das outras doutrinas concernentes ao “outro mundo”, e pode facilmente ser confundida com elas. Seja a imortalidade da alma ou a ressurreição do corpo – nada sabemos a respeito, e toda discussão permanece no campo da mera especulação. A morte continua sendo a mesma misteriosa passagem para um futuro misterioso. A grande alegria que os discípulos sentiram quando viram o Senhor ressuscitado, esse “coração queimando” que eles experimentaram no caminho para Emaús não foi por causa de que mistérios de um “outro mundo” tenham sido revelados a eles, mas porque eles viram o Senhor. E Ele os enviou a pregar e a proclamar, não a ressurreição dos mortos – não uma doutrina da morte – mas o arrependimento e a remissão dos pecados, a nova vida, o Reino. Eles anunciaram aquilo que eles conheciam, que em Cristo a nova vida já havia começado, que Ele é a Vida eterna, a Plenitude, a Ressurreição e a Alegria do mundo.

 

A Igreja é a entrada para a vida ressuscitada de Cristo; ela é a comunhão com a vida eterna, “a paz e a alegria do Espírito Santo”. E é a expectativa do “dia sem ocaso” do Reino – não de algum “outro mundo”, mas a plenitude de todas as coisas e de toda a vida em Cristo. Nele a própria morte mostrou-se um ato de vida, porque Ele a preencheu com Sua Pessoa, com Seu amor e luz. Nele, “tudo pertence a vós (...) o mundo, a vida, a morte, as coisas presentes e aquelas por vir, tudo pertence a vós; e sois de Cristo; e Cristo é de Deus[6]”. E, se eu posso tornar minha essa vida nova, minhas serão a sede e a fome do Reino, minha a espera de Cristo, minha a certeza de que Cristo é Vida, de modo que minha própria morte seja um ato de comunhão com a Vida. Pois nem a vida nem a morte podem nos separar do amor de Cristo. Eu não sei quando, nem como, a plenitude vai chegar. Não sei quando as coisas serão consumadas em Cristo, nada sei a respeito dos “quando” e dos “como”. Mas eu sei que em Cristo essa grande Passagem, essa Páscoa do mundo já começou, que a luz do “mundo por vir” chegou a nós com a alegria e a paz do Espírito Santo, pois Cristo ressuscitou e a Vida reina.

 

Finalmente, eu sei que é essa fé e essa certeza que enchem de alegre significado as palavras de São Paulo que lemos a cada vez que celebramos a “passagem” de um irmão, seu adormecer em Cristo:

 

“De fato, a uma ordem, à voz do arcanjo e ao som da trombeta divina, o próprio Senhor descerá do céu. Então os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; depois nós, os vivos, que estivermos ainda na terra, seremos arrebatados junto com eles para as nuvens, ao encontro do Senhor nos ares. E então estaremos para sempre com o Senhor[7]”.



[1] Atos 7: 56.

[2] João 16: 33.

[3] I Coríntios 1: 17.

[4] I João 1: 2.

[5] I Coríntios 13.

[6] I Coríntios 3: 21-23.

[7] I Tessalonicenses 4: 16-17.