O MISTÉRIO DO AMOR
Existe um grande mistério: falo daquele
entre Cristo e a Igreja.
(Efésios 5: 32)
1
Na Igreja Ortodoxa matrimônio e um sacramento.
Podemos nos perguntar por que, de todos os “estados” da vida humana, dentre a
variedade das vocações do homem, somente esse “estado” foi separado e entendido
como um sacramento? De fato, se se tratar simplesmente de uma sanção divina do
casamento, a concessão de um auxílio espiritual aos que se casam, uma bênção
para a procriação – nada disso o torna radicalmente diferente de qualquer outro
ato para o qual necessitamos de orientação, sanção ou bênção. Pois um
“sacramento”, com vimos, implica necessariamente a ideia de uma transformação,
refere-se ao acontecimento definitivo da morte e ressurreição de Cristo, e
consiste sempre num sacramento do Reino. De certa forma, é claro, toda a vida
da Igreja pode ser considerada sacramental, por ser sempre uma manifestação, no
tempo, do “novo tempo”. Mas de um modo mais preciso a Igreja chama de
sacramentos aqueles atos decisivos de sua vida, nos quais essa graça
transformadora é confirmada como tendo sido concedida, nos quais a
Igreja, através de um ato litúrgico, se identifica e se torna a própria forma
desse Dom. Mas de que forma o casamento se relaciona com o Reino que um dia
virá? Como ele se relaciona com a cruz, a morte e a ressurreição de Cristo? Em
outras palavras, o quê faz dele um sacramento?
Mesmo o simples levantar essas questões é impossível
dentro de uma perspectiva “moderna” do casamento, o que inclui, frequentemente,
a perspectiva “Cristã”. Nos inúmeros “manuais de felicidade conjugal”, na
tendência alarmante em fazer do ministro um especialista em sexologia clínica,
nas definições patéticas da família Cristã que aprova o isso moderado do sexo (que
pode ser uma “experiência enriquecedora”) – em tudo isso, é claro, não há
espaço para o sacramento. Hoje em dia sequer nos lembramos de que o casamento é,
como tudo o mais “nesse mundo”, um casamento distorcido e decaído, e de que ele
não precisa ser abençoado e “solenizado” – depois de ensaiado, e com a ajuda do
fotógrafo – mas sim restaurado. Essa restauração, ademais, está em
Cristo, o que implica estar em Sua vida, morte, ressurreição e ascensão aos
céus, na inauguração pentecostal do “novo Éon”, e na Igreja, como o sacramento
de tudo isso. Desnecessário dizer que essa restauração transcende infinitamente
a ideia da “família Cristã”, e que ela dá ao casamento sua dimensão cósmica e
universal.
Aqui está o ponto essencial. Na medida em que vemos
o casamento como se referindo apenas àqueles que estão se casando, como algo
que acontece com eles e não com toda a Igreja – e daí com o próprio mundo –
jamais seremos capazes de entender o verdadeiro sentido sacramental do
casamento: o grande mistério ao qual São Paulo se refere quando diz estar se referindo
a Cristo e à Igreja. Devemos entender que o verdadeiro tema, “conteúdo” e
objeto desse sacramento, não é a “família”, mas o amor. A família enquanto tal,
a família em si, pode mesmo ser uma distorção demoníaca do amor – e nos Evangelho
encontramos palavras ásperas a respeito: “Os inimigos do homem serão seus
próprios familiares[1]”.
Nesse sentido o sacramento do matrimônio é mais amplo do que a família. Trata-se
do sacramento do amor divino, como o abarcante mistério da própria existência,
e é por esse motivo que ele concerne a toda a Igreja e – através da Igreja – a
todo o mundo.
2
Talvez a visão Ortodoxa desse sacramento possa ser
melhor entendida se começarmos não com o casamento enquanto tal, não por uma
abstrata “teologia do amor”, mas por aquela que sempre foi vista como o próprio
coração da vida da Igreja e como a mais pura expressão do amor humano e de resposta
a Deus – Maria, a Mãe de Jesus. É significativo que no Ocidente Maria seja
basicamente a Virgem, um ser quase que totalmente diferente de nós em
sua pureza absoluta e em sua celestial liberdade em relação a toda poluição
carnal, e que no Oriente ela seja aclamada e glorificada como Theotokos,
a Mãe de Deus, e que virtualmente todos os ícones a representem com o Menino em
suas mãos. Em outras palavras, existem duas ênfases mariológicas, que, embora
não se excluam mutuamente, conduzem a visões diferentes do lugar de Maria na
Igreja. E a diferença entre elas deve ser mantida em perspectiva se quisermos
entender a experiência de veneração a Maria que sempre existiu na Igreja
Ortodoxa. Esperamos poder mostrar que não se trata tanto de um específico
“culto a Maria”, como luz, como alegria, próprio a toda vida da Igreja. Nela, como
diz o hino Ortodoxo, “toda a criação se rejubila”.
Mas a que se refere esse júbilo? Por que, em suas próprias palavras, “todas as
gerações me chamarão abençoada”? Porque em seu amor e obediência, em sua fé e
humildade, ela aceitou se tornar para toda eternidade aquilo que toda a criação
deveria ser, e para o que ela foi criada: o templo do Espírito Santo, a humanidade
de Deus. Ela aceitou entregar seu corpo e sangue – vale dizer, toda sua vida –
ao corpo e sangue do Filho de Deus, para ser mãe no mais completo e profundo
sentido da palavra, dando sua vida para o Outro e realizando sua vida Nele. Ela
aceitou a verdadeira natureza de cada criatura e de toda a criação: abrigar o
significado e, consequentemente, a plenitude de sua vida em Deus.
Ao aceitar essa natureza ela realizou a feminilidade
da criação. Essa palavra pode parecer estranha para muitos. Em nossos dias a
Igreja, seguindo a tendência moderna da “igualdade dos sexos”, utiliza apenas
metade da revelação Cristã a respeito do homem e da mulher, aquela que afirma
que Cristo não era “nem homem nem mulher[2]”.
A outra metade da revelação é atribuída a uma visão antiquada do mundo. De fato,
todas as nossas tentativas de encontrar o “lugar da mulher” na sociedade (ou na
Igreja), ao invés de exaltá-la a diminuem, porque elas frequentemente implicam
uma negação de sua vocação específica como mulher.
Pois, não é significativo que as relações entre Deus
e o mundo, entre Deus e Israel, Seu povo escolhido, e, finalmente, entre Deus e
o cosmo restaurado na Igreja, sejam expressas na Bíblia em termos de amor e
união conjugal? Existe aqui uma dupla analogia. De um lado, entendemos o amor
de Deus pelo mundo e o amor de Cristo pela Igreja, porque temos a experiencia do
amor conjugal, mas, por outro lado, o amor conjugal tem suas raízes, sua
realização profunda e real no grande mistério de Cristo e Sua Igreja: “Pois o
que eu digo se refere a Cristo e à Igreja”. A Igreja é a noiva de Cristo ( “Eu
os entreguei a um único esposo, a Cristo, a quem devo apresentar vocês como
virgem pura”). Isso significa que o mundo – que encontra sua restauração e sua plenitude
na Igreja – é a noiva de Cristo e que esse relacionamento fundamental foi
rompido e distorcido pelo pecado. E é em Maria – a Mulher, a Virgem, a Mãe – e em
sua resposta a Deus, que a Igreja tem seu início vivo e pessoal.
Essa resposta consiste na total obediência no amor;
não na obediência e no amor, mas na completude de um como uma totalidade
do outro. A obediência, em si mesma, não é uma “virtude”; ela é uma submissão
cega, e não existe luz na cegueira. Somente o amor a Deus, o objeto absoluto de
todo amor, liberta a obediência de sua cegueira e a transforma na alegre aceitação
do Único que é digno de ser aceito. Mas o amor sem a obediência a Deus é “luxúria
da carne e dos olhos, e arrogância da vida[3]”,
o amor proclamado por Don Juan, que acabou por destruí-lo. Somente a obediência
a Deus, o único Senhor da Criação, confere ao amor sua verdadeira direção, e o
transforma em amor pleno.
A verdadeira obediência é, portanto, o verdadeiro
amor a Deus, a verdadeira resposta da Criação ao seu Criador. A humanidade só é
plenamente a humanidade quando essa é sua resposta a Deus, quando ela se torna
n movimento de uma total entrega e obediência a Ele. Mas o mundo “natural”,
quem possui esse amor obediente, esse amor como resposta, é a mulher. O homem propõe,
a mulher aceita. Essa aceitação não consiste em passividade, cega submissão,
porque ela e amor, e o amor é sempre ativo. Ela dá vida à proposição do homem,
enche-a de vida até que ela se torne pleno amor e plena vida, até que ela seja
plenamente aceitação e resposta. É por isso que toda a criação, toda a
Igreja – e não apenas as mulheres – encontram a expressão de sua resposta a Deus
em Maria, a Mulher, e se regozijam com ela. Ela simboliza a todos nós, porque é
somente quando aceitamos, somente quando respondemos com amor e obediência –
somente quando aceitamos a feminilidade essencial da criação – nos tornamos em verdade
homens e mulheres; somente então podemos transcender nossas limitações
como “machos” e “fêmeas”. Pois o homem pode ser verdadeiramente homem – vale dizer,
o rei da criação, o sacerdote e ministro da criatividade e da iniciativa de Deus
– apenas quando ele se submete – com obediência e amor – à sua natureza como noiva
de Deus, em resposta e aceitação. E a mulher deixa de ser apenas
uma “fêmea” quando, aceitando total e incondicionalmente a vida do Outro como
sua própria vida, entregando-se totalmente ao Outro, se torna a própria
expressão, o próprio fruto, a verdadeira alegria, beleza e dom de nossa resposta
a Deus, aquela que, nas palavras do Cântico, o rei conduzirá à sua câmara,
dizendo: “Tu és bela, minha amada, e não existe defeito tem ti[4]”.
A tradição chama Maria de “nova Eva”. Ela realiza
aquilo que Eva falhou em realizar. Eva falhou em ser mulher. Ela tomou a
iniciativa. Ela “propôs” e se tornou “fêmea” – o instrumento da procriação, “governada”
pelo homem. Ela se tornou, e também ao homem de quem ela era “eva”, escrava de
sua “feminilidade”, e transformou toda a vida numa tenebrosa guerra entre sexos,
na qual a “possessão” é de fato o desejo violento e desesperado de matar
a vergonhosa concupiscência que nuca morre. Ao contrário, Maria não “tomou a
iniciativa”. Com amor e obediência ela esperou pela iniciativa do Outro. E quando
ela veio, ela a aceitou, não cegamente – pois ela perguntou: “Como será isso
possível?” – mas com total lucidez, simplicidade e alegria amorosa. A luz de
uma eterna primavera chegou para nós quando, no dia da anunciação, ouvimos o
decisivo “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a Sua vontade[5]”.
Aqui, em verdade, toda a criação, toda a humanidade, e cada um de nós, reconhece
as palavras que expressam nossa natureza e existência definitivas, nossa
aceitação como noiva de Deus, nossas núpcias com o Único que nos ama por toda
eternidade.
Maria é a Virgem. Mas essa virgindade não constitui
uma negação, uma mera ausência; ao contrário, trata-se da plenitude e da
completude do próprio amor. É a totalidade de sua auto-entrega a Deus, e assim
consiste na própria expressão, na verdadeira qualidade de seu amor. Pois o amor
é uma sede e uma fome de completude, de totalidade, de plenitude e realização –
de virgindade, no significado derradeiro do termo. No final, a Igreja será
apresentada a Cristo como uma “virgem casta[6]”.
Pois a virgindade é o objetivo de todo amor genuíno – não como ausência de “sexo”,
mas como sua plena realização no amor; e o sexo é a paradoxal e trágica afirmação
e negação, “nesse mundo”, dessa realização. A Igreja Ortodoxa, ao celebrar as festas
aparentemente “não escriturárias” da natividade de Maria e de sua apresentação
no templo, revela, de fato, uma verdadeira fidelidade à Bíblia, porque o
significado dessas festas reside precisamente
no reconhecimento da Virgem Maria como objetivo e realização de toda a história
da salvação, dessa história de amor e obediência, de resposta e expectativa. Ela
é a verdadeira filha do Antigo Testamento, sua última e mais bela flor. A Igreja
Ortodoxa rejeita o dogma da Imaculada Concepção precisamente porque ela faz de
Maria um “corte” milagroso nesse lento e paciente crescimento de amor e expectativa,
dessa “ânsia pelo Deus vivo” que enche todo o Velho Testamento. Ela é a oferenda
desse mundo a Deus, como é tão belamente dito no hino da natividade:
Todas as criaturas trazem seus agradecimentos a
Ti,
Os anjos oferecem o sol,
Os céus, suas estrelas,
Os sábios, seus presentes,
Os pastores, seu maravilhamento,
E nós – Tua Virgem Mãe...
Mas somente Deus realiza e coroa essa obediência,
essa aceitação, esse amor. “O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do
Altíssimo cobrir-te-á com sua sombra (...) Porque a Deus nada é impossível[7]”.
Somente Ele revela como Virgem aquela que levou a Ele a totalidade do amor
humano.
Maria é a Mãe. A maternidade é a realização
da feminilidade, porque é a realização do amor como obediência e resposta. É ao
se entregar que o amor dá a vida, se torna fonte de vida. Não se ama para
ter filhos. O amor não necessita justificativa; não é por dar a vida que o amor
é bom; mas é por ser bom que ele dá a vida. O alegre mistério da maternidade de
Maria não se opõe, assim, à sua virgindade. É o mesmo mistério. Ela não é mãe “apesar”
de sua virgindade. Ela revela a plenitude da maternidade porque sua virgindade
é a plenitude do amor.
Ela é a Mãe de Cristo. Ela é a plenitude do
amor por ter aceitado a vinda de Deus para nós – dando vida a Ele, que é a Vida
do mundo. E toda a criação se rejubila nela, porque reconhece que é por
intermédio dela que o fim e a realização de toda vida, de todo amor, consiste
em aceitar a Cristo, em dar vida a Ele em nós mesmos. E não se deve
temer que essa alegria em relação a Maria retire nada de Cristo, ou que diminua,
de alguma forma a glória que é devida a Ele e apenas a Ele. Porque aquilo que
encontramos nela e que constitui a alegria da Igreja é precisamente a
realização de nossa adoração a Cristo, nossa aceitação e amor por Ele. De fato,
não existe aqui nenhum “culto a Maria”, embora o “culto” da Igreja se torne um movimento
de alegria e agradecimento, de aceitação e de obediência – as bodas do Espírito
Santo, que faz disso tudo a única felicidade completa sobre a terra.
3
Podemos agora voltar ao tema do sacramento do
matrimônio. Agora podemos entender que seu verdadeiro significado não é o de
uma mera “sanção” religiosa ao casamento e à vida em família, reforçando com
uma graça sobrenatural as virtudes naturais da família. Seu significado está em
que, ao elevar o casamento “natural” ao “grande mistério de Cristo e da Igreja”,
o sacramento do matrimônio confere ao casamento um novo sentido; ele de
fato o transforma, não apenas num casamento enquanto tal, mas na totalidade do
amor humano.
É digno de menção que a Igreja primitiva aparentemente
não conhecia um ofício em separado para o casamento. A “realização” do
casamento entre dois Cristãos consistia numa partilha conjunta da Eucaristia. Com
todos os aspectos da vida se reuniam na Eucaristia, também o matrimônio recebia
seu selo ao ser incluído nesse ato central da comunidade. E isso implica que, uma
vez que o casamento possuía também dimensões sociais e legais, essas eram
simplesmente aceitas pela Igreja. Mas, como toda vida “natural” do homem, o
casamento tinha que ser feito dentro da Igreja, ou seja, julgado, redimido e
transformado no sacramento do Reino. Somente mais tarde a Igreja recebeu também
a autoridade civil para realizar o rito do casamento. Isso representou,
juntamente com o reconhecimento da Igreja como “celebrante” do matrimônio, um
primeiro passo para a sua progressiva “dessacralização”. Um sinal óbvio disso foi
o divórcio entre o matrimônio e a Eucaristia.
Isso explica por que até hoje o rito Ortodoxo do
matrimônio consiste em dois ofícios distintos: o noivado e o coroamento. O noivado
é realizado, não dentro da Igreja, mas no vestíbulo. Essa é a forma Cristão do
casamento “natural”. É a bênção das alianças pelo sacerdote e sua troca pelos
nubentes. Mas desde o início esse casamento natural recebe sua verdadeira perspectiva
e direção: “Senhor nosso Deus”, diz o celebrante, “que esposastes a Igreja
como uma Virgem pura entre os Gentios, abençoa esse Noivado, une e conserva
esses Teus servos em paz e na unidade da mente”.
Pois para o Cristão, natural não significa algo
autossuficiente – uma “pequena e feliz família” – ou insuficiente, que
necessita, por isso, ser fortalecido e completado pela dição de um “sobrenatural”.
O homem natural tem sede e anseia pela plenitude e a redenção. Essa sede e essa
ânsia constituem o vestíbulo do Reino, seu início e seu exílio.
Então, tendo abençoado o casamento natural, o
sacerdote conduz o casal em procissão solene para dentro da Igreja. Essa
é a verdadeira forma do sacramento, pois ele não apenas simboliza, como de fato
constitui a entrada do casamento na Igreja, que consiste na entrada do
mundo no “mundo por vir”, a procissão do povo de Deus – em Cristo – em direção
ao Reino. O rito da coroação não passa de uma expressão tardia – embora muito
bonita e cheio de sentido –da realidade dessa entrada.
“Senhor e Deus, coroa-os de glória e honra!”, diz o
sacerdote depois de colocar as coroas sobre as cabeças dos nubentes. Essa é,
primeiramente, a glória e a honra do ser humano como rei da criação: “Sede
frutíferos, multiplicai-vos e enchei a terra, submetei-a e dominai-a[8]”.
De fato, cada família é um reino, uma pequena igreja, e assim também é um
sacramento no caminho para o Reino. Em algum lugar, ainda que num minúsculo
cômodo, todo homem, em algum momento de sua vida, possui seu pequeno reinado. Pode
ser um inferno, um lugar de traição, como pode não ser. Por trás de cada janela
há um pequeno mundo existindo. Isso é muito evidente quando viajamos de trem
pela noite, passando pelas inumeráveis janelinhas acesas: por trás de cada uma
a plenitude da vida tem uma oportunidade de se realizar, uma promessa, uma
visão. É isso que a coroa conjugal expressa: que se trata do começo de um
pequeno reino que ode ser em alguma medida semelhante ao verdadeiro Reino. Essa
chance pode se perder, às vezes numa única noite; mas nesse momento, as
possibilidades ainda estão abertas. Mas, mesmo quando elas se perdem, uma e
outra vez e inúmeras vezes, enquanto as duas pessoas permanecerem juntas elas
seguirão sendo rei e rainha um para o outro. E, depois de quarenta amargos
anos, Adão ainda poderá se voltar e ver que Eva está ali a seu lado, numa
unidade mútua que, por pouco que seja, proclama o amor do Reino de Deus. Nos filmes
e revistas, o “ícone” do casamento sempre mostra pessoas jovens. Mas houve uma
vez, sob a luz e o calor de uma tarde de outono, que esse escritor viu, no
banco de uma praça, num pobre subúrbio de Paris, um casal idoso e pobre. Eles estavam
sentados de mãos dadas, em silêncio, desfrutando da luz mortiça, do último calor
da estação. Em silêncio: todas as palavras já haviam sido ditas, toda paixão
exaurida, todas as tempestades acalmadas. Toda sua vida estava para trás –
embora tudo estivesse no presente, nesse silêncio, nessa luz, nesse calor,
nessa silenciosa unidade das mãos. Presentes – e prontos para a eternidade, maduros
para a felicidade. Essa é a visão do casamento que ficou em mim, a visão de sua
beleza celestial.
Em segundo lugar, a honra e a glória são também
aquelas da coroa do martírio. Pois o caminho para o Reino é o martírio –
no sentido de ser o testemunho de Cristo. E isso implica crucificação e
sofrimento. Um casamento que não crucifica constantemente sua própria autossuficiência
e egoísmo, e que não “morre para si” para ir além, não é um casamento Cristão. O
verdadeiro pecado do casamento de hoje não é o adultério, ou a falta de “ajustamento”,
ou a “crueldade mental”. Trata-se da idolatria da família em si e por si, na
recusa em entender o casamento como algo que está voltado para o Reino de Deus.
Isso está expresso no sentimento de que a pessoa deve “fazer qualquer coisa”
por sua família, inclusive roubar. Aqui a família deixou de ser para a glória
de Deus; ela cessou de ser uma entrada sacramental para Sua presença. Não é a
falta de respeito para com a família, mas é a idolatria da família que destrói a
família moderna com tanta facilidade, tornando o divórcio sua sombra natural; é
a identificação do casamento com a felicidade e a recusa em aceitar sua cruz. De
fato, num casamento Cristão, três se casam; e a lealdade conjunta de dois em
relação ao terceiro, que é Deus, que mantém os dois numa unidade ativa, entre
si e em relação a Deus. E é a presença de Deus que representa a morte do
casamento como sendo algo meramente “natural”. É a cruz de Cristo que leva a
autossuficiência da natureza ao seu fim. “Pela cruz a alegria (não a “felicidade”)
penetrou todo o mundo”. Sua presença é, assim, a verdadeira alegria do
casamento. É a alegre certeza de que o voto de casamento, de uma perspectiva do
Reino eterno, não foi feito entre “partes mortas”, mas que ele nos une completamente
até a morte.
Chegamos assim ao terceiro e final significado das
coroas: elas são as coroas do Reino, dessa Realidade última da qual tudo “nesse
mundo” – cuja forma é passageira – tudo se torna um sinal e uma antecipação sacramentais.
“Recebei as coroas de Seu Reino”, diz o sacerdote, enquanto as remove das cabeças
dos nubentes, e isso significa: tornem esse casamento uma oportunidade de
crescimento no amor perfeito do qual somente Deus é o fim e a plenitude.
A taça comum dada ao casal depois da coroação
costuma ser explicada hoje como sendo um símbolo da “vida em comum”, e nada
mostra melhor a “dessacralização” do casamento, sua redução à “felicidade
natural”. No passado tratava-se da comunhão, da participação na Eucaristia, do
selo último da realização do casamento em Cristo. Cristo constituía a própria
essência do viver juntos. Ele é o vinho da nova vida dos filhos de Deus, e a comunhão
nessa nova vida proclama de eu maneira, ao envelhecermos nesse mundo,
rejuvenescemos na vida que não conhece ocaso.
Na medida em que se completa o rito do noivado, os
noivos se dão as mãos e seguem o sacerdote numa procissão ao redor da mesa. Como
no batismo, essa procissão circular significa a jornada eterna que começa agora;
o casamento será essa procissão de mãos dadas, uma continuação aquilo que aqui
teve início, nem sempre cheia de alegria, mas sempre capaz de remeter à alegria
e de e encher com ela.
4
Em parte alguma o sentido universal e cósmico do
sacramento do matrimônio como sacramento de amor, se expressa tão bem com em
sua similaridade litúrgica com a liturgia da ordenação, o sacramento do sacerdócio.
Através dele se revela a identidade da Realidade à qual ambos os sacramentos se
referem, da qual ambos são manifestação.
Séculos de “clericalismo” (e não devemos pensar em
clericalismo como o monopólio das igrejas “hierárquicas” e “litúrgicas”) transformaram
o sacerdote ou ministro num ser à parte, com uma vocação “sagrada”, única e
especial, dentro da Igreja. Essa vocação não apenas é diferente, como ainda se
opõe a todas as demais que são “profanas”. Esse era e continua sendo a fonte
secreta da psicologia e do treinamento sacerdotal. Não é por acaso, assim, que
os termos “leigo”, “laicidade”, se tornaram pouco a pouco sinônimos da falta de
algo no homem, de seu despertencimento. Mas originalmente essas palavras
se referiam ao laos – o povo de Deus – e não apenas possuíam um sentido
positivo, como incluíam o “clero”. Mas hoje em dia, alguém que se diz “leigo em
física” reconhece sua ignorância nessa ciência, seu despertencimento em relação
ao fechado círculo dos especialistas.
Por séculos o estado clerical foi exaltado como
sendo virtualmente “sobrenatural”, e existe uma leve conotação de temor místico
quando alguém diz: “O povo deve respeitar os clérigos”. E se algum dia essa
ciência que sempre foi relegada – a patologia pastoral – for ensinada nos
seminários, sua primeira descoberta será de que algumas “vocações clericais”
estão de fato enraizadas num desejo mórbido de “respeito sobrenatural”,
especialmente nos casos em que o respeito “natural” é pouco. Nosso mundo
secular “respeita” os clérigos do mesmo modo como respeita os cemitérios: ambos
não necessários, ambos são sagrados, ambos estão fora da vida.
Mas, aquilo que tanto clericalismo quanto o
secularismo – sendo o primeiro, de fato, o pai natural do segundo – nos fizeram
esquecer é que ser sacerdote, de uma perspectiva profunda, é a coisa mais
natural que existe no mundo. O homem foi criado para ser sacerdote no mundo, aquele
que oferece o mundo a Deus num sacrifício de amor e louvor e que, através dessa
eucaristia eterna, traz esse amor divino para o mundo. O sacerdócio, nesse
sentido, é a própria essência da hominidade, a relação criativa do homem com a “feminilidade”
do mundo criado. E Cristo é o único verdadeiro Sacerdote porque Ele é o único
verdadeiro e perfeito homem. Ele é o novo Adão, a restauração daquilo que Adão
fracassou em ser. Adão falhou em ser o sacerdote do mundo, e devido ao seu
fracasso o mundo deixou de ser o sacramento da presença e do amor divinos, e se
tornou “natureza”. E nesse mundo “natural” a religião se transformou numa
transação organizada com o sobrenatural, e o sacerdote foi colocado à parte
como o “negociador”, como o mediador entre o natural e o sobrenatural. E depois
de tudo, já não importa muito como essa mediação é compreendida em termos de
magia – como poderes sobrenaturais – ou em termos de lei – como direitos
sobrenaturais.
Mas Cristo revelou a essência do sacerdócio como
sendo amor e, portanto, como a essência da vida. Ele morreu como a última vítima
de uma religião sacerdotal, e em Sua morte essa religião sacerdotal
morreu e uma vida sacerdotal foi inaugurada. Ele foi morto por
sacerdotes, pelo “clero”, mas Seu sacrifício os extinguiu e aboliu a “religião”.
E Ele aboliu a religião porque ele destruiu o muto de separação entre o “natural”
e o “sobrenatural”, entre o “profano” e o “sagrado”, entre “esse mundo” e o “outro
mundo” – que era a única justificativa e razão de ser da religião. Ele que
todas as coisas, toda natureza têm seu fim, sua realização no Reino; que todas
as coisas são tornadas novas pelo amor.
Se existem sacerdotes na Igreja, se existe uma
vocação sacerdotal nela, é precisamente para revelar a cada vocação sua
essência sacerdotal, para transformar a vida de todos os homens em liturgia do
Reino, para revelar a Igreja como o sacerdócio real de um mundo redimido. Em outros
termos, não se trata de uma vocação “à parte”, mas a expressão do amor para a vocação
do homem como filho de Deus e para o mundo como sacramento desse Reino. E é preciso
que existam sacerdotes porque vivemos nesse mundo, e nada nele pertence
ao Reino, e porque, “esse mundo” jamais se tornará o Reino. A Igreja está no
mundo mas não pertence a ele, porque é apenas não pertencendo ao mundo que ela pode
revelar e manifestar o “mundo por vir”, o além, que unicamente constitui a revelação
de todas as coisas como velhas – embora novas e eternas no amor de Deus.
Assim sendo, nenhuma vocação nesse mundo pode realizar por si mesma um
sacerdócio. E assim deve haver alguém cuja vocação específica seja de não
ter vocação alguma, mas de ser tudo para todos os homens, e para revelar que
o fim e o sentido de todas as coisas estão em Cristo.
Ninguém pode decidir por si mesmo tornar-se
sacerdote, decidir com base em suas próprias qualificações, preparação e
predisposições. A vocação sempre vem do alto – do mandato e da ordenação de
Deus. O sacerdócio revela a humildade, não o orgulho da Igreja, porque ele
revela a completa dependência da Igreja do amor de Cristo – vale dizer, se Seu único
e perfeito sacerdócio. Não é o “sacerdócio” que o padre recebe em sua
ordenação, mas o dom do amor de Cristo, desse amor que torna Cristo o único
Sacerdote e que preenche com esse sacerdócio único o ministério daqueles que
Ele envia ao Seu povo.
É por isso que o sacramento da ordenação é, num certo
sentido, idêntico ao sacramento do matrimônio. Ambos são manifestações do amor.
De fato, o sacerdote é casado com a Igreja. Mas assim como o casamento humano é
levado ao mistério de Cristo e a Igreja se torna o sacramento do Reino, é nesse
casamento do sacerdote com a Igreja, que ele se torna um verdadeiro sacerdote,
o verdadeiro ministro desse Amor que é o único capaz de transformar o mundo e
de revelar a Igreja como a imaculada noiva de Cristo.
O ponto final é o seguinte: alguns de nós somos
casados, outros não, alguns são chamados a ser sacerdotes e ministros, alguns
não. Mas o sacramento do matrimônio e o sacerdócio concernem a todos
nós, porque eles se referem à nossa vida como vocação. O significado, a essência
e o objetivo de toda vocação é o mistério de Cristo e da Igreja. É através
da Igreja que cada um de nós encontra que essa vocação de todas as vocações consiste
em seguir a Cristo na plenitude de Seu sacerdócio: em Seu amor pelo homem e
pelo mundo, em Seu amor pela realização última na abundância da vida no Reino.
[1]
Mateus 10: 36.
[2]
Não há mais diferença entre judeu e
grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher, pois todos vocês são
um só em Jesus Cristo. (Gálatas 3: 28)
[3] I
João 2: 16.
[4]
Cântico dos Cânticos, 4: 7.
[5] Lucas
1: 38.
[6] II
Coríntios 11: 2.
[7]
Lucas 1: 37, 37.
[8]
Gênesis 1: 25.
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