sábado, 29 de janeiro de 2022

Georges Florovsky - Bíblia, Igreja, Tradição: uma visão da Ortodoxia do Oriente - Capítulo II: Revelação e interpretação

 


 

 

“E daí que alguns não acreditam?

 A incredulidade deles torna sem efeito a fé em Deus?”

(Romanos 3: 3)

 

Mensagem e testemunho

 

O que é a Bíblia? Será ela um livro como qualquer outro, voltado para o leitor casual, do qual se espera captar de imediato seu sentido próprio? Não: antes, ela é um livro sagrado, dirigido primariamente àqueles que creem. É claro, um livro sagrado por ser lido por qualquer um, apenas como “literatura”. Mas isso é irrelevante para nosso propósito imediato. Estamos aqui preocupados, não com a letra, mas com a mensagem. Santo Hilário coloca isso enfaticamente: “A Escritura não é o que se lê, mas o que se entende[1]”. Existe alguma mensagem definida na Bíblia, tomada como um todo, como um só livro? Novamente: a quem essa mensagem está endereçada se é que o está? A indivíduos, dos quais se espera sejam capazes de entender o livro e expor sua mensagem? Ou a uma comunidade, e a indivíduos apenas na medida em que forem membros dessa comunidade?

 

Qualquer que tenha sido a origem desse ou daquele documento incluído no livro, é óbvio que o livro como um todo foi criação de uma comunidade, tanto na velha aliança como a Igreja Cristã. De modo algum a Bíblia é uma coleção completa de escritos históricos, legislativos e devocionais disponíveis, mas uma seleção de alguns textos, autorizados e autenticados pelo uso (em primeiro lugar, litúrgico) da comunidade e, finalmente, pela autoridade formal da Igreja. E havia propósitos perfeitamente definidos a guiar e checar essa “seleção”. “E muitos outros sinais fez Cristo na presença de seus discípulos, que não estão escritos nesse livro. Esses foram escritos, para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus; e para que, crendo, tenhais a vida por intermédio de Seu Nome[2]”. O mesmo se aplica, mais ou menos, a toda a Bíblia. Alguns textos foram selecionados, editados e compilados, foram colocados juntos e entregues aos crentes, ao povo, como uma versão autorizada da mensagem divina. A mensagem é divina: ela proveio de Deus, é a Palavra de Deus. Mas é a comunidade que reconhece a Palavra transmitida, e que testifica sua verdade. O caráter sagrado da Bíblia é certificado pela fé. A Bíblia, enquanto livro, foi composto pela comunidade e se destinava antes de tudo à sua edificação. O livro e a Igreja não podem ser separados. O livro e a Promessa têm uma origem comum, e a Promessa implica o povo. Palavra de Deus foi confiada na antiga Aliança[3] ao Povo da Promessa e é a Igreja do Verbo Encarnado que mantém a mensagem do Reino. A Bíblia é de fato a Palavra de Deus, mas o livro permanece pelo testemunho da Igreja. O cânone da Bíblia foi obviamente estabelecido e autorizado pela Igreja.

 

Não devemos ignorar o cenário missionário do Novo Testamento. A “pregação apostólica”, que foi incluída e reportada nele tem um propósito duplo: a edificação dos fiéis e a conversão do mundo. Dessa forma, o Novo Testamento não é um livro comunitário no mesmo e exclusivo sentido em que o era o Velho Testamento. Ele é também um livro missionário. Mas nem por isso ele deixa de ser vedado aos estranhos. A atitude de Tertuliano diante das Escrituras é típica. Ele não estava preparado para discutir os tópicos controversos da fé com heréticos sobre o terreno das Escrituras. As Escrituras pertencem à Igreja. O apelo herético a elas era ilegal. Eles não tinham direito à propriedade de outrem. Esse foi seu principal argumento no famoso tratado De praescriptione haereticorum. Um descrente não pode ter acesso à mensagem, simplesmente pelo fato de não a ter “recebido”. Para ele, não há “mensagem” na Bíblia.

 

Não foi por acidente que tão diversa antologia de textos, compostos em diferentes datas e por vários escritores, chegou a ser vista como um único livro. Ta bíblia é evidentemente plural, mas a Bíblia é enfaticamente singular. As escrituras são, de fato, uma única Santa Escritura, um único livro sagrado. Existe um tema principal e uma mensagem principal que perpassa toda a história. Pois existe uma história. Ou, mais ainda, a própria Bíblia é essa história, a história dos assuntos de Deus com seu povo escolhido. A Bíblia reporta em primeiro lugar as ações e os poderosos feitos de Deus. O processo foi iniciado por Deus. Existe um começo e um fim, bem como um propósito. Existe um ponto de partida: o fiat original e divino – “no princípio[4]”. E haverá ainda um fim: “Vem, Senhor![5]”. Existe uma única história, composta do Gênesis ao Apocalipse. E essa história é história. Existe um processo que se intercala entre esses dois pontos extremos. E esse processo possui uma direção definida. Existe uma meta final, uma consumação última que é esperada. Cada momento em particular está relacionado aos dois extremos e possui, assim, seu lugar próprio e único dentro do todo. Assim é que nenhum momento pode ser entendido, senão no contexto e na perspectiva totais.

 

Deus falou “em tempos diversos e de diversas maneiras[6]”. Ele se revelou através das eras, não uma vez, mas constantemente, e novamente, e novamente. Ele conduzia seu povo de verdade em verdade. Houve estágios em sua revelação: per incrementa. Essa diversidade e variedade não podem ser ignoradas ou desprezadas. E sempre foi o mesmo Deus, e sua mensagem suprema e definitiva foi sempre a mesma. É a identidade dessa mensagem que confere aos variados textos sua real unidade, apesar da variedade de estilos. Diferentes versões foram colocadas no livro tal como eram. A Igreja resistiu a todas as tentativas de substituir os quatro Evangelhos por um único evangelho sintético, de transformar o Tetraevangelion num Diatessaron (contra o qual lutou Anto Agostinho). Esses quatro Evangelhos asseguram a unidade da mensagem suficientemente bem, e talvez de forma mais concreta do que qualquer outra compilação pudesse realizar.

 

A Bíblia é um livro sobre Deus. Mas o Deus da Bíblia não é um Deus absconditus, mas um Deus revelatus. Deus se manifesta e se revela. Ele intervém na vida humana. E a Bíblia não constitui meramente um relato humano dessas intervenções e feitos divinos,. Ela é uma espécie de divina intervenção em si mesma. Os feitos de Deus constituem por si sós uma mensagem. Assim sendo, não é preciso sair do tempo ou da história para encontrar com Deus. Pois Deus se encontra com o homem na história, isso é, no elemento humano, no meio da existência diária do homem. A história pertence a Deus, e Deus penetra na história. A Bíblia é intrinsecamente histórica: ela constitui um relato dos atos divinos, não tanto uma apresentação dos eternos mistérios de Deus, mistérios esses que estão acessíveis apenas através da mediação histórica. “Nenhum homem viu a Deus, em tempo algum; somente o Filho Unigênito, que está no seio de Deus, O revelou[7]”. E O revelou penetrando na história, em sua santa encarnação. Assim é que a estrutura histórica da revelação não é algo que se possa passar sem. Não há necessidade de se abstrair a verdade revelada a partir da estrutura dentro da qual ela aconteceu. Ao contrário, tal abstração teria abolido a própria verdade. Pois a Verdade não é uma ideia, mas uma pessoa, o Senhor Encarnado.

 

Na Bíblia ficamos chocados com a relação íntima entre Deus e o homem, entre o homem e Deus. É a intimidade da Aliança, uma intimidade de eleição e adoção. E essa intimidade culmina na Encarnação. “Deus enviou Seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob a lei[8]”. Na Bíblia vemos não só a Deus, mas também o homem. Ela é a revelação de Deus, mas o que é revelado, na verdade, é a preocupação de Deus com o homem. Deus se revela ao homem, ele “aparece” diante dele, “fala” e conversa com ele de modo a revelar-lhe o significado oculto de sua própria existência e o propósito último de sua vida. Nas Escrituras vemos a Deus se revelando ao homem, e vemos o homem encontrar a Deus, e não apenas ouvindo Sua voz, mas respondendo-Lhe também. Ouvimos na Bíblia não apenas a voz de Deus, mas também a voz do homem respondendo a Ele – em palavras de oração, de ação de graças, de adoração, de temor e de amor, tristeza e contrição, exultação, esperança e desespero. É como se houvesse dois sócios na Aliança, Deus e o homem, e que os dois vieram juntos, no mistério do verdadeiro encontro divino-humano, descrito e repostado na história da Aliança. A resposta humana está integrada ao mistério da Palavra de Deus. Não se trata de um monólogo divino, mas de um diálogo em que ambos falam, Deus e o homem. Mas as preces e invocações do salmista em adoração consistem, não obstante, em “palavra de Deus”. Deus quer, espera e demanda a pergunta e a resposta do homem. É por isso que Ele se revela ao homem e fala com ele. É como se esperasse que o homem converse com Ele. Ele estabeleceu Sua Aliança com os filhos dos homens. Mesmo assim, toda essa intimidade não compromete a divina soberania e transcendência. Deus habita “na luz inacessível[9]”. Essa luz, entretanto, “iluminou todos os homens e desceu ao mundo[10]”. É nisso que consiste o mistério, o “paradoxo” da revelação.

 

A revelação é a história da Aliança. A revelação reportada – a Sagrada Escritura – é assim, acima de tudo, história. A lei e os profetas, os salmos e as profecias, tudo se inclui aí, como que entretecidos na rede histórica viva. A revelação não é simplesmente um sistema de oráculos divinos. Ela consiste basicamente num sistema de feitos divinos; podemos dizer que a revelação é o caminho de Deus na história. E o clímax foi alcançado quando o próprio Deus penetrou na história, e de uma vez para sempre: quando o Verbo de Deus se encarnou e “se fez homem”. Por outro lado, o livro da revelação é também um livro sobre o destino do homem. Em primeiro lugar, trata-se de um livro que narra a criação, a queda e a salvação do homem. É a história da salvação, e é assim que o homem pertence organicamente à história. Ela mostra o homem em sua obediência e em sua obstinada rebeldia, na sua queda e na sua restauração. E todo o destino do homem é condensado e exemplificado no destino de Israel, o velho e o novo, o povo escolhido por Deus, o povo que é propriedade de Deus. O fato da eleição é aqui de importância fundamental. Um povo foi eleito, colocado à parte das demais nações, constituído como um oásis sagrado no meio da desordem humana. Somente com um povo sobre a terra poderia Deus estabelecer Sua Aliança e conceder Sua própria lei sagrada. Aqui foi criado um sacerdócio único, embora provisório. Somente nessa nação surgiram verdadeiros profetas, que falaram palavras inspiradas pelo Espírito de Deus. Isso constituiu-se num centro sagrado, embora oculto, do mundo inteiro, um oásis concedido pela misericórdia de Deus, em meio a um mundo decaído, pecaminoso, perdido e sem remissão. Tudo isso não constitui a letra, mas o próprio coração da mensagem bíblica. E tudo isso veio de Deus, sem nenhum mérito ou conquista por parte do homem. E tudo isso veio para a salvação do homem, “por nós homens e para nossa salvação”. Todos esses privilégios concedidos ao velho Israel estavam subordinados ao propósito último, o da salvação universal. “Pois a salvação vem dos judeus”. O propósito de salvação é realmente universal, mas se realiza sempre por meio da separação, da seleção ou da exclusão. No meio da queda e ruína do homem foi erigido um oásis por Deus. A Igreja é também um oásis, separado, embora não tirado fora do mundo. Pois, mais uma vez, esse oásis não consiste apenas num refúgio ou num abrigo, mas antes numa cidadela, na vanguarda de Deus.

 

Existe um centro na história bíblica, um ponto crucial na linha dos acontecimentos temporais. Existe um novo começo dentro do processo, o qual, no entanto, não o corta ou divide em duas partes, mas que, ao contrário, lhe fornece sua coesão e unidade últimas. A própria distinção entre os dois Testamentos pertence à unidade da revelação bíblica. Os dois Testamentos devem ser cuidadosamente distinguidos, jamais confundidos. Ainda assim eles estão ligados um ao outro, não apenas como dois sistemas, mas, basicamente, na pessoa de Cristo. Jesus Cristo pertence a ambos. Ele é a plenitude da velha Aliança e, ao mesmo tempo em que a realiza, “a Lei e os Profetas”, Ele inaugura o novo, e assim se torna a plenitude de ambos, vale dizer, do todo. Ele é o centro absoluto da Bíblia, exatamente por ser o princípio e o fim. E, de modo inesperado, essa misteriosa identidade do início, do meio e do fim, ao invés de destruir a realidade existencial do tempo, confere ao processo do tempo sua realidade legítima e seu pleno significado. Não existem acontecimentos passados, mas eventos e conquistas, e novas coisas vêm à existência, coisas que nunca aconteceram antes. “Contemplai, pois Eu tornei novas todas as coisas[11]”.

 

Em última instância, o Velho Testamento deve ser considerado como “o livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abrahão[12]”. Esse foi o período de promessas e expectativas, o tempo das alianças e das profecias. E não apenas o profetas profetizaram, como também os acontecimentos eram profecias. Toda a história era profética ou “típica”, um sinal profético sugerindo um movimento em direção a uma consumação. Agora, termina o tempo da espera. A promessa se realizou. O Senhor veio. E Ele veio habitar em meio ao seu povo para sempre. A história da carne e do sangue se encerra. Abre-se a história do Espírito: “A graça e a verdade vieram através de Jesus Cristo[13]”. Mas tratava-se de um cumprimento, não da destruição do velho: Vetus Testamentum in Novo patet, “o Velho Testamento se estende ao Novo”. E patet significa precisamente: se revela, se abre, se realiza. Assim, os livros dos Hebreus permanecem sagrados, mesmo para o novo Israel de Cristo – eles não devem ser postos de lado ou ignorados.  Eles ainda nos contam a história da salvação, Magnalia Dei. Eles ainda prestam testemunho de Cristo. Eles devem ser lidos na Igreja como livros de história sagrada, não transformados numa coleção de textos de prova ou de instâncias teológicas (loci theologici), nem em um livro de parábolas. As profecias se cumpriram e a lei foi superada pela graça. Mas nada foi ultrapassado. Na história sagrada o “passado” não significa simplesmente algo que “passou”, ou que “foi”, mas basicamente algo que se realizou e se plenificou. “Plenitude” é a categoria básica da revelação. Aquilo que se tornou sagrado permanece consagrado e santo para sempre. Ele possui o selo do Espírito. E o Espírito sopra ainda nas palavras que um dia foram inspiradas por Ele. Talvez seja verdade que para a Igreja e para nós, hoje o Antigo Testamento não passe de um livro, apenas porque a Lei e os Profetas foram superados pelo Evangelho. O Novo Testamento é obviamente mais do que um livro. Nós mesmo pertencemos ao Novo Testamento, somos o povo da Nova Aliança. Por essa razão é precisamente no Velho Testamento que aprendemos a revelação primariamente como Verbo: somos testemunhas de que o Espírito “falou pelos Profetas”. Pois no Novo testamento Deus falou através de Seu Filho, e somos chamados não apenas a ouvir, como também a ver. “Isso que vimos e ouvimos vos anunciamos[14]”. E, mais do que isso, somos chamados a estar “em Cristo”.

 

A plenitude da revelação é Cristo Jesus. E o Novo Testamento é tão histórico como o Antigo: a história do Evangelho do Verbo Encarnado e o começo da história da Igreja, assim como a profecia apocalíptica. O Evangelho é história. Eventos históricos são a fonte e a base de toda fé e esperança Cristã. A base do Novo Testamento está em fatos, acontecimentos, feitos – não só em ensinamentos, mandamentos ou palavras. Desde o começo, desde o próprio dia do Pentecostes, quando São Pedro, como testemunha ocular (“...somos todos testemunhas disso”, em Atos 2: 32 – martyres), testemunhou a plenitude da salvação do Senhor Ressuscitado, que a pregação apostólica adquiriu um caráter enfaticamente histórico. É sobre o testemunho histórico que a Igreja se mantém. Também o Credo possui uma estrutura histórica e se refere a acontecimentos. Uma vez mais, trata-se de história sagrada. O mistério de Cristo está precisamente em que “nele habita de forma corporal a plenitude da Divindade[15]”. Esse mistério não pode ser compreendido apenas dentro do plano terrestre, pois há nele outra dimensão também. Mas os limites históricos não são obliterados nem ofuscados: os elementos históricos podem ser vistos claramente na imagem sagrada. A pegação apostólica sempre consistiu numa narrativa, numa narrativa daquilo que realmente aconteceu, hic et nunc. Mas o que aconteceu era definitivo e novo: “O Verbo se fez carne[16]”. Naturalmente, a Encarnação, a Ressurreição, a Ascensão são fatos históricos, não exatamente no mesmo sentido ou no mesmo nível dos acontecimentos de nossa vida cotidiana. Mas nem por isso eles deixam de ser históricos – eles foram plenamente realizados. Obviamente eles não podem ser inteiramente constatados, a não ser pela fé. E eles não devem ser tomados fora de seu contexto histórico. Somente a fé descobre uma nova dimensão, apreende o datum histórico em toda sua profundidade, em sua plena e definitiva realidade. Os Evangelistas e os Apóstolos não eram cronistas. Sua missão não era a de reportar por completo tudo o que Jesus fez, dia após dia, ano após ano. Eles descreveram Sua vida e relataram Suas obras, de modo a nos dar Sua imagem: uma imagem histórica, ainda que divina. Não se tratava de um retrato, mas de um ícone – e, certamente, um ícone histórico, uma imagem do Senhor Encarnado. A fé não criou um novo valor: ela apenas descortinou um valor que já era inerente. A fé é, em si, uma espécie de visão, “a evidência das coisas não vistas[17]”. O “invisível” não é menos real do que o “visível” – de fato, ele é mais real. “Pois ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, se não for pelo Espírito Santo[18]”. Isso significa que o próprio Evangelho só pode ser apreendido em sua plenitude e profundidade através de uma experiência espiritual. Mas o que se descobre pela fé é dado em perfeita verdade. Os Evangelhos foram escritos dentro da Igreja. Nesse sentido, eles são testemunhos da Igreja. Eles são relatos da experiência e da fé da Igreja. Mas eles não deixam de ser narrativas históricas, e dão testemunho daquilo que realmente aconteceu, no tempo e no espaço. Se “pela fé” descobrimos muito mais do que o que detectamos “pelos sentidos”, isso apenas revela a grande inadequação dos “sentidos” para o conhecimento de assuntos espirituais. Pois o que realmente aconteceu foi o feito extraordinário do Deus Redentor, sua intervenção definitiva na corrente dos eventos históricos. Não se pode separar o “fato” do “sentido” – ambos são dados como realidade.

 

 Revelação encontra-se preservada na Igreja. Dessa forma, a Igreja é propriamente e em primeiro lugar a intérprete da revelação. Ela é protegida e reforçada por palavras; protegida, mas não esgotada. As palavras humanas não passam de signos. O testemunho do Espírito Santo reanima das palavras escritas. Não estamos falando aqui da iluminação ocasional de indivíduos pelo Espírito Santo, mas basicamente sobre a assistência permanente dada pelo Espírito à Igreja, que é “o pilar e o baluarte da verdade[19]”. As Escrituras precisam ser interpretadas. Não no fraseado, mas no núcleo, o sentido. E a Igreja é a testemunha permanente e divinamente escolhida dessa verdade e do sentido pleno dessa mensagem, simplesmente porque a própria Igreja pertence a essa revelação, enquanto Corpo do Senhor Encarnado. A proclamação do Evangelho, a pregação do Verbo de Deus, obviamente pertencem ao “ser” da Igreja. A Igreja se mantém pelo seu testemunho. Mas esse testemunho não constitui apenas uma referência ao passado, uma mera reminiscência, mas se trata antes de uma redescoberta contínua da mensagem outrora entregue aos santos e mantida desde sempre pela fé. Mais do que isso, a mensagem é constantemente re-promulgada na vida da Igreja. O próprio Cristo está sempre presente na Igreja, como Redentor e cabeça de Seu Corpo, e Ele continua Seu ofício redentor na Igreja. A salvação não é somente anunciada e proclamada pela Igreja, mas promulgada. A história sagrada continua. Os poderosos feitos de Deus ainda se realizam. Eles não estão circunscritos ao passado: estão sempre presentes e continuam na Igreja e, através da Igreja, no mundo. A Igreja é em si parte da revelação – a história do “Cristo Total” e do Espírito Santo. O fim definitivo da revelação, seu telos ou perfeição, ainda não chegou. E apenas dentro da experiência da Igreja o Novo Testamento está plena e verdadeiramente vivo. A história da Igreja é em si a história da redenção. A verdade do livro é revelada e vindicada pelo crescimento desse Corpo.

 

 

História e sistema

 

Devemos em primeiro lugar admitir que a Bíblia é um livro difícil, um livro selado com sete selos. E ela não se torna mais fácil com o passar do tempo. A principal razão para isso não é pelo fato de o Livro ter sido escrito numa “língua desconhecida”, ou que ele contenha “palavras secretas que o homem não pode repetir”. Ao contrário, o entrave da Bíblia está em sua simplicidade radical: os mistérios de Deus estão moldados na vida diária de homens comuns, e toda a história parece ser inteiramente humana. Mesmo o Senhor Encarnado parece ser um homem comum.

 

As Escrituras são “inspiradas”, elas são a Palavra de Deus. O que é exatamente a inspiração, é algo que não pode ser propriamente definido – existe aí um mistério. Trata-se do mistério do encontro entre o divino e o humano. Não podemos entender completamente de que maneira os “santos de Deus” escutam a Palavra de seu Senhor, e de que modo eles conseguem articulá-las nas palavras de seu próprio dialeto. Mas, mesmo na sua transmissão humana, trata-se da voz de Deus. Aqui existe o milagre e o mistério da Bíblia, que consiste em que ela é a Palavra de Deus em idioma humano. E, qualquer que seja o modo como entendamos a inspiração, existe um fator que não deve ser desprezado. As Escrituras transmitem e preservam com precisão a Palavra de Deus idioma do homem. De fato, Deus falou ao homem, e quem estava ali era um homem para atender e perceber. Por isso, o “antropomorfismo” é inerente ao fato. Não existe acomodação à fragilidade humana. O ponto em questão está em que a linguagem humana não precisa perder suas características para se tornar veículo da revelação divina. Se quisermos que a Palavra de Deus soe claramente, nossa linguagem não deve ser abandonada, só por ser humana. O humano não é varrido pela inspiração divina, ele é apenas transfigurado. O “sobrenatural” não destrói o “natural”: hyper physin não implica para physin. O idioma humano não trai nem rebaixa o esplendor da revelação, nem tolhe o poder da Palavra de Deus. A Palavra de Deus pode ser correta e adequadamente expressa em palavras humanas. A palavra de Deus não se torna turva quando soa na língua dos homens. Pois o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, e essa ligação “analógica” torna a comunicação possível. E uma vez que Deus se dignou em falar ao homem, a própria palavra humana adquiriu uma nova força e uma nova profundidade e se viu transfigurada. O Espírito divino respira no organismo da fala humana. Por isso é possível ao homem proferir as palavras de Deus, falar de Deus. A “teologia” se torna possível – theologia, isso é logos peri theou. Estritamente falando, a teologia só é possível através da revelação. Ela é a resposta humana a Deus, que falou primeiro. É o testemunho que o homem dá a Deus que falou com ele, cuja palavra ele ouviu, cujas palavras ele guardou e agora divulga e repete. Certamente essa resposta nunca é completa. A teologia está sempre em processo de formação. Sua base e seu ponto de apoio são sempre os mesmos: a Palavra de Deus, a revelação. A teologia dá testemunho da revelação. Ela o faz de diversas maneiras: em credos, dogmas, ritos sagrados e símbolos. Mas num certo sentido a Escritura é em si a resposta primária, ou antes, a Escritura em si é tanto a Palavra de Deus quanto a resposta humana. Existe sempre uma interpretação humana a qualquer apresentação Escriturária da Palavra divina. Ainda que seja sempre e inapelavelmente “condicionada pelas circunstâncias”. E desde quando é possível ao homem escapar da condição humana?

 

 A Igreja sintetizou a mensagem Escriturária no Credo, e de muitas outras maneiras e métodos. A fé Cristã se desenvolveu ou cresceu dentro de um sistema de crenças e convicções. Num sistema como esse a estrutura interna da mensagem básica é claramente apresentada, e todos os artigos específicos da fé são apresentados em sua mútua interdependência. Obviamente, precisamos de um sistema, assim como precisamos de um mapa quando viajamos. Mas os mapas se referem a lugares reais. E qualquer sistema doutrinal deve estar relacionado com a revelação. É de grande importância o fato de que a Igreja jamais pensou seu sistema dogmático como uma espécie de substituto das Escrituras. Ambos se mantêm lado a lado: uma apresentação algo abstrata é genérica da mensagem principal num Credo ou sistema, e documentos específicos referentes às instâncias concretas da revelação. Podemos dizer que se trata de um sistema e da própria história em si.

 

Aqui se levanta um problema: como e em que medida pode a história ser encaixada num sistema? Esse é o principal problema da hermenêutica teológica. Qual é o uso teológico da Bíblia? Como podem os diversos testemunhos concretos, que cobrem milhares de anos, ser usados para a construção de um único esquema? A Bíblia é de fato uma, e ainda assim ela é uma coleção de diversos textos. Não podemos ignorar isso. A solução depende em última instância de nossa concepção de história, de nossa visão do tempo. A solução mais fácil seria se pudéssemos simplesmente passar por cima da diversidade dos tempo, da duração do próprio processo. Essa tentação apresentou-se à Igreja desde os primeiros tempos. Ela estava na raiz de todas as interpretações alegóricas, desde Philo e o Pseudo-Barnabas até o renascimento do alegorismo no período pós-Reformista. Essa foi uma tentação permanente para os místicos. A Bíblia é considerada como um livro de parábolas sacras, escrita numa linguagem simbólica própria, e o trabalho de exegese consiste em detectar seu sentido oculto, detectar o Verbo eterno, que foi oculto de diversas maneiras e sob diferentes véus. Nesse caso, a verdade histórica e a perspectiva são irrelevantes. A concretude histórica não passa de uma moldura pictórica, de uma imagem poética. O que se busca são os sentidos eternos. Toda da Bíblia poderia ser reconstruída como um livro de exemplos edificantes, de símbolos gloriosos, que apontassem para uma verdade supratemporal. Não é a verdade de Deus sempre a mesma, idêntica e eterna? Nesse contexto, é perfeitamente natural buscar no Velho Testamento as evidências de todas as crenças e convicções distintivamente cristãs. Os dois Testamentos estão como que mesclados em um, supratemporal, e suas marcas distintivas se esvanecem. Os perigos e atalhos dessa perspectiva hermenêutica são muito evidentes para merecer uma refutação extensa. Mas o único remédio contra essa tentação seria a restauração da percepção histórica. A Bíblia é história, ela não é um sistema de crenças, e não deve ser utilizada como uma Summa Theologiae. Ao mesmo tempo, não se trata da história de uma crença humana, mas da história de uma revelação divina. Mas o problema principal permanece irresolvido: para qual finalidade necessitamos, seja de um sistema, seja da história? Por que razão e com que propósito o Cristianismo os manteve sempre juntos? Mais uma vez, a resposta mais fácil a essa questão é a menos satisfatória: podemos sugerir em primeiro lugar que as Escrituras são o único relato autêntico da revelação, e que todo o resto não passa de comentários a respeito. E que os comentários jamais podem ter a mesma autoridade que o relato original. Existe alguma verdade nessa sugestão, mas a verdadeira dificuldade que devemos enfrentar está em outra parte. Por que os primeiros estágios da revelação não foram sobrepostos pelos últimos? Por que ainda precisamos da lei e dos profetas mesmo na nova Aliança de Cristo, e, em certa medida, no mesmo nível de autoridade que os Evangelhos e os demais textos do Novo Testamento? Quero dizer, como capítulos do mesmo livro, como se fossem. Pois, obviamente, eles estão incluídos no cânone das Escrituras, não apenas como documentos históricos, não como capítulos dos estágios de uma história que já passou. Isso se aplica particularmente ao Velho Testamento: “Pois todos os profetas e a lei profetizaram até João[20]”. Por que mantemos ainda tanto a lei como os profetas, e em que sentido? Qual pode ser o correto uso do Antigo Testamento na Igreja de Cristo?

 

Em primeiro lugar, é preciso que o Velho Testamento tenha um uso histórico. E, mais uma vez, essa história é uma história sagrada – não a história de convicções humanas e de sua evolução, mas uma história dos formidáveis feitos de Deus. E esses feitos não são irrupções desconectadas de Deus na vida humana. Existe aí uma unidade e coesão íntimas. Eles guiam e conduzem o povo escolhido ao propósito supremo de Deus – para Cristo. Assim sendo, num sentido, os primeiros feitos de Deus estão refletidos, ou implicados, nos últimos. Existe uma continuidade da ação divina, bem como uma identidade de objetivo e propósito. Essa continuidade é a base daquilo que foi chamado de interpretação “tipológica”. A terminologia patrística foi extremamente fluente a esse respeito. Mas sempre houve uma clara distinção entre dois métodos e visões. A “alegoria” também foi um método exegético. Um alegorista lida principalmente com textos, ele busca os significados ocultos e últimos das passagens Escriturárias, nas sentenças e até em palavras específicas, por trás e sob “a letra”. Ao contrário, a “tipologia” não constitui uma exegese dos textos em si, mas uma interpretação dos acontecimentos. Trata-se de um método histórico, e não meramente psicológico. Trata-se de detectar a correspondência interna entre os próprios acontecimentos nos dois Testamentos, estabelecida e antecipada. Um tipologista não procura “paralelos” ou similaridades. E nem todos os acontecimentos do Velho Testamento têm “correspondência” no Novo. Mas existem certos eventos básicos da antiga Promessa que são “figurações” ou “tipos” de eventos básicos do Novo. Sua “correspondência” é um desígnio divino: é como se fossem estágios de um processo único da Providência redentora. Dessa maneira, a “tipologia” já era praticada por São Paulo (sob o nome de “alegoria”: “...sendo essas coisas ditas alegoricamente...”[21]). Existe um mesmo propósito por trás de todas as poderosas intervenções de Deus, que se revela plenamente em Cristo. Santo Agostinho coloca isso em termos muitos claros: “Devemos buscar o mistério não tanto na palavra, mas no fato em si”. E “o mistério” do Antigo Testamento era Cristo; não apenas no sentido em que Moisés e os profetas “falaram” Dele, mas basicamente porque toda a corrente da história sagrada estava divinamente orientada para Ele. E, nesse sentido, Ele foi a realização de todas as profecias. Por essa razão, é somente à luz de Cristo que o Antigo Testamento pode ser entendido e ter seus “mistérios” revelados – de fato, eles foram revelados pela vinda Daquele “que haveria de vir”. O verdadeiro sentido profético das profecias só é visto claramente, por assim dizer, em retrospecto, depois de terem sido plenamente realizados. Uma profecia que não é cumprida permanece obscura e enigmática (como as profecias do Apocalipse, que apontam para o que ainda está por vir, para “o fim”). Mas isso não significa que possamos simples e arbitrariamente atribuir um novo significado ao antigo texto: o significado estava lá, embora não pudesse ser visto claramente. Quando, por exemplo, identificamos, na Igreja, o Servo Sofredor (no livro de Isaías) ao Cristo crucificado, não estamos simplesmente “aplicando” uma visão do Velho Testamento a um acontecimento do Novo Testamento: o que fazemos é detectar o significado da visão em si, embora esse significado possa não ter sido identificado com clareza nos tempos que antecederam a Cristo. Mas aquilo que antes fora uma visão (isso é, uma “antecipação”) se tornou um fato histórico.

 

Santo Agostinho sugeriu que os profetas falaram da Igreja com ainda mais clareza do que do próprio Cristo, isso é, do Messias. Num certo sentido, isso é natural, pois a Igreja sempre existiu. Israel, o povo escolhido, o povo da Aliança, era muito mais uma Igreja do que uma nação como as demais “nações”. Ta ethne, nationes ou gentes – esses termos familiares eram usados na Bíblia (e posteriormente) precisamente para descrever os infiéis ou pagãos por contraste com a única nação ou povo que era também (e fundamentalmente) a Igreja de Deus. A Lei foi dada a Israel na sua condição de Igreja. Ela abarcava toda a vida do povo, tanto a “temporal” quanto a “espiritual”, precisamente porque toda a existência humana tinha que ser regulada por preceitos divinos. E a divisão da vida em departamentos “temporal” e “espiritual” é, estritamente falando, precária. De qualquer modo, Israel era uma comunidade de crentes divinamente constituída, unida pela Lei de Deus, a verdadeira fé, ritos sagrados e hierarquia – e aqui encontramos todos os elementos da definição tradicional de Igreja. A antiga Promessa se realizou na nova, a Aliança foi reconstituída, e o antigo Israel foi rejeitado, por causa de sua infidelidade: ele perdeu o dia de sua retribuição. A única verdadeira continuação da velha Aliança estava na Igreja de Cristo (lembremo-nos de que ambos os termos são de origem Hebraica: a Igreja é qahal e Cristo significa Messiah). Ela é o verdadeiro Israel, kata pneuma. Nesse sentido já São Justino rejeitava enfaticamente a ideia de que o Antigo Testamento era uma ligação que unia a Igreja e a Sinagoga. Para ele o oposto era verdadeiro. Todas as alegações Judaicas devem ser formalmente rejeitadas: o Velho Testamento já não pertence aos Judeus, porque eles não acreditam em Jesus Cristo. O Antigo Testamento pertence agora apenas à Igreja. Já ninguém pode reclamar para si Moisés e os profetas, senão em nome de Jesus Cristo. Pois a Igreja é o Novo Israel e a herdeira única das antigas promessas. Um novo e importante princípio hermenêutico estava implicado nos rigorosos discursos dos primeiros apologistas Cristãos. O Velho Testamento tinha que ser lido e interpretado como um livro da Igreja. Um livro na Igreja, podemos acrescentar.

 

A lei foi superada pela verdade e nela encontrou sua realização, e em seguida foi ab-rogada. Ela já não precisava ser imposta aos novos convertidos. O Novo Israel teria sua própria constituição. Essa parte do Velho Testamento tornou-se antiquada. Ela mostrou ser basicamente “condicionada pelas circunstâncias” – não tanto no sentido de uma relatividade histórica genérica, mas num sentido providencial mais profundo. A nova situação redentora fora criada ou inaugurada pelo Senhor, uma nova situação na perspectiva sagrada da salvação. Tudo o que pertencera essencialmente ao estágio ou fase anterior agora perdia seu significado, ou antes, mantinha seu sentido, mas apenas como prefiguração. Talvez mesmo o Decálogo não escape a essa regra, e tenha sido sobrepujado pelo “novo mandamento”. Agora o Velho Testamento só deve ser utilizado em relação com a Igreja. Sob a antiga Aliança a Igreja estava restrita a uma nação. Na nova Aliança todas as discriminações nacionais são enfaticamente abolidas: já não existe distinção entre Judeu e Grego – todos são indiscriminadamente o mesmo Cristo. Em outras palavras, já não se tem o direito de isolar alguns elementos da velha Aliança, à parte de sua relação imediata com a vida da Igreja, e colocá-los como com um padrão Escriturário para a vida temporal das nações. O velho Israel era uma Igreja provisória, mas não um padrão de nação. Podemos colocar a questão dessa maneira. Obviamente, podemos aprender muito sobre justiça social na Bíblia – essa era uma parte da mensagem do Reino por vir. Podemos aprender muito sobre a organização política, social e econômica específica dos Judeus através das eras. Tudo isso pode ser de grande auxílio em nossas discussões sociológicas. Ainda assim, será dificilmente permissível detectar na Bíblia (em especial no Antigo Testamento) qualquer padrão ideal ou permanente de organização política ou econômica, seja para o presente, seja para qualquer outro tempo histórico. Podemos aprender muito sobre história Hebraica. Isso não passará de uma lição de história, nunca de teologia. O fundamentalismo Bíblico não funciona melhor em sociologia do que em todo o resto. A Bíblia não constitui uma autoridade em ciência social, assim como não o é em astronomia. A única lição sociológica que pode ser extraída da Bíblia é precisamente o fato da Igreja, o Corpo de Cristo. Mas nenhuma referência Bíblica a assuntos “temporais” pode ser vista como “evidência Escriturária”.  Só existem “evidências Escriturárias” em teologia. Isso não quer dizer que não existam orientações, quaisquer que sejam, que possam ser encontradas ou buscadas na Bíblia. Em qualquer caso, essa procura não consistirá num “uso teológico” da Bíblia. E talvez as lições da antiga história Hebraica estejam no mesmo nível de quaisquer outras lições do passado. É preciso distinguir cuidadosamente entre o que era permanente e o que era provisório (ou “condicionado pelas circunstâncias”) na antiga Promessa (começando por superar suas limitações nacionais). De outro modo, corremos o risco de ignorar o que a nova Aliança tem de novo. Mesmo no Novo Testamento, devemos estabelecer uma clara distinção entre os aspectos histórico e profético. O verdadeiro tema de toda a Bíblia é Cristo e Sua Igreja, não as nações e sociedades, nem os céus, nem a terra. O velho Israel era o “tipo” do novo, isso é, da Igreja Universal, não de alguma nação particular ou ocasional. A estrutura nacional da Igreja provisória foi desmontada pela universalidade da salvação. Depois de Cristo, existe apenas uma única “nação”, a nação Cristã, genus Christianum – na antiga expressão, tertium genus – isso é, precisamente a Igreja, o único povo de Deus, e nenhuma outra descrição nacional pode reivindicar doravante a aliança Escriturária: as diferenças nacionais pertencem à ordem da natureza e são irrelevantes na ordem da graça.

 

A Bíblia é completa. Mas a história sagrada ainda não está completa. O próprio cânone Bíblico inclui o profético Livro do Apocalipse. Existe um Reino por vir, a consumação definitiva, e é assim que existem também profecias no Novo Testamento. Toda a existência da Igreja é, num certo sentido, profética. Mas o futuro ganhou um novo significado post Christum natum. A tensão entre presente e futuro tem na Igreja de Cristo um sentido e um caráter diferentes do que na antiga Promessa. Pois Cristo já não está apenas no futuro, mas também no passado e, portanto, no presente. Essa perspectiva escatológica é de importância fundamental para o correto entendimento das Escrituras. Todos os “princípios” e “regras” hermenêuticas devem ser repensadas e reexaminadas a partir dessa perspectiva escatológica. Mas existem dois grandes perigos a evitar. De um lado, não se pode estabelecer nenhuma analogia estrita entre os dois Testamentos, pois os contextos das duas Alianças são profundamente diferentes: elas são relatadas como sendo “a figura” e “a verdade”. É uma ideia tradicional da exegese patrística que o Verbo de Deus revela a Si próprio continuamente e de diversas maneiras ao longo de todo o Antigo Testamento. Mas todas essas teofanias do Antigo não devem ser colocadas no mesmo nível ou na mesma dimensão da encarnação do Verbo, para que o evento da redenção não se dissolva numa sombra alegórica. Um “tipo” não passa de uma “sombra” ou imagem. No Novo Testamento tempos o fato em si. Assim, o Novo Testamento é algo mais do que a mera “figura” do Reino por vir. Ele constitui essencialmente o domínio da realização. Por outro lado, é prematuro falar em “escatologia realizada”, simplesmente porque o próprio es chaton ainda não se realizou: a história sagrada ainda não se completou. Podemos preferir a expressão: “a escatologia inaugurada”. Ela traduz ade3quadamente o diagnóstico Bíblico – o ponto crucial da revelação se encontra desde o passado. O “definitivo” (ou o “novo”) já penetrou na história, embora o estágio final ainda não tenha sido alcançado. Já não estamos num mundo só de sinais, mas num mundo de realidades, e sob o sinal da Cruz. O Reino já foi inaugurado, mas não inteiramente realizado. O cânone fixo da própria Escritura simboliza uma realização. A Bíblia se encerra exatamente porque o Verbo de Deus se encarnou. No termo de referência definitivo já não é um livro, mas uma pessoa viva. Mas a Bíblia ainda detém a autoridade – não apenas como relato do passado, mas como livro profético, cheio de alusões que apontam para o futuro, para o final em si.

 

A história sagrada da redenção continua. Ela é agora a história da Igreja, que é o Corpo de Cristo. O Espírito Consolador já habita a Igreja. Nenhum sistema completo de fé Cristã é possível ainda, porque a Igreja ainda é peregrina. E a Bíblia é conservada pela Igreja como um livro de história, para lembrar aos fiéis da natureza dinâmica da revelação divina, “em diferentes épocas e de diversas maneiras”.



[1] Scrioptura est non in legendo, sed in intelligendo.

[2] João 20: 30-31.

[3] Romanos 3: 2.

[4] Gênesis 1: 1.

[5] Apocalipse 22: 20.

[6] Hebreus 1: 1.

[7] João 1: 18.

[8] Gálatas 4: 4.

[9] I Timóteo 6: 16.

[10] João 1: 9.

[11] Apocalipse 21: 5.

[12] Mateus 1: 1.

[13] João 1: 17.

[14] I João 1: 3.

[15] Colossenses 2: 9.

[16] João 1: 14.

[17] Hebreus 11: 1.

[18] I Coríntios 12: 3.

[19] I Timóteo 3: 15.

[20] Mateus 11: 13.

[21] Gálatas 4: 24. Referindo-se a Sara e Agar: “Sendo essas coisas ditas alegoricamente: as duas mulheres representam as duas alianças”.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Georges Florovsky: Bíblia, Igreja, Tradição: Uma visão da Ortodoxia do Oriente - Capítulo I: A mente escriturária perdida

 


 

Os ministros cristãos não devem pregar suas opiniões pessoais, pelo menos não no púlpito. Eles são encarregados e ordenados na Igreja precisamente para pregar a Palavra de Deus. A eles são dados alguns termos fixos de referência – em especial, o evangelho de Jesus Cristo – e se comprometem apenas com essa única e perene mensagem. Espera-se deles que propaguem e sustentem “a fé que foi entregue aos santos”. É claro que a Palavra de Deus deve ser pregada “eficazmente”. Vale dizer que ela sempre deve ser expressa de modo convicto e a fim de conquistar a lealdade de cada nova geração e grupo específico. Ela pode ser recolocada em novas categorias, se as circunstâncias assim o exigirem. Mas, acima de tudo, a identidade da mensagem deve ser preservada.

 

Cada ministro deve se assegurar que está pregando o mesmo evangelho que foi entregue e que não está introduzindo nenhum “novo evangelho” de sua própria autoria. A Palavra de Deus não pode ser levianamente ajustada ou acomodada aos costumes efêmeros e às atitudes de alguma época em particular, o que inclui nosso próprio tempo. Infelizmente, estamos com frequência inclinados a medir a Palavra de Deus pela nossa própria estatura, ao invés de tentarmos colocar nossas mentes à altura de Cristo. A “mente moderna” ainda permanece sob o julgamento da Palavra de Deus.

 

 

O homem moderno e a Escritura

 

Mas é precisamente nesse ponto que começa a maior dificuldade. Muitos de nós perdemos a integridade da mente escriturária, ainda que alguns cacos de fraseologia bíblica tenham sido retidos. O homem moderno se queixa de que a verdade de Deus é oferecida a ele num “idioma arcaico” – isso é, na linguagem da Bíblia – que já não é o seu e que não pode ser empregado espontaneamente. Recentemente, sugeriu-se que deveríamos “demitologizar” radicalmente as Escrituras, o que implica substituir as antiquadas categorias dos Escritos Sagrados por algo mais moderno. Não podemos fugir a essa questão: será a linguagem das Escrituras de fato nada além de uma embalagem acidental e exterior, da qual alguma “ideia eterna” deve ser destrinchada e desembaraçada, ou será ela um veículo perene da mensagem divina, que foi entregue de uma vez por todas no tempo?

 

Corremos o risco de perdermos a singularidade da Palavra de Deus no processo de sua contínua “reinterpretação”. Mas como é possível interpretá-la, se perdemos a linguagem original? Não será mais seguro inclinar nosso pensamento a hábitos mentais da linguagem bíblica e reaprender o idioma da Bíblia? Nenhum homem pode receber o evangelho, a menos que se arrependa – que ele “mude sua mente”. Pois na linguagem do evangelho, “arrependimento” não significa simplesmente o conhecimento e a contrição pelos pecados, mas precisamente uma “mudança de mente” – uma mudança profunda nas atitudes mentais e emocionais do homem, uma renovação do próprio “si” do homem, que começa pela autor renúncia e que se realiza e é selada pelo Espírito Santo.

 

Vivemos hoje numa época de caos e desintegração intelectual. Possivelmente o homem moderno ainda não conformou sua mente, e a variedade de opiniões está além que qualquer esperança de conciliação. Provavelmente o único farol que temos para nos guiar através do nevoeiro mental de nossa época desesperançada seja justamente a “a fé que foi entregue aos nossos santos”, por obsoleto e arcaico que possa parecer o idioma da igreja primitiva, julgada a partir de nossas normatizações efêmeras.

 

 

Pregar o Credo

 

Então, o que pregaremos nós? O que devemos pregar aos nossos contemporâneos, “em tempos como os que correm”? Aqui não cabe hesitação: devemos pregar Jesus, o Jesus crucificado e ressuscitado. Devemos pregar a todos aqueles a quem somos chamados a dirigir a mensagem de salvação, tal como essa chegou a mim por intermédio de uma tradição ininterrupta da Igreja Universal. Não devemos nos isolar em nossa própria época. Em outras palavras, devemos pregar as “doutrinas do Credo”.

 

Estou plenamente consciente de que o Credo pode constituir uma pedra de tropeço para muita gente de nossa geração. “O Credo é constituído por símbolos veneráveis, como os vetustos estandartes nacionais que pendem das paredes de nossas igrejas nacionais; mas nas guerras atuais da Igreja na Ásia, na África, na Europa e na América, o Credo, quando compreendido, se torna tão útil como um machado de guerra ou um arcabuz nas mãos de um soldado moderno”. Isso foi escrito há poucos anos por um proeminente acadêmico Britânico, que é ao mesmo tempo um ministro devoto. Provavelmente ele não escreveria a mesma coisa hoje. Mas ainda existem muitos que fariam suas, de todo coração, essas palavras. Lembremo-nos, entretanto, que o Credo original foi deliberadamente escriturário, e que é precisamente por sua fraseologia escriturária que ele se torna difícil para o homem moderno.

 

Assim é que encaramos outra vez o mesmo problema: o que podemos oferecer no lugar da Sagrada Escritura? Eu preferiria a linguagem da Tradição, não por algum preguiçoso e crédulo “conservadorismo”, ou pela “obediência cega” a alguma autoridade “exterior”, mas apenas porque não encontro fraseologia melhor. Estou preparado para me expor ao preço inevitável de ser “antiquado” e “fundamentalista”. E devo protestar, porque essa acusação é gratuita e errada. Eu conservo e mantenho as “doutrinas do Credo” conscientemente, e de todo coração, porque pela fé eu entendi sua perene adequação e relevância em todas as épocas e em todas as situações, o que incluem os “nossos tempos”. E acredito que são precisamente as “doutrinas do Credo” que podem capacitar um geração desesperançada como a nossa a reconquistar a coragem e a visão Cristãs.

 

 

A Tradição vive

 

“A Igreja não é nem um museu em que se depositam coisas mortas, nem uma sociedade de pesquisas”. Esses depósitos estão vivos – depositum juvenescens, para usarmos a frase de Santo Irineu. O Credo não é uma relíquia do passado, mas a “espada do Espírito”. A reconversão do mundo ao Cristianismo, é isso que devemos pregar em nossos dias. Essa é a única maneira de superar o impasse ao qual o mundo foi conduzido pelos erros dos Cristãos, para que ele possa se tornar Cristão verdadeiramente. Obviamente, a doutrina Cristã não responde diretamente a nenhuma questão nos campos da política e da economia. Tampouco o faz o evangelho de Cristo. E ainda assim seu impacto sobre todo o curso da história humana foi enorme. O reconhecimento da dignidade humana, da misericórdia e da justiça tem suas raízes no evangelho. Um novo mundo só pode ser construído por um novo homem.

 

 

O que significa a Calcedônia

 

“E se fez homem”. Qual é o significado último dessa afirmação do Credo? Ou, em outras palavras, quem foi Jesus, Cristo e Senhor? O que significa, na linguagem do Concílio da Calcedônia, que o mesmo Jesus é “prefeito homem” e “perfeito Deus”, ainda que numa só e única personalidade? O “homem moderno” costuma ser muito crítico em relação a essa definição da Calcedônia. Ele se recusa a atribuir qualquer sentido a ela. As “imagens” do Credo não são para ele mais do que trechos de poesia, se tanto. Creio que toda essa perspectiva está errada. A “definição” de Calcedônia não consiste numa afirmação metafísica, e jamais pretendeu ser tratada como tal. Tampouco o mistério da Encarnação é apenas um “milagre metafísico”. A fórmula de Calcedônia é uma afirmação de fé, e assim ela não pode ser entendida quando retirada da experiência total da Igreja. De fato, ela é uma “afirmação existencial”.

 

A fórmula de Calcedônia é como se fosse um contorno intelectual de um mistério que precisa ser apreendido pela fé. Nosso Redentor não é um homem, mas é o próprio Deus. Aqui reside a ênfase existencial da afirmação. Nosso Redentor é aquele que “desceu” e que, ao “se fazer homem”, se identificou com os homens numa comunhão de vida e natureza verdadeiramente humanas. Não apenas a iniciativa foi divina, como o Guia de nossa Salvação era uma Pessoa divina. A plenitude da natureza humana de Cristo significa simplesmente a concordância e a verdade de sua identificação redentora. Deus penetrou na história humana e se tornou uma pessoa histórica.

 

Isso soa paradoxal. E, de fato, existe um mistério: “Sem maior controvérsia é o mistério da divindade: Deus manifestou-se na carne”. Mas esse mistério foi uma revelação: o verdadeiro caráter de Deus foi revelado na Encarnação. Deus estava de tal modo e tão intimamente envolvido com o destino humano (e em especial com os destinos de cada um de seus “pequeninos”), que Ele interveio em pessoa no caos e na miséria da vida perdida. Assim é que a divina providência não constitui meramente um governo onipotente do universo a partir da augusta distância da divina majestade, mas uma kenosis, uma auto humilhação do Deus da glória. Existe uma relação pessoal entre Deus e o homem.

 

 

A tragédia sob uma Nova Luz

 

Toda a tragédia humana aparece agora sob uma nova luz. O mistério da Encarnação foi um mistério do amor divino, da divina identificação com o homem perdido. E o clímax da Encarnação foi a cruz. É o ponto de virada do destino humano. Mas o terrível mistério da cruz só é compreensível a partir de uma perspectiva mais ampla de uma Cristologia integral, ou seja, ap0enas se crermos que o Crucificado era verdadeiramente “o Filho do Deus vivo”. A morte de Cristo significou a entrada no mistério do homem morto (uma vez mais, em pessoa), uma descida ao Hades, e isso implicou o fim da morte e a inauguração da vida eterna para o homem.

 

Existe uma espantosa coerência no corpo da doutrina tradicional. Mas ela só pode ser entendida e apreendida no contexto vivo da fé, vale dizer, de uma comunhão pessoal com o Deus pessoal. Somente a fé torna convincentes as fórmulas, somente ela torna vivas as fórmulas. “Parece paradoxal, embora seja essa a experiência de todos os que acreditam nas coisas espirituais: ninguém tira pro9veito das Escrituras, a menos que primeiro ame a Cristo”. Pois Cristo não é um texto, mas uma Pessoa viva, e Ele habita seu corpo, a Igreja.

 

 

Um novo Nestorianismo

 

Pode parecer ridículo sugerir que é preciso pregar a doutrina de Calcedônia “em tempos como esses de agora”. Mas é precisamente essa doutrina – a realidade da qual essa doutrina dá testemunho – que pode mudar toda a perspectiva espiritual do homem moderno. Ela traz a ele uma verdadeira liberdade. O homem não está só nesse mundo, e Deus se interessa pessoalmente pelos eventos da história humana. Essa é uma implicação imediata da concepção integral da Encarnação. É uma ilusão pensar que as disputas Cristológicas do passado sejam irrelevantes para a situação contemporânea. De fato, elas continuam se repetem nas controvérsias de nossa época atual. O homem moderno, deliberada ou inconscientemente, é tentado por um Nestorianismo extremo. Vale dizer, ele não leva a Encarnação a sério. Ele não ousa acreditar que Cristo seja uma Pessoa divina. Ele quer ter um redentor humano, apenas assistido por Deus. Ele está mais interessado na psicologia humana do Redentor do que no mistério do amor divino. Porque, em última instância, ele acredita otimistamente na dignidade humana.

 

 

Um novo Monofisitismo

 

No outro extremo, temos em nossos dias uma revivência das tendências “monofisitas” na teologia e na religião, na qual o homem é reduzido a uma completa passividade e a ele só é permitido ouvir e esperar. A tensão presente entre “liberalismo” e “nova Ortodoxia” é de fato uma re-promulgação da velha luta Cristológica, num novo patamar existencial e numa nova chave espiritual. O conflito jamais será colocado ou resolvido no campo da teologia, a menos que se adquira uma visão mais ampla.

 

Na Igreja primitiva a pregação era enfaticamente teológica. Não se tratava de especulação vazia. O próprio Novo Testamento é um livro teológico. Negligenciar a teologia na instrução dada aos leigos nos tempos modernos é responsável tanto pela decadência da religião pessoal, como pelo sentido de frustração que domina o mundo moderno. O que precisamos numa Cristandade “em tempos como os de agora” é precisamente uma teologia existencial de peso. De fato, tanto o clero como os leigos têm fome de teologia. E, uma vez que nenhuma teologia costuma ser pregada, eles adotam qualquer “ideologia estranha”, combinando-a com os fragmentos de crenças tradicionais. Todo o apelo dos “evangelhos rivais” de nossos dias está em que eles oferecem algum tipo de pseudoteologia, um sistema de pseudodogmas. Eles são aceitos alegremente por aqueles que não encontram teologia alguma no Cristianismo reduzido ao estilo “moderno”. Essa alternativa existencial que muitos veem em nossos dias foi formulada com competência por um teólogo inglês. “Dogma ou... morte”. A idade de um não-dogmatismo e pragmatismo está encerrada. E assim os ministros da Igreja têm que voltar a pregar as doutrinas e os dogmas – a Palavra de Deus.

 

 

A crise moderna

 

A primeira tarefa do pregador contemporâneo consiste na “reconstrução da fé”. Não se trata absolutamente de um esforço intelectual. A fé é como o mapa do verdadeiro mundo e não deve ser confundida com a realidade. O homem moderno esteve muito ocupado com suas próprias ideias e convicções, suas próprias atitudes e reações. A crise moderna precipitada pelo humanismo (um fato inegável) foi provocada pela redescoberta do mundo real, aquele no qual acreditamos. A redescoberta da Igreja é o aspecto mais decisivo desse novo realismo espiritual. A realidade já não é escondida de nós pelo muro das nossas próprias ideias. Ela voltou a ser acessível. Outra vez se percebe que a Igreja não é apenas uma sociedade de crentes, mas o “Corpo de Cristo”. Essa é uma redescoberta de uma nova dimensão, a redescoberta da presença contínua do Redentor divino no meio de seu rebanho de fiéis. Essa descoberta lançou um jorro de luz na miséria de nossa existência desintegrada num mundo completamente secularizado. Já muitos reconhecem que a verdadeira solução dos problemas sociais reside, de alguma maneira, na reconstrução da Igreja. “Em tempos como os de agora”, é preciso pregar o “Cristo total”. Cristo e a Igreja – totus Christus, caput et corpus, para usarmos a frase famosa de Santo Agostinho. Possivelmente esse tipo de pregação seja ainda pouco comum, mas ela parece ser a única forma de pregar a Palavra de Deus eficientemente num período de tristeza e desespero como o nosso.

 

 

A relevância dos Padres

 

Eu costumo ter uma estranha sensação. Quando eu leio os antigos clássicos da teologia Cristã, os Padres da Igreja, eu acho que eles são mais relevantes para as preocupações e problemas do nosso tempo do que os teólogos modernos. Os Padres estavam lutando contra problemas existenciais, com aquelas revelações das questões eternas descritas e reportadas nas Sagradas Escrituras. Eu arriscaria a sugestão de que Santo Atanásio e Santo Agostinho são mais atuais do que mitos de nossos teólogos contemporâneos. A razão para isso é muito simples: eles estavam lidando com as coisas e não com os mapas, eles não estavam tão preocupados com o que o homem pode acreditar, mas com aquilo que Deus fez pelo homem. Temos que, “em tempos como os nossos”, alargar nossa perspectiva, aceitar os mestres antigos, e tentar uma síntese da experiência Cristã voltada para nossa época.

 

 

***