quarta-feira, 5 de junho de 2013

João Damasceno: Discurso útil à alma


JOÃO DAMASCENO

 

 

DISCURSO ÚTIL À ALMA

 
 
João Damasceno

 
Nosso Pai entre os Santos, João Damasceno, que, por causa da graça radiante de seu ensinamento foi chamado de rio que transborda ouro, viveu nos tempos de Leão o Isauriano, ao redor do ano 730. Ele foi a santa musa da Igreja de Cristo. Ele deixou numerosos escritos resplandecentes de prazer indizível e de graça espiritual. Inserimos aqui dentre seus numerosos escritos o presente tratado, na medida em que este contribui totalmente para os desígnios deste livro e pode ajudar aos que desejam possuir o conhecimento das virtudes e dos vícios, que escapam à maioria. Pois ele ensina claramente quais são, em quantas espécies e gêneros se dividem e como podemos possuir alguns e despossuir a outros, usando a pedra de toque que consiste em distinguir sempre e em toda parte, e com conhecimento de causa, o ouro experimentado das virtudes do falso cobre dos vícios. Assim, aquele que depositar com precisão no tesouro de seu coração este conhecimento, saberá rapidamente e de uma vez por todas, o que são as virtudes e o que são as paixões.

 
*

 
A origem deste “discurso” sobre as virtudes e os vícios, atribuído a João Damasceno (675-749) e inserido dentre suas obras, é bastante incerta[1]. É possível que esta origem seja síria, ao menos em parte, e remonte a João o Solitário (início do século VI). Seja como for, se nos ativermos ao texto, não teremos aqui mais do que uma compilação. Algumas aquisições da reflexão e da experiência, desde Evagro, são aqui como que expostas e servidas, sem esta ruminação que torna viva e necessária a repetição.

 
Entretanto, o quadro recapitulativo tem certamente sua utilidade. O compilador desdobra o mapa de campo no qual se desenrola o combate espiritual. Primeiro, ele expõe a longa lista dos protagonistas: as virtudes e os vícios da alma e do corpo. Depois ele explica que o enfrentamento mais difícil se dá nas três partes da alma: a razão, o ardor e o desejo. E ele mostra as séries de vícios e quais os encadeamentos de virtudes conseguem sua alienação e sua cura. Enfim, ele lembra que no coração do combate espiritual, o discernimento – a “virtude das virtudes” – dá o acabamento a todas as operações e permite evitar que acabe mal qualquer virtude exercida sem estar orientada para o fim último. Pois tudo deve desembocar na “contemplação do Criador” e na passagem da imagem à semelhança de Deus, que só pode ser adquirida pelos compassivos: razão e abandono do combate espiritual, e finalmente convite a ultrapassar o próprio discurso.


[1]    Também atribuída a santo Atanásio ou a santo Efrém.

 

DE NOSSO PAI ENTRE OS SANTOS JOÃO DAMASCENO,

DISCURSO ÚTIL À ALMA

 
 

É preciso saber que o homem é duplo, que ele é feito de alma e corpo, e que os sentidos e as virtudes são igualmente duplos. Existem cinco sentidos da alma e cinco sentidos do corpo. Os sentidos da alma, que os sábios chamam também de potências ou de faculdades, são a inteligência, a reflexão, o julgamento, a imaginação e a percepção. Os sentidos do corpo são a visão, o olfato, a audição, o paladar e o tato. Mas se suas virtudes são duplas, segue-se certamente que seus vícios serão também duplos. É assim necessário que todo homem saiba claramente quais são as virtudes da alma, quais as virtudes do corpo, e quais são, de resto, as paixões da alma e as paixões do corpo.

 

Diremos que as virtudes da alma são essencialmente as quatro virtudes gerais: a coragem, a prudência, a castidade e a justiça. É delas que nascem as demais virtudes da alma, a fé, a esperança, o amor[1], a prece, a humildade, a doçura, a paciência, a resignação, a bondade, a calma, o conhecimento divino, o fervor, a simplicidade, a serenidade, a sinceridade, a ausência de presunção, de orgulho, de inveja, de intriga e de avareza, a compaixão, a misericórdia, a generosidade, a ausência de medo e de tristeza, a compunção, o pudor, a piedade, a busca dos bens futuros, a tensão em direção ao Reino de Deus, o desejo de adoção filial.

 

As virtudes do corpo são sobretudo os instrumentos das virtudes, que são praticadas com conhecimento de causa conforme a Deus, e na ausência de qualquer hipocrisia ou de desejo de agradar aos homens; cada qual leva a progredir na humildade e na impassibilidade. Elas são: a temperança, o jejum, a fome, a sede, as vigílias, permanecer acordado toda a noite, permanecer de joelhos constantemente, não se banhar, não possuir mais do que uma vestimenta, comer alimentos secos, comer tarde, não beber senão água, dormir sobre o chão duro, a pobreza, a despossesão, a miséria, a ausência de adornos e de amor próprio, a solidão, a calma, jamais sair, a indigência, não ter necessidade de nada, o silêncio, trabalhar com suas próprias mãos, todo sofrimento e toda ascese do corpo, e outras virtudes igualmente necessárias e úteis ao corpo vigoroso e perturbado pelas paixões da carne. Mas quando o corpo está enfermo e, com a ajuda de Deus encontra-se para além destas virtudes, elas não mais são necessárias: a santa humildade e a ação de graças cumprem com todas elas.

 

Falemos agora dos vícios da alma e do corpo, ou seja, das paixões. As paixões da alma são o esquecimento, a negligência e a ignorância, estes três vícios por meio dos quais o olho da alma – o intelecto – ofuscado submete-se a todas as paixões, que são a impiedade, a falsa opinião – ou seja, todas as heresias – a blasfêmia, o ardor, a cólera, a amargura, ficar fora de si, o ódio aos homens, o rancor, a calúnia, a condenação, a tristeza irracional, o medo, a preguiça, a disputa, a rivalidade, o ciúme, a vaidade, o orgulho, a hipocrisia, a mentira, a infidelidade, a avidez, o amor à matéria, os pendores passionais, a possessão das coisas da terra, a acídia, a baixeza de alma, a ingratidão, a murmuração, a alienação, a presunção, a arrogância, a vanglória, o amor ao poder, o desejo de agradar aos homens, a intriga, a impudência, a insensibilidade, a bajulação, a falsidade, a dissimulação, a duplicidade, os consentimentos que a parte passional da alma concede aos pecados, a prática contínua dos pecados, a dispersão dos pensamentos, o egoísmo – mãe dos vícios –, o amor pelo dinheiro – a raiz de todos[2] –, a malignidade e a desonestidade.

 

As paixões do corpo são a gula, a glutoneria, o desfrute, a embriaguez, comer escondido, o amor aos prazeres de toda espécie, a prostituição, o adultério, o impudor, a impureza, o incesto, a corrupção das crianças, deitar-se com animais, as más concupiscências e todas as paixões infames e contra a natureza; o roubo, o sacrilégio, a bandidagem, o assassinato e toda licença e desfrute das vontades da carne para confortar sempre antes o corpo; os oráculos, os sortilégios, os presságios, os augúrios, o amor pelos adornos, a frivolidade, a indolência, a maquiagem, a massagem no rosto, o ócio condenável, as distrações, os jogos de azar, o mau uso passional dos prazeres do mundo, a vida que ama o corpo, que torna pesado o intelecto, que o torna terrestre e bestial e não lhe permite jamais elevar-se até Deus e praticar as virtudes. As raízes de todas essas paixões, suas causas primeiras, podemos dizer, são o amor ao prazer, o amor pela glória e o amor pelo dinheiro, de onde nasce todo mal. O homem não cometerá nenhum pecado se de saída estes três gigantes, como os chama Marcos o sábio asceta[3], não o cercarem d dominarem: a saber, o esquecimento, a negligência e a ignorância, que engendram o prazer, o conforto, a amor pela glória dos homens e pelas distrações. A causa primeira de todos esses vícios e como que sua malvada mãe é, como dissemos, o egoísmo, ou seja, o amor irracional pelo corpo e por seus pendores passionais. Os transbordamentos e o relaxamento do intelecto – a grosseria e a obscenidade –, como a liberdade de linguagem e as risadas, estão na origem de muitos vícios e de muitas quedas.

 

Além disso, é preciso saber que o amor passional pelos prazeres é variado e toma muitas formas: os prazeres que enganam a alma são numerosos, quando esta não é fortalecida pelo temor divino e pelo amor a Cristo, permanecendo sóbria e vigilante diante de Deus e se dedicando à prática das virtudes. Pois miríades de prazeres atraem para si os olhos da alma: os prazeres do corpo, do dinheiro, do desfrute, da glória, da indiferença, da cólera, do poder, da avareza, da avidez. Sua aparência é enganadora, brilhante a amável, capaz de atrair até aqueles que temem mas que ainda não estão fortemente tomados pela virtude e não suportam seus rigores. Toda relação terrestre e pendor passional por qualquer coisa de material mergulha no prazer e nas delícias aquele que se apaixona, e mostra nele por meio desta paixão o quanto é vã e nociva a concupiscência da alma, uma vez que por causa daquilo o que foi vencido fica submetido ao ardor e à cólera, à tristeza, ao ressentimento e à privação daquilo que desejava. Mas se junto com o pendor passional instala-se um pequeno hábito, este prepara de modo insensível e incurável aquele que se deixou prender a ser possuído até o fim pelos pendores irracionais, por intermédio dos prazeres que eles escondem.

 

Pois o prazer da concupiscência é múltiplo, como dissemos: ele não acontece apenas na prostituição e nas demais fruições do corpo, mas em todas as paixões. A castidade não consiste apenas em se abster da prostituição e dos prazeres do baixo ventre, mas em manter-se afastado de todas os outros prazeres. Assim, quem é possuído pelo amor à riqueza, ao dinheiro ou à cupidez é um debochado. Pois assim como  aquele é presa do corpo, este é presa da riqueza. Ele é ainda mais debochado, na medida em que a natureza não o empurra com tanta força como àquele. O cavaleiro ignorante, podemos dize-lo com verdade e justiça, não é o que não domina o cavalo selvagem e fogoso e difícil de domar, mas o que é incapaz de submeter o cavalo arreado e dócil. É evidente que o desejo de riquezas é vão e não conforme à natureza, uma vez que ele não extrai sua força da natureza, mas de uma vontade pervertida. É por isso que aquele que se deixa vencer por esta paixão peca imperdoavelmente. Devemos então saber com clareza que não é apenas nas delícias e fruições do corpo que se encontra o amor ao prazer, mas naquilo que, em qualquer modo e em qualquer coisa, é amado por uma vontade e um pendor passional da alma. Devemos sabê-lo, a fim de que as paixões sejam conhecidas com mais clareza nas três partes da alma e para que possamos expô-las com concisão.

 

A alma se divide em três: razão, ardor e desejo. Os pecados da razão são a infidelidade, a heresia, a demência, a blasfêmia, a ingratidão, o consentimento aos pecados que provêm da parte passional da alma. O remédio e o tratamento destes vícios são a fé inquebrantável em Deus e os dogmas da piedade, verdadeiros, infalíveis e ortodoxos, o estudo contínuo das palavras do Espírito, a oração pura e sem descanso e a ação de graças dirigida a Deus. Os pecados do ardor são a dureza de coração, a raiva, a insensibilidade, o rancor, a inveja, o assassinato e a prática contínua de semelhantes vícios. Sua cura e tratamento são o amor aos homens, a caridade, a mansidão, o amor fraterno, a compaixão, a resignação e a bondade. Os pecados do desejo são a gula, a glutoneria, a embriaguez, a prostituição, o adultério, a impureza, o despudor, o amor pelo dinheiro, a concupiscência da vanglória, do ouro, da riqueza e dos prazeres da carne. A cura e o tratamento destes vícios são o jejum, a temperança, a vida dura, a despossessão, distribuir o dinheiro aos pobres, a tensão em direção aos bens imortais do século futuro, a busca do Reino de Deus e o desejo da adoção filial.

 

É preciso que tenhamos também o conhecimento dos pensamentos passionais por intermédio dos quais acontecem todos os pecados. Os pensamentos que abraçam o mal são em número de oito: o pensamento da gula, o da prostituição, o do amor ao dinheiro, o da cólera, o da tristeza, o da acídia, o da vanglória e o do orgulho. Que estes oito pensamentos nos perturbem ou não faz parte de coisas que não dependem de nós. Mas que eles permaneçam ou não em nós, que eles suscitem ou não as paixões, faz parte daquilo que está em nosso poder. Uma coisa é a sugestão, outra é a concordância. Uma coisa é a luta, outra coisa é a paixão e o consentimento que leva ao ato. Da mesma forma, uma coisa é o cumprimento e outra o cativeiro. A sugestão é simplesmente aquilo que nos é proposto pelo inimigo, como por exemplo: “faça isto, faça aquilo”, como o que foi sugerido ao Senhor nosso Deus: “Diga àquelas pedras que se transformem em pães[4]”. Isto, como dissemos, não depende de nós. A concordância é o acolhimento do pensamento que o inimigo nos sugeriu por exemplo, nos ocuparmos e nos entretermos com ele no prazer, malgrado nossa vontade. A paixão é o hábito da concordância, hábito que nos vem da má sugestão do inimigo e que é como que uma prática e uma imaginação contínuas. A luta é a resistência do pensamento para afastar de si a sugestão, o pensamento passional, ou para consentir nele, como diz o Apóstolo: “A carne deseja contra o espírito, e o espírito deseja contra a carne. Eles se opõem mutuamente[5]”. O cativeiro é o desenraizamento violento e involuntário do coração tiranizado pela presunção e o mau hábito. O consentimento é o assentimento a paixão do pensamento. O cumprimento é o próprio ato do pensamento passional ao qual se consentiu.

 

Portanto, quem considera com impassibilidade o primeiro vício, ou seja, a sugestão, ou que a repele imediatamente pela contestação e a violência, de um só golpe afasta todos os demais vícios. Mas para suprimir os oito pensamentos é preciso agir como segue. A gula é suprimida pela temperança. A prostituição é suprimida pelo desejo de Deus e a tensão em direção aos bens do século futuro. O amor ao dinheiro é suprimido pela compaixão para com os pobres. A cólera é suprimida pelo amor a todos e pela bondade. A tristeza que o mundo traz é suprimida pela alegria espiritual. A acídia é suprimida pela paciência, a perseverança e a ação de graças dirigida a Deus. A vanglória é suprimida pelo exercício oculto das virtudes e pela prece contínua na contrição do coração. O orgulho é suprimido evitando julgar e desprezar as pessoas como o Fariseu presunçoso[6], mas, ao contrário, considerando a si mesmo como o último de todos. É assim que intelecto, liberto das paixões que mencionamos e elevado até Deus, leva daí para frente uma existência bem-aventurada e recebe a garantia do Espírito Santo[7]. Depois de haver abandonado pela impassibilidade e pelo verdadeiro conhecimento as coisas daqui, ele se dirige à luz da Santa Trindade, iluminado com os anjos divinos nos séculos infinitos.

 

A alma é tríplice, como já dissemos, e suas três partes são a razão, o ardor e o desejo. Se no ardor existir a caridade e o amor pelos homens, e se existir no desejo pureza e castidade, a razão será iluminada. Mas se no ardor houver aversão aos homens, e se no desejo houver deboche, a razão será entenebrecida. Portanto, a razão é sã, sábia e luminosa quando as paixões lhe são submetidas, quando ela contempla pelo Espírito as razões das criaturas de Deus e quando ela se eleva até a bem-aventurada e santa Trindade. O ardor, por sua vez, se desenvolve de acordo com a natureza quando ele ama a todos os homens, não é afligido por nenhum e não sente ressentimento por ninguém. Quanto ao desejo, ele é conforme à natureza quando, pela humildade, a temperança e a despossessão, leva as paixões à morte, vale dizer, os prazeres da carne e a busca do dinheiro e da glória passageira, e quando ele se volta para o fervor do amor imortal a Deus. Com efeito, o desejo se volta para três direções: para o prazer da carne, para a glória efêmera ou para a aquisição da riqueza. Nesta busca desprovida de razão, ele despreza a Deus e a seus mandamentos, esquece-se da nobreza de sua origem divina, torna-se como uma besta selvagem para o próximo, obscurece a razão e não lhe permite enxergar a verdade. Mas aquele cujo sentimento é mais alto do que estas coisas recebe daí em diante o Reino dos céus, como dissemos, e leva uma vida bem-aventurada, no aguardo da beatitude reservada aos que amam a Deus. Possamos nós também ser considerados dignos disto, pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.

 

Também é preciso saber que não é possível alcançar a dimensão de uma tal virtude se não se buscar acima de tudo, por toda a vida e tanto quanto se puder, trabalhar para se obtê-la por meio de uma ativa solicitude: por exemplo, pela compaixão, ou pela temperança, a prece, a caridade ou alguma outra das virtudes gerais. É com efeito a partir destas que cada qual  obtém parcialmente a virtude. Por exemplo, alguém exerce a compaixão em certos momentos, mas raramente; não diremos então que ele seja compassivo, mormente se o gesto não for feito como se deve e para agradar a Deus. Pois o bem não é bom quando não é feito corretamente. O bem é verdadeiro quando ele não recebe como se fosse seu direito um salário por isto ou por aquilo, quando ele não busca agradar aos homens e não tenta receber a glória através do renome, da violência, da cupidez ou da injustiça. Pois aquilo que Deus busca não são os bens que se faz ou que parece serem feitos, mas o objetivo pelo qual são feitos. Os Padres teóforos expressam-se assim: quando o intelecto esquece o objetivo da piedade a obra manifesta da virtude é em vão. Os gestos cumpridos sem objetivo ou  discernimento não apenas de nada servem como ainda são prejudiciais, ainda que sejam bens. Inversamente, gestos aparentemente marcados pelo mal podem  ser feito segundo Deus, tendo em vista a piedade, como o gesto daquele que penetra num lugar suspeito e liberta a prostituta de sua perdição. Donde fica claro que não é compassivo aquele que raramente manifesta a compaixão, nem temperante o que, da mesma forma, pratica pouco a temperança. Virtuoso é quem, longamente e durante toda sua vida, busca em tudo e por tudo a virtude, com um discernimento seguro.

 

Pois o discernimento é a maior de todas as virtudes: ele é a rainha das virtudes, a virtude das virtudes.

 

Assim, igualmente, em sentido inverso, não chamamos de prostituído, bêbado ou mentiroso àquele que caiu uma vez nestes vícios, mas ao que neles reincide frequentemente e de modo incorrigível.

 

Além do que dissemos, é preciso saber também o que é mais necessário para todos os que desejam praticar a virtude e que se esforçam por se afastar do vício: na mesma medida em que a alma é incomparavelmente melhor do que o corpo, supera-o e é mais preciosa do que ele em muitas coisas e nas melhores coisas, também as virtudes da alma, em especial as que imitam a Deus e que levam o nome de Deus, são melhores do que as virtudes do corpo. Contrariamente, devemos considerar que os vícios da alma superam as paixões do corpo pelo modo como se cumprem e pelos castigos que sofrem, mesmo que isto escape a muitos, não sei como. Aqueles que se guardam da embriaguez, da prostituição, do adultério, do roubo e dos vícios correlatos, fogem deles e os afastam, tendo-os como execráveis, visivelmente, a maior parte do tempo. Mas as paixões da alma, que são bem piores e mais graves do que os vícios do corpo, e que reduzem ao estado de demônios e conduzem ao castigo eterno merecido os que se submetem a eles irremediavelmente, não são percebidas. Falo da inveja, do ressentimento, da malignidade, da insensibilidade, e da raiz de todos os vícios segundo o Apóstolo: o amor pelo dinheiro[8], assim como das paixões similares.

 

Expusemos todas essas coisas de maneira elementar, como se fôssemos ignorantes, redigindo de maneira clara e fácil de compreender este discurso sobre as virtudes e as paixões, a fim de que se possa discernir e distinguir, com clareza e minúcia, aquilo que as separa e faz sua diferença. É por isso que expusemos cada coisa em sua diversidade e suas variações, a fim de que, na medida do possível, não fique ignorada nenhuma idéia de virtude ou de vício, e para que pratiquemos de bom coração as primeiras, em especial das virtudes da alma por meio das quais nos aproximamos de Deus, e escapemos aos últimos – falo dos vícios – afastando-os por completo. É de fato bem-aventurado quem se esforça por descobrir a virtude, que a busca e procura com cuidado saber no que ela consiste, pois por intermédio dela ele se aproxima de Deus e permanece com ele em seu intelecto. Elevar-se pela virtude ativa à contemplação do Criador é o que se chama propriamente prudência e coragem, sabedoria, conhecimento verdadeiro e riqueza indefectível. A virtude tem este nome porque ela é escolhida[9]. Ela é escolhida e desejada, porque fazemos o bem escolhendo-o e desejando-o por nós mesmos, não de maneira involuntária e forçada. E o que chamamos de sabedoria consiste em ter no intelecto aquilo que é útil.

 

Se você quiser, acrescentaremos a este discurso elementar, como um selo de ouro, algumas palavras sobre a mais preciosa de todas as criaturas de Deus, aquela que é sua imagem e semelhança: o ser vivo, dotado de intelecto e de razão, o homem, único dentre todas as criaturas feito à imagem e semelhança de Deus[10]. Todo homem é chamado de “imagem”, de acordo com a dignidade do intelecto e da alma, vale dizer, o incompreensível, o invisível, o imortal, o livre arbítrio, mas também aquilo que é original, que engendra, que edifica. E ele é chamado de “semelhança”, segundo a razão da virtude e segundo os atos que levam o nome de Deus e que imitam a Deus, ou seja, segundo nosso comportamento benevolente para com nosso semelhante: ter compaixão e piedade por nosso companheiro de serviço, amá-lo, dar provas de toda misericórdia e caridade para com ele. “Sejam compassivos, disse Cristo nosso Deus, como vosso Pai celeste é compassivo[11]”. Todo homem traz em si a criação à imagem, pois os dons de Deus são irrevogáveis[12]. Mas são raros os que carregam em si a criação à semelhança: somente os virtuosos, os santos, aqueles que imitam a bondade de Deus, na medida m que isto é possível aos homens.

 

Também nós possamos ser dignos de seu amor pelo homem, que ultrapassa toda bondade, agradando-o com boas obras e tornando-nos imitadores dos que agradaram a Cristo desde o início dos tempos. Pois a ele pertence a piedade, e dele é toda a glória, a honra e a adoração, assim como de se Pai, que não teve começo, e do Espírito Santo, bom e vivificante, agora e para sempre, pelos séculos dos séculos. Amém.



[1]    Cf. I Coríntios XIII, 13.
[2]    Cf. I Timóteo VI, 10.
[3]    Marcos o Asceta – Carta ao monge Nicolas
[4]    Mateus IV, 3.
[5]    Gálatas V, 17.
[6]    Cf. Lucas XVIII, 11-12.
[7]    Cf. II Coríntios I, 22.
[8]    Cf. I Timóteo VI, 10.
[9]    Jogo de palavras intraduzível entre aretè (virtude) e airetè (escolhido)
[10]  Cf. Gênesis I, 26.
[11]  Lucas VI, 36.
[12]  Romanos XI, 29.

sábado, 1 de junho de 2013

Filocalia Tomo II Volume 1 - Pedro Damasceno: Livro Primeiro

PEDRO DAMASCENO



LIVRO PRIMEIRO

Pedro Damasceno


Nosso bem-aventurado Padre Pedro, que foi bispo de Damasco, viveu sob o reino de Constantino Coprônimo, ao redor do ano 770. Primeiramente ele levou sua vida na solidão e na anacorese, e numa pobreza tal que ele não possuía sequer um livro, como ele mesmo diz, recebendo de outros monges os livros do Antigo e do Novo Testamentos, dos doutores da Igreja e dos Padres népticos e teóforos. Ele se dedicou de tal maneira às penas da ascese que, estudando dia e noite a Lei do Senhor, irrigado pelos próprios rios da vida, ele foi em verdade, como diz o Salmo, uma árvore que se elevou até os céus, plantada às margens das águas do Espírito, da qual se diz que produz um único fruto quando chega o tempo.

Mas não é o que acontece com ele. Todo o tempo, continuamente e regularmente em flor, ele produziu frutos espirituais, belos de se ver, doces ao paladar, bons de sentir, nutrindo todos os sentidos do corpo e da alma, a mesma doçura do perfume de imortalidade que exalam. Em sua vida ele produziu os grandes e numerosos frutos amadurecidos nas penas de sua ascese, e maiores e mais numerosos ainda com sua morte, quando recebeu a coroa do martírio (pois, por haver denunciado a heresia dos árabes e dos maniqueus, Walid, o filho de Isim e príncipe dos árabes o exilou na Arábia, depois de cortar-lhe a língua. Foi lá que ele morreu.). E depois de sua morte ele continua a dar frutos em abundância, cada vez mais numerosos e maiores. Ele nos deixou, como uma herança paterna inalienável, este livro belíssimo e transbordante de virtudes, que redigiu com cuidado e com graça indescritível: busca comum de todas as virtudes para bem da alma, tesouro das contemplações, comunhão dos carismas do Espírito, montanha sagrada de beatitudes, cadinho das ações do corpo, finíssima análise das paixões, cornucópia da ascese, lugar de conhecimento e de sabedoria divina, numa palavra, recapitulação da santa nepsis, sobriedade e vigilância.

Sabendo nós de nosso parentesco com o presente livro, e o quanto ele contribui para conduzir a um fim que também é o nosso, acreditamos ser possível adaptá-lo àquilo que nos é mais necessário. Alguém poderá dizer em tom de brincadeira: adaptar um círculo a um círculo, uma grande filocalia a outra maior, uma mais vasta a uma mais concentrada. Pois não nos pareceu correto separar do coração divino dos santos népticos este livro que é uma massa de tantos frutos espirituais, truncar assim a obra, que exige necessariamente o concerto das vozes, e finalmente privar os irmãos de tal bem. Pois o bem é tanto maior quanto mais benefícios traz. Assim, se alguém, em seu desejo, aspira a tomar as asas de pomba que um dia Davi procurou sem achar, que se dê ao trabalho de abrir este livro. Pois nele encontrará maravilhado toda a prata da ação e todo o ouro da contemplação. E por meio dos dois, erguido acima de todo o terrestre, ele voará para as alturas azuis e habitará nos ninhos do alto, como uma pomba, e repousará na beatitude celeste.



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Nicodemo o Hagiorita identifica Pedro Damasceno a Pedro, bispo de Damasco em 775, morto mártir na Arábia e citado no Sinaxário bizantino em 9 de Fevereiro. Mas esta identificação é contradita pelas datações de dois antigos manuscritos de nosso autor[1], que o situam, um no século XII e outro no século XI. É preciso acrescentar aqui duas observações: de uma parte, Pedro Damasceno menciona Simeão Metafrastes, que viveu na segunda metade do século X; de outra, ele próprio não foi influenciado pela obra decisiva de Simeão o Novo Teólogo (940-1022), cujo nome e influência ignora.

Talvez então convenha, como propõe o Padre Staniloae, situar Pedro Damasceno no século XI, depois de Simeão Metrafastes, mas antes que irradiassem por todo o Oriente o testemunho e o exemplo de Simeão o Novo Teólogo. Problema menor, a bem dizer, na medida em que a Filocalia, assim como a Sagrada Escritura, mais do que um registro documental de uma história datada, constituem na transmissão de um sentido último.

Pedro Damasceno é assim um desses homens-chave dos quais nada sabemos, e que define a si mesmo como uma ninguém. Monge no sentido estrito: um homem só, enfurnado no buraco negro da nada da criatura. Mas homem apenas diante de Deus, que acumulou conhecimento por toda sua vida e que aqui nos dá seu mel, talvez um pouco misturado com cera, mas sempre perfumado de uma feliz eternidade.

A obra é a imagem do homem: singular e comum. Nem fonte, nem rio, antes lago no qual as leituras (sobretudo a Bíblia, João Clímaco, Isaac o Sírio, João Crisóstomo e Gregório o Teólogo), o testemunho da Liturgia bizantina e a experiência da vida monástica vêm embalar as águas. A vida hesiquiasta é aqui menos voltada para seu objetivo do que desenvolvida nas condições de sua manutenção. A escrita não é a espiral rápida que faz cair todo pensamento ante a prece do coração. Ela é larga, aberta, oferecida. Pedro Damasceno ama se estender: ele tem gosto pelas vastas meditações, pelas longas enumerações, pelas séries, as escalas vivas. Aparentemente estamos longe dos rigorosos apotegmas dos Padres do deserto e bem aquém do testemunho extremo e do refinamento de Simeão o Novo Teólogo e dos hesiquiastas dos séculos XIII e XIV. Mas apenas em aparência. Pois entre a ascese do tempo e a graça da eternidade acontece o mesmo combate espiritual. Na articulação entre o primeiro e o segundo milênio Pedro Damasceno medita sobre a aquisição da esperança evangélica e, sem dizê-lo (pois com toda evidência ele não teve a experiência da visão de Deus, e mesmo evita buscá-la), expõe as condições desta visão dada aos corações puros: antes de tudo e no fundo de tudo (“sob a criação”, diz ele) a mais profunda humildade, e acima de tudo a graça do mais alto discernimento.

Tal como nos foi transmitida na Antologia de Nicodemo, a obra é dividida em dois livros. O primeiro, precedido de um longo exórdio, é uma soma de meditações, dadas conforme vêm, sobre as modalidades da ascese, o sentido das beatitudes, as “contemplações espirituais”, as virtudes. O segundo livro, que evidentemente prolonga e confirma o primeiro, é mais estruturado. Ele se apresenta como uma série de vinte e quatro meditações (segundo as letras do alfabeto grego), todas terminadas por uma doxologia. Estas vinte e quatro meditações (logoi ou “discursos”, à maneira de Isaac o Sírio) retomam uma após outra o encaminhamento das virtudes.

Mas é preciso buscar o coração da obra na exposição das oito “contemplações” ou “gnoses” apresentadas no primeiro livro. Pedro Damasceno nos representa aí seu modelo – o próprio modelo – da vida espiritual: um duplo movimento de descida e ascensão. Primeiro a descida: as meditações do mal, do pecado, da morte. Depois, no mais baixo grau da descida, no próprio coração da história, a lembrança da vida de Cristo e dos santos. Enfim a subida, pela experiência da natureza e da contemplação do mundo criado, até a inteligência dos anjos e o conhecimento de Deus, que é a teologia. Duas coisas neste modelo são capitais:

1) a descida se faz pela oração, e nosso Padre dá o exemplo: as três primeiras “contemplações” (sobre o mal, o pecado e a morte) não passam de longas preces, com muitas palavras emprestadas tais e quais da Liturgia bizantina; e

2) na lembrança de Cristo, a subida se faz do agora até o cosmos: o criado, o cósmico, não são apropriados pelo homem nem suprimidos do campo divino, mas colocados no seu verdadeiro lugar, entre o Filho e o Pai, no próprio sopro do Espírito Santo, e são o lugar de nosso combate e de nosso maravilhamento. Assim, o conhecimento do mundo não se perde no vazio: ele remete a Deus. E a lembrança de Cristo não se fecha sobre nós mesmos: ela envia ao Pai. A lição hoje é de grande importância. Onde a inteligência do mundo se volta cada dia mais para a descida ao inferno, a Filocalia coloca a contemplação do criado, e de nossa “encarnação litúrgica” (o que Pedro Damasceno chama de “sete ações do corpo”) ela faz o caminho real de outro conhecimento que permite às nossas vidas bater às portas da eternidade, grávidos de Deus. É o prêmio de uma bela leitura.

Pedro Damasceno foi muito lido no Oriente, inclusive na Rússia, onde uma edição de sua obra o tornou conhecido no século XIX, malgrado sua exclusão parcial da Filocalia eslavônica de Païssy Velitchkovsky e sua total ausência da Filocalia russa de Teófano o Recluso. Mas ele não fez escola em seu tempo, como Simeão o Novo Teólogo ou Gregório o Sinaíta. No entanto ele soube transformar a seiva das raízes num dos mais belos frutos da árvore. Deixando de lado alguns abismos – como as inenarráveis enumerações dos vícios e das virtudes no final do primeiro capítulo (que não são feitas para serem lidas, mas para serem vistas como abismos do bem e do mal no qual mergulham nossas vidas) – a linguagem é delicada, os pensamentos são profundos, embora sempre simples e diretamente compreensíveis. Esta obra devotada aos extremos é assim, pela amplitude de sua visão e pela sua beleza formal, um modelo de bom senso e equilíbrio.


DE NOSSO SANTO PADRE TEÓFORO PEDRO DAMASCENO


EXÓRDIO


Infeliz que recebi de Deus tantas graças e jamais fiz algo de bom, temo que a inércia e a negligência me façam esquecer tais dons, as benesses de Deus e minhas próprias faltas, e que eu nem sequer esteja mais aberto ao meu Benfeitor nem seja mais reconhecido a ele. Assim, para provar minha pobre alma, eu escrevi esta memória e transcrevi expressamente os escritos dos santos Padres – as vidas e as sentenças – que pude encontrar, a fim de tê-los para me lembrar de suas palavras, ainda que parcialmente.

Eu não possuo nenhum livro, jamais possuí, mas, como tudo o que contribui para as necessidades do corpo, recebi os textos de fiéis que amam a Cristo, li-os atentamente e os devolvi. Assim eu li os antigos e os novos, o Antigo Testamento, o Saltério, os quatro Livros dos Reis, os seis livros da Sabedoria, os Profetas, os Paralipômenos, os Atos dos Apóstolos, os santos Evangelhos e as interpretações de todos esses. Li também todos os escritos e os ensinamentos dos Padres e dos grandes Doutores: Denis, Atanásio, Basílio, Gregório o Teólogo, João Crisóstomo, Gregório de Nice, Antônio, Arsênio, Macário, Nilo, Efrém, Isaac, Marcos, João Damasceno, João Clímaco, Máximo, Doroteu, Filemon, as Vidas e as sentenças de todos os santos.

Pude assim, em minha indignidade, examinar todos os livros com toda a liberdade e a atenção necessárias, e buscar o princípio da salvação e da perdição do homem, ver se tudo o que decidimos empreender, ou o que nos dedicamos a fazer, salva ou não, e que coisa é esta que todos procuram, e como os antigos e os novos pediram a Deus, na riqueza e na pobreza, em meio à multidão dos pecadores e no deserto, no casamento e na virgindade, numa palavra, como, em todo lugar e em todo gesto, encontramos a vida e a morte, a salvação e a perdição, enfim como, entre nós os monges descobrimos também diferentes estados, refiro-me à submissão de corpo e de alma a um pai, a hesíquia que purifica a alma, e ainda o conselho espiritual em lugar da submissão, os encargos de abade e os encargos episcopais.

Em todas as situações encontramos quem se salva e quem se perde. E não era apenas disto que eu me admirava, mas também como no céu o antigo anjo em sua natureza imaterial, dotado de sabedoria e de toda virtude, se tornou subitamente um diabo, cheio de trevas e ignorância, princípio e fim de todo vício e de toda malícia. Depois, como Adão, que havia recebido tamanha honra, que desfrutava dos bens, que vivia na intimidade Deus, adornado de sabedoria e virtude, sozinho com Eva no Paraíso[2], foi subitamente banido, exposto ao sofrimento e à morte, condenado ao trabalho, às penas, à fadiga, ao suor e a uma grande aflição[3. E como, sendo dele nascidos Caim e Abel, únicos irmãos sobre toda a terra, pode a inveja se interpor causando a morte, a maldição e o terror[4]. Como, em seguida, pela multitude de faltas de seus filhos, sobreveio o dilúvio[5. E ainda como, em seu amor pelo homem, Deus os salvou na arca, mas um deles se tornou maldito, Canaã filho de Cam, que havia pecado[6], pois para não abolir a bênção de Deus o justo Noé maldisse o filho em lugar do pai.

Como vieram depois disto os construtores da torre, os Sodomitas, os Israelitas, Salomão, os Ninivitas, Giezi, Judas[7]- todos os que receberam bens e se voltaram para a malícia. Como o Deus bom, que está além de toda bondade, aceitou, em sua imensa compaixão, que venham ao mundo tantas tentações e tão diversos tormentos. Ele quis conceder uns para que fossem como penas do arrependimento, vale dizer, a fome, a sede, o luto, a privação do necessário, a abstenção dos prazeres, o esgotamento do corpo pela ascese, as vigílias, as fadigas, as penas, a abundância e a amargura das lágrimas, os gemidos, o temor da morte, as peças de acusação, a sentença, a permanência no inferno com os demônios, o dia terrível do Juízo, a vergonha que recai sobre toda a criação, o terror, a amarga condenação dos atos, das palavras e dos pensamentos, a ameaça, a cólera, a diversidade e a eternidade dos tormentos, a inútil dó e as lágrimas contínuas, as trevas sem luz, o temor, o sofrimento, a queda, a tristeza, a angústia, o sufocamento da alma no século presente e no futuro; depois os perigos no mundo, os naufrágios, todas as enfermidades possíveis, os relâmpagos, o trovão, a geada, os tremores de terra, as fomes, as inundações, as mortes prematuras, todas as infelicidades que nos acontecem sem que queiramos, e que Deus concede.

Mas existem males que Deus não quer, e que provêm de nós e dos demônios, como os combates, as paixões, as múltiplas formas do pecado, cujos nomes foram revelados à passagem da palavra, depois a demência até o desespero e a total perdição, a agressão dos demônios, as guerras, a tirania das paixões, os constrangimentos, as perturbações, as revoluções da vida, as cóleras, as calúnias, todos os sofrimentos que nos auto-infligimos voluntariamente e que infligimos aos demais, e que Deus não quer. E ainda, em meio a tantos males, nenhum pode impedir que muitos tenham sido salvos. Mas muitos também se perderam sem que Deus o quisesse.

Todas estas coisas das divinas Escrituras e muitas outras, eu tive dificuldade em compreender. A alma quebrantada, escoando como água[8], fui muitas vezes reduzido à impotência. E ainda seria preciso que eu sentisse aquilo de que falo, pois se o sentisse, já não poderia permanecer nesta vida cheia de malícia e desobediência a Deus, que engendra todos os males presentes e futuros.

Mas a graça respondeu ao desejo de minhas perguntas, e entre os Padres encontrei o discernimento.

O princípio de todo bem é o conhecimento natural que nos é dado pelo próprio Deus, ou pelas Escrituras por intermédio de um homem, ou por meio de um anjo; ou ainda pelo que nos é dado no batismo divino para guarda da alma de cada fiel, a que chamamos também de consciência, a lembrança dos divinos mandamentos de Cristo. É por meio deles, para quem os observa, que o batizado guarda a graça do Espírito Santo. Depois do conhecimento vem, com efeito, a livre decisão do homem. Aí se encontra o princípio da salvação: o homem abandona suas vontades e seus próprios pensamentos e cumpre as vontades e os pensamentos de Deus. E se ele conseguisse cumpri-los, não se encontraria em toda a criação nada, nenhum gesto, nenhum lugar capaz de impedir aquilo que Deus quer que seja desde o princípio: um ser à sua imagem e semelhança[9], um Deus por adoção, segundo a graça, impassível, justo, bom e sábio, seja ele rico ou pobre, vivendo a virgindade ou o casamento, quer tenha o poder e a liberdade, quer seja escravo e cativo, numa palavra, em todos os tempos, todos os lugares e todas as coisas. É por isso que encontramos tantos justos antes da lei como sob a lei, ou na ordem da graça. Pois todos preferiram o conhecimento de Deus e de sua vontade aos seus próprios pensamentos e quereres. Reciprocamente vemos que nas mesmas épocas, engajados nos mesmos gestos, muitos se perderam: pois eles preferiram seus próprios pensamentos e seus próprios quereres aos de Deus.

Assim são as coisas. Os lugares e as buscas são diferentes. E devemos poder discernir, seja pela humildade dada por Deus, seja interrogando aqueles que possuem o carisma do discernimento. Pois sem o discernimento nenhuma das coisas que nos acontecem é boa, mesmo que a julguemos assim em nossa ignorância. Mas quando aprendemos com o discernimento aquilo que devemos fazer com seu próprio poder, a coisa começa a agradar a Deus.

Entretanto, dissemos, devemos em tudo renunciar às nossas próprias vontades a fim de atingir o objetivo divino, onde quer Deus que cheguemos em nossa busca. Caso contrário, não temos como ser salvos. Pois, depois da transgressão de Adão, todos nós, os passionais, fomos acostumados às paixões, já não queremos o bem com alegria, não buscamos o conhecimento de Deus nem o fazemos por amor, como os impassíveis. Antes amamos as paixões e a malícia, não desejamos fundamentalmente o bem senão por necessidade, por medo dos castigos. Só o querem aqueles que, com uma fé segura e uma boa disposição, receberam a palavra. Quanto a nós outros, não é o que queremos. Sem considerar as aflições da vida e os castigos por vir, estamos de toda nossa alma submetidos às paixões. Alguns sequer sentem sua amargura. Eles buscam por necessidade, e contra sua vontade, as penas e as virtudes. Em nossa ignorância, desejamos aquilo que é digno de aversão. Pois assim como os doentes se servem das ablações e das cauterizações para recuperar a saúde perdida, também nós nos servimos das tentações, das penas do arrependimento, do temor da morte e dos castigos para restabelecer a saúde original de nossa alma e rejeitar a doença provocada por nossa própria loucura. Daí para frente, quanto mais o médico de nossas almas nos prescrever penas, quer as queiramos quer não, mais graças devemos lhe dar por seu amor pelos homens, e mais devemos recebê-las com alegria. Com efeito, é para nosso bem que ele multiplica as coisas dolorosas de que precisamos para nos conduzirmos voluntariamente ao arrependimento, ou, malgrado nossa vontade, cairmos nas tentações e nos tormentos, a fim de que aqueles que por si mesmos queiram viver em meio às aflições sejam libertos das enfermidades e dos castigos futuros e até mesmo dos presentes, e que os que estejam na ignorância sejam curados pela graça do médico, mesmo que por meio dos tormentos e da multiplicidade das tentações. Mas os que amam a doença e permanecem com ela atraem sobre si mesmos os castigos eternos. Eles se parecem aos demônios e com eles receberão o que lhes é devido, os castigos eternos que estão preparados[10] para eles na medida em que escolheram ignorar o Benfeitor.

Pois nem todos acolhemos as benesses da mesma maneira. Se recebemos o fogo do Senhor[11] – sua palavra –, uns pelo trabalho se tornam macios como a cera em seu coração, mas outros, por inércia, se tornam mais endurecidos do que a argila e se tornam pedras. Do mesmo modo, se não a recebemos, a palavra não obriga ninguém. Ela é como o sol que envia seus raios e ilumina o mundo inteiro. Quem quiser vê-lo é por ele visto. Mas quem não quiser vê-lo não é obrigado a isso. Ninguém é provado da luz, senão por si mesmo, se não a quiser ver. Pois Deus fez o sol e o olho, e deu ao homem o poder de contemplar.

O mesmo acontece aqui. Deus envia sobre nós, como raios, a luz do conhecimento. Depois do conhecimento ele nos dá o olho da fé. Quem escolhe receber o conhecimento certo pela fé guarda sua memória pelas obras, e Deus lhe concede a partir daí a boa vontade, o conhecimento e a força. Naquele que o escolhe, o conhecimento natural dá nascimento à boa vontade; da boa vontade advém a força de agir. Pela ação se guarda a memória. E a memória produz logo a ação, de onde nasce mais conhecimento. Desta sabedoria do intelecto, como é chamado, nasce a temperança nas ações e a paciência nos infortúnios, de onde provêm a consagração a Deus e a experiência dos dons divinos e de nossas próprias faltas, donde a gratidão, o temor a Deus que conduz à observação dos mandamentos, vale dizer, o luto, a doçura, a humildade, de onde nasce o discernimento, do qual provém a clarividência, que nos faz prever nossas faltas futuras e nos afasta delas antes, graças à experiência e à memória que nos dá a pureza do intelecto das coisas do passado e das coisas presentes que nos sobrevêm de surpresa; Daí a esperança, daí a impassibilidade e o amor perfeito.

A partir daí este homem não quer absolutamente nada senão a vontade de Deus. Ele abandona esta vida passageira com alegria, por amor a Deus e ao próximo. Pois ele recebeu a sabedoria e a adoção, e o Espírito Santo habita nele. Ele é crucificado, enterrado, ressuscitado, elevado com Cristo a quem imita em seu intelecto, ainda que continue levando sua vida no mundo. Numa palavra, a graça faz dele um Deus por adoção. Ele recebe as garantias da beatitude do além, como diz Gregório o Teólogo[12]. Quanto aos oito pensamentos[13], ele se torna impassível, justo, bom e sábio. Ele tem a Deus em si, conforme o próprio Cristo o afirmou, e assim observa a ordem dos mandamentos[14], do primeiro ao último.

Mais adiante explicarei como deveremos trabalhar os mandamentos. Mas depois de termos falado a respeito do conhecimento das virtudes, devemos agora falar das paixões.

O conhecimento vem como o sol. Por incredulidade ou por preguiça o insensato fecha os olhos, ou seja, a resolução. A inércia, que provém da negligência, logo o faz esquecer o conhecimento. Da falta de sentido provém a negligência, daí a inércia, daí o esquecimento, do qual provém o egoísmo, que é o amor por nossas próprias vontades e nossos próprios pensamentos, o amor aos prazeres e o que se chama o amor pela vanglória. Daí o amor ao dinheiro, raiz de todos os males[15]. Daí vem o divertir-se com as coisas da vida. Daí a total ignorância dos dons de Deus e de nossas próprias faltas. A partir daí todas as demais paixões habitam em nós, os oito vícios fundamentais, ou seja, a gula, dela a prostituição, depois o amor ao dinheiro e a cólera quando não se deseja o que se quer ou quando se é impedido de realizar uma vontade. Da cólera provém a tristeza, da qual nasce a acídia, daí a vanglória, enfim o orgulho. Quem é devorado por estes vícios acaba no desespero, na perdição total, no banimento para longe de Deus, e termina por se assemelhar aos demônios, como eu disse.

O homem está, assim, no cruzamento de duas vias, a justiça e o pecado. Ele pode escolher o caminho que quiser e o seguirá. A partir daí, a via que o acolher e aqueles que ali o conduzirão, ou bem anjos e homens de Deus, ou bem demônios e homens maliciosas, o levarão até o fim, ainda que ele não queira. Os homens da bondade o levarão para Deus e o Reino dos céus. Os homens do pecado o levarão ao diabo e aos castigos eternos. A única causa de nossa perdição é sempre nossa própria vontade. Deus é o Deus da salvação. Junto com a existência ele nos concedeu existir no bem, nos concedeu o conhecimento e o poder, coisas que o homem não tem como obter fora da graça de Deus. Mesmo o diabo não tem nenhum poder para nos perder. Ele não tem resolução contrária, fraqueza, ignorância involuntária, nem seja lá o que for, por meio de quê ele possa forçar o homem. Ele não faz mais do que sugerir-lhe a lembrança do mal.

Aquele que trabalha pelo bem deve render graças a Deus que nos deu tudo desde a existência. Mas quem escolhe e faz o contrário, considere-se como o único responsável. Pois, como Deus o criou livre, ninguém pode atraí-lo pela força. Ele será digno dos louvores de Deus quando Deus o ver preferir o bem como toda a sua vontade, e não pela necessidade da natureza, como os seres irracionais e sem alma que participam do bem. Pois ele escolhe o bem como convém a um ser racional, e de acordo com a honra que recebe de Deus.

Ora, nós, voluntária e unanimemente, preferimos fazer o mal que o inventor da malícia nos ensinou. Mas o Deus imensamente bom não nos constrange, para que, forçados e indóceis, não incorramos numa grande condenação. Aquele que em todo bem nos concedeu a liberdade não nô-la tira. Mas quem quiser fazer o bem, que peça a Deus na oração, e logo receberá o conhecimento e o poder, a fim de que a graça de Deus lhe apareça justamente. Pois aquilo que ele recebeu pela oração ele também poderia receber sem ela. Mas assim como quem respira o ar para viver não retira disto nenhum mérito, por saber que sem ele não poderia viver, mas ao contrário deve render profundas graças Àquele que criou o ar e que lhe deu narinas para respirar e saúde para receber este ar e viver, também nós devemos agradecer a Deus por ter criado em sua graça a oração, o conhecimento, o poder e as virtudes, e a nós mesmos e tudo o que nos cerca.

Não apenas ele criou tudo o que existe como ele não cessa de mover tudo para vencer nossa malícia e nossos inimigos, os demônios. Pois o diabo perdeu o conhecimento de Deus. Sua arrogância e seu orgulho o colocaram na condição de ignorante. Ele não consegue saber por si próprio o que deve fazer, mas ele vê o que Deus faz para nos salvar. Em sua malícia ele se informa da obra divina e inventa meios de contra-atacar para nos levar à perdição, pois ele inveja a Deus. Não podendo enfrentá-lo ele nos combate, a nós que somos a imagem de Deus[16]. E se ele percebe que nos sujeitamos à sua vontade, ele pensa assim se vingar de Deus, como diz são João Crisóstomo. Vendo que Deus havia criado Eva para vir em auxílio de Adão[17], o diabo se serviu dela para que trabalhasse com ele pela desobediência e a transgressão. Deus dera uma ordem a Adão para que ele observasse e guardasse a lembrança de seus grandes dons, dando graças por eles a seu Benfeitor. Mas o diabo fez desta ordem uma fonte de desobediência[18] e de morte. Ele suscitou os falsos profetas em lugar dos profetas, os falsos apóstolos em lugar dos apóstolos, a iniquidade em lugar da lei, os vícios em lugar das virtudes, as transgressões em lugar dos mandamentos, as heresias impuras no lugar da justiça. Em seguida, vendo a Cristo descer com sua extrema bondade, como ele dissera, para os santos mártires e os padres bem-aventurados, e aparecer ele mesmo, ou através de seus anjos, ou por alguma outra inefável economia, o diabo se pôs também a manifestar em alguns diversas ilusões, para fazê-los perder-se.

É por isso que os Padres, que possuíam o discernimento, escreveram que não devemos receber essas manifestações, venham elas de imagens, de uma luz, de um fogo ou de qualquer outra ilusão. Pois o diabo é engenhoso em nos enganar, tanto durante o sono como no estado de vigília. Se recebemos a ilusão, ela permite ao intelecto, por presunção ou ignorância, representar para si próprio formas ou cores onde ele julga que lhe apareceram Deus ou um anjo. Acontece muitas vezes que, no sono ou no estado de vigília, ele nos mostra os demônios aparentemente vencidos. Mas no fundo isto não passa da engenhosidade do demônio para levar à perda aqueles que se deixam persuadir. E então se perde a esperança. É o que dizem os santos Padres: no momento da prece, devemos ter o intelecto livre de toda forma, sem luz, sem fogo, sem nada, seja lá o que for. Ao contrário, devemos com toda força enclausurar a reflexão apenas nas palavras ditas. Pois aquele que ora apenas com a boca, ora para o ar e não para Deus. Deus está atento ao intelecto, não à linguagem, como os homens. Foi dito: “Devemos adorar a Deus em espírito e em verdade[19]”. E: “Prefiro dizer cinco palavras com a minha inteligência, do que dez mil com a língua[20]”.

Mas então o diabo, colocando tudo isto em dúvida, nos leva ao desespero pelo pensamento de que os tempos eram outros e outros eram os homens nos quais Deus realizou as maravilhas que fundaram a lei, e que hoje já passou o tempo em que deveríamos nos carregar de pensa. Mas somos todos cristãos e todos carregamos o batismo. Foi dito que aquele que crê e for batizado será salvo[21]. Que mais precisamos? Ora, se nos deixamos persuadir, se permanecemos no estado em que nos encontramos, ficaremos vazios e só seremos cristãos no nome. Ignoramos que quem crê e é batizado deve observar todos os mandamentos de Cristo e dizer, quando tiver completado com sucesso: “Eu sou um servidor inútil[22]”, como o Senhor afirmou aos apóstolos quando lhes ensinou a observar “tudo o ou que eu lhes ordenei[23]”. Com efeito, todo batizado renuncia, quando diz: “Eu renuncio a Satanás e a todas as suas obras, e me uno a Cristo e a todas as suas obras”. Ora, onde está nossa renúncia, se não deixamos para trás todas as paixões e pecados que o diabo quer? Será realmente do fundo da alma que desprezamos o diabo e amamos a Cristo observando seus mandamentos? E como observar seus mandamentos se não renunciarmos a toda vontade própria e a todo pensamento: É preciso dizer, estas vontades e estes pensamentos se opõem às ordens de Deus.

Existem alguns que frequentemente, por hábito ou temperamento, amam o bem em certas coisas e odeiam o pior. Mas estes bons pensamentos, que as divinas Escrituras testemunham, devem ser submetidos ao discernimento daqueles que têm experiência. Pois sem discernimento, mesmo aquilo que cremos estar bem pode não ser bom. Agimos inoportunamente, ou contra o dever – vale dizer, indignamente – ou meditando no que nos é dito, mas sem nada saber daquilo. Pois se o que interroga e o que é interrogado não estão ambos atentos não apenas à Escritura, mas também à questão colocada, eles se afastam do sentido das palavras e não é possível superar o mal em pauta. Mesmo eu, quando interrogava ou era interrogado, fui muitas vezes testado. Eu compreendia corretamente o que era dito, mas ficava surpreso em constatar que, apesar de as palavras se corresponderem bem, seus respectivos sentidos se distanciavam completamente uns dos outros.

Devemos assim, em todas as coisas, discernir o que fazer para cumprirmos as vontades de Deus. Pois ele é o Criador do universo, e conhece exatamente nossa natureza. Ele próprio ordenou aquilo que é bom para nós, e nos deu as leis que não são estranhas à nossa natureza, mas que lhe são próprias, salvo talvez as virtudes que levam à perfeição os que querem por si sós se elevar a ele sobrenaturalmente, como a virgindade, a despossessão, a humildade, mas não o reconhecimento, que é uma virtude natural. A humildade é uma virtude sobrenatural. Pois o humilde procura todas as demais virtudes. Ele não deve nada, mas se considera devedor de todos e inferior a todos. Quem expressa seu reconhecimento é devedor e confessa que deve. O mesmo acontece com o compassivo: ele é compassivo com tudo o que tem. Mas nisto ele não ultrapassa a natureza, como aquele que se despoja de tudo. Aquele que se casa tampouco ultrapassa a natureza, como o que vive a virgindade. Este último carisma é sobrenatural. É por isso que será salvo o primeiro, que renunciou às suas próprias vontades e cumprir as de Deus; o outro, porém, receberá de Deus a coroa da paciência e da glória. Pois ele não apenas abandonou o que é proibido pelas leis, mas, no coração da lei e da própria natureza, com a ajuda de Deus, ele amou com toda sua alma o Senhor que está além de toda natureza e, na medida do possível, imitou sua impassibilidade. Mas nós, nós ignoramos a nós mesmos, ignoramos o que fazemos, ignoramos o objetivo de nossas obras e aquilo que todos buscam. É por isso que nos parece que as divinas Escrituras e as palavras dos santos não estão em acordo com os antigos, os Profetas e os Justos, nem como os novos, os santos Padres. Da mesma forma, aqueles que hoje querem ser salvos estão em desacordo uns com os outros, o que é impossível.

Possamos expor aqui em poucas palavras que, pela própria natureza das coisas, nada, nem o tempo, nem o lugar, nem a ação, pode ser obstáculo para o homem que quer ser salvo, com a condição de que ele não busque aquilo que quer fazer, mas que tenda com todo seu pensamento, com correção e discernimento, para o objetivo divino. Pois não existe aí necessidade no que acontece. Tudo provém daquele por intermédio de quem as coisas acontecem. Nós não pecamos malgrado nós; não pecamos se primeiro não concedemos por nós mesmos o assentimento ao pecado, e se não caímos cativos. É o próprio pensamento que leva o cativo a pecar apesar de si e contra sua vontade. Do mesmo modo as faltas cometidas por ignorância provêm do que se se faz com conhecimento de causa. Se não nos embriagamos de vinho nem de desejo, não o ignoramos. Mas uma vez que nos embriagamos, o intelecto começa primeiro a se entenebrecer, depois a tombar e enfim a morrer. Assim é que a morte não chega sem que se saiba. Mas a embriaguez, com nosso conhecimento, nos leva à morte pela ignorância. Poderíamos encontrar muitos exemplos disso, considerando como caímos onde não queremos por causa do que fazemos voluntariamente, e como caímos no que fazemos por causa da ignorância a partir do que fazemos conscientemente.

Mas para que as primeiras ações nos pareçam leves e doces, partimos para as segundas sem o querer e sem o saber. Pois, se desde o começo tivéssemos querido guardar os mandamentos e permanecer tal como éramos quando fomos batizados, não chegaríamos a estas coisas, nem tampouco precisaríamos dos trabalhos e das penas do arrependimento. Entretanto, uma vez mais, se quisermos, a segunda graça de Deus – o arrependimento – pode nos conduzir à antiga beleza. Mas se não o quisermos, seremos como os demônios, que não se arrependem; queiramos ou não, iremos com eles para o castigo eterno. Pois Deus não nos criou para nos lançar na cólera, mas para nos salvar[24], a fim de que desfrutemos de seus bens e sejamos plenos de ações de graça e de reconhecimento para com nosso Benfeitor. Mas nossa negligência em conhecer seus dons nos leva à irresponsabilidade; esta nos conduz ao esquecimento, e a ignorância passa a reinar sobre nós.

Quando queremos iniciar um retorno para o ponto onde caímos, precisamos encarar muitas penas. Porque não queremos abandonar nossas vontades, e pensamos poder satisfazê-las com Deus, o que é impossível. O próprio Senhor disse: “Eu não vim fazer a minha vontade, mas a do Pai que me enviou[25]”. Entretanto, não existe senão uma única vontade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, assim como só existe uma natureza indivisível. Mas ele disse isto por nós. Ele falava da vontade da carne. Com efeito, se a carne não é reabsorvida, se o homem inteiro não é conduzido pelo Espírito de Deus[26], ele não faz a vontade de Deus a menos que seja forçado a isto. Mas quando reina em nós a graça do Espírito, a coisa muda de figura, e tudo o que acontece passa a ser a vontade de Deus. É então que encontramos a paz, e podemos ser chamados de filhos de Deus[27]. Pois estes querem a vontade do Pai, assim como o Filho de Deus, que é ele também Deus.

Pois ninguém pode alcançar este estado se não observar os mandamentos que o separam de todo prazer, de toda vontade própria, de toda dor, e se não tiver a necessária paciência quando sofrer por causa dessas vontades. É da falta de sentido que provêm, dizem, o prazer e a dor. Pois o insensato é egoísta: ele não é capaz de amar nem a seus irmãos, nem a Deus. Ele não tem temperança nos prazeres, em seu desejo de fazer o que quer, e não tem nenhuma paciência na dor. Mas ele tanto infla de orgulho e prazer quando obtém suas vontades quanto desaba tiranizado pela dor e afunda na mesquinharia, sufocando sua alma, coisas que no fundo constituem a certeza da Geena.

Do conhecimento, ou seja, da sabedoria do intelecto, nascem a temperança e a paciência. Pois o homem sábio retém sua própria vontade e suporta o sofrimento que isto traz. Considerando a si mesmo como indigno da mansidão, ele se enche de reconhecimento pelo Benfeitor e lhe rende graças, temendo que por todos os bens que Deus lhe deu no século presente ele não seja provado no século futuro. Assim é que, por meio da temperança, ele trabalha as demais virtudes. Ele se considera devedor de todas elas. Ele não encontra nada com que retribuir ao Benfeitor. E ele pensa que mesmo as virtudes não fazem senão aumentar sua dívida, pois ele recebe sem ter o quê dar em troca. Ele não pede nada além de ser considerado digno de dar graças a Deus. Que Deus possa receber sua ação de graças, pensa ele, é o que o torna ainda mais devedor. Perseverando em sua ação de graças, ele faz sempre o que é bom, sempre devedor, humilhando-se abaixo de todos, regozijando-se em Deus que o cumula de bens, e ele exulta e treme[28], aproximando-se do infalível amor divino, e aceita com humildade tudo aquilo que sofre. Ele se acha merecedor deste sofrimento, como de tudo o que lhe acontece. Ele se regozija por lhe ser dado, por pouco que seja, afligir-se no século presente. Ele recebe até um alívio quando pensa nos numerosos tormentos que o esperam no século futuro. E, como ele reconhece em tudo sua própria fraqueza e não se orgulha de nada, porque lhe foi dado conhecer estas coisas e perseverar na graça de Deus, ele chega ao desejo divino.

Pois a humildade é filha do conhecimento, e este, filho das tentações. Àquele que conhece a si mesmo é dado o conhecimento de tudo. Quem se submete a Deus sujeita a si mesmo todos os cuidados da carne. Depois tudo lhe será submetido, quando a humildade reinar em seus membros. É o que dizem são Basílio e são Gregório[29]: quem vê a si próprio como um intermediário entre a grandeza e a baixeza, com sua alma intelectual e seu corpo mortal e terrestre não se orgulha nem se desespera jamais. Mas, honrando a natureza intelectual da alma, se afasta de tudo o que o desonra. Conhecendo sua própria fraqueza, foge de todo orgulho.

Assim, aquele que, por meio das numerosas tentações e das paixões da alma conhece sua própria fraqueza, sabe do poder infinito de Deus. Sabe que este liberta os humildes que clamam de todo coração nas penas da prece, e que esta se torna então uma delícia para ele. Ele sabe que, sem Deus, nada pode[30]. Em seu temor de cair, ele se esforça por se agarrar a Deus. Ele se maravilha ao pensar que Deus o salvou de tais tentações, de tantas paixões. Ele dá graças Àquele que o libertou e une à ação de graças a humildade e o amor. Ele não ousa julgar a ninguém, sabendo que do mesmo modo como Deus o ajudou ele pode ajudar a todos os seres quando quiser. É o que diz são Máximo[31]. Ele sabe também que podemos combater muitas paixões e vencê-las, se confessarmos nossa própria fraqueza. Pois então Deus virá mais depressa, para que sua alma não se perca totalmente. Mesmo que seu pensamento seja presa de outras paixões ainda mais numerosas, quem conhece sua própria fraqueza não tomba jamais. Mas é impossível chegar a este ponto sem que se tenha sofrido numerosas tentações do corpo e da alma e sem que se tenha aprendido pela experiência a se submeter pacientemente ao poder de Deus.

Este homem não ousará fazer nada por sua própria vontade, nem permanecer num pensamento sem interrogar os que têm experiência. Pois que via se deve seguir quando não se quer fazer ou pensar nada, para viver em seu corpo ou ser salvo em sua alma? Se não soubermos qual vontade ou qual pensamento abandonar, é melhor se abster e dominar toda ação e todo pensamento. Assim é possível experimentar o tipo de perturbação que eles trazem consigo. Pois eles são um mal que se torna prazer e impede a dor, e que é preciso desprezar antes que se torne inveterado e tenhamos trabalho em vencê-lo quando percebermos o prejuízo que nos causa. Digo isto de toda ação e todo pensamento sem os quais é impossível viver num corpo e agradar a Deus. Pois o hábito inveterado recebe a força da natureza; mas se não lhe dermos nada ele se esgota, e se perde pouco a pouco. Seja bom ou mau, o tempo o alimenta como a matéria alimenta o fogo. É por isso que devemos com toda força buscar o bem e praticá-lo, para que se torne um costume. O costume trabalha sozinho e sem esforço nas coisas ordinárias. É assim que os Padres venceram as grandes coisas por meio das pequenas.

Aquele que não liga para as necessidades básicas do corpo, mas as afasta para seguir o caminho estreito e doloroso[32], como poderá jamais amar as riquezas? Este amor às riquezas não consiste apenas em ter muito; ele pode provir também de algo pelo quê estamos apaixonados, contra seu uso próprio ou além deste uso. Dentre os antigos santos, muitos possuíam muito, como Abrahão[33], Jó[34] e Davi[35] dentre outros. Mas entre eles não existia nenhum desejo desmesurado: eles possuíam as coisas como vindas de Deus, e tentavam agradá-lo por meio delas.

Mas o Senhor que está acima de toda perfeição e que é a própria sabedoria cortou a raiz: ele deu por lei aos que o seguem não apenas não possuir dinheiro ou posses, a fim de imitar a extrema virtude, mas ainda desprezar a própria alma[36]<, ou seja, não possuir nem vontade nem pensamento próprio. Pois nenhum deles jamais fez a própria vontade. Uns submeteram seu corpo e não tinham outra fonte de pensamento que seu Pai espiritual, que era para eles como o próprio Cristo. Outros, nos desertos, fugiram irremediavelmente dos homens, tendo por mestres o próprio Deus, por quem, em sua resolução, suportariam até a morte. Outros seguiram o caminho real, vivendo na hesíquia, como se deve, com um ou dois irmãos[37] e se aconselhando mutuamente com toda bondade para agradar a Deus. Os que estavam sob a tutela de um Padre logo eram chamados a iniciar outros irmãos, e os conduziam à mesma submissão. Eles mantinham as tradições de seus Padres, e toda obra era bela.
 
Mas hoje, quer vivamos na submissão, quer estejamos em situação de comandar, não queremos abandonar nossas próprias vontades. Por isso não progredimos. Não resta mais, se é que ainda é possível, a fuga para longe dos homens e das coisas desta vida: seguir a via real, viver na hesíquia, com um ou dois irmãos e se dedicar noite e dia aos mandamentos de Cristo e à Escritura, a fim de que, experimentados em todas as coisas, pela consciência e a atenção, pela leitura e a oração, cheguemos ao primeiro mandamento, ao temor a Deus, que provém da fé e do estudo das divinas Escrituras, por meio dos quais se alcança o luto, depois os mandamentos de que fala o Apóstolo, a fé, a esperança e o amor[38]. Quem crê no Senhor teme o castigo. Quem teme o castigo observa os mandamentos. Quem observa os mandamentos suporta as aflições. Quem suporta as aflições coloca sua esperança em Deus. A esperança afasta o intelecto de toda tendência passional; afastada a paixão, ele colocará seu amor em Deus.

Se tivermos vontade de agir assim, seremos salvos. A hesíquia – que é o princípio da purificação da alma – prepara, sem esforço, para quem a escolhe, o caminho de todos os mandamentos. “Fuja, cale-se, viva na hesíquia, já foi dito; aí estão as raízes da impecabilidade”. E também: “Fuja dos homens e será salvo[39]”. Pois as relações humanas não permitem ao intelecto ver suas próprias faltas e as intrigas dos demônios, para que o home possa se proteger, e também não permite ver as benesses e a providência de Deus, que nos fazem adquirir o conhecimento divino e a humildade.

É por isso que aquele que pretende seguir a via curta para Cristo – a impassibilidade e o conhecimento – e atingir a alegria da perfeição, que não se dirija para a esquerda nem para a direita, mas siga diligentemente em sua conduta o caminho real. Com toda força, fuja dos excessos e das faltas. Pois tanto uns como outros suscitam o prazer. Que a abundância de alimentos e de relações não escureça seu intelecto, e que não se torne cego por causa dos divertimentos. Que o jejum prolongado e as vigílias tampouco perturbem sua reflexão. Mas que, trabalhando bem e com paciência as sete formas – ou seja, as sete ações do corpo – ele se eleve como numa escada. Que de uma vez por todas ele traga em si continuamente estas sete formas. Ele se dirigirá para a ação moral por meio da qual Deus concede as contemplações espirituais a quem crê, como disse o Senhor[40]. Pois toda Escritura é inspirada e nos auxilia[41].

Ninguém pode impedir aquele que quer ser salvo. E ninguém tem poder sobre nós, senão Deus que nos criou e que está pronto para socorrer e proteger de toda tentação aos que o chamam e querem fazer sua santa vontade. Sem ele, com efeito, ninguém pode fazer nada que preste[42]. Ninguém pode sofrer um mal indesejado, se Deus não o conceder para instruí-lo quando ele estiver em falta e para salvar sua alma. As más obras são nossas obras, nascidas de nossa negligência e da cumplicidade dos demônios. Todo conhecimento, toda virtude, toda força, assim como todas as demais energias, são graças de Deus. Pela graça ele nos permite ter o poder de nos tornarmos filhos de Deus[43], observando os mandamentos divinos. Estes mandamentos nos protegem grandemente e são graças de Deus. Pois sem sua graça não temos forças para observar os mandamentos, nem temos nada a lhe oferecer, senão termos em nós a fé, a resolução e simplesmente todos os dogmas retos recebidos na certeza da fé e do entendimento; sem sua graça não podemos começar o trabalho solidamente, como nos instruímos na escola, e não poderemos aprender assim com atenção pondo mãos à obra nas sete ações em causa, que apresentamos a seguir.



LIVRO PRIMEIRO



Declaração necessária e bela sobre as quatro virtudes do corpo.

A primeira é a hesíquia: uma conduta que não se deixa distrair, que afasta todos os cuidados do mundo[44], a fim de que, pelo afastamento dos homens e dos divertimentos, seja possível fugir daquele que, através das circunstâncias e dos cuidados desta vida, ronda como um leão rugindo que busca nos devorar[45]. A partir daí o monge não tem senão um pensamento: como agradar a Deus, como preparar a alma para que ela chegue à hora da morte sem ser condenada, como aprender com toda a atenção necessária as intrigas do demônio, o quanto suas faltas são mais numerosas do que a areia do mar e o quanto são ignoradas da maioria por serem mais finas que a penugem dos pássaros. Chorando sempre, ele se aflige pela natureza humana, mas em seu reconhecimento ele é consolado por Deus, ele é acalmado por chegar a ver aquilo que não esperava contemplar, ele que jamais saía de sua cela. Ele conhece sua própria fraqueza. Ele teme e espera o poder divino a fim de não tombar pela ignorância, por estar demasiado seguro de si mesmo, e para não desesperar caso alguma adversidade lhe acontecer, esquecendo-se do amor de Deus pelo homem.

A segunda ação é o jejum regrado: comer uma vez por dia, sem jamais se saciar. Não comer senão comidas simples, destas que encontramos sem distrair da vida e sem que a alma comece a procurar por outra. Aprender assim a vencer a gula, a glutoneria, a concupiscência e a não se deixar distrair. Mas aprender também a não descartar nenhum tipo de alimento rejeitando como um mal aquilo que foi criado por Deus, e a não comer tudo de uma vez, sem continência e pelo prazer. E alternar, comer para cada dia, com moderação, um tipo de comida, usar de tudo para a glória de Deus, não descartar nada como se fosse um mal, como o fazem os malditos hereges. Beber vinho quando for o tempo. Quando se é velho, quando se está doente, quando se tem frio, o vinho é útil, mas mesmo assim devemos beber pouco. Quando somos jovens, quando está quente, quando temos boa saúde, a água é melhor. Mas também aí, devemos fazer o possível para beber pouco. Pois a sede é a mais forte das ações do corpo.

A terceira é a vigília regrada: dormir a metade da noite e passar a outra metade salmodiando e rezando, gemendo e chorando, a fim de que, por meio do jejum e da vigília o corpo se torne dócil à alma, fique são e pronto para as boas obras[46], e para que a alma receba a coragem e a luz e possa ver e fazer o que convém.

A quarta é a salmodia, a prece corporal que passa pelos cantos dos salmos e as genuflexões, para que o corpo se esgote, para que a alma se humilhe, para que fujam os demônios nossos inimigos, para que nos assistam os anjos que combatem conosco, para que saibamos de onde nos vem o socorro e para que a ignorância não nos conduza ao orgulho nos levando a pensar que as obras são nossas. Caso contrário, seremos abandonados por Deus para que conheçamos nossa própria fraqueza.
 
A quinta é a prece espiritual que vem pelo intelecto e afasta todo pensamento. O intelecto se cala diante do que ela diz e se prosterna diante de Deus, inefavelmente quebrantado. Ele não busca senão fazer a vontade divina em todas as suas ações, em todas as suas meditações. Ele não recebe nenhum pensamento, nenhuma forma, nenhuma cor, nenhuma luz, nenhum fogo, nem nada semelhante. Ele se mantém sob o olhar de Deus e só com ele conversa. Ele permanece fora de toda imagem, toda cor, toda forma. Assim é a prece pura, que convém àquele que ainda é ativo. Quanto ao contemplativo, ele recebe coisas ainda maiores.

A sexta é a leitura das sentenças e das vidas dos Padres. Mas nada sobre doutrinas estrangeiras ou outras opiniões, em particular as heréticas. Assim o monge aprende das divinas Escrituras e do discernimento dos Padres como vencer as paixões e adquirir as virtudes. Ele preenche seu intelecto com as palavras do Espírito Santo. Ele esquece daquilo que pode ter impropriamente dito ou pensado um dia, e daqui que ouviu quando estava fora de sua cela. Dedicado à prece e à leitura, ele chega por meio delas a conceber pensamentos benfazejos. Pois a leitura na hesíquia auxilia a oração, e a prece pura auxilia a leitura, quando se está atento ao que é dito e quando não se lê ou canta superficialmente. Mas seu poder é impossível de ser compreendido corretamente quando se está entenebrecido pelas paixões. Muitas vezes nós nos iludimos por presunção, sobretudo os que pensam ter a sabedoria deste mundo e ignoram que oramos para obter um conhecimento ativo que nos permita compreender essas coisas, e que aquele que pretende aprender a conhecer a Deus não é auxiliado apenas por aquilo que entende. Pois uma coisa é o que entendemos, outra o que fazemos. Do mesmo modo como não nos tornamos experientes apenas por termos ouvido um ensinamento, do mesmo modo como não adquirimos sua arte apenas com o tempo, mas à força de fazer e ver, de erramos e sermos corrigidos pelos mais experimentados, de sermos pacientes e sufocarmos nossas vontades próprias, também o conhecimento espiritual não vem apenas do estudo, mas é uma graça de Deus dada aos humildes. É provável que quem lê as Escrituras conheça-as em parte. Não é de se espantar, sobretudo se for um ativo. Mas este homem não tem o conhecimento de Deus: ele apenas entende as palavras daqueles que têm o conhecimento. Dos que escreveram a Bíblia muitos tinham o conhecimento de Deus, como os Profetas. Mas ele ainda não o tem, assim como eu não o tenho. Eu extraí meu bem das divinas Escrituras, mas não me foi dado entender o Espírito: eu apenas aprendi daqueles a quem ele se deu a conhecer. Eu sou como um homem que ouviu falar de uma cidade ou de alguém da boca das pessoas que os tenham visto.

A sétima consiste em interrogar os que têm experiência a respeito de toda palavra e de toda ação, a fim de que cessando de pensar e de fazer por ignorância ou autossuficiência uma coisa pela outra, deixemos de nos enganar, como acontece com frequência, e de cair na presunção, imaginando conhecer quando nada sabemos, como diz o Apóstolo[47].

Além dessas ações do corpo, é preciso ter paciência em tudo o que nos acontece e que Deus concede para que aprendamos, experimentemos e conheçamos nossa própria fraqueza. O que quer que aconteça de bom ou de ruim, não devemos extrair disto nem segurança nem desespero. Mas devemos rejeitar todo sonho, toda palavra e obra vãs. E, em todo tempo, todo lugar, toda coisa, sempre meditar no nome de Deus mais profundamente do que respiramos. Prosternarmo-nos diante dele com toda nossa alma, reunir o intelecto longe de todos os pensamentos do mundo e não buscar senão uma coisa: que se faça a vontade de Deus. Então o intelecto começará a ver suas faltas como a areia do mar. Está aí a origem da iluminação da alma, este é o sinal de sua saúde. Simplesmente, a partir daí, a alma estará quebrantada, o coração humilhado[48], e ela se considerará em verdade abaixo de tudo e de todos. Ela começará a compreender as benesses de Deus, particulares e universais, que se encontram nas divinas Escrituras, e suas próprias faltas. Ela guardará também em sua consciência todos os mandamentos, desde o primeiro até o último. Pois o Senhor os dispôs como numa escada, e é impossível pular um para chegar ao seguinte. Como numa escada, devemos subir do primeiro para o segundo, deste ao terceiro, até que eles façam do homem um Deus pela graça Daquele que os deu àqueles que os assumem.


Que aquele que quer observar os mandamentos deve começar pelo temor a Deus, para não tombar no caos.

Se quisermos progredir, primeiro devemos mostrar ardor em viver os mandamentos. E que nada nos venha de fora, pois do contrário cairemos no abismo e mesmo no caos. Acontece com as beatitudes do Senhor o mesmo que acontece com os sete carismas do Espírito. Se não começarmos pelo temor, é impossível acessar dos demais. “O começo da sabedoria, diz Davi, é o temor ao Senhor[49]”. E outro Profeta, quando se refere a estas coisas, diz, inspirado do alto: “Espírito de sabedoria e de inteligência, Espírito de conselho e de força, Espírito de conhecimento e de piedade, Espírito de temor a Deus[50]”. O próprio Senhor fez seu ensinamento partir do temor, quando disse: “Bem-aventurados os pobres de espírito[51]”.

Devemos estar sempre dobrados sob o temor de Deus, a alma inefavelmente quebrantada. O Senhor fez deste mandamento o fundamento. Ele sabe que sem este mandamento, ainda que vivamos no céu, isto de nada serviria. Pois teríamos a loucura do orgulho, por cuja causa o diabo, Adão e tantos outros tombaram. É por isso que quem quiser observar o primeiro mandamento – este temor – deve estar profundamente atento aos eventos da vida de que falamos mais acima, e às benesses inumeráveis e insondáveis de Deus, às coisas que ele fez e faz conosco através do visível e do invisível, os mandamentos e os dogmas, as ameaças e as promessas, guardando, nutrindo, provendo, dando a vida, livrando dos inimigos visíveis e invisíveis, curando por meio das orações e da intercessão de seus santos as doenças suscitadas pela nossa desordem, sofrendo sempre com paciência por nossos pecados, nossas impiedades e nossas injustiças. Quantas coisas fizemos, fazemos e faremos, das quais sua graça nos liberta. Quanto o provocamos com nossas obras, nossas palavras, nossos pensamentos. Não apenas ele nos suporta, como também por si mesmo, por seus anjos, pelas Escrituras, pelos justos e os profetas, pelos apóstolos e mártires, pelos doutores e os santos Padres, ele nos cumula de grandes benesses.
 
Compreendendo os esforços de uns, os combates de outros, depois admirando a descida de nosso Senhor Jesus Cristo no meio de nós, sua vida no mundo, sua santa Paixão, a cruz, a morte, a sepultura, a Ressurreição, a Ascensão, a vinda do Espírito Santo, os milagres inefáveis que não cessam de acontecer a cada dia, o Paraíso, as coroas, a adoção que nos foi dada, tudo o que está contido nas divinas Escrituras, e considerando tantas outras coisas ainda, o monge se maravilha de compreender o amor que Deus tem pelos homens, ele treme, ele admira sua longanimidade, sua paciência para conosco, e ele se aflige pela perda sofrida por nossa natureza – falo da impassibilidade angélica, do paraíso, de todos os bens de que nos privou a queda – e, concebendo os males nos quais tombamos – falo dos demônios, das paixões e dos pecados – sua alma se aquebranta por sondar quantos males foram suscitados por nossa malícia e pela engenhosidade dos demônios.


Do segundo mandamento. Que o temor engendra o luto.

É assim que Deus nos deu o bem-aventurado luto, o segundo mandamento. Foi dito: “Bem-aventurados os aflitos[52]”, referindo-se àquele que chora por si e pelo próximo, por amor e compaixão. Ele chora como se fosse pelos mortos, antes mesmo da morte, diante do pensamento terrível daquilo que acontece depois da morte. Do fundo de seu coração sobem os gemidos, as lágrimas amargas e dolorosas, o pranto inefável. Ele não liga para a honra ou a desonra, despreza esta vida. As penas do coração e o pranto contínuo o faz esquecer até de comer.
 
Assim, a graça de Deus, a Mãe comum a todos nós, lhe concede a mansidão, o começo da imitação de Cristo, ou o terceiro mandamento: “Bem-aventurados os mansos[53]”, como disse o Senhor. Ele se torna como uma pedra fincada que ninguém move, nem os ventos nem as vagas da vida. Ele permanece sempre igual a si mesmo, na abundância e na carência, na facilidade e na dificuldade, na honra e na desonra. Simplesmente, em todo tempo e em todas as coisas ele sabe discernir que tudo passa, tanto o agradável como o doloroso, que esta vida é um caminho para o século futuro, que mesmo que não queiramos o que tiver que acontecer acontecerá, que nos preocupamos em vão[54], que perdemos a coroa da paciência, e que tudo se passa como se nos opuséssemos à vontade de Deus, pois tudo o que Deus faz é muito bom[55] e nós ignoramos isto. Mas está dito que ele conduzirá os mansos até o julgamento[56] e, para além disto, ao discernimento das coisas.

Mesmo em ocasiões de cólera, este homem manso não se perturba. Antes ele se regozija por encontrar aí uma oportunidade de progredir e de amar a sabedoria, considerando que a tentação não chegou sem causa. Talvez ele tenha, por ignorância ou conscientemente, afligido a Deus, ou ao seu irmão, ou a outros ainda. Mais ainda, ele considera que existe aí uma fonte de perdão: pela paciência, de se fazer perdoar por suas numerosas faltas. Pois se ele não perdoa as dívidas a quem lhe deve, o Pai não lhe perdoará aquilo que ele mesmo deve[57]. Para atingir a remissão dos pecados não existe via mais curta do que esta virtude, ou este mandamento. Pois foi dito: “Perdoem, e lhes será perdoado[58]”.

É isto que é dado conhecer e fazer a quem, imitando a Cristo, se torna manso pela graça do mandamento. Ele se aflige por seu irmão, a quem o inimigo comum vem tentando por meio de seus pecados, mas que se tornou um remédio para a cura de sua doença. Pois toda tentação é concedida por Deus como um tratamento para curar a alma do enfermo. Ela permite a remissão das faltas passadas e presentes e se torna um obstáculo diante dos males por vir. Mas não devemos louvar nisto nem o diabo, nem aquele que o tenta, nem o que é tentado. De fato, o diabo, que faz o mal, é digno de aversão, pois ele faz o mal sem jamais se afligir. Aquele que tenta é digno de piedade por parte do que é tentado, não por que tenha agido por amor, mas por que foi um joguete e se encontra acabrunhado. E, para ser considerado digno de louvor, quem é tentado de carregar a aflição por suas próprias faltas e não pelas faltas do outro. Pois ele também não é livre de pecado. E mesmo que fosse, o que é impossível, ele deveria aguardar com esperança as recompensas e o temor do castigo. Esta é a sorte comum. Mas Deus, que não tem em si nenhuma falta e que trabalha pelo bem de todos, é digno de nossa ação de graças. Pois ele suporta pacientemente o diabo e a malícia dos homens, e retribui todo bem, antes e depois do pecado, para os que se arrependem.

Aprendendo assim todo o discernimento, aquele a quem foi dado guardar o terceiro mandamento cessa de ser um joguete com conhecimento de causa ou por ignorância. Ele recebe o carisma da humildade. Ele considera a si mesmo como nada. Pois a mansidão é a própria matéria da humildade, e esta é a porta da impassibilidade. É por esta porta que penetra no amor infalível e perfeito aquele que conhece sua própria natureza, aquilo que era antes de nascer e o que se tornará após a morte. Pois o homem não passa desta pequena imperfeição que se perde a qualquer instante. Ele é pior do que o resto da criação. Nenhuma outra criatura, inerte ou animada, jamais contraria a vontade de Deus, como o faz a natureza humana, que recebeu tantas benesses e que sempre provoca a cólera de Deus.

É por isso que o quarto mandamento foi dado, o desejo de adquirir as virtudes. Foi dito: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça[59]”. O homem está como que sedento e faminto de toda justiça, da virtude do corpo e da virtude moral, que é a da alma. Quem não provou disto ignora o que lhe falta, disse Basílio o Grande. E quem provou quer mais. Quem experimentou a doçura dos primeiros mandamentos e sabe que eles lavam pouco a pouco à imitação de Cristo, sente um grande desejo de adquirir os outros, e por causa disto chega até a desprezar a morte. Ele percebe os menores mistérios de Deus ocultos nas divinas Escrituras, e tem uma grande sede em compreendê-los. Mas quanto mais conhecimento ele recebe, mais a sede o abrasa, como se ele bebesse de uma chama. Pois o divino é incompreensível, e permanecemos sempre com sede.

O que a saúde e a doença representam para o corpo, a virtude e o vício são para a alma, e o conhecimento e a ignorância para o intelecto. Quanto mais nos dedicamos à piedade ou à ação, mais a inteligência se ilumina com o conhecimento. Então podemos ser considerados dignos da misericórdia através do quinto mandamento, em que o Senhor diz: “Bem-aventurados os misericordiosos[60]”. O misericordioso é aquele que sente compaixão pelo próximo e o ajuda com aquilo que ele próprio recebeu de Deus, seja dinheiro, comida, força, palavra de alento, oração. Com todo seu poder, em sua compaixão ele se abre a quem lhe pede, e se considera seu devedor. Pois ele recebeu muito mais do que o que lhe foi pedido. Cristo lhe concedeu no século presente e no século futuro, em meio a toda a Criação, ser chamado compassivo como Deus. Através do irmão, foi o próprio Deus que precisou dele e foi seu devedor. Mesmo sem aquilo que lhe foi pedido, o pobre pode viver. Mas sem a compaixão que sente por ele tanto quanto lhe é possível, ele próprio não pode viver, nem ser salvo. Se ele não é compassivo com sua própria natureza, como pode ele pedir que Deus tenha piedade de si? Considerando estas coisas e muitas outras, aquele a quem foi dado viver os mandamentos dá não só o que possui, mas ainda toda a sua alma pelo seu próximo. Esta é a compaixão perfeita, aquela pela qual Cristo sofreu a morte por nós, mostrando-se diante de todos como modelo e imagem, a fim de que saibamos morrer uns pelos outros, e não apenas por nossos amigos, mas também pelos inimigos, quando o tempo requerer.

Pois não é necessário que tenhamos um objeto para com ele sermos compassivos aparentemente. Esta necessidade seria uma fraqueza, isso sim. Quando não temos um objeto específico para nos compadecermos, abrimos nosso coração a todos. Podemos então ajudar os que precisam, permanecendo desinteressados quanto às coisas desta vida, e profundamente voltados para os homens. Mas, por causa da vaidade, não devemos ensinar, a menos que tenhamos praticado. O que pretender ajudar as almas dos fracos apenas com as aparências se tornará muito mais enfermo do que aqueles a quem pretende socorrer. Com efeito, tudo necessita de tempo e discernimento, para que nada aconteça intempestivamente, ou contra aquilo que se deve fazer.

Para os fracos, o melhor é fugir de tudo. A despossessão extrema é melhor do que a piedade, pois é por meio do desinteresse que seremos considerados dignos do sexto mandamento, em que o Senhor diz: “Bem-aventurados os puros de coração[61]<”, aqueles que, por suas santas meditações praticaram com sucesso todas as virtudes e chegaram a ver as coisas na sua natureza. Assim se entra na paz dos pensamentos. Está dito: “Bem-aventurados os pacificadores[62]”, os que pacificam a alma e o corpo submetendo a carne ao espírito, a fim de que a carne pare de desejar contra o espírito[63], mas que a graça do Espírito Santo reine na alma e a conduza do modo como ela deseja, dando-lhe o conhecimento divino por meio do qual o homem de paz suporta a perseguição, o ultraje e a maledicência por causa da justiça[64], e se regozije, pois sua recompensa será grande nos céus[65].

Com efeito, todas as beatitudes fazem do homem um Deus segundo a graça. O homem se torna manso. Ele deseja toda a justiça. Ele se torna misericordioso, impassível, pacificador. Ele suporta todos os sofrimentos com alegria, por amor a Deus e ao próximo. As beatitudes são dons de Deus. E nós lhe devemos imensamente dar graças por elas e pelas recompensas dadas: no século futuro o Reino dos céus, e aqui a consolação, a plenitude de todos os bens e de toda graça vinda de Deus, e sua revelação ao contemplarmos os mistérios ocultos nas divinas Escrituras e em todas as criaturas, e a grande recompensa que receberemos nos céus[66] quando trazemos sobre a terra a imagem de Cristo e a beatitude de cada mandamento, esta recompensa que é o cume dos bens, o fim de tudo o que desejamos. De fato, segundo o Apóstolo, somente Deus é realmente bem-aventurado, ele que habita a luz inacessível[67]. Nós temos o dever de guardar os mandamentos, e mais até, de sermos guardados por eles. Mas àquele que partindo do mandamento crê nele, Deus, que ama o homem, dará recompensas aqui e além.

Tudo provém do bem-aventurado luto. Dele o intelecto recebe um alívio das paixões. E pela amargura e a abundância das lágrimas derramadas pelos pecados ele se reconcilia com Deus. Ele se crucifica com Cristo pela ação moral, ou seja, pela observância dos mandamentos, como foi dito, e pela guarda dos cinco sentidos, a fim de que estes não façam nada contra seu uso.

Uma vez que pode conter impulsos irracionais, o intelecto começa a colocar rédeas nas paixões que o cercam, o ardor e a concupiscência. A partir daí, pelo relaxamento da concupiscência ele apazigua o ardor fanfarrão, e pela austeridade do ardor ele adormece a concupiscência. Ele entra em si mesmo e conhece sua própria dignidade, que consiste em se dominar. Ele recebe a visão das coisas em suas naturezas. Pois então se abre o olho esquerdo[68] que, sob o império das paixões, o diabo havia cegado. Então é concedido ao homem ser enterrado com Cristo em seu intelecto longe das coisas do mundo. Ele deixa de ser cativo da beleza das formas exteriores. Ele sabe que o ouro, a prata, as pedras preciosas que ele vê provêm da terra, como a madeira e as pedras, como toda coisa inerte. Ele sabe que o homem também não passa de podridão, um pouco de pó no túmulo após a morte. Ele considera como nada todas as delícias desta vida, e sempre vê suas mudanças com esta grande resolução é o conhecimento traz. Com alegria ele morre para o mundo e o mundo morre para si[69]. Ele não traz em si nenhuma violência, apenas repouso e ausência de paixão.

Pela pureza da alma também lhe é concedido ressuscitar com Cristo em seu intelecto. Ele recebe a força de ver impassivelmente a beleza exterior das coisas e de glorificar através dela ao Criador do universo. Ele contempla o que está nas criaturas sensíveis, o poder e a providência de Deus, a bondade e a sabedoria de que fala o Apóstolo[70]. Ele vê os mistérios que estão ocultos nas divinas Escrituras. Então é concedido ao seu intelecto elevar-se com Cristo pela contemplação das criaturas inteligíveis, vale dizer, pelo conhecimento das potências intelectuais. Todas as lágrimas que a consciência e a alegria o fazem derramar o ajudam a compreender o invisível a partir do visível[71], e o eterno a partir do efêmero. E ele considera que se este mundo que passa, do qual é dito ser o exílio e a condenação dos que transgrediram o mandamento de Deus[72], é tão bom, quanto mais o serão os bens eternos e incompreensíveis que Deus preparou para os que o amam[73]. E se estes bens são por excelência incompreensíveis, quanto mais será o próprio Deus, que criou tudo do nada.

Pois se repousarmos de tudo, se nos ligarmos às ações do corpo e da alma que os Padres chamam de piedade, se desconfiarmos de todo sonho e de toda ideia própria que não seja atestada pela Escritura, se fugirmos de toda relação vã para não ouvir nem ler nada que seja estéril, em particular as coisas que tocam a heresia, então seremos cumulados pelas lágrimas da consciência e da alegria. Poderemos bebê-las, de tão abundantes. E entraremos na outra prece, a prece pura, própria dos contemplativos. Pois assim como deveremos ter então outras leituras, outras lágrimas, também outra será nossa prece daí por diante. Pois o intelecto penetrou nas contemplações espirituais. É por isso que a partir daí devemos ler sem temor nas divinas Escrituras as palavras difíceis de discernir, como fazem os que ainda são ativos e os fracos por sua ignorância. Quando com o tempo conduzimos o combate das ações do corpo e das ações morais, somo de fato crucificados com Cristo, somos enterrados pelo conhecimento das coisas, em sua natureza e em suas transformações, e ressuscitamos pela impassibilidade e pelo conhecimento dos mistérios de Deus nas suas criaturas sensíveis. Depois nos elevamos acima do mundo, pelo conhecimento do intelecto e dos mistérios ocultos nas divinas Escrituras. Do temor, atingimos a piedade, de onde provém o conhecimento, depois a resolução, ou o discernimento, que dá a força, da qual nasce a compreensão. E então alcançamos a sabedoria.

Por meio de todas essas ações e de todas essas contemplações de que falamos, nos são dadas a prece pura e perfeita que provém da paz e do amor de Deus, e a morada do Espírito Santo em nós. É como se diz: é preciso adquirir a Deus em si mesmo, descobrir em nós a presença e a morada de Deus, segundo João Crisóstomo, quando o corpo e a alma, como o corpo e a alma de Cristo, abandonam o pecado, na medida em que isto é possível ao homem. É preciso manter o intelecto em meditação em Cristo, pela graça do Espírito e da sabedoria, que é o conhecimento das coisas humanas e divinas[74].



Das quatro virtudes da alma

Existem quatro formas de sabedoria. A castidade, ou o conhecimento daquilo que se deve e que não se deve fazer, e o despertar da inteligência. A temperança, ou a arte de manter a salvo o que está no espírito, de modo a poder se manter fora de toda obra, toda palavra, todo pensamento, que não agradem a Deus. A coragem ou força, e a paciência nas penas conforme a Deus e nas tentações. E a justiça, ou a partilha, que atribui a todos a mesma coisa.

Estas quatro virtudes gerais nascem das três potências da alma. Do pensamento ou do intelecto nascem duas, a prudência e a justiça, ou o discernimento. Do desejo nasce a castidade, e do ardor a coragem.

Cada virtude é um meio entre duas paixões contra a natureza. A prudência se situa entre a presunção e a hesitação. A castidade entre a estupidez e o deboche. A coragem entre a temeridade e a preguiça. A justiça entre os sentimentos de inferioridade e de superioridade.

As quatro virtudes são a imagem do homem celeste. E as oito paixões[75], a imagem do homem terrestre[76].

Deus conhece todas estas coisas exatamente, assim como conhece o passado, o presente e o futuro. Aquele que pela graça aprende dele as obras que Deus produz as conhece em parte, e a este é concedido se tornar a sua imagem e semelhança[77]. Mas quem pretende saber apenas por ter ouvido falar[78], este se engana. Pois o intelecto do homem jamais pode se elevar aos céus sem Aquele que o conduz. Quem não subiu [aos céus] nem contemplou não pode falar do que não viu.

Mas se entendemos uma palavra da Escritura, não devemos repetir senão esta palavra com reconhecimento por havê-la entendido, e confessar o Pai do Verbo, disse Basílio o Grande. E sem pretender possuir o conhecimento de nada, devemos permanecer abaixo do desconhecido. Presumir, diz são Máximo, não nos permite tornarmo-nos aquilo que presumimos[79]. Existe, com efeito, um desconhecimento louvável, como diz são João Crisóstomo, quando sabemos o quanto ignoramos. Mas também existe uma ignorância além do desconhecimento, quando não sabemos o quanto ignoramos. E existe um conhecimento enganoso, quando, segundo o Apóstolo, acreditamos saber quando, na verdade, não sabemos nada[80].


Do conhecimento ativo

Existe um conhecimento verdadeiro, e existe um conhecimento total. Mas o melhor de todos é o conhecimento ativo. Pois de que serve a um homem ter todo o conhecimento, e mesmo recebê-lo de Deus por graça como Salomão[81] – que nisto não tem igual – e depois ser atirado ao castigo eterno? De que lhe serve ter o conhecimento se, por meio das obras e de uma fé segura, o testemunho da consciência não lhe der a certeza de estar livre do castigo futuro por não condenar a si próprio de ter negligenciado o que poderia ter feito na medida do possível, como disse João o Teólogo: “Se nosso coração não nos condena, sentiremos confiança ao nos dirigirmos a Deus[82]”.

Mas a consciência não nos condena, disse são Nilo, por que ela foi enganada, maltratada pela cegueira das paixões. É o que também afirma João Clímaco[83].  Mas se é apenas a malícia que entenebrece o intelecto, diz Basílio o Grande, se é a presunção que o cega e não permite que aconteça o que se presume, que dizer então dos que estão submetidos às paixões e que acreditam ter a consciência pura, sobretudo quando vemos o Apóstolo Paulo, que tinha em si a Cristo, dizer em atos e palavras: “É verdade que a minha consciência de nada me acusa, mas isso não significa que eu seja inocente[84]”.

É por isso que somos profundamente insensíveis, que a maior parte de nós acredita ser alguma coisa, quando na verdade não somos nada. “Quando eles falarem de paz, diz o Apóstolo, será então que a ruína desabará sobre eles[85]”. Pois eles não possuem a paz, diz João Crisóstomo, mas falam dela, insensíveis que acreditam possuí-la. São Tiago, Irmão de Deus, diz também a respeito que eles se esqueceram[86] de seus próprios pecados. Muitos orgulhosos se iludiram pensando possuir a impassibilidade, diz João Clímaco[87]. Eu mesmo, tremendo de medo de ser possuído por estes três gigantes do diabo de quem fala são Marcos o Asceta[88] – a negligência, o esquecimento e a ignorância – e com temor de que em minha ignorância eu me visse fora do caminho, como disse santo Isaac[89], reuni estas poucas sentenças. Quem detesta ser convencido do erro mostra que a paixão do orgulhou o marcou, diz João Clímaco[90]. Mas quem prossegue além da reprovação se livra de seus laços. Salomão o diz: “Quando o insensato coloca uma pergunta sobre a sabedoria, ela passa por sábio[91]”.

No início eu citei os nomes dos livros e dos santos, a fim de não alongar meu discurso referindo de quem é cada sentença. Os próprios santos Padres muitas vezes transcreveram as palavras das divinas Escrituras. Também Gregório o Teólogo transcreveu as palavras de Salomão. Muitos outros agiram da mesma maneira. Simeão Logoteta o Metafraste falava assim a respeito de João Crisóstomo: “Não seria justo deixar de lado suas palavras para utilizar as minhas”. E no entanto ele poderia. Pois todos os Padres receberam do mesmo Espírito Santo. Mas tanto eles dizem de quem são as sentenças que ornamentam seus discursos, por humildade, preferindo as palavras das Escrituras, tanto as deixam anônimas, por tão numerosas que são, para não sobrecarregar o que é dito.



Que as virtudes do corpo são instrumentos das virtudes da alma

Como é melhor do que apelar para as numerosas citações de memória, começarei por transcrever a maior parte das coisas que foram ditas e que não provêm de mim, mas que são as palavras e o discernimento das divinas Escrituras e dos santos homens.

João Damasceno disse que as virtudes do corpo, ou antes, que os instrumentos das virtudes são necessários quando os buscamos com humildade e conhecimento espiritual[92]. Pois sem as virtudes do corpo as virtudes da alma não existem. Mas se as virtudes do corpo não trazem em si as da alma, se elas são reduzidas a si mesmas, elas já não servem para nada, como plantas sem frutos. Se não nos consagramos a Deus, se não rompemos com nossas vontades próprias, é impossível aprendermos de forma sábia e segura qualquer arte. Além da ação, temos necessidade de conhecimento, da contínua consagração a Deus longe de tudo e do estudo das divinas Escrituras, sem o que é impossível adquirir as virtudes. Aquele a quem foi dado consagrar-se total e continuamente a Deus, este descobriu o bem supremo. Mas quem não chegou até aí não seja negligente, ainda que de forma parcial. Bem-aventurado o que chega à consagração total, seja por se submeter a um monge ativo que vive solitário e conforme a razão, seja por ele próprio viver na hesíquia e na ausência total de cuidados e longe de tudo, rigorosamente submetido à vontade divina e confiado ao conselho dos que têm experiência em tudo o que se relaciona às palavras e aos pensamentos. Bem-aventurados sobretudo os que querem atingir além de todo esforço a impassibilidade e o conhecimento espiritual pela total consagração a Deus, como ele próprio falou pelo Profeta: “Rendam-se e reconheçam que eu sou Deus[93]”.

Os homens votados a esta vida, refiro-me aos homens segundo este mundo, e nós que nos dizemos monges, devemos ainda que parcialmente nos consagrar a Deus como os antigos Justos, para sondar nossa pobre alma antes da morte e suscitar sua correção ou humildade, e não a perdição irreparável para a qual conduzem a ignorância total e as faltas conhecidas e desconhecidas. Davi era rei, mas todas as noites, sentindo a presença do divino, ele molhava de lágrimas seu leito[94]. E Jó disse: “Meus cabelos estão eriçados[95]”, etc. Também nós, ainda que por uma pequena parte do dia ou da noite, como os homens votados a esta vida, consagremo-nos a Deus e vejamos o que responderemos ao justo Juiz no dia terrível do Juízo. Acima de tudo, inquietemo-nos com este Juízo, como com algo necessário, com temor ao castigo eterno, e não preocupados como vamos viver se formos pobres ou como poderemos enriquecer sendo caridosos. Colocamos tolamente todo o nosso cuidado nas coisas desta vida, disse o divino Crisóstomo. É preciso trabalhar, mas não nos inquietarmos nem nos agitarmos com um monte de coisas[96], como disse o Senhor a Marta. O cuidado com esta vida jamais deixou alguém cuidar de sua alma e saber o que ela é, como faz aquele que se consagra a Deus e que está atento a si mesmo, como está escrito na Lei: “Guarde-se[97]”, etc. E o grande Basílio escreveu a partir destas palavras um discurso admirável e cheio de sabedoria[98].



Que é impossível ser salvo de outro modo que não a atenção rigorosa e a guarda do intelecto

Sem a atenção e a vigília do intelecto nos é impossível ser salvos e libertos do diabo que gira ao nosso redor como um leão que ruge buscando o que devorar[99], disse João Damasceno. É por isso que o Senhor sempre dizia a seus discípulos: “Vigiem e rezem, por que vocês não sabem[100]”, etc. Ele falava da lembrança da morte. E através dos seus discípulos ele nos prescreveu a todos para que estejamos prontos a dar, por meio de nossas obras e de nossa atenção, uma resposta que possa ser recebida.

Pois, disse santo Hilário, os demônios imateriais não dormem, e colocam todo seu empenho em nos combater[101], em perder nossas almas pela palavra, pelas obras e pelo pensamento. Nós não somos com eles. Estamos sempre cuidando, seja das delícias e da glória passageira, seja das coisas desta vida, e de tantas outras. Só não cuidamos, mesmo em parte, daquilo que queremos possuir para sondar nossas vidas, a fim de que o intelecto possa adquirir o hábito, e permanecer sem descanso e frequentemente atento a si mesmo. Pois como disse Salomão, você caminha em meio a muitas armadilhas[102]. João Crisóstomo descreveu estas armadilhas com grande clareza e total sabedoria.

O Senhor, querendo nos afastar de toda inquietude, nos ordenou desprezar alimentos e vestes para não termos senão um único cuidado – como ser salvos, como libertar o gamo da rede e o pássaro da armadilha[103] – e para podermos enxergar com o olhar penetrante do gamo e a voar como o pássaro nas alturas. É verdadeiramente admirável que Salomão tenha dito isso. Pois ele era rei, assim como seu pai, que havia falado e agido como ele. Em meio a numerosos combates, eles levavam com grande atenção uma vida de sabedoria e virtude. Mas depois de terem recebido tantos carismas e a própria manifestação de Deus, eles foram vencidos pelo pecado. Um teve que chorar um adultério e uma morte[104]. O outro caiu em inúmeros males[105]. Não existem aí motivos, para nós que temos inteligência, para nos encher de temor e de horror, como disseram João Clímaco[106] e Filemon o Asceta[107]? Como não tremer e não fugir do emaranhado desta vida, por causa de nossa fraqueza, nós que nada somos, ao invés de permanecermos insensíveis como os animais irracionais? Miserável que sou, possa eu ao menos guardar minha natureza, como os animais. Pois um cão é melhor do que eu, etc[108].


Que aqueles que querem ver onde se encontram não têm outra coisa a fazer do que fugir de suas próprias vontades, pela submissão e a hesíquia, sobretudo os que são presa das paixões.

Se quisermos ver a nós mesmos e aprender o quanto nosso estado traz consigo a morte, fujamos de nossas próprias vontades e das coisas desta vida. Fugindo para longe de tudo, consagremo-nos com esforço ao recolhimento bem-aventurado diante de Deus, cada qual buscando sua alma no estudo das divinas Escrituras, na perfeita submissão da alma e do corpo se ainda estamos sob a força das paixões, ou na hesíquia, esta vida de anjos tão decantada, se já conseguimos conter nossos desejos, pequenos e grandes.

Foi dito: “Permaneça na sua cela e ela lhe ensinará tudo[109]”. E também, conforme o grande Basílio: “A hesíquia é o começo da purificação da alma[110]”. Também Salomão disse: “Deus permitiu que os filhos dos homens fossem arrastados à vaidade por causa de sua agitação perniciosa[111]”, para que o ócio selvagem e passional não os levasse a algo ainda pior.

Quem foi liberto destes dois abismos pela graça de Deus, aquele a quem foi permitido se tornar monge, vestir o hábito angélico e monástico, e revelar por suas palavras e suas obras tanto quanto possível apenas a imitação de Deus, como disse o grande Denis[112], como não verá como seu dever estar sempre consagrado a Deus, manter seu intelecto atento a todas as suas ações e continuamente meditar perante Deus sobre o estado alcançado? É o que os santos Padres, Efrém e outros, diziam aos iniciantes. Um dizia que aqueles a quem ainda não fora dado atingir a contemplação – vale dizer, o conhecimento – tivessem sempre nos lábios um salmo, ou um esticárion, ou que mantivessem o intelecto atento aos salmos e aos tropários, a fim de nunca permanecer sem estudo, no trabalho, nos caminhos, no leito antes de dormir. Mas uma vez que se segue uma regra recebida, é preciso concentrar o intelecto no estudo, para que o inimigo não nos encontre de mãos vazias e longe da lembrança de Deus e nos atazane com seus males. Isto é verdade para todos.

Quando, depois de numerosos combates – vale dizer, pelas virtudes do corpo e da alma – podemos, pela graça de Cristo, nos elevarmos em espírito até a obra espiritual – a obra do intelecto – e chorarmos nossas almas, devemos guardar como a menina dos olhos o pensamento que traz as lágrimas dolorosas, disse João Clímaco[113], até que a economia divina faça vir o fogo e a água, a fim de deter a presunção. O fogo é a pena do coração, a fé ardente. A água são as lágrimas. Elas não são dadas a todos, disse o grande Atanásio, mas aos que são dignos de ver os tormentos que precedem e se seguem à morte, pela lembrança contínua que eles têm na hesíquia, como disse Isaías: “O ouvido de quem vive na solidão escuta coisas extraordinárias[114]”. E também: “Detenham-se, e conhecerão[115]”.

Pois somente a hesíquia engendra o conhecimento de Deus. Somente ela pode ajudar os passionais e os mais fracos, permitindo-lhes viver sem distração e fugir dos homens, das conversas e dos cuidados que obscurecem o intelecto, e não apenas dos cuidados desta vida, mas também das menores coisas que nos parecem estranhas ao pecado. Como disse João Clímaco: “o menor fio de cabelo perturba o olho[116]”, etc. E santo Isaac: “Não pense que a avareza consiste apenas no fato de possuir ouro ou prata. Ela é também o pensamento do dinheiro, quando este se agarra a nós[117]”. Também o Senhor disse: “Onde estiver seu tesouro, aí estará seu coração[118]”. Seja nas coisas e pensamentos divinos, seja nas coisas e pensamentos terrestres. É por isso que somos chamados à ausência de cuidados e à consagração a Deus. Parcialmente, para aqueles que ainda estão ligados às coisas desta vida, como foi dito, para que cheguem pouco a pouco à prudência e ao conhecimento espiritual. Ou totalmente, para os que podem se consagrar e colocar todo seu empenho em agradar a Deus, para que Deus veja sua resolução, lhes conceda o repouso por meio do conhecimento espiritual e os faça chegar ao estudo da primeira contemplação, no qual eles irão adquirir a inefável contrição da alma e se tornarão pobres em espírito[119].

Conduzindo-os assim paulatinamente às demais contemplações, ele lhes concederá a guarda das beatitudes, até que atinjam a paz dos pensamentos, que é o lugar de Deus, como disse são Nilo[120] se referindo ao Saltério: “Seu lugar é na paz”.


Das oito contemplações do intelecto.[121]
 
Existem oito contemplações do intelecto, em minha opinião. Sete pertencem a este século, e a oitava pertence ao século futuro, como disse santo Isaac[122].

A primeira é o conhecimento das aflições e das tentações desta vida, disse são Doroteu[123]. Ela chora por todo o mal que a natureza humana sofre por causa do pecado.

A segunda é o conhecimento de nossas faltas e das benesses de Deus. É o que dizem João Clímaco[124], santo Isaac e muitos outros Padres.

A terceira é o conhecimento dos tormentos que precedem e se seguem à morte, como está nas divinas Escrituras.

A quarta é o conhecimento da vida que neste mundo levou nosso Senhor Jesus Cristo, e das obras e palavras de seus discípulos e de outros santos, dos mártires e dos Padres.

A quinta é o conhecimento da natureza e da transformação das coisas. É o que dizem os santos Padres, Gregório o Teólogo e João Damasceno.

A sexta é a contemplação dos seres, ou seja, o conhecimento e a compreensão das criaturas sensíveis de Deus.

A sétima é a compreensão das criaturas inteligíveis de Deus.

A oitava é o conhecimento de Deus, a que chamamos teologia.

Estas são as oito contemplações. As três primeiras convêm a quem ainda é ativo, a fim de que este possa, sob a abundância e a amargura das lágrimas, purificar sua alma de todas as paixões. Depois ele receberá as demais pela graça.

As cinco contemplações seguintes convêm ao contemplativo, ou àquele que sabe, para que ele possa sempre observar e levar a cabo as ações do corpo e as ações morais, ou seja, as ações da alma. É por meio delas que lhe será dado sentir as primeiras, na ordem visível como na ordem do intelecto. Desde a primeira contemplação, o monge ativo recebe, com efeito, o começo do conhecimento e se dedica ao trabalho. Ele estuda os pensamentos que lhe são dados e progride por meio deles, até os fazer seus. O conhecimento seguinte virá por si só ao intelecto. O mesmo acontecerá com todos os demais.

Mas para que tudo fique bem claro, mesmo que não me seja possível dizer algo, falarei mais precisamente de cada contemplação, mostrando o que se deve compreender e dizer, para que encontremos em cada contemplação um meio de saber o que devemos fazer, quando a graça começar a abrir-nos os olhos da alma ajudando-nos a entender, ajudando-nos a sermos profundamente tocados pelos pensamentos e as palavras que poderão fazer habitar em nós o temor de que já falamos, e que é a contrição da alma.


Declaração necessária ao primeiro conhecimento.
De como devemos começar.

O primeiro conhecimento abre todos os demais para aquele que se engajar. Aquele a quem foi dado penetrar neste conhecimento deve fazer o seguinte: colocar-se a Oriente, como outrora Adão. Pensar que naquele tempo Adão habitava lá, e chorava em face das delícias do Paraíso. Ele batia com as mãos no próprio rosto dizendo: “Compassivo, tenha piedade de mim que caí[125]<”. E também este outro verso: “Adão, vendo o anjo que o expulsava e lhe fechava o portão do jardim de Deus, gemeu profundamente, dizendo: Compassivo, tenha piedade de mim que caí”. Depois ele compreendeu o que lhe acontecera. Ele implorou, suspirou com toda sua alma e pendeu a cabeça. E na dor de seu coração ele disse:

“Pecador, o que me aconteceu? O que era eu, e no que me tornei? O que perdi e o que encontrei? Em lugar do Paraíso, este mundo corruptível. Em lugar de Deus e da vida angélica, o diabo e os demônios impuros. Em lugar do repouso, o trabalho. Em lugar da felicidade e da alegria, a aflição do mundo e a tristeza. Em lugar da paz e da contínua felicidade, o temor e as lágrimas dolorosas. Em lugar da virtude e da justiça, a iniquidade e os pecados. Em lugar da bondade e da impassibilidade, a malícia e as paixões. Em lugar da sabedoria e da intimidade de Deus, a ignorância e o exílio. Em lugar da total ausência de cuidados e em lugar da liberdade, a vida inquieta e a pior servidão”.

“Oh! Oh! Como fui eu criado rei? Como em minha loucura me tornei escravo das paixões? Infeliz de mim, o miserável. Como, pela transgressão, transformei a vida em morte? Ah! Ah! Infeliz, o que me aconteceu por causa de minha imprudência? Que fazer? Aqui lutas, ali confusões. Aqui enfermidades, ali tentações. Aqui perigos, ali naufrágios. Aqui medos, ali tristezas. Aqui as paixões, ali os pecados. Aqui as amarguras, ali as angústias. Infeliz de mim, o miserável. Que fazer? Para onde fugir? Estou oprimido por todos os lados[126], como disse Suzana. Eu não sei o que pedir. Se peço viver, temo as tentações da existência, suas mudanças, seus acidentes. Vejo Satanás, o Anjo que se ergue pela manhã como a estrela que traz a aurora[127], tornado naquele a quem chamamos de diabo. Vejo a primeira criatura exilada[128]: Caim, assassino de seu irmão; Canaã maldita; os Sodomitas queimados pelo fogo; Esaú decaído; os Israelitas submetidos à cólera; Giezi e o apóstolo Judas caídos, vítimas da avareza; o Rei, o grande Profeta, chorando seu duplo pecado; Salomão decaído[129], malgrado toda sua sabedoria; aqueles que tombaram dentre os sete diáconos e os quarenta mártires, como disse o grande Basílio. O príncipe do mal se regozija de capturar Judas o covarde dentre os doze; do coração do Éden, o homem; dentre os quarenta, aquele que recuou. É preciso chorar por ele, e dizer ainda: é vão e digno de piedade aquele que fracassou nas duas vidas. Pois ele foi destruído pelo fogo e partiu para o fogo que não se extingue. E quantos outros, incontáveis, tombaram, não apenas entre os descrentes, mas muitos dentre os Padres, que suaram tantos suores”.

“Com efeito, que sou eu, eu que sou pior, mais insensível e mais fraco do que todos? Que dizer de mim mesmo? Pois Abrahão disse de si próprio ser ele terra e cinzas[130]. Davi disse de si mesmo que era um cachorro morto, o mais ínfimo de Israel[131]. Salomão disse de si que era como uma criança que não distinguia a direita da esquerda[132]. Os três adolescentes disseram ter se tornado vergonha e opróbrio[133]. O profeta Isaías disse: “Ó infeliz que sou eu[134]”. E o profeta Habacuque: “Eu sou uma criança[135]”. O Apóstolo disse de si ser o primeiro dos pecadores[136]. Todos os santos disseram ser nada. Que fazer? Onde me esconder de todos os meus males? Que me tornar, eu que nada sou, e que sou ainda pior que o que é menos que nada? Aquele que é ninguém não pecou, mas também não recebeu nenhum bem como eu recebi. Oh, como vou terminar o tempo que me resta a viver? Como farei para fugir das armadilhas do demônio? Os demônios não dormem, eles são imateriais, a morte se aproxima, eu sou fraco. Senhor, ajude-me! Não deixe que sua criatura se perca. Pois você vela sobre o miserável que sou eu. Faça com que eu conheça a via sobre a qual devo caminhar, pois a você elevo minha alma[137]. Não me abandone, Senhor meu Deus. Não se retire de mim, venha em meu auxílio, Senhor da minha salvação[138]”.

A alma será partida por essas palavras, se ela puder senti-las. E se ela perseverar, se adquirir o temor divino, o intelecto começará a compreender e a meditar nas palavras da segunda contemplação.


Da segunda contemplação

Oh, miserável, que fazer? No que me tornar? Eu pequei tanto! Eu recebi tantos bens. E sou tão fraco. As numerosas tentações e a negligência me oprimem. O esquecimento me entenebrece e não me permite ver a mim mesmo, nem ver a multidão dos meus males. A ignorância é má, a transgressão consciente é pior ainda, a virtude difícil, as paixões numerosas, os demônios ativos, o pecado fácil, a morte próxima, o julgamento amargo. Pobre de mim! Que fazer? Para onde fugir? Sou eu mesmo a causa de minha perdição. Eu recebi a honra da liberdade, e ninguém pode me constranger. Fui eu que pequei, que peco sempre e que passo negligentemente ao largo de toda boa obra. Ninguém está lá para me obrigar. A quem posso responsabilizar? Deus é bom e ama o homem. Ele não deseja mais do que o retorno para ele e o arrependimento. Os anjos me amam e guardam. Também os homens torcem pelo meu progresso. Os demónios não podem obrigar a quem não quer se perder, nem por negligência nem por desespero. Quem então é responsável, senão eu mesmo, miserável que sou?

Eu vejo minha alma se perder e nada faço para me engajar numa vida de piedade. Porque, ó minha alma, você não vigia a si mesma? Porque, quando você peca, não se envergonha diante de Deus e de seus anjos, como se envergonharia diante dos homens? Ó infeliz, que não me envergonho diante de seu Criador e Mestre, mas me envergonho diante de um homem. Pois diante dos homens eu não posso pecar. Eu me empenho em mostrar que todos os meus atos são justos. Mas diante de Deus eu não me envergonho de dizer e pensar o que é mau. Ó loucura minha! Quando eu faço o mal, eu não temo a Deus que está me vendo. E, para me corrigir, eu não posso dizê-lo a um homem. Pobre de mim! Pobre de mim! Eu conheço o castigo, mas não quero me arrepender.

Eu amo o Reino celeste, mas não adquiro a virtude. Eu creio em Deus, e desobedeço todos os dias aos seus mandamentos. Eu odeio o diabo, mas não deixo nunca de fazer o que lhe agrada. Se eu rezo, é com negligência, e permaneço insensível. Se jejuo me vanglorio, e me condeno a partir daí. Se velo, faço cara de ocupado, e isto não me serve para nada. Se leio, insensível, logo caio em um de dois males: ou leio para saber muitas coisas e por vã ambição, e afundo ainda mais nas trevas; ou entendo e não faço nada, e me condeno mais ainda. Se pela graça de Deus paro de pecar em ato, nem por isso deixo de pecar por palavras. E se a graça de Deus me cala, infeliz, eu ainda provoco a Deus em meus pensamentos. Oh, que fazer? Onde quer que eu vá, só encontro pecados. Os demônios estão por toda parte. O desespero é pior do que tudo. Eu provoquei a cólera de Deus, entristeci seus anjos, feri e escandalizei os homens.

Eu quis com minhas lágrimas apagar o manuscrito das minhas faltas, Senhor, e passar a agradá-lo com meu arrependimento pelo resto de minha vida. Mas o inimigo me engana e combate minha alma. Senhor, antes que eu me perca inexoravelmente, salve-me.

Pequei contra você, Senhor, como o filho pródigo[139]. Pai, receba-me, a mim que estou arrependido. Deus, tenha piedade de mim.

Eu clamo por você, Cristo Salvador, como o publicano[140]. Deus, purifica-me como a ele, tenha piedade de mim[141].

Que será de mim ao final? Que advirá no fim? Oh, infeliz, quem derramará água sobre sua cabeça? Quem dará aos meus olhos a fonte das lágrimas[142]? Quem me tornará digno de chorar? Pois não consigo fazê-lo por mim mesmo. Venham, montanhas, cubram a este miserável. Oh, que poderei dizer? Quantos bens me fez Deus, que só ele conhece, e quantos males suscitou minha ingratidão! Por minhas obras, minhas palavras e meus pensamentos, eu constantemente irrito o Benfeitor. Quanto mais paciente ele é, mais presunçoso me mostro, miserável que sou, e me torno mais insensível do que as pedras sem alma. Entretanto eu não desespero, pois reconheço seu amor pelo homem.

Eu não adquiri nem o arrependimento, nem as lágrimas. Eu lhe suplico então, Salvador, faça-me retornar antes do fim e dê-me o arrependimento, para que eu seja livre do castigo.

Senhor meu Deus, não me abandone. Pois eu não sou nada diante de você. Eu sou inteiro pecador. Onde encontrarei os meios para sentir meus grandes males? Eu nada faço para isto. Aí está minha grande condenação. Para mim foram criados o céu e a terra, para mim os quatro elementos e tudo o que deles saiu, como disse Gregório o Teólogo[143]. E calarei sobre o demais. Pois não sou digno de falar a respeito, por causa da multidão de meus males. Quem poderá compreender, ainda que lhe fosse dada a inteligência angélica, as inumeráveis benesses que recebi? Mas eis que, recusando o arrependimento, infeliz, estou votado a fracassar em tudo.

Meditando nestas coisas chegará um tempo em que você alcançará o terceiro conhecimento, se continuar a implorar.


Da terceira contemplação.

Oh, que combate, quando a alma se separa do corpo! Que lágrimas! E ninguém pode ajudá-la ainda que se compadeça. Ela volta os olhos para os anjos, mas suplica em vão. Ela estende as mãos aos homens, mas ninguém pode socorrê-la[144].

Eu choro e sofro quando pensa na morte e vejo nos túmulos nossa beleza criada à imagem de Deus jazendo sem forma, sem glória e sem aparência. Ó milagre! Qual é o mistério que nos cerca? Como fomos atirados à corrupção? Como nos misturamos à morte? Em verdade, foi por ordem de Deus, como está escrito[145]. Oh infeliz, que farei à hora da morte, quando os demônios cercarem minha pobre alma, trazendo por escrito o mal que eu fiz conscientemente ou por ignorância, em palavras, atos e pensamentos, quando exigirem de mim que eu preste conta de todas as minhas faltas? Mas, fora de todo pecado, eu já fui condenado por não ter guardado os mandamentos.

Ó minha pobre alma, diga-me agora: onde estão os compromissos do batismo? Onde a adesão a Cristo? Onde a rejeição a Satanás? Onde a guarda dos mandamentos de Deus? Onde a imitação de Cristo pelas virtudes do corpo e da alma? Onde estão as coisas pelas quais somos chamados de cristãos? Onde a profissão monástica? Eu poderia talvez alegar alguma enfermidade do corpo, mas onde está a fé que não se preocupa senão com Deus e que pode mover as montanhas, ainda que a tenhamos do tamanho de um grão de mostarda[146]? Onde o arrependimento total, que nos separa de toda obra e palavra más? Onde a alma quebrantada e o luto extremo? Onde a doçura, a compaixão, o coração puro de pensamentos de malícia, a temperança em todas as coisas, guardando imóveis – salvo necessidade – todos os membros do corpo, todo pensamento e toda vontade, para salvação da alma e da vida corporal? Onde a paciência que suporta todas as aflições pelo Reino dos céus? A ação de graças em todas as coisas? A prece incessante? O pensamento da morte, as lágrimas da tristeza, se eu sequer derramo aquelas do amor? A prudência conforme a Deus, que protege a alma das armadilhas do inimigos e dos que nos combatem? A castidade, que nos separa de tudo que não é fato ou pensamento de si mesmo em Deus? A coragem, que, pela esperança, nos faz suportar as infelicidades e enfrentar os inimigos? A justiça, que partilha entre todos a mesma coisa? A humildade, que nos faz reconhecer nossa própria fraqueza, nossa ignorância e o amor de Deus pelo homem, que deveria nos livrar de todas as intrigas do inimigo? Onde a impassibilidade e o amor perfeito, a paz que ultrapassa toda inteligência[147], pela qual eu deveria ser chamado de filho de Deus[148]?

Pois tudo isso, e sem que seja preciso usar a força do corpo, aquele que o deseja pode obter por uma simples resolução. Mas o que tenho eu a dizer? Infeliz, que faço eu? Pois eu sequer receio a minha incerteza. Eu negligenciei totalmente o que deveria fazer quando me era possível, e agora irei para o inferno, como disse o grande Atanásio. Ó infelicidade minha! O que fiz por mim? Não apenas porque pequei, mas acima de tudo por que não quis me arrepender. Se eu tivesse me arrependido, como o filho pródigo[149], o Pai, com sua afeição, teria me recebido de volta. E se eu tivesse tido a nobreza do publicano[150], condenando a mim próprio e nunca a outrem, também poderia ter recebido de Deus a remissão dos pecados, sobretudo se, como ele, houvesse implorado com toda a minha alma. Mas agora ainda estou longe de me ver assim. E temo permanecer no inferno com os demônios, temo o Juízo que virá, lá onde correm os rios de fogo, onde estão os tronos, onde são abertos os livros[151], onde os anjos nos precedem, onde a natureza humana ficará inteiramente exposta. Tudo ficará nu e descoberto[152] diante do temível e justo Juiz.

Oh, como suportarei a acusação, a indignação do temível Juiz incorruptível, a afluência dos inumeráveis anjos, a exigência e a terrível ameaça, a sentença sem retorno, o pranto incessante e as lágrimas inúteis, as trevas sem luz e o verme que não dorme, o fogo que não se extingue[153], os tormentos, a queda para fora do Reino, a separação dos santos, o distanciamento dos anjos, o exílio para longe de Deus, a angústia e a morte eternas, o medo, as penas, a tristeza, a vergonha, a tortura da consciência? Oh, pecador, que me esperará? Porque esta cruel perdição? Eu ainda tenho tempo de me arrepender. O Mestre me chama, recuarei? Até quando, minha alma, persistirá você em suas faltas? Até quando irá procrastinar o arrependimento? Pense no Juízo que virá. Chame por Cristo Deus: você que conhece os coração, eu pequei. Antes de me condenar, tenha piedade de mim. Que não ouçamos Cristo dizer na hora deste temível evento: “Eu não os conheço[154]”. Pois é em você, o Salvador, que colocamos toda nossa esperança, mesmo que em nossa negligência não façamos o q eu nos foi ordenado. Mas nós lhe rogamos: proteja nossas almas. Infeliz de mim, Senhor, por que o afligi sem sentir. Mas sua graça me fez sentir, ainda que pouco, e já não sei o que fazer, infeliz. Minha pobre alma treme.

Mas viverei ainda o bastante para chorar amargamente e lavar minha carne e minha alma manchada? Ou ainda, se eu tomar o luto por um momento, conseguirei me deter, eu que sou sempre tão insensível? E se quiser fazer algo, obterei o esforço contínuo da alma? Jejuarei, vigiarei? Mas sem a humildade, isto não me servirá de nada. Cantarei apenas com a minha boca, lerei? Mas as paixões entenebreceram meu intelecto, e não compreendo o poder daquilo que é dito. Prosternar-me-ei diante d’Aquele que concede todos os bens? Mas não tenho coragem. Minha vida é desesperançada. Perdi minha alma! Senhor, venha em meu auxílio e receba-me como ao publicano. Pequei contra o céu e perante você[155], como o filho pródigo e a prostituta em lágrimas[156], da qual se disse: sua vida era desesperançada. Todos conheciam sua conduta. Mas ela veio diante de você, trazendo a mirra, e disse: “Você que nasceu da Virgem, não me rejeite por eu ser prostituta. Alegria dos anjos, não recuse minhas lágrimas, mas receba a mim que me arrependo. Em sua grande piedade, Senhor, não afaste de você aquela que pecou[157]”.

Infeliz, também eu estou desesperançado por causa de meus numerosos pecados, mas me coloco diante de seu inefável amor pelo homem e no oceano infinito de suas compaixões no qual atirei o desespero de minha alma, e ouso reunir meu intelecto em sua santa memória. Se me dirijo a você é para pedir com grande temor e tremor que me seja concedido, apesar de minha indignidade, tornar-me seu servidor, de guardar por sua graça meu intelecto longe de toda imagem, de toda forma, de toda cor, de toda matéria, de me prosternar diante de você, o Deus único e Criador do universo, como antes Daniel diante do seu anjo, de joelhos e em suas mãos, e de apresentar diante de você minha ação de graças, e depois minha confissão.

Assim, miserável, eu começo por implorar sua santíssima vontade, rendendo graças pelos bens que você me concedeu, a mim que sou terra, poeira e cinzas. Todo meu ser é terrestre, mas me foi dado dirigir-me a você apenas pelo intelecto. E diante do pensamento que eu sou visto por você, com toda a minha alma eu clamo e digo: Mestre cheio de amor, eu lhe dou graças, ei o glorifico, eu o celebro, eu o adoro. Eu sou indigno, e no entanto você me permitiu nesta hora agradecê-lo e estar inteiramente à escuta daquilo que você fez e faz todo o tempo conosco por sua graça, estas maravilhas e esta bondade presentes nas obras da alma e do corpo, inumeráveis e insondáveis, visíveis e invisíveis, que conhecemos e que ignoramos. Eu não escondo suas benesses. Eu evoco suas compaixões, eu o confesso, Senhor meu Deus, de todo meu coração. Eu glorifico seu nome por toda a eternidade. Pois sua piedade é grande para comigo[158]. E sua atenção e sua paciência são inefáveis diante da multidão das minhas iniquidades e dos meus pecados, das minhas impiedades e das minhas faltas, daquilo que eu fiz, que faço constantemente e que farei, conscientemente ou por ignorância, em palavras, atos e pensamentos, todas essas coisas das quais me libertou sua graça, aquilo que você sabe desde meu nascimento até o fim da minha vida, Senhor que conhece os corações; e apesar disto tudo, infeliz, eu não ouso confessá-lo.

Eu pequei, eu fui iníquo e ímpio[159], fiz o mal diante de você[160], e não sou digno de contemplar e de ver as alturas celestes. Mas, confiando em seu inefável amor pelo homem, em sua bondade e sua misericórdia que ultrapassam a inteligência, eu me prosterno e imploro: tenha piedade de mim, Senhor, por que sou fraco[161]. Perdoe a multidão dos meus males. Não me deixe pecar mais nem me desviar do caminho reto, não me deixe mais ferir nem afligir ninguém. Refreie em minha toda malícia, todo mau hábito, todo impulso selvagem da alma e do corpo, do ardor e do desejo. Ensine-me a fazer a sua vontade. Tenha piedade dos meus irmãos e dos meus pais espirituais, de todos os monges e de todos os padres em todo lugar, dos meus pais, meus irmãos e minha família, daqueles que nos servem e daqueles a quem servimos, dos que oram por nós, dos que nos pediram que rezássemos por eles, dos que nos odeiam e dos que nos amam, dos que abençoei e dos que afligi, dos que me afligiram e dos que me afligirão, e de todos os que creem em você. Perdoe-me todo pecado, voluntário ou involuntário. Proteja nossa vida e nossa saída deste mundo dos espíritos impuros e de todas as tentações, de todo pecado e de toda malícia, do orgulho e do desespero, da descrença e da perdição, da presunção e da negligência, da ilusão e da desordem, das mentiras e das armadilhas do diabo. Conceda-nos o que é bom para nossas almas no século presente e no século futuro, conforme agradar ao seu amor pelo homem. Conceda o repouso aos nossos pais e irmãos que nos deixaram. Pelas orações de todos os que se compadecem de minha miséria tenha piedade de minha perdição, veja como tudo me oprima, corrija minha conduta, dirija minha vida e meu fim para a paz. Faça de mim o que quiser e como quiser, queira eu ou não. Mas que eu não deixe de estar à sua direita no dia do Juízo, Senhor Jesus Cristo, meu Deus, ainda que eu seja o último dos servidores resgatados. Dê paz a seu mundo, tenha piedade de todos. E torne-me digno de receber seu corpo puro e seu sangue precioso para a remissão dos pecados, pela comunhão do Espírito Santo, como garantia da vida eterna com você e com seus eleitos, pelas orações da Mãe puríssima, das santas Potências celestes e de todos os Santos. Pois você é bendito pelos séculos dos séculos. Amém.

Santíssima e Soberana Mãe de Deus, todas as Potências celestes dos santos Anjos e Arcanjos e de todos os Santos, intercedam por mim, o pecador.

Deus nosso Mestre, Pai que domina o universo, Senhor Filho único Jesus Cristo e Espírito Santo, etc.

Logo, para cortar pela raiz os próprios pensamentos, dizemos três vezes: “Venham, adoremos e prostremo-nos diante de nosso Rei e Deus[162]”. Então, começamos os salmos, tomando como antífona o Trisságio e reunindo o intelecto em torno do que é dito. Ao final, quarenta Kyrie eleison a cada antífona, prosternando-se e dizendo esta prece: “Pequei, Senhor, perdoe-me”. Levantando, estendemos as mãos e dizemos: “Deus, purifique a mim, pecador[163]”. Em seguida repetimos a primeira oração: “Venham, adoremos...”, e rezamos outra antífona.

Entrementes, a cada vez que a graça nos amansa o coração, devemos guardar o intelecto nas águas da compunção, mesmo que a boca continue a cantar e que o pensamento seja levado cativo, neste bom cativeiro de que fala santo Isaac[164]. Pois este é o tempo de colher, não o de plantar[165]. Devemos permanecer nestes pensamentos, a fim de que o coração se enterneça e dê seu fruto, as lágrimas de Deus. Você será colhido pela compunção, ainda que por uma única palavra, como disse João Clímaco: permaneça nela[166]. Pois todas as energias do corpo, ou seja, o jejum, a vigília, a salmodia, a leitura, a hesíquia e as demais, só existem para purificar o intelecto. Mas o intelecto não pode se purificar sem o luto. Então ele se une a Deus por intermédio da prece pura que o arrebata a todos os pensamentos e o torna sem imagem e sem forma. Pois tudo o que é bom devido a essas energias pode se tornar bom, mas pode também se tornar o seu contrário. Para ser bem feita, toda coisa necessita de discernimento.

Sem o discernimento, não temos como conhecer a natureza das coisas. E talvez a maior parte de nós fique escandalizada por ver contradição entra as palavras e os atos dos santos Padres. Assim é que a Igreja recebeu o canto dos tropários com sua melodia, e numerosos hinos. Mas João Clímaco, ao louvar os que vivem no luto segundo Deus, diz que estes homens não têm que proclamar sua alegria cantando hinos[167]. E santo Isaac, quando fala dos que possuem a prece pura, diz que acontece muitas vezes reunirem seu intelecto na oração e caírem então de joelhos, como o profeta Daniel, com as mãos estendidas e os olhos contemplando a cruz de Cristo. Os pensamentos de tais homens se transformam e seus membros relaxam desde que um sentido novo entra por si só em seu intelecto[168].

Sobre estas coisas muitos dos santos Padres escrevem também que não apenas pelo arrebatamento do intelecto eles ultrapassaram os cantos e as salmodias, como ainda esqueceram, como disse são Nilo[169], o próprio intelecto.

Por causa da fraqueza de nosso intelecto, a Igreja recebeu os cantos e os tropários como algo bom e que agrada a Deus, a fim de que, pela doçura da melodia, nós, que não temos o conhecimento, celebremos a Deus apesar disso. Mas os que possuem o conhecimento e compreendem o que dissemos, alcançam a compunção. Nós então nos elevamos como que sobre uma escada para atingir os pensamentos bem-aventurados de que fala João Damasceno. E quanto mais progredirmos no costume desses pensamentos divinos, mais o desejo de Deus nos levará a compreender, mais atingiremos a adoração do Pai em espírito e em verdade[170], como disse o Senhor. É o mesmo que diz o Apóstolo: “Eu prefiro dizer cinco palavras com minha inteligência do que dez mil com a língua[171]”, etc. E também: “Quero que em toda parte os homens elevem aos céus mãos santas, sem cóleras nem disputas[172]”. Assim a salmodia é o remédio da fraqueza, e a prece pura a perfeição do intelecto. A questão fica assim resolvida. Tudo é bom a seu tempo[173]. Mas tudo parece intempestivo e contraditório aos que ignoram o tempo de cada coisa. Como disse Salomão: “Existe um tempo para tudo[174]”.

Entretanto, quando alcançamos as meditações bem-aventuradas, devemos permanecer rigorosamente atentos em guardar em nós estas contemplações, para não sermos abandonados pela graça se cairmos na negligência e na presunção, como disse santo Isaac[175]. Pois se os pensamentos divinos crescem na alma do homem e o levam a uma maior compunção, a uma maior humildade, devemos sempre agradecer a Deus confessando-lhe a graça que ele nos concedeu para conhecermos estas coisas. Mas devemos sempre nos considerar indignos. E se estas coisas nos deixam, se outra vez a reflexão se obscurece e rejeita o temor e o luto, devemos profundamente nos afligir e nos humilhar em atos e palavras, vendo a graça nos abandonar, a fim de conhecermos nossa fraqueza, adquirir a humildade e nos aplicarmos em nossa correção, como disse o grande Basílio[176]. Pois se vigiássemos para guardar o luto diante de Deus, jamais ficaríamos privados de lágrimas no momento em que ele nos chama. Por isso devemos sempre reconhecer nossa fraqueza e a graça de Deus, e jamais desesperar, aconteça o que acontecer, mas também não devemos estar seguros de que sejamos alguma coisa. Antes devemos sempre esperar humildemente em Deus. É o que deve fazer em atos e palavras aquele que busca a abundância de lágrimas, pois a ele foi dada esta graça, e ele não aguardou a presciência de Deus, por causa da negligência e da presunção passada, presente ou futura a que nos referimos.

A quem desleixa tais carismas – o luto, as lágrimas, os pensamentos luminosos – que lhe restará, senão “Oh! Pobre de mim!”? Pois ninguém no mundo é mais insensato do que ele. Foi-lhe concedido deixar o que é contra a natureza para esperar pela graça as coisas sobrenaturais, as lágrimas da consciência e do amor. E por causa de coisas insignificantes, por causa de pensamentos estranhos e por causa de suas próprias vontades ele se voltou para a ignorância dos animais, como o cachorro que volta ao seu próprio vômito[177]. E, no entanto, se ele quiser novamente, se ele se consagrar a Deus na leitura das divinas Escrituras com atenção e preocupação com a morte, se, na medida do possível ele proteger seu intelecto dos pensamentos vãos durante a prece, ele poderá reencontrar o que perdeu, sobretudo se ele não afligiu ninguém, se, mesmo tendo sofrido de alguém os maiores males ele não se deixou afligir, mas com toda sua força cuidou do seu agressor por palavras e obras. O intelecto, liberado da perturbação do ardor, encontrará certamente a maior alegria com isto. Este homem aprenderá pela experiência a jamais negligenciar sua alma, por medo de que ela novamente seja abandonada. O temor o protegerá da queda. Vertendo lágrimas de arrependimento e luto, ele não descansará sem derramar lágrimas de amor e de alegria, por meio das quais, pela graça de Cristo, ele encontrará a paz dos pensamentos. É isto que acontecerá.

Mas nós, que ainda somos passionais e temos o coração pesado, devemos sempre nos ater às palavras do luto e nos examinarmos a cada antes da regra[178], durante e depois dela, nos aplicando, se ainda formos fracos, ao repouso conforme Deus e à detenção de todas as coisas, como disse santo Isaac. Ou, se nossos olhos não dormem, se nossa reflexão é sóbria e vigilante, permanecendo sem nada fazer, como disse João Clímaco. Vigie por encontrar aí seu progresso. É preciso que nossa alma se feche e comece a chorar, disse são Doroteu. Isto vale para tudo o que dissemos das três primeiras contemplações, a fim de que possamos chegar às demais e, em primeiro lugar, à quarta.


Da quarta contemplação.

Devemos compreender aqui o que foi a descida de nosso dulcíssimo Salvador Jesus Cristo entre nós, o que foi sua vida no mundo, e depois, pouco a pouco, esquecer este mesmo alimento, como disse o grande Basílio. É isto que ouvimos também dizer o bem-aventurado Davi. Ele se esqueceu de comer seu pão, diz João Clímaco[179], quando sua reflexão foi arrebatada para as maravilhas de Deus num grande êxtase. E ele não sabia como deveria agradecer, disse Basílio o testemunho do céu[180]: “Como agradeceremos ao Senhor por tudo o que nos fez?[181]”.

Deus veio aos homens por nós. Por causa de nossa natureza corrompida o Verbo se fez carne e habitou entre nós[182]. Para os ingratos, ele é o Benfeitor. Para os cativos, o Libertador. Para os que vagavam nas trevas[183], o Sol de justiça[184]. Sobre a cruz, ele é o Impassível. No inferno, a Luz. Na morte, a Vida. Para os que tombaram, ele é a Ressurreição. Cantemo-lo: “Nosso Deus, glória a ti!”. E João Damasceno: “O céu se maravilhou e os confins da terra foram agitados, admirando que Deus se revelasse num corpo dentre os homens, e que seu seio foi mais vasto do que os céus. Mãe de Deus, as ordens dos anjos e dos homens a exaltam”. E ainda: “Tudo o que é capaz de compreender treme diante da misteriosa descida de Deus entre nós. O Altíssimo quis descer até tomar um corpo. Ele se fez homem no seio virginal. Fiéis, nós exaltamos a puríssima Mãe de Deus. Venham, povos, tenham confiança. Subam na Montanha celeste. Habitemos fora da matéria na Cidade do Deus vivo. E contemplemos pelo intelecto a imaterial Divindade do Pai e do Espírito irradiando no Filho único. Você me arrebatou pelo desejo, ó Cristo. Você me transformou com seu amor divino. Agora consuma meus pecados no fogo imaterial e permita-me ser cumulado das delícias que estão em você, a fim de que, em minha alegria, ó bom Deus, eu exalte suas duas vindas. Salvador que é inteiro doçura, inteiro desejo e tensão inesgotável, você é inteiro beleza maravilhosa”.

Aquele que, pelas virtudes do corpo e da alma, recebeu o conhecimento dessas coisas e os mistérios ocultos nas palavras dos santos homens e das divinas Escrituras, em especial dos santos Evangelhos, nem por isso se detém em desejar e verter lágrimas que dele brotam por si sós. Também nós, que não fazemos senão ouvir as Escrituras, devemos sempre nos aplicar e nos exercitarmos para que, com o tempo, o desejo de Deus fique gravado em nossos corações. É o que diz são Máximo e o que fizeram os Padres, antes de receber o conhecimento interior.

Todo o desejo dos mártires estava voltado unicamente para o Mestre. Eles se uniam a ele por meio do amor e cantavam, como diz João Damasceno dos três adolescentes: “Os bem-aventurados Filhos da Babilônia se expuseram ao perigo por causa das leis paternas. Eles recusaram a ordem insensata do tirano. Eles foram atirados ao fogo, mas não foram consumidos. E eles cantaram o hino digno d’Aquele que os guardava”. Em tempo: quando alguém sente as maravilhas de Deus, sai inteiramente de si mesmo e esquece até desta vida passageira, pois compreende as divinas Escrituras, disse santo Isaac[185]. Porém, não como nós, que recebemos talvez das Escrituras um pouco desta compunção que nos alquebra, mas que a nossa negligência, esquecimento e ignorância nos conduzem às trevas, e nossa insensibilidade nos conduz às paixões. Mas quem foi purificado das paixões pelo luto sente os mistérios ocultos em todas as Escrituras. Todos estes mistérios o viram pelo avesso, em especial as obras e as palavras do santos Evangelho: como a sabedoria de Deus torna fáceis as coisas mais difíceis e paulatinamente transforma um homem em Deus. Ela o torna tão bom como alguém que é capaz de amar seus inimigos. Compassivo, como o Pai é compassivo[186]. Impassível, como Deus é impassível. Cheio de todas as virtudes e perfeito, como o Pai é perfeito[187]. Numa palavra, a própria santa Bíblia ensina ao homem aquilo que convém a Deus, para que, por adoção, o homem se torne Deus.

Como não admirar a obra do santo Evangelho? Pela simples resolução ele concede o repouso e todas as honras tanto no século presente quanto no século futuro, como disse o Senhor: “Quem se rebaixar será elevado[188]”. Aqui Pedro é testemunha, abandonando as redes e ganhando as chaves do céu[189]. Também os demais apóstolos testemunharam ter cada qual abandonado o pouco que possuíam para receber em mãos o mundo inteiro no século presente e no futuro. Eles receberam o que o olho não pode ver, o que o ouvido não pode ouvir, o que não chega ao coração do homem[190].

E estas coisas não aconteceram apenas aos apóstolos, mas a todos os que as assumiram até hoje, como disse um dos Padres: “Se eles penaram no deserto, é certo que receberam também um imenso repouso”. Ele se referia à vida sem perturbações e sem inquietações. Que nos parece isto? Quem recebe mais descanso, aquele que se consagra a Deus e age de acordo, ou o que passa seu tempo no tumulto dos tribunais e nas preocupações desta vida? Aquele que está sempre voltado para Deus pelo estudo das divinas Escrituras, a prece constante e as lágrimas, ou o que se dedica ao mal e vela sobre as fraudes e as iniquidades em que fracassará quando não lhe restarem mais do que o sofrimento e a morte dupla? Deste modo sofremos a morte mais penosa e a desonra, sem nada ganharmos com isto. Por causa desta perdição alguns fizeram à própria alma um mal imenso. Penso nos ladrões, nos piratas, nos debochados, nos guerreiros, nos que não quiseram ser salvos, receber o repouso, a honra e o prêmio. Mas quanta cegueira! Sofremos a morte por nos termos perdido. E, para sermos salvos, sequer amamos a vida.

Mas se preferimos a morte ao Reino dos céus, que fazemos de mais do que o ladrão, o profanador ou o guerreiro que, apenas pelo pão, tantas vezes sofreram a morte futura com a morte presente? Caso contrário, devemos ver em Cristo o objetivo primeiro pelo qual o Reino dos céus é dado aos que o assumem: a tudo rejeitar pelo intelecto, a tudo dominar, reinar no século presente não apenas sobre as coisas, mas sobre os corpos, desprezando-os, e sobre a morte pela audácia da fé, e reinar eternamente no século futuro com Cristo no corpo pela graça da ressurreição comum. A morte vem igualmente para o pecador e para o justo. Mas a diferença é grande. Os dois morrem como mortais, não há com que se espantar. Mas um não recebe recompensa e é sem dúvida condenado, enquanto que o outro é bem-aventurado no século presente e no século futuro.

Que vantagem existe em adquirir dinheiro? Aquele que acredita possuir será constrangido a abandoná-lo, não apenas na hora da morte, mas muitas vezes também antes da morte, e não sem muita confusão, fadiga e sofrimento. É também por causa do dinheiro que alguns sofreram a morte em meio às inumeráveis tentações da riqueza, vale dizer, o medo, a preocupação, a tristeza contínua, a perturbação, quisessem ou não. Mas o santo mandamento[191] liberta o homem de todas estas coisas. Ele concede a ausência de todas as preocupações, de todo medo, e também a alegria inefável dos que por si mesmos escolhem a despossessão. O que pode haver de mais feliz do que ser impassível, inteiramente desembaraçado do ardor e do desejo que as coisas deste mundo podem inspirar? O que pode haver de mais feliz do que considerar como nada aquilo que tanto cobiça a maioria, do que estar acima de tudo, do que viver como quem está no Paraíso, ou até no céu, acima de toda obrigação, na ausência de preocupações e na consagração a Deus? Pois se este homem suporta os acontecimentos com alegria, tudo o que lhe acontece o descansa. Se ele ama a todos os seres, ele é amado por todos. Se ele despreza tudo, ele está acima de tudo. Ele recusa possuir aquilo pelo quê os outros lutam, e fica triste se fraqueja e condena a si mesmo se obtém o que eles cobiçam. É pelos mandamentos que aquele que deseja algo se liberta de todos os males no século presente e no futuro. Pois recusar aquilo que não se possui é digno de todo descanso, e está além da riqueza. Mas cobiçar o que não se possui é o maior castigo que pode haver antes do castigo eterno. Este homem é escravo, ainda que aparentemente seja um rei muito rico. Qual é este peso de que falam os mandamentos do Senhor? Infeliz, é o de nada fazer gratuitamente e com fervor.

Portanto, aquele que pode conhecer em parte a graça do santo Evangelho e aquilo que ele contém, vale dizer, os atos e os ensinamentos do Senhor, seus mandamentos e sua doutrina, as ameaças e as promessas, sabe quais tesouros inesgotáveis encontrou, mesmo que não possa falar adequadamente deles, uma vez que as coisas do céu são inefáveis. De fato, Cristo está oculto no Evangelho, e quem o quiser encontrar deve primeiro vender tudo o que possui[192] e adquirir o Evangelho, a fim de poder não apenas encontrar a Cristo pela leitura, mas também recebê-lo em si pela imitação de sua vida no mundo. Pois aquele que procura Cristo, diz são Máximo, não deve buscá-lo fora, mas em seu próprio coração[193]. De corpo e alma, ele deve ser como foi Cristo, sem pecado tanto quanto é possível a um homem, e guardar com toda sua força o testemunho de sua consciência[194], a fim de reinar sobre toda vontade própria, de dominá-la pelo desdém, ainda que para o mundo ele seja pobre e desonrado. Pois de que serve a um homem ser rei em aparência se ele for tiranizado neste século pelo ardor e pelo desejo e se ele encontrar no século futuro o castigo eterno, por não ter guardado os mandamentos divinos? Que loucura! Como podemos não querer os bens eternos em troca de pequenas coisas passageiras? E no entanto, nós rejeitamos estes bens, e buscamos o seu contrário.

O que pode haver de mais simples do que beber um copo de água fresca ou um pedaço de pão, ou de nos abstermos de nossas vontades próprias e de nossos pequenos pensamentos? É por meio destes gestos que recebemos o Reino dos céus, pela graça d’Aquele que disse: “Eis que o Reino de Deus está dentro de vocês[195]”. Pois o Reino não está longe, nem fora, diz João Damasceno. Ele está dentro. Queira simplesmente dominar as paixões, e pronto, você vive como agrada a Deus, e tem o Reino em si. Mas se você não quiser nada, você não obterá nada. Pois o nome do Reino de Deus, dizem os Padres, é a vida que agrada a Deus, é a primeira descida do Senhor e também a segunda. A segunda vinda de Cristo é anunciada no Evangelho com palavras de luto. Mas quem, pela graça, recebe em si a primeira vinda, deve dizer, sentindo-o com toda sua alma e com grande maravilhamento: “Grande é o Senhor, e maravilhosas as suas obras[196]”. Nenhuma palavra será bastante para cantar suas maravilhas, Mestre dulcíssimo; diante de você estou seu, seu servidor sem voz, sem obras, imóvel diante de sua face. Eu espero a iluminação do conhecimento que vem de você, pois você disse: “Sem mim vocês nada podem[197]”. Ensine-me o que provém de você. É por isso que eu ouso me sentar aos seus puríssimos pés, como a irmã de Lázaro[198], seu amigo, para que também eu possa ouvir em meu intelecto alguma coisa de você, senão sobre sua incompreensível divindade, ao menos sobre sua vida corporal no mundo, e ainda para que eu possa sentir um pouco o que você disse no santo Evangelho de sua graça, como você viveu entre nós, doce e humilde de coração[199], aquilo que sua santa boca nos ordenou aprendêssemos, a pobreza em que você escolheu viver, você, tão rico em misericórdia[200] e que, conhecendo voluntariamente o sofrimento e a sede, deu à Samaritana a água da vida[201], conforme você disse, Senhor: “Quem tem sede venha a mim e beba[202]”. Pois você é a fonte dos remédios; quem poderá cantar a vida no mundo?

Eu não passo de terra e cinzas, poeira, transgressor, assassino de mim mesmo. Já pequei tanto, e continuo pecando. No entanto, você me concedeu conhecer profundamente alguns de seus atos e de suas palavras, e ousar interrogá-lo a respeito deles. Você é invisível para toda a criação. Mas pela fé eu penso poder vê-lo, perdoe-me a audácia. Pois, Senhor que conhece os corações, você sabe que eu não o ignoro indiscretamente, mas que eu procuro aprender. Eu acredito que, se sou digno do conhecimento que vem de você, em seu amor pelos homens você também me dará, como aos que o desejam, a força para trabalhar em sua obra, tanto quanto me for possível, imitando sua vida na carne, pela qual eu recebi a graça de ser chamado cristão. Embora ninguém possa, como os discípulos, sofrer a morte pelos inimigos, nem reencontrar o que foram sua pobreza e sua virtude, e a pobreza e a virtude deles, cada um de nós o pode, ainda que em parte, por sua resolução. Ainda que morramos a cada dia por você, jamais poderemos pagar-lhe o que lhe devemos. Pois, Senhor, você é Deus perfeito e Homem perfeito. Você levou uma vida sem pecado neste mundo e a tudo sofreu por nós. Nós, mesmo que soframos alguma coisa, é por nós mesmos e por nossos pecados que o fazemos.

Quem não se admira ao compreender sua inefável descida entre nós? Você é o Deus incompreensível e todo-poderoso. Você mantém o universo, habita acima dos Querubins[203], dos quais se dizem que distribuem a sabedoria. Do alto dos céus você se humilhou por nós, que provocáramos sua cólera desde o início. Você aceitou nascer e crescer entre nós, ser perseguido, lapidado, ridicularizado, injuriado, espancado, esbofeteado. Nós nos divertimos com você, nós cuspimos em você. Depois você conheceu a cruz e os pregos, a esponja e os espinhos, o fel e o vinagre, e outras coisas que não sou digno de ouvir. Depois a lança perfurou seu flanco tão puro, donde verteu por nós a vida eterna: seu sangue precioso e a água.

Eu celebro seu nascimento e aquele que o deu à luz, a quem você conservou Virgem tanto depois como antes do nascimento. Eu o adoro envolto em panos na caverna e na manjedoura. Eu o glorifico fugindo para o Egito com a Virgem puríssima, sua Mãe, depois indo morar em Nazaré submisso a seus pais na carne: seu pai presumido e sua verdadeira Mãe. Eu o canto, Senhor, batizado no Jordão pelo Precursor. Canto o Pai que deu testemunho de você e o Espírito Santo que o revelou. Canto seu batismo e o Batista, João o profeta, seu servidor. Eu o glorifico, jejuando por nós, voluntariamente tentado, vencedor do inimigo no corpo que você recebeu de nós, dando-nos a vitória sobre ele pela sabedoria inefável, e depois indo viver com seus discípulos, purificando os leprosos, endireitando os paralíticos, levando sua luz aos cegos, a palavra e a audição aos mudos e aos surdos, abençoando os pães, caminhando sobre o mar como se fosse terra firme, ensinando a os tolos como agir e contemplar, anunciando as coisas do Pai e do Espírito Santo, predizendo as ameaças e as promessas que nos esperam assim como tudo o que nos conduz à salvação, prevenindo-nos contra o inimigo e desenraizando as paixões com seu sábio ensinamento, instruindo os tolos e confundindo os hábeis com sua infinita sabedoria, ressuscitando os mortos com seu poder inefável e expulsando os demônios com seu poder, pelo Deus do universo. E não apenas você fez essas coisas por si próprio, como ainda concedeu aos seus servidores o poder de fazer ainda maiores[204], para que a partir daí estejamos sempre nos admirando por você, Senhor, como você o disse. Pois por você seus santos operaram maravilhas.

Mestre, Senhor, Jesus Cristo, Filho e Verbo de Deus, dulcíssimo nome de nossa salvação, grande é a sua glória, grandes são as suas obras, maravilhosas as suas palavras, mais doces do que a cera[205]. A você a glória, Senhor, a você a glória. Quem poderá glorificar e cantar sua descida entre nós, sua bondade, seu poder, sua sabedoria, sua vida no mundo, seu ensinamento? O modo como seus santos mandamentos nos ensinam naturalmente a viver facilmente as virtudes? Como você mesmo disse, Senhor: “Perdoem e serão perdoados[206]”. E ainda: “Busquem e encontrarão. Batam e se abrirá para vocês[207]”. “O que vocês quiserem que os homens façam por vocês, façam-no por eles[208]”. Que, ao tomar consciência de tais mandamentos e de outras palavras, não seria tocado ao compreender sua infinita sabedoria? Você é a sabedoria de Deus, a vida do universo, a alegria dos anjos, a luz inefável, a ressurreição dos mortos, o bom Pastor que dá sua vida por suas ovelhas[209]. Eu canto sua transfiguração, sua crucificação, seu enterramento, sua ressurreição, sua ascensão, seu assento à direita de Deus Pai, a vinda do Espírito Santo, e sua segunda descida em poder e glória imensa e incompreensível.

Eu me esvazio, meu Senhor, diante das suas maravilhas. E, na impotência em que me encontro, quero fugir para o silêncio. Mas não sei o que fazer. Se me calo, sou abatido. Se ouso dizer alguma coisa, fico cada vez mais fora de mim. Não sou digno de considerar os céus e a terra. Sou sim digno de todo castigo, não apenas por meus pecados, mas mais ainda pelas benesses que recebi, miserável, em minha ingratidão. Pois você cumulou minha alma de todos os bens, Senhor infinitamente bom. Eu aprendi uma parte de suas obras, e minha inteligência está fora de si[210]. Eu não valho nada, tudo o que faço é olhar o que é seu, Mestre. Não é meu o conhecimento, não é minha a obra, só existe a sua graça. É por isso que levo a mão à boca, como o fez Jó[211], e, na dificuldade em que me encontro, infeliz, eu me refugio aos pés dos seus santos.

Boa Soberana do mundo, você sabe que nós, os pecadores, não temos nenhuma garantia diante do Deus a quem você deu nascimento. Mas somos seus servidores e nos confiamos a você, nos prosternamos diante do Mestre e lhe oferecemos sua mediação, pois você tem toda a liberdade diante dele, seu Filho e nosso Deus. Em você eu creio, e em minha indignidade a você me dirijo, Soberana, e peço que me seja dado sentir as graças que você e os demais santos conheceram, e pelas quais receberam tantas virtudes. Só o fato de que tenha você dado à luz o Filho de Deus atesta ser você mais elevada do que todos os seres. Aquele que conhece todas as coisas antes que aconteçam, o Criador do universo, em você encontrou um cálice digno de sua moradia. E ninguém pode interroga-la sobre seus mistérios que ultrapassam a natureza, o intelecto e a razão. Salvos pela sua intercessão, nos a confessamos Mãe de Deus, Virgem pura, e a exaltamos juntamente com o coro dos anjos. Pois é impossível aos homens ver a Deus, a quem sequer as ordens dos anjos ousam contemplar. Mas por seu intermédio, toda Pura, o Verbo encarnado se revelou aos mortais. Nós a exaltamos junto com as potências celestes e a chamamos bem-aventurada. Como poderemos chamá-la, ó cheia de graça? Céu, etc. Mãe de Deus, é você a vinha verdadeira que trouxe o fruto da vida. Nós lhe suplicamos, gloriosa Soberana, interceda juntamente com os apóstolos e todos os santos, para que ele tenha piedade de nossas almas que a confessam na ortodoxia Mãe de Deus e a chamam sempre bem-aventurada, Soberana, como você mesma profetizou[212]. Por todas as gerações a chamamos bem-aventurada, única Mãe de Deus, mais venerável que os Querubins e mais gloriosa que os Serafins. Eu sou incapaz de compreender os seus mistérios.

Mas eu proclamarei também minha admiração diante dos outros santos. Como viveu você no deserto, Batista o Precursor do Senhor? Como o chamaremos? Profeta? Anjo, apóstolo ou mártir? Anjo, por que viveu como um incorpóreo. Apóstolo, pois apanhou as nações em sua rede. Mártir, por que por Cristo teve a cabeça cortada. Suplica-lhe que salve nossas almas. Pois disse Salomão: “A memória dos justos seja bendita[213]”. Mas a você, Precursor, basta o testemunho do Senhor.

Santos apóstolos e discípulos do Salvador, que viram os mistérios, que pregaram Aquele que não se pode ver e que não teve começo. Vocês disseram: “No princípio era o Verbo[214]”. Vocês que não nasceram antes dos anjos nada tinham a aprender dos homens, mas da sabedoria do alto. Então a vocês pedimos, a vocês que têm esta liberdade, intercedam por nossas almas. É admirável seu amor por Deus, como dizem os antigos tropários: “Senhor, os apóstolos nada desejavam sobre a terra senão você. Para merecê-lo, e apenas a você[215], eles consideraram tudo o mais como inútil. Por você eles entregaram seus corpos à violência. Glorificados, eles intercedem por nossas almas. Como nós, vocês foram homens em sua carne de argila. Como é possível que tenham mostrado tantas virtudes, ao ponto de sofrer a morte nas mãos daqueles que o mataram? Como, sendo tão poucos, conquistaram o mundo inteiro? Como, sendo simples e iletrados[216], venceram os reis e os poderosos? Como, sem armas, nus e pobres, na fraqueza de sua carne, dominaram os demônios invisíveis: Que força era esta, ou que fé era esta, por meio da qual receberam o poder do Espírito Santo, vocês e os santos mártires que combateram o bom combate[217] e foram coroados? Intercedam junto ao Senhor, para que ele tenha piedade de nossas almas”, apóstolos, mártires, profetas, hierarcas, santos monges.

Quem não se admira de ver, santos mártires, o bom combate que vocês conduziram? Como, estando em um corpo, venceram o inimigo incorpóreo? Vocês confessaram a fé em Cristo. A cruz foi a sua armadura, e vocês expulsaram os demônios e combateram os bárbaros. Orem sem cessar para que sejam salvas nossas almas. Como os três adolescentes que se foram antes de vocês, vocês tampouco sofreram o martírio na esperança de uma recompensa, mas por amor a Deus, conforme foi dito: “Mesmo que ele não nos liberte, não o renegaremos por não nos haver salvado[218]”.

Três santos adolescentes, sua humildade extrema é admirável. Em meio às chamas, tudo o que diziam era não saber como dar graças: “Já não há neste tempo nem príncipe, nem profeta, nem guia[219]”. Suas almas estavam quebrantadas e seus espíritos humilhados. Eu admiro o poder de Deus que veio sobre vocês e sobre o profeta Elias, como disse João Damasceno: “Da chama você fez brotar o orvalho sobre seus santos[220], e inflamou na água o sacrifício do Justo[221]. Ó Cristo, que fez tudo isto por sua simples vontade”.

Mas que devo eu agora considerar? A obra do santo Evangelho, ou os atos dos santos apóstolos? Os combates dos santos mártires, ou as lutas dos santos Padres? As ações dos antigos santos, homens e mulheres, ou as dos de agora? As vidas e as sentenças de todos, ou sua interpretação e seu discernimento? Eu não sei, a tal ponto tudo isto me ultrapassa.

Mas eu lhe peço, Senhor que ama o homem, não permita que eu seja condenado por causa da maneira indigna e ingrata com que eu considero tantos mistérios que você revelou aos seus santos, e por intermédio deles a mim pecador, seu servidor indigno. Pois eis que seu servidor está diante de você, Mestre, em tudo estéril e sem voz, como um morto que não ousa dizer outra coisa nem refletir impudentemente. Mas como sempre eu me prosterno e chamo do fundo da minha alma: “Mestre, em seu grande amor[222]”, e rezo a oração. É preciso acrescentar as demais preces e salmos, vigiar por guardar a alma e o corpo nos seus devidos caminhos, a fim de acessar a experiência dos pensamentos divinos. Poderemos então perceber e sentir profundamente os mistérios e as coisas extraordinárias que estão nas divinas Escrituras, enfim, maravilhados pelos dons de Deus, chegar a amar apenas a ele e por ele sofrer com alegria, como todos os santos. Pois as divinas Escrituras são uma fonte de maravilhas e encantamento, disse o divino Salomão[223].

Dentre outras maravilhas eu admiro o poder de Deus relativo ao maná. Pois em sua forma o maná não podia ser guardado para o dia seguinte. Ele se dissolvia e se enchia de vermes[224], para que não cuidássemos do dia seguinte em nossa falta de fé, mas se conservava sempre intacto no interior do vaso que ficava dentro da tenda. E mais: cozido ao fogo ele não fervia, mas se dissolvia ao menor raio de sol, para que os insaciáveis não ajuntassem nada além do necessário. Que maravilha ver o modo como Deus opera em toda parte para a salvação dos homens, como disse o Senhor ao falar da Providência divina: “Meu Pai continua trabalhando até agora, e eu também trabalho[225]”. Aquele que se dedica a esta obra consagrando-se a Deus recebe então por meio dos sentidos o ensinamento das divinas Escrituras, e por meio do intelecto o ensinamento da providência de Deus. Ele então começa a ver as coisas em sua natureza, como disseram Gregório de Nazianze e João Damasceno. Ele não é mais absorvido pelo encanto exterior das coisas deste mundo, ou seja, pela beleza, a riqueza, a glória passageira, etc. Ele não é mais seduzido pelas sombras que elas projetam, como os que ainda são passionais.


Do quinto conhecimento.

O profeta chama de conselho[226] este quinto conhecimento que, como foi dito ao final das beatitudes, nos permite conhecer a natureza e as transformações das criaturas sensíveis. Elas provêm da terra e retornam à terra, como diz o Eclesiastes: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade[227]”. João Damasceno diz a mesma coisa: “Tudo o que é humano, tudo o que cessa de existir depois da morte, é vaidade. A riqueza não permanece. A glória não nos acompanha. Todas essas coisas desaparecem quando chega a morte”. E também: “Tudo é verdadeiramente vaidade. É em vão que o homem nascido da terra[228] se agita sobre a terra, como diz a Escritura. Mesmo que ganhemos o mundo, não habitaremos senão a cova, onde são iguais reis e pobres”.


Do sexto conhecimento

Ao alcançarmos a impassibilidade recebemos o sexto conhecimento, que se chama força[229]. Então começamos a olhar impassivelmente para a beleza das criaturas sensíveis.

Todos os pensamentos têm três estados: o humano, o demoníaco e o angélico[230]. O estado é humano quando no coração surge o simples pensamento das criaturas. Pensamos num homem, no ouro ou em qualquer criatura sensível. O estado demoníaco é uma mistura de pensamento e paixão. Pensamos num homem, mas este pensamento se mistura com um amor irracional, e a relação com o amado não passa por Deus, mas pela prostituição. Ou ainda o pensamento vem misturado com uma raiva confusa, com rancor e reprovação. Da mesma forma, pensamos no ouro misturando a ele a avareza, o roubo, a cobiça, etc., ou a aversão e a blasfêmia em relação às obras de Deus. Em ambos os casos, trabalhamos na nossa perdição. Pois “se não amamos as coisas em sua relação com o divino, se as preferimos ao amor a Deus, em nada nos distinguimos dos idólatras”, disse são Máximo[231]. E também: “Se nós as odiamos, se não consideramos que elas sejam boas[232]”, nós provocamos a cólera de Deus.

O estado angélico consiste na contemplação impassível das coisas. Este é o verdadeiro conhecimento, o verdadeiro caminho do meio entre dois abismos, que guarda o intelecto e permite separar o justo fim das sei armadilhas do diabo que o cercam, as armadilhas que estão acima e abaixo, à esquerda e à direita, no interior e no exterior do justo fim, que é o verdadeiro conhecimento situado como que no centro destas seis armadilhas. Os anjos terrestres o ensinam àqueles que morrem voluntariamente para o mundo para tornar impassível o intelecto e ver as coisas como convém, sem ultrapassá-las, nem acima do justo fim, por orgulho de imaginar compreender baseando-se no próprio discernimento; nem abaixo, pela ignorância que impede de alcançar a perfeição; nem à direita, pela rejeição e a aversão pelas coisas; nem à esquerda, pelo amor irracional, o desejo passional; nem no interior do justo fim, pela ignorância total e a preguiça; nem no exterior, pela atividade excessiva e a pressa irracional que provêm da indiferença ou da malícia. Mas é preciso receber o conhecimento na certeza da fé, com paciência, humildade e boa esperança, a fim de que o conhecimento parcial que temos de determinada coisa nos conduza ao eros divino. A ignorância que nossa pobreza nos impõe ao próprio conhecimento nos permite adquirir a humildade e atingir, pela esperança e a fé pacientes o fim daquilo que buscamos, a nada desprezando como se fosse mal e a nada amando sem razão.

Mas é preciso compreender o homem admirando como o intelecto é a imagem ilimitada do Deus invisível, e também, embora ele esteja no momento limitado pelo corpo, como ele pode alcançar os confins de sua forma, conforme Deus previu para o mundo. Pois o intelecto é capaz de se transformar em qualquer coisa e de se colorir à imagem da coisa que concebeu. Mas quando lhe é dado penetrar em Deus que não tem forma nem figura, ele se torna também fora de toda forma ou figura[233].

Devemos a seguir admirar como ele é capaz de guardar toda ideia, como os últimos pensamentos não modificam os primeiros, e também como os primeiros pensamentos não conseguem alterar os últimos. Mas a reflexão contém tudo, sem esquecimento, como um tesouro. Quando quer, o intelecto exprime pela língua não apenas os pensamentos recentes como também aqueles que guarda há muito tempo. Também devemos nos admirar como o intelecto não cessa de se expressar em palavras e mesma assim jamais se vê limitado. E ainda, considerando o corpo, como os olhos, as orelhas e a língua recebem do exterior sua utilidade tendo em vista a vontade da alma. Um recebe pela luz, os outros pelo ar, mas nenhum dos sentidos impede o outro, nem pode fazer nada contra a finalidade da alma.

Devemos enfim nos admirar de como o corpo sem alma foi por ordem de Deus unido à alma dotada de intelecto e de razão, que o Espírito Santo criou quando lhe foi dado o sopro, como diz João Damasceno[234]. Isto é o que ignoram os que dizem que esta criação possui a natureza da Divindade mais alta que o ser, o que é impossível. Com efeito, diz João Crisóstomo: “Para que o intelecto humano não considere que ele próprio é Deus, Deus lhe impôs o esquecimento e a ignorância, para que ele obtenha a humildade”. E também: “A vontade do Criador colocou uma separação nesta mistura natural”. “A alma dotada de razão, diz João Clímaco, parte para o alto, para o céu, ou para baixo, para o inferno. E o corpo terrestre retorna à terra, de onde ele foi tirado[235]”. E mais: “Pela graça de nosso Salvador Jesus Cristo, o que estava separado foi reunido em sua segunda descida, a fim de que cada um de nós receba segundo suas obras”. Que milagre! Quem sente este mistério, por pouco que seja, e não se maravilha? Deus ressuscita o homem da terra, depois de todo o mal que este fez desprezado os mandamentos, e lhe concede a imortalidade que antes ele tinha, mesmo que ele não tenha guardado o mandamento que o protegia da morte e da corrupção, e que tenha atraído sobre si a morte por seu orgulho.

O homem que foi ensinado em sua inteligência pelo movimento angélico fica pasmo de admiração diante dessas coisas e de muitas outras que lhe dizem respeito. Ele considera ainda a beleza do ouro e sua utilidade. Ele se admira de como este ouro nos vem da terra, a fim de que os fracos o prodigalizem compadecidos, e para que os que não querem se compadecer sejam ajudados a dividi-lo contra a sua vontade por meio das tentações, para que sejam salvos. Suportando a tudo com boa vontade, uns e outros serão salvos. Mas os que preferem a despossessão serão coroados, como os que vivem na virgindade, pois seu gesto é sobrenatural. Na medida em que uma coisa é corruptível e terrestre este homem não a preferirá ao mandamento de Deus. Mas na medida em que for uma criatura de Deus, ou que sirva para a vida do corpo e para a salvação, ele não a desprezará, mas usará de temperança e de amor.

Considerando com simplicidade a beleza das coisas, e considerando impassivelmente sua utilidade, aquele que recebeu a luz deseja apenas o Criador. Ele discerne todo o sensível, as criaturas do alto e de baixo, ou seja, o céu, o sol, a lua, as estrelas, as nuvens, as tempestades, as chuvas, a neve, a geada e o modo como a água congela mesmo com calor, e o trovão, os raios, os ventos, o ar, suas variações, as estações, os anos, os dias, as noites, as horas, os minutos, a terra, o mar, os inumeráveis animais, os quadrúpedes, as feras e as serpentes, as numerosas espécies de pássaros, as fontes e os rios, a infinita variedade das plantas e das ervas cultivadas e selvagens. Em tudo ele vê a ordem, o estado, a grandeza, a beleza, o ritmo, a conexão, a harmonia, a utilidade, a concórdia, a diversidade, as delícias, a estabilidade, o movimento, as cores, as formas, as espécies, sua perpetuação, seu enfraquecimento e sua permanência. Esta simples consideração de todas as criaturas sensíveis o derruba. Ele se admira de que o Criador, pelo simples fato de haver ordenado, tenha suscitado do nada quatro elementos, e como, pela sabedoria de Deus os seres contrários não se destroem mutuamente, enfim, o modo pelo qual ele fez por nós o mundo inteiro, e como tudo isto é pouco perto da descida de Cristo entre nós, e também diante dos bens que estão por vir, segundo Gregório o Teólogo.

Ele considera ademais a bondade e a sabedoria de Deus ocultas nas criaturas, o poder e a providência que se encontram nas artes, como ele próprio disse a Jó[236], e também a sabedoria que reside nas palavras e nas letras, e como, por meio desta tinta ínfima e sem alma nos foram revelados tantos e tão grandes mistérios através das Escrituras. De resto, é também admirável que tenha sido necessário tanto sofrimento e amor de Deus pelos santos profetas e pelos apóstolos para que alcançassem semelhantes bens diante de Deus, enquanto que nós aprendemos pela simples leitura. Pois as Escrituras inspiradas nos falam de coisas profundamente paradoxais. Quem as conhece acredita que não há nada demais nem de mal na criação em si, mas que Deus transforma maravilhosamente em bens o que é feito contra a vontade divina. Assim é que a queda do diabo não foi vontade de Deus, mas serviu aos que depois foram salvos. Pois Deus permitiu ao diabo tentar os eleitos conforme a força de cada um, a fim de que, como disse santo Isaac[237], ele fosse combatido pelos homens semelhantes a anjos e vencido com a ajuda de Deus não apenas pelos homens, como ainda por numerosas mulheres, por meio de sua paciência e de sua fé n’Aquele que os conduziu no combate e de quem eles receberam, em sua graça e amor pelo  homem, as coroas da incorruptibilidade. Pois ele venceu e vence sempre a Serpente impudente que destrói o homem.

Quem recebeu o carisma do conhecimento espiritual sabe que tudo é muito bom[238]. Quem se encontra apenas nos umbrais do conhecimento de Deus deve reconhecer humildemente que ignora isto, e como ordena João Crisóstomo, confessar em todas as coisas: eu não sei. Pois ele disse: “Se alguém afirmar que conhece a altura do céu, eu afirmarei – e certamente estarei dizendo a verdade – que eu não sei, e que ignoro inclusive se este homem se engana acreditando saber, ou se, como diz o Apóstolo, ele de fato não sabe[239]”.

É por isso que, com uma fé segura e sempre interrogando os mais experientes, devemos receber a doutrina da Igreja e o discernimento dos mestres em relação a tudo o que diz respeito às divinas Escrituras e às criaturas sensíveis e inteligíveis, para que não tombemos rapidamente por seguir nossa própria inteligência, como disse são Doroteu[240]. Em tudo devemos descobrir nossa própria ignorância, a fim de que, buscando e desconfiando dos próprios pensamentos, tenhamos o desejo de conhecer, e, guardando-nos de conhecer demasiado, aprendamos com a sabedoria infinita de Deus nossa própria ignorância.

A inteligência, por ser de natureza intelectual, recebe certamente o sentido que lhe é próprio ao se purificar diante de Deus: é o que diz Gregório o Teólogo. Devemos apenas, diante deste conhecimento, temer ainda encontrar uma má doutrina escondida na alma, e capaz de fazê-la se perder independente de qualquer pecado, como diz são Basílio[241]. É por isso que não devemos, por negligência ou vã resolução, correr para esta contemplação antes do tempo. Devemos ao contrário, sem distração e em ordem, trabalhar nos mandamentos de Cristo e nas contemplações de que já falamos. Somente depois de ter lavado a alma pela paciência e pelas lágrimas do temor e do luto, depois de chegar a ver naturalmente e de ter a experiência destas primeiras visões que, conduzido em espírito pelos anjos, o intelecto chega por si mesmo a tais contemplações.

Mas se alguém é bastante audacioso para pretender atingir as coisas segundas antes das primeiras, saiba que não apenas lhe será impossível atingir o objetivo que agrada a Deus, como também provocará em si numerosas guerras, em especial quando contemplar o homem, como aprendemos a propósito de Adão. Pois aos que ainda são passionais de nada adianta fazer as obras ou conceber os pensamentos dos impassíveis, assim como o alimento sólido não convém às criancinhas, embora seja útil aos adultos[242]. Ele deve desejar e recusar com discernimento, considerando-se indigno, sem jamais rejeitar a chegada da graça, por desespero ou preguiça, nem ter a presunção de buscar as coisas antes do tempo, a fim de evitar que, por buscá-las antes que venham a seu tempo, como diz João Clímaco, deixe de obtê-las mesmo quando cheguem[243]. Pois então é possível que se perca, e nenhum homem, nem a Escritura, poderá reencaminhá-lo. Com efeito, se alguém tem seu objetivo em Deus, com humildade e paciência diante das tentações que lhe advierem, ele poderá tanto buscar uma coisa por ignorância quanto nela se perder, que receberá o perdão de Deus da mesma maneira. Com grande confusão e alegria este homem retornará e encontrará o caminho dos Padres. Pois é aquilo que nos acontece por causa de Deus, não o que acontece por qualquer razão, diz João Clímaco, que devemos considerar como um bem proveniente da graça, mesmo que o que nos aconteça não seja em si muito bom[244].

Se não agirmos assim, se não tivermos paciência e humildade, sofreremos o que muitos sofreram. Sua loucura os pôs a perder. Eles confiaram em seus próprios pensamentos e acreditaram caminhar pela boa via sem guia e sem a experiência que só a paciência e a humildade fornecem. Com efeito, a experiência não conhece nem aflição, nem tentação, e talvez sequer o combate. Se o monge experiente deve ainda combater um pouco, esta tentação se torna para ele causa de uma grande alegria e de um grande benefício. Pois Deus permite isto para que ele aprofunde sua experiência e para que se arme de coragem contra os inimigos. Os sinais desta experiência são as lágrimas, a contrição da alma diante de Deus, a fuga para a hesíquia, o refúgio em Deus pela paciência, o estudo esforçado das Escrituras, o desejo de atingir o objetivo de Deus com toda a fé. Os sinais da desorientação de que falamos primeiro são o contrário: duvidar da ajuda de Deus, ter vergonha de perguntar humildemente, fugir da hesíquia e da leitura, amar a distração e as relações, acreditar que estas coisas tragam repouso – o que é impossível. Ao contrário, é nestes momentos que se enraízam ainda mais as paixões, que as tentações se tornam mais fortes, que de tanta ignorância crescem a mesquinharia, a ingratidão e a acídia. De fato, uma é a tentação dos filhos quando se instruem e aprendem o ensinamento que lhes é dado, e outra a tentação dos inimigos, que conduzem à perdição, sobretudo quando nos tornamos joguetes do orgulho. Pois Deus se opõe aos orgulhosos, mas concede sua graça aos humildes[245].

Toda aflição suportada com paciência é boa e útil. Mas sem a paciência, ela afasta de Deus e não serve para nada. Se não for curada pela humildade, nenhum outro remédio o fará. Quando é afligido, o humilde se culpa e acusa a si mesmo, nunca a outro. É desta maneira que ele pede a Deus para alcançar a libertação. Quando ele a encontra ele se alegra e persevera dando graças. Daí em diante ele passa a ter experiência dessas coisas e recebe o conhecimento. Conhecedor de sua própria enfermidade e de sua ignorância, ele se esforça por encontrar o médico e acaba por encontrar a cura que busca, como o próprio Cristo afirmou. Tendo recebido a cura, ele a deseja, e a deseja sempre mais. Purificando a si mesmo tanto quanto lhe é possível, ele se esforça por dar lugar em si Àquele a quem deseja. E Aquele, encontrando aí lugar, aí permanece, como diz o Gerontikon. Permanecendo nele, ele protege esta casa e começa a iluminá-la com a luz. Quem é assim iluminado passa a conhecer, e, conhecendo, é conhecido, como diz João Damasceno.

Devemos guardar estas coisas e as que dissemos antes, bem como sua ordem. É preciso trabalhar naquilo que nos é possível compreender. E é preciso dar graças em silêncio pelas coisas que não compreendemos, como disse santo Isaac[246], e não crer impudentemente sermos capazes de penetrá-las. Com efeito, disse ele citando Provérbios: “Quando você encontra mel, coma com moderação, não exagere, para não vomitar[247]”. Como disse Gregório o Teólogo, uma contemplação sem freios arrisca provocar uma queda no abismo[248]. É o que acontece quando buscamos coisas que ultrapassam a medida, negando que Deus conhece estas coisas. E eu, que sou eu? É preciso também crer que Aquele que fez as montanhas e as baleias também perfurou o ferrão da abelha, como disse o grande Basílio[249].

Quem é forte o suficiente para alcançar a compreensão conhece o inteligível a partir do sensível, e o invisível e eterno a partir do visível e temporal. Ele compreende pela graça o mistério das Potências do alto, a saber, que o mundo inteiro não é digno de um único justo. “Considere, diz João Crisóstomo, que o justo é maior do que muitas nações e línguas, que o anjo é bem maior do que o homem, que a contemplação de um só basta para nosso maravilhamento, e também o que Daniel, semelhante aos anjos, soube quando viu o Anjo[250]”.



Do sétimo conhecimento

Aquele a quem foi dado o sétimo conhecimento admira a multidão das Potências incorpóreas, os Poderes, os Tronos, as Dominações, os Serafins e os Querubins, os nove Coros que encontramos em todas as Escrituras divinas, e cuja natureza, força e outros bens que neles podemos contemplar são conhecidos de Deus, seu Criador. Ele também admira como eles se desenvolvem segundo sua ordem. Mas as Potências do alto têm ainda outras qualidades, das quais fala João Crisóstomo: Senhor Sabaoth[251 se traduz por Senhor das Potências, as quais transmitem umas às outras a luz que recebem. Os Anjos, diz ele, iluminam os homens; eles próprios recebem a luz dos Arcanjos, que a recebem dos Principados. É assim que cada ordem recebe da outra a luz e o conhecimento. Ele diz ainda que a raça dos homens é um cordeiro que Deus não perdeu, mas que se perdeu sozinho, e que os Anjos são os noventa e nove outros[252].

Considerando a sabedoria e o poder do Criador, e as multitudes criadas por uma simples ordem sua, Gregório o Teólogo diz que pela multitudes devemos em primeiro lugar entender as Potências angélicas[253], etc. “Entrando pelo intelecto no interior do santuário, do outro lado do véu nos tornamos imateriais”, diz santo Isaac. O templo exterior é o signo do mundo; o véu, a porta do santuário, é o signo do firmamento do céu. O Santo dos Santos simboliza o que está para além do mundo, o lugar onde os anjos incorpóreos e imateriais não cessam de cantar a Deus e rogar a ele por nós, segundo o grande Atanásio. Entramos assim na paz dos pensamentos e nos tornamos folhos de Deus pela graça, conhecendo os mistérios escondidos nas divinas Escrituras, como diz João Damasceno: “O véu divino do Templo rasgou-se quando o Criador foi crucificado, revelando a verdade escondida na letra aos fiéis que dizem: Você é bendito, Deus de nossos Pais”. São Como o Melódio diz igualmente: “O primeiro dos mortais provou o fruto da Árvore e habitou na corrupção. Condenado a perder a vida na maior das desonras, em seu corpo perecível ele transmitiu a perdição a toda a raça como a chaga de sua doença. Mas nós que nascemos da terra encontramos a cruz que nos chama e dizemos: Seja Deus louvado acima de tudo”, etc.


Do oitavo conhecimento

Este oitavo conhecimento eleva à contemplação de Deus por intermédio da prece segunda – a prece pura – que é própria do contemplativo. Assim o intelecto é transportado neste impulso da prece pelo desejo divino e já nada mais sabe deste mundo, como dizem Máximo[254] e João Damasceno. Não apenas o intelecto esquece tudo, como esquece até a si mesmo. Com efeito, diz são Nilo[255] que tem consciência daquilo que ele é, ele não está em Deus apenas, mas também em si mesmo. Mas quando Deus lhe aparece, diz são Máximo, ele se torna teológico, e lhe é dado receber o Espírito Santo[256.

Quando aprendemos a conhecer a Deus, não acreditemos por ignorância que Deus é aquilo que vemos ao seu redor, a bondade, a doçura, a justiça, a santificação, a luz, o fogo, a essência, a natureza, o poder, a sabedoria e as demais qualidades de que fala o grande Denis[257], nem nada do que o intelecto possa abarcar. Pois o divino não pode ser definido nem descrito, e a teologia não fala daquilo que ele é em si mesmo, mas daquilo que está ao seu redor, como disse o grande Denis a são Timóteo, reportando o testemunho de são Hieroteu[258]. Seria mais justo dizer que Deus é o incompreensível, o inexplicável, o insondável, o que não é possível definir. Pois Deus está além da inteligência e do entendimento. Ele só é conhecido por si mesmo, único, em três hipóstases, sem começo, sem fim, acima de toda bondade e de todo louvor. O que é dito dele na divina Escritura exprime nossa impotência e foi dito para que saibamos que Deus é, mas não o que ele é. Pois ele é incompreensível a toda e qualquer natureza dotada de razão e de intelecto.

Devemos portanto, e da mesma maneira, admirar a encarnação do Filho de Deus e sua união em sua própria hipóstase, como disse são Cirilo: de que modo, segundo o grande Basílio, a carne que ele recebeu de nós estava fundamentada em sua Divindade. Pois a união é como o ferro e o fogo, para que conheçamos o Cristo único em duas naturezas, como disse João Damasceno à Mãe de Deus: “Puríssima, você gerou a hipóstase única em duas naturezas, o Deus encarnado ao qual cantamos: Deus seja bendito”. E também: “Aquele a quem nada pode limitar não se alterou. Em você, Santíssima, ele se uniu à carne pela hipóstase, em sua misericórdia, seja bendito”.


Que as divinas Escrituras não se contradizem

Quem já recebeu um pouco de luz, quando considera simplesmente toda leitura ou toda salmodia, encontra a contemplação e a teologia, e cada Escritura atestada por outra Escritura. Mas aquele cujo intelecto ainda não foi iluminado crê que as divinas Escrituras se contradizem. Nada há na Bíblia que não agrade a Deus. Pois dentre as divinas Escrituras, umas testemunham outras Escrituras, outras têm por causa o tempo ou a pessoa. Toda palavra escrita é isenta de erro. Tudo o que está fora destes modos é obra de nossa ignorância. Nada existe a acrescentar às Escrituras. Devemos nos esforçar para guardá-las como são. Não podemos considerá-las como cada um de nós quiser, como o fazem os gregos e os judeus, que não aceitam confessar que não sabem do que se trata, mas que, por presunção e autossuficiência começaram a reescrever as Escrituras e a interpretar a natureza das coisas como bem lhes aprouvesse, e não segundo a vontade de Deus. Assim eles se enganaram e se voltaram para a completa malícia.

Pois quem quer que busque o fim da Escritura não deve lhe dar sua própria interpretação, nem boa nem má. Mas, como dizem o grande Basílio e João Crisóstomo, deve ter por mestre a própria divina Escritura e não os ensinamentos do mundo, a fim de recolher o que Deus colocou nos corações puros sem pensamentos, como também encontramos testemunhado nas divinas Escrituras, como disse o grande Antônio. Pois somente devem ser recebidos os significados que vêm por si próprios ao intelecto dos hesiquiastas, que, independentes de qualquer pensamento, repousam em Deus, como diz santo Isaac. Mas a pesquisa e o pensamento se tornam vontade própria e ciência corporal, sobretudo se forçamos a Escritura como um ladrão para extrair dela alguma alegoria, como disse João Crisóstomo. Neste caso, não estaremos entrando pela porta da humildade, mas por algum outro lugar[259]. Pois quem força o objetivo da Escritura ou que encontra aí onde reescrever para colocar seu próprio conhecimento, ou antes, sua ignorância, é o mais insensato que pode existir sobre a terra.

Qual é esta ciência que nos permite definir ao bel prazer o sentido da Escritura e ousar alterar suas palavras? Sábio é quem considera que as palavras são imutáveis e que descobre pela sabedoria do Espírito os mistérios ocultos testemunhados nas divinas Escrituras. É exatamente o que fizeram estes três grandes luminares que são Basílio, João Crisóstomo e Gregório, que sempre extraíram seu testemunho de uma ou outra palavra da Escritura. E quem quer contradizer não tem nada a acrescentar. Pois os três não trazem um testemunho do exterior, para que se possa dizer existir aí um sentido que lhes é próprio, mas trazem o testemunho em cima do tema de que tratam, ou sobre alguma outra Escritura que trata do mesmo tema. E com toda justiça. Com efeito, é o Espírito Santo que lhes permite compreender e falar. E eles foram dignos disto. Toda coisa da qual não se pode atestar ser boa se torna duvidosa: não devemos nem fazê-la nem submetê-la ao pensamento. Que necessidade temos de abandonar uma coisa clara sabidamente boa e agradável a Deus, para fazer outra, que pode ou não ser boa? Isto certamente tem suas raízes na paixão. É exatamente assim.


Distribuição da prece por todos os conhecimentos

Em relação aos oito conhecimentos, devemos saber que para os quatro primeiros devemos dizer o que está escrito em cada qual. Para os demais, basta orar “Senhor, tem piedade” em tudo e por tudo, como foi dito a respeito de são Filemon[260], e ter todo o tempo o intelecto livre de qualquer pensamento. Tal deve ser a conduta daquele que se aplicar a tal. Ele deve ter o intelecto voltado tanto para a contemplação do sensível quanto para o conhecimento do inteligível e o que é sem forma, e logo novamente para uma meditação da Escritura e para a prece pura. O próprio corpo deve estar tanto absorvido na leitura quanto na oração, logo nas lágrimas que vertemos por nós mesmos ou por alguém pela compaixão diante de Deus, e no trabalho, no auxílio prestado a um irmão enfermo em sua alma ou corpo, a fim de em tudo fazermos a obra dos santos anjos, sem nenhuma preocupação com as coisas deste mundo.

Deus, que elegeu este homem e o colocou à parte para viver com ele e que lhe deu esta doutrina, esta ausência de preocupações, logo cuidará dele e o alimentará em sua alma e em seu corpo. Com efeito, foi dito: “Entregue ao Senhor suas preocupações e ele o alimentará[261]”. Quanto mais este homem colocar sua esperança em Deus para tudo o que se refere à sua alma e ao seu corpo, mais ele descobrirá o quanto Deus cuida dele. Ele receberá assim de Deus em sua alma e em seu corpo tanto mais dons visíveis e invisíveis quanto mais se considerar abaixo de todas as criaturas. Ele se sente tão devedor e fica tão confuso diante das benesses de Deus, que não consegue se prevalecer de ninguém. Quanto mais ele dá graças a Deus e violenta a si próprio, mais Deus o aproxima de suas graças e quer lhe conceder o repouso e fazê-lo preferir a hesíquia e a despossessão a todos os reinos da terra, no aguardo da recompensa no século futuro.

Com efeito, os santos mártires sofreram sob os ultrajes dos inimigos, mas o desejo pelo Reino e o amor a Deus eram mais fortes do que os seus sofrimentos, e este poder que eles receberam para vencer os adversários era para eles um grande consolo e uma recompensa. Muitas vezes eles sequer sentiram a morte que lhes foi dada para sofrer por Cristo. Da mesma forma, os santos Padres violentaram a si mesmos desde o início por meio de todas as asceses e nos combates a que os levaram os espíritos de malícia. Mas o desejo e a esperança da impassibilidade superaram a tudo. Pois depois das penas, a impassibilidade não conhece mais cuidados: ela venceu as paixões.

O passional pode até pensar que tudo vai bem, mas é por causa de sua cegueira. Somente quem se vangloria de combater conhece sempre o sofrimento e a guerra, pois ele quer vencer as paixões e não consegue. A este homem é concedido ser vencido pelos que o combatem, a fim de adquirir a humildade. É por isso que ele deve conhecer sua própria fraqueza e fugir daquilo que o prejudica mais, a fim de esquecer seu antigo costume. Pois se ele não foge primeiro da distração e não adquire primeiro o silêncio perfeito ele não poderá alcançar seja lá o que for impassivelmente e dizer sempre o que é bom. Assim é que em todas as coisas convém em primeiro lugar fugir inteiramente da distração a fim de não ser atraído pelo antigo costume. Entretanto, ninguém, em sua ignorância, apenas por ter ouvido falar em humildade, impassibilidade e outras virtudes análogas, devem pensar possuí-las. Mas deve buscar os seus sinais em todas as coisas, e as encontrar em si mesmo.


Da humildade

Estes são os sinais da humildade: ter em si todas as virtudes do corpo e da alma e considerar ser indigno, considerar ser tão mais devedor quanto mais graças receber de Deus.

Se uma tentação lhe vier dos demônios ou dos homens, o humilde pensa merecê-la, e merecer muitas outras mais, a fim de que, quitando ainda que um pouco sua dívida, ele possa encontrar no Juízo um alívio aos castigos que tanto  teme. Não ter em si este sofrimento o aflige e atormenta. Ele tenta encontrar o que o levará a violentar a si próprio. Quando ele o alcança, ele recebe a coisa como um dom de Deus, e se humilha novamente. Pois ele jamais poderá devolver ao Benfeitor aquilo que lhe deve. Ele trabalha todo o tempo, e cada vez se considera mais devedor.


Da impassibilidade

Este é sem dúvida o sinal da impassibilidade: encarar tudo sem se perturbar e sem medo, por haver recebido pela graça de Deus “tudo poder”, segundo o Apóstolo[262], até não ter mais nenhum cuidado com o corpo. Na medida da violência que fizermos a nós mesmos, chegaremos ao repouso do estado impassível. Novamente damos graças e novamente nos violentamos, para nos mantermos sempre combatendo e vencendo com humildade.

Tal é o progresso do homem. O que nos advém sem que tenhamos que nos violentar não é nossa obra, como diz santo Isaac, mas um dom. Se nos vem o repouso logo depois do primeiro sofrimento, este é o prêmio de uma derrota, e nada temos para nos glorificar. Pois não devemos louvar aqueles que recebem um salário, mas os que se violentam e trabalham sem nada receber. Que podemos dizer? Quanto mais agimos e damos graças ao Benfeitor, mais devedores somos, e cada vez mais. Pois a ele nada falta, de nada ele necessita, enquanto que sem ele nada somos e nada de bom podemos fazer[263].

Aquele a quem foi dado cantar a Deus tem um prêmio: ele recebeu um grande e admirável carisma. Quanto mais ele canta, mais devedor se torna. Com conhecimento de Deus, em ação de graças, com humildade, com amor, ele não encontra nem fim nem ruptura. Pois estas coisas não são deste século para terem um fim. Elas pertencem ao século infinito que não terminará jamais. Elas correspondem ao crescimento dos conhecimentos e dos carismas. Quem as recebeu pelas obras e pelas palavras se liberta de todas as paixões. Mas para chegar até aí ele deve permanecer em Deus, não ter nenhuma preocupação com este século, não ter medo de nenhuma tentação. É a partir daí que ele progredirá, que subirá sempre e mais até um grau mais elevado, não por meio de sonhos maus ou bons em aparência, nem por meio de pensamentos de malícia ou de bem, nem pela tristeza ou por uma alegria afetada, nem pela presunção ou pelo desespero, pela profundidade ou pela altura, pelo abandono ou pela assistência ou força externas, nem pela negligência ou pelo progresso, nem pelo desleixo ou por uma falsa resolução, uma impassibilidade aparente ou uma grande paixão.

Devemos guardar nossa vida na hesíquia, fora de toda distração, com humildade, acreditando que ninguém pode nos prejudicar se não o quisermos. Por causa do orgulho que sempre nos impede de nos refugiar em Deus, devemos nos atirar diante dele, buscando em tudo que seja feita a sua vontade, e dizendo a todo pensamento que nos ocorra: eu não sei quem você é. Deus sabe se você é bom ou não. Eu mesmo me atirei e me atiro sempre em suas mãos. E ele cuida de mim<[264]. Pois assim como ele me criou do nada, também ele me salvará por sua graça, se assim o quiser: seja feita sua vontade, tanto neste século como no século futuro. Que tudo se faça como ele quiser e quando ele quiser: quanto a mim, não tenho vontade. Eu só sei de uma coisa: eu pequei tanto, eu recebi tantos benefícios, eu sou incapaz, mesmo fazendo tudo o que me é possível por palavras e obras, de dar graças por sua bondade. Ele pode e quer salvar todos os seres, e a mim junto com todos, segundo a sua vontade. Mas eu não passo de um homem. Como saber se ele me quer assim ou de outro modo? Por medo de pecar, fugi. Cheguei aqui. Por causa de meus pecados, de minhas numerosas fraquezas, permaneço inerte em minha célula, como os que estão enfermos na prisão, e aguardo a sentença do Mestre.

Ainda que se veja inerte e perdido o monge não deve temer. Se ele não abandonar sua cela, ele alcançará a contrição da alma e as lágrimas dolorosas. E se novamente ele se decidir com grande resolução por uma grande obra espiritual e pelas lágrimas, mesmo assim não deve se regozijar, mas se entregar ao arrebatamento e se preparar para o combate. Ele deve simplesmente desprezar todas as coisas, sejam boas ou contrárias, a fim de permanecer sem se perturbar por nada, repousando e lutando na medida do seu possível, e fazendo tudo o que aprendeu, caso tenha tido um conselheiro. Se teve, agora ele tem a Cristo, a quem interrogar por meio da prece pura sobre toda ação e todo pensamento, do fundo do coração, com humildade, sem jamais pensar ter se tornado um monge experiente até reencontrar Cristo no século futuro, como disseram João Clímaco[265] e o abade Agatão. Se o seu objetivo é o de agradar a Deus, o próprio Deus lhe ensinará sua vontade. Em seu intelecto, por meio de um homem, por intermédio da Escritura, ele o cumulará de certeza. Se ele afastar de si toda vontade própria, Deus lhe permitirá atingir a perfeição numa alegria inefável. Ele pode não saber, mas ele vê, e se admira profundamente de como de todos os lados começa a brotar a felicidade e o conhecimento. E Deus reina nele. Pois ele já não tem vontade própria e se submete à sua santa vontade. Ele se torna como um rei. O que ele deseja lhe é concedido sem esforço e imediatamente por Deus que vela por ele. Esta é a fé da qual o Senhor falou: “Se vocês tiverem fé, etc.[266]”. Segundo o Apóstolo, é sobre esta fé que as demais virtudes são edificadas[267]. É por isso que o inimigo trabalha para separar o homem da hesíquia e para fazê-lo cair em tentação. Se por um acaso ele perde a fé de um modo ou de outro, contando com sua própria força ou com sua própria sabedoria, total ou parcialmente, o inimigo se aproveita disto para vencê-lo e capturá-lo, o infeliz.

Quem conhece isto e abandonou as delícias e o conforto do mundo se esforça, sabendo-o, por alcançar a ausência de preocupações, seja por meio da submissão – pois uma vez que seu pai espiritual representa para ele o papel de Cristo, ele lhe entrega todos os seus pensamentos, palavras e atos, a fim de nada ter de si próprio – seja por meio da hesíquia assumida através de uma fé segura, fugindo de tudo: então Cristo toma para ele o lugar de tudo. Como dizem João Crisóstomo e João Damasceno, Cristo em pessoa se torna tudo para ele neste século e no século futuro, dando-lhe o alimento, as vestes, a alegria, a prece, a felicidade, o repouso, o ensinamento, a luz. Numa palavra, assim como velava por seus discípulos, Cristo velará por ele, mesmo que ele não tenha que sofrer como eles. Mas ele possui a fé firme, por meio da qual ele não se preocupa consigo mesmo como os demais homens. No temor dos espíritos, como os apóstolos que temiam os judeus[268], ele permanece em sua célula e aguarda seu Mestre, a fim de que, por meio da verdadeira contemplação – ou seja, pelo conhecimento de suas criaturas – este o levante em seu intelecto, longe das paixões, e lhe conceda a paz como aos apóstolos, com as portas fechadas[269], como diz são Máximo[270].


Sobre as sete ações do corpo. Excelente discernimento.

Devemos sempre nos lembrar do que foi escrito no início deste estudo sobre as sete ações do corpo, e nada perder nem acrescentar.

A juventude, ou o transbordamento da força, é o tempo do combate corporal. Temos então necessidade de uma ascese extrema. Quando ficamos doentes devemos fazer uma pequena pausa, mas não cessar a ascese. Pois uma parada total da ascese pode prejudicar até mesmo os impassíveis, como disse santo Isaac. A pausa deve ser conforme a necessidade, como um remédio para a doença. Quando fica sem meios, a alma tende a relaxar a tensão. Ora, se desejamos uma pausa com toda nossa alma, já não há mais ascese. Diz-se que a pausa é normalmente prejudicial aos jovens e aos que se portam bem. Os santos Padres Basílio e Máximo acrescentam que, para curar a fome e a sede, somente o pão e a água são úteis. Mas para a saúde e a força do corpo, Deus nos deu todo o resto, em seu amor pelo homem. Para que o fraco não sinta nenhuma aversão por ter que comer sempre o mesmo tipo de alimento, é bom comer um alimento diferente depois de outro, como já dissemos. Pois é a abstinência e a intemperança que influenciam os fracos. Mas a temperança e a mudança cotidiana de alimentação mantêm a saúde, a fim de que o corpo se mantenha sem dor e sem doença e contribua para a aquisição das virtudes.

Isto vale para aqueles que combatem, como foi dito. Mas os impassíveis, em sua infância em Cristo, passam frequentemente muitos dias sem comer, esquecendo-se de seus corpos, como são Sisão que, depois de comer, pedia para comungar dos Santos Mistérios[271], pois ficava fora de si por amor a Deus e para o  bem de muitos, como disse o Apóstolo: “Se ficamos fora de nós, é por Deus; se somos sábios, é por vocês[272]”.

O grande Basílio e muitos outros disseram a mesma coisa de outros Padres. Quando eles comiam com os irmãos, eles não sentiam os alimentos que lhes eram dados, mas permaneciam como se não tivessem comido. Pois seu intelecto não estava em seu corpo. Eles já não sentiam nem a pausa nem a pena. Isto é muito evidente em muitos Padres e santos mártires, como este santo de que fala são Nilo. Ele conta que um velho monge que vivia no deserto estava mergulhado na prece do intelecto, quando um dia Deus permitiu, para seu bem e de muitos outros, que os demônios o tomassem pelas mãos e pelos pés e o projetassem no ar, recolhendo-o em seguida sobre uma rede, para não ferir seu corpo que caía do alto. Eles fizeram isto muitas vezes, para ver se seu intelecto descia dos céus, mas não tiveram sucesso[273]. Será que um homem assim sentiria a comida ou a bebida, ou qualquer outra coisa corporal?

Mais este: santo Efrém, depois de ter, pela graça de Cristo, vencido todas as paixões da alma e do corpo, a fim de não se encontrar desocupado no combate contra o inimigo e não ser condenado por isto, conforme pensava em sua inefável humildade, pedia que dele fossem retiradas a graça e a impassibilidade. Este fato espantou João Clímaco, que escreveu que alguns, como este sírio, eram mais impassíveis que os impassíveis[274].


Do discernimento

Em todas as coisas necessitamos do discernimento, para podermos julgar cada obra a seu tempo. Pois o discernimento é uma luz, que mostra a quem o tem o tempo, a ação, a execução, a força, o conhecimento, a idade, a potência, a fraqueza, a resolução, o ardor, a contrição, o estado, a ignorância, o vigor e o temperamento do corpo, a saúde e a fadiga, a maneira, o lugar, a conversão, a educação, a fé, a disposição, o objetivo, a conduta, a liberdade, a ciência, a sabedoria natural, o esforço, a vigilância, a lentidão, etc. Ele mostra ainda a natureza das coisas e sua utilidade, a quantidade, o gênero, o objetivo de Deus nas divinas Escrituras, a inteligência de cada palavra. Como nestas palavras do Evangelho segundo são João: quando os gregos pediram para ver o Senhor, este disse: “A hora é chegada[275]”, etc. É claro que as nações seriam chamadas daí por diante. O tempo da Paixão começara, e ele deixou ali o sinal.

O discernimento explica não apenas todas essas coisas, mas também a finalidade da interpretação dos Padres. O que procuramos de fato, diz são Nilo, não são as coisas que acontecem, mas a via pela qual elas nos chegam. Se agirmos sem o conhecimento de tudo o que mencionamos sem dúvida nos esforçaremos muito sem chegar a nenhum resultado, como disseram o grande Antônio[276] e santo Isaac dos que lutam para adquirir as virtudes do corpo e negligenciam a obra do intelecto, que, entretanto, é a que deveria ser buscada. São Máximo diz: dê ao seu corpo tanto trabalho quanto puder, e dirija todo o combate para a inteligência. Pois quem trabalha apenas como o corpo, como dissemos, pode ser vencido pela gula, pelo excesso de sono, a distração, a falação, e seu intelecto fica obscurecido. Mas o jejum prolongado, a insônia, as fadigas excessivas também podem perturbar a reflexão. Ao contrário, aquele cujo intelecto é aplicado contempla, ora, se torna teólogo e pode alcançar todas as virtudes[277].

É por isso que o homem sábio se esforça judiciosamente para diminuir tanto quanto possível as necessidades do corpo, para ter poucas preocupações – melhor ainda, nenhuma – e para se consagrar à observação dos mandamentos. É o que disse o Senhor: “Não se preocupem, etc.[278]”. Quando temos muitas preocupações, não nos é  possível nem nos enxergar. Como poderemos então enxergar as armadilhas que o inimigo tem preparadas há tanto tempo? Pois não é costume do inimigo guerrear abertamente contra nós, diz João Crisóstomo. Se ele nos atacasse de frente, muitos não cairiam facilmente em suas armadilhas, e o Senhor não teria dito: “Poucos serão salvos[279]”. Quando o diabo quer lançar alguém nas grandes faltas, ele começa por fazê-lo negligenciar as pequenas coisas que não aparecem: antes do adultério, o olhar enviesado e impudico; antes do assassinato, as pequenas cóleras; antes das trevas da reflexão, as pequenas distrações; e antes da cegueira, as aparentes necessidades do corpo.

É por isso que o Senhor, que é a Sabedoria do Pai[280] e conhece tudo por antecipação, previu as artimanhas do diabo e ordenou aos homens que cortassem imediatamente as raízes do mal. Do contrário, imaginando ser fácil suportar as pequenas coisas, eles tombariam impiedosamente na desgraça dos grandes pecados. O Senhor afirma: “Foi dito aos antigos, aos que viviam sob a Lei, tal e tal. Mas eu lhes digo[281]”, etc. Assim, aquele que foi ensinado pelo santo Evangelho deve estar atento ao que lhe ensina o Senhor, trabalhar para se livrar das armadilhas do inimigo, colocar sua toda honra em seguir os mandamentos e considerar que eles lhe fazem um bem imenso, pois por meio deles ele pode adquirir uma grande sabedoria e salvar sua alma. Os mandamentos são justamente os dons de Deus. “Toda boa graça, todo dom perfeito vêm do alto[282]”, disse o irmão de Deus. Também João Damasceno diz: “Dê-nos a mediadora que ninguém pode confundir, aquela que o gerou, ó Cristo. Por suas orações, conceda-nos a compaixão do Espírito e nos dê a bondade que por seu intermédio provém do Pai”.

Aquele que recebeu o carisma de estar atento às divinas Escrituras, como dizem os Padres, encontra todos os bens que nelas estão ocultos, conforme a palavra do Senhor: “Aquele que é instruído no Reino dos céus[283]”, etc. Vale dizer que este é instruído por sua consagração a Deus e pela leitura das divinas Escrituras. Pois um é o rosto que a Escritura revela ao resto dos homens, mesmo que eles acreditem conhece-la, e outro é o que ela revela ao homem que se consagrou à prece incessante, ou seja, que pensa em Deus todo o tempo, tanto quanto respira, ainda que ao mundo pareça inculto e sem o conhecimentos dos ensinamentos dos homens, como afirma o grande Basílio.

Também João Clímaco afirma que Deus se revela à simplicidade e à humildade[284], mais do que aos sofrimentos e à sabedoria inerte. Deus rejeita esta última, se ela não for humilde, Segundo o Apóstolo, mais vale nada saber do que não conhecer[285], pois o conhecimento espiritual é um carisma. Mas a ciência da palavra é um ensinamento humano, como os outros ensinamentos deste mundo. Ela em nada contribui para a salvação da alma, como fica evidente entre os gregos. Nos que sabem por experiência tudo o que é dito, a leitura exercita a memória. Nos que não possuem a experiência, ela é um ensinamento. Mas quando o Senhor encontra o coração puro de todas as coisas e de todos os ensinamentos deste mundo, disse são Basílio, então ele inscreve suas próprias instruções nele como num livro no qual nada ainda tenha sido escrito[286].

Digo estas coisas para que não sejam lidas as coisas que não agradam a Deus. Caso alguém tenha tido um dia, por ignorância, uma leitura destas, que se esforce por apaga-la da memória pela leitura espiritual das divinas Escrituras, em especial das que contribuem para a salvação da alma, na medida do estado que tenha alcançado. Se ele ainda for ativo, que leia as vidas e as sentenças dos Padres. Se a graça já o conduziu até o conhecimento divino, que leia nas Escrituras, tanto quanto lhe for possível, aquilo que for capaz de derrubar, segundo o Apóstolo, as alturas levantadas contra o conhecimento de Deus[287] e de proteger de toda desobediência e de toda transgressão, por meio da observação estrita e do verdadeiro conhecimento dos divinos mandamentos e dos ensinamentos de Cristo. Fora disto, nada leia. Qual a necessidade de se receber um espírito impuro em lugar do Espírito Santo? Qualquer que seja o discurso estudado, buscamos encontrar o espírito deste discurso, ainda que isto não pareça difícil como ela é para os que não têm experiência.


Da leitura divina

A leitura divina impede o intelecto de andar às tontas. Este é o começo da salvação. O inimigo, diz Salomão, odeia o eco da certeza[288]. Quando a reflexão começa a rodar, diz santo Isaac, aí começa o pecado. Quem quer fugir perfeitamente deve permanecer o máximo possível em repouso em sua cela. Se for tomado pela acídia, deve trabalhar um pouco, coisa que também deve fazer o monge impassível e que possui o conhecimento, para prestar serviço aos outros e ajudar os fracos, coisa que fizeram também os maiores amigos dos Padres, inclinando-se para aqueles que estavam propensos às paixões e assimilando-se a eles por pura humildade. Pois estes eram capazes de ter a Deus em si próprios e se consagrar à contemplação em Deus, mesmo trabalhando com suas mãos ou indo ao mercado. Quem atingiu a mais alta perfeição, disse o grande Basílio, podem permanecer sozinhos e com Deus, mesmo em meio à multidão.

Quem ainda não atingiu este ponto mas quer se libertar da acídia deve rejeitar toda relação humana e todo sono excessivo, e deixar a acídia consumir seu corpo e sua alma até que ela se esgote por completo e o deixe, vendo sua perseverança na consagração contínua a Deus, na leitura e na prece pura. Aqueles que nos combatem, se percebem que podem obter o que querem, continuam a combater. Do contrário, eles se vão, seja momentaneamente, seja em definitivo. É por isso que quem pretende dominar seus adversários deve se manter paciente. Quem perseverar até o fim será salvo[289]. É justo, diz o Apóstolo, que os que nos acuam sejam afligidos, e que nós, que estamos aflitos, sejamos aliviados[290].

Nada do que se faz por Deus e com humildade é mau. Mas as coisas e as obras podem diferir. Tudo o que se faz contra o uso necessário, ou seja, tudo o que não contribui para a salvação da alma e para a vida do corpo, constitui um obstáculo para aquele que quer ser salvo. Não é o alimento que é prejudicial, é a gula. Não é o dinheiro, mas a paixão por ele. Não é a palavra, é o falatório. Não são as doçuras do mundo, mas a intemperança. Não é o amor pelos nossos, mas o obstáculo que este amor pode criar em relação ao amor a Deus. Não são as vestimentas que usamos para nos cobrir e nos proteger do frio e do calor, mas o supérfluo, os ornatos preciosos. Não são as casas que, também elas, servem para nos proteger das intempéries e para nos guardar dos animais e dos homens que podem ser nocivos a nós, mas as moradias de dois e três pavimentos, grandes e custosas. Não é o possuir seja lá o que for, mas o usar esta coisa incorretamente.

Quando nos despojamos de tudo, não é possuir livros que é mau, mas é não os ter para a leitura divina. Não é ter amigos, mas é não os ter para o bem de nossa alma. Não é mulher que é má, mas a prostituição. Não é a riqueza, é a avareza. Nem o vinho, mas a embriaguez. Nem o ardor natural que nos foi dado para castigar o pecado, mas o ardor com que nos voltamos contra os homens, nossos semelhantes. Nem a autoridade, mas o amor ao poder. Nem a glória, mas a ambição, e pior ainda, a vaidade. Não é adquirir a virtude, mas presumir-se virtuoso. Nem o conhecimento, mas pretender-se sábio, e pior ainda, ignorar sua própria ignorância. Não é o verdadeiro conhecimento que é mau, mas o falso.

Não é o mundo que é mau, são as paixões. Não é a natureza, mas o que é contra a natureza. Não é a concórdia, mas a unanimidade nas malfeitorias que impedem a salvação da alma. Não são os membros do corpo, mas seu mau uso. Pois a visão não nos foi dada para que desejemos o que não nos convém, mas para que, vendo as criaturas, nelas glorifiquemos o Criador e alcancemos o bem de nossa alma e de nosso corpo. Da mesma forma, o ouvido não nos foi dado para escutar bobagens e ultrajes, mas para escutar a palavra de Deus e todas as linguagens, a dos homens, dos pássaros e de todas as criaturas, e para nisto glorificar o Criador. O órgão do olfato não nos foi dado para que a alma amoleça sob os perfumes e relaxe sua tensão, disse o Teólogo, mas para respirar, receber o ar que nos foi dado por Deus, e para glorificar a Deus por esta coisa sem a qual ninguém, nem homem nem animal, poderia viver em um corpo.

É admirável como o Benfeitor, em sua sabedoria, concedeu a todos encontrar com facilidade as coisas mais necessárias, ou seja, o ar, o fogo, a água e a terra. Ele não apenas nos deus estas coisas como ainda tornou mais fáceis as que podem salvar a alma e mais difíceis as que a levam para a perdição. É assim que a pobreza tende em primeiro lugar a salvar a alma, mas a riqueza é um obstáculo para a maioria. A primeira, qualquer homem a encontra; mas a segunda não está em nós. Cada um pode encontrar em si a desonra, a humildade, a paciência, a obediência, a submissão, a temperança, o jejum, a vigília, a rejeição à vontade própria, a fraqueza corporal, a ação de graças por todas as coisas, a tentação, os prejuízos, a privação do necessário, a ausência de doçuras, a nudez, a paciência, todas estas obras feitas por Deus e que não podemos impedir nem combater, mas que Deus permite aos que as assumem quando elas advêm, sejam voluntárias ou não.

Mas aquilo que leva à perdição não é fácil de ser encontrado: assim é com a riqueza, a glória, o orgulho, a rejeição aos outros, o poder, a autoridade, a intemperança, a gulodice, o excesso de sono, fazer o que se tem vontade, a saúde e a força do corpo, a vida tranquila, as vantagens, ter tudo o que se deseja, a fruição das delícias, ter muitas roupas e ornamentos, preciosos, etc. É preciso lutar muito para se obter estas coisas, e o que se encontra é bem pouco, o ganho é passageiro. Elas trazem muitas penas e pouco regozijo, pois atormentam os que as possuem e os que não as têm desejam obtê-las. No entanto, nenhuma delas é má em si: o mal está no abuso delas, como já dissemos. Os pés e as mãos não nos foram dados para roubar, pilhar, espancar, mas para podermos trabalhar nas obras de Deus. Os que têm a alma mais fraca se compadecem dos pobres, para seu próprio aperfeiçoamento e para o socorro daqueles que precisam. Mas os que são mais fortes de corpo e de alma dedicam-se eles mesmos à pobreza, à imitação de Cristo e dos santos discípulos, para glorificar a Deus e admirar a sabedoria oculta em nossos membros: o modo como, pela providência de Deus, estas mãos e dedos, malgrado sua pequenez, estão dispostas para toda ciência e todo trabalho, para a escrita, para todas as obras de onde vêm o conhecimento das artes e das inúmeras Escrituras, da sabedoria e dos remédios, da diversidade das línguas e das letras.

Simplesmente, tudo o que foi, que é e que será nos foi dado na maior bondade e nos é sempre concedido para que nossos corpos vivam e para que nossas almas sejam salvas, se nos portamos em relação a todos os seres tendo em vista o objetivo de Deus, e se através deles o glorificamos com todo nosso reconhecimento. Caso contrário, cairemos e nos perderemos: e não apenas os seres nos atormentarão no século presente, como já foi dito, como ainda nos levarão ao castigo eterno no século futuro.


Do discernimento verdadeiro.

Aquele que, pela graça de Deus, recebeu o carisma do discernimento deve, com toda sua força e grande humildade, guardar este carisma. Ele não deve fazer nada imponderadamente, para não falhar por negligência. Com seu conhecimento, ele se condenaria daí por diante. Mas quem não recebeu este carisma não deve pensar nada, nem dizer, nem fazer sem interrogar, sem confiar tudo à fé constante e à prece pura, fora das quais não se pode alcançar o discernimento. Pois o discernimento nasce da humildade. Em quem o possui, ele engendra a clarividência, como disseram Moisés e João Clímaco[291]. Este homem prevê as armadilhas ocultas do inimigo e suprime suas causas antes de chegado o momento. É o que disse Davi: “Meus olhos viram dentro de meus inimigos[292]”.

São os seguintes os sinais do discernimento: Conhecer sem se enganar o bem e seu contrário e saber qual a vontade divina em tudo o que se faz. E estes são os sinais da clarividência: conhecer suas próprias faltas antes que elas aconteçam, saber o que acontece quando os demônios nos capturam, conhecer os mistérios ocultos nas divinas Escrituras e nas criaturas sensíveis.

A humildade, mãe do discernimento e da clarividência, também é marcada por um sinal, como já foi dito. Ela pode ser reconhecida assim: quando se é humilde, pode-se possuir todas as virtudes e ainda assim crer-se em verdade o maior devedor de todos, abaixo de toda a criação. Quando não estamos neste estado, é certo sermos piores do que o resto da criação, ainda que acreditemos levar uma vida angelical. Pois até o anjo que possuía tantas virtudes e sabedoria, por não ter humildade não pode agradar ao Criador.  Que dirá então a fonte de todos os seres e bens futuros, de quem não é humilde e se quer anjo?

É da humildade que provém o discernimento que ilumina os confins do mundo. Sem ela, tudo são trevas. Pois ela é a luz e se chama luz. É por isso que antes de qualquer palavra ou obra temos necessidade desta luz para nos maravilhar quando vemos o resto das coisas. Nós nos maravilhamos de ver que Deus, no primeiro dos dias, no dia soberano, criou primeiro a luz[293] para que as coisas que viessem depois dela não permanecessem invisíveis como se não existissem, disse João Damasceno[294]. O discernimento, como dissemos, é a luz, e a clarividência que ele engendra á o mais necessário de todos os carismas. De fato, o que existe de mais necessário do que ver as armadilhas do demônio e proteger a alma com a ajuda da graça? “A pureza da consciência e a mãos necessária de todas as obras”, diz santo Isaac. O mesmo acontece com a santificação do corpo: “Sem ela, disse o Apóstolo, ninguém verá o Senhor[295]”.


Que não se deve desesperar, mesmo tendo pecado muito.

Mas não devemos nos desesperar por não sermos como deveríamos ser. Homem, seu pecado é um mal. Porque você ofende a Deus e, por sua ignorância, o impede de agir em você? Não pode salvar sua alma aquele que por você criou todo este mundo que você vê? Mas se você diz: “Aqui estava minha condenação, mas daqui por diante aqui estará a sua misericórdia”, arrependa-se e ele receberá seu arrependimento, como aceitou o do filho pródigo e da prostituta[296]. E se você não puder se arrepender, se por costume você cair em faltas indesejadas, tenha a humidade do publicano[297]. Ela basta para a salvação.

Pois quem assim peca sem se arrepender mas não se desespera, coloca-se necessariamente abaixo de todas as criaturas. Ele não ousa condenar ou culpar ninguém. Ao contrário, ele admira o amor de Deus pelo homem, é reconhecido ao seu Benfeitor e pode receber muitas outras benesses. Se o diabo o submete ao pecado mas ele o desobedece não se desesperando, por temor a Deus, ele permanece com Deus. Ele tem em si o reconhecimento, a ação de graças, a paciência, o temor a Deus, todas essas virtudes profundamente necessárias, e ele não julga para não ser julgado[298]. Como diz João Crisóstomo, no limite o inferno nos ajuda a descobrir o Reino de Deus. Pois dentre os que entram no Reino, muitos passaram pelo inferno e pouco são os que vieram pelo Reino em si. É o amor de Deus pelo homem que nos faz entrar. Um obriga pelo temor, o outro abraça, mas os dois nos salvam pela graça de Cristo. Pois os que são combatidos por tantas paixões da alma e do corpo serão coroados se tiverem paciência, se não perderem sua liberdade por negligência, se não se desesperarem.

Do mesmo modo, aquele que encontrou a impassibilidade e é por ela consolado pode cair rapidamente se não confessar sempre as graças recebidas e se condenar alguém. Se ele tiver a audácia de condenar os outros, significa que ele adquiriu a riqueza por seu próprio poder, diz são Máximo[299]. Quem ainda é passional e não tem conhecimento da luz corre um grande perigo se vier a comandar a outros, diz João Damasceno. O mesmo acontece com aquele que recebeu de Deus a impassibilidade e o conhecimento espiritual, caso não vá em auxílio das outras almas.

De início, nada ajuda tanto o fraco como a fuga para a hesíquia. E daí por diante nada auxiliará mais o passional e o ignorante do que a submissão a esta hesíquia. Nada é melhor do que conhecer sua própria fraqueza e sua própria ignorância, e nada pior do que ignorá-las. Da mesma forma, nenhuma paixão é tão detestável quanto o orgulho, e nada mais risível do que o amor ao dinheiro, esta raiz de todos os males[300]. O homem que com grande esforço extrai a prata das minas da terra a esconde outra vez na terra, e esta prata não lhe traz nada. É por isso que o Senhor disse: “Não ajuntem tesouros sobre a terra[301]”, etc. E também: “Onde estiver seu tesouro, aí estará seu coração[302]”. Pois ao longo do tempo o intelecto humano, em seu desejo, é atraído pelo hábito, seja para as coisas terrestres, seja para as paixões, seja para os bens eternos e celestiais. “Ao se inveterar, o hábito recebe a força de uma natureza”, diz o grande Basílio.

É sobretudo quando somos fracos que devemos trazer atentamente o testemunho da consciência a fim de libertar a própria alma de toda condenação; senão, ao fim da vida, o arrependimento será vão e a lamentação eterna. Quem não é capaz de sofrer por Cristo a morte sensível como ele próprio sofreu, deve ao menos ter vontade de sofrer esta morte em seu intelecto. Ele se tornará mártir em sua consciência. Ele não se submeterá aos demônios ou às vontades que lhe dão combate, mas os vencerá. Será como os santos mártires e os santos Padres que sempre trouxeram seu testemunho, uns no corpo, outros em sua inteligência. Fazendo força, domina-se o inimigo; mas se nos tornamos negligentes, por pouco que seja, se nos mantemos nas trevas, estaremos perdidos.


Brevemente, como adquirir as virtudes e se abster das paixões.

Nada, disse o grande Basílio[303], entenebrece tanto a reflexão quanto a malícia. E nada ilumina tanto o intelecto quanto a leitura na hesíquia. Nada reduz tanto as penas da alma quanto o pensamento da morte. Nada ajuda tanto a avançar secretamente a alma como a vergonha de si mesma e a rejeição das próprias vontades. Nada leva mais secretamente à nossa perda quanto a presunção e a autossuficiência. Nada afasta tanto de Deus e da instrução do homem quanto os murmúrios de revolta. Nada facilita tanto o pecado quanto a confusão e o falatório.

Não existe caminho mais curto para adquirir a virtude do que a solidão e o recolhimento. Nada nos leva tanto ao reconhecimento e à ação de graças como a meditação dos dons de Deus e de nossos próprios males. Nada aumenta em nós as benesses como louvar a Deus por estes dons. Nada contribui para a salvação como as tentações, ainda que não as queiramos. Nenhuma via para Cristo, para a impassibilidade e a sabedoria do Espírito, é mais curta do que a via real que afasta do excesso e das faltas. Nenhuma virtude é capaz de compreender a vontade divina como a humildade, o abandono de todo pensamento e de toda vontade própria. Nada concorre tanto para todas as obras boas como a prece pura. Nada impede de adquirir as virtudes como a distração e o fastio da reflexão, por pequenos que sejam. Quanto mais pureza temos, mais nos arriscamos a falharmos em tudo o que vemos. E quanto mais caímos nas faltas, mas penetramos nas trevas, ainda que possamos parecer puros.

Mais ainda: quanto mais conhecimento temos, mais percebemos nossa ignorância. E quanto mais alguém ignora sua própria ignorância, e o quão parcial é seu conhecimento espiritual, mais ele crê conhecer. Quanto mais tormentos suportar aquele que combate, mais ele será capaz de vencer o inimigo. Quanto mais alguém se esforça para fazer algo de bom a cada dia, mais ele se sentirá devedor todos os dias de sua vida, diz são Marcos[304]. Isto equivale a dizer que o poder e a intenção da obra lhe pertencem, mas que a graça vem de Deus. Somente se tiver recebido a graça este home poderá realizar a boa obra. De que poderá ele se glorificar, senão por presunção, pensando que ele pode realizar qualquer coisa de bom ao mesmo tempo em que condena injustamente os que não puderam fazer a mesma coisa? Pois quem exige alguma coisa de seu próximo deve antes, e com mais justiça, exigi-la de si mesmo. E assim como os pecadores devem temer por terem provocado a cólera de Deus, também aqueles que, por sua fraqueza e seu pendor ao desespero, foram cobertos por sua graça, devem tremer ainda mais, por serem extremamente devedores. Se este abismo – a ignorância das Escrituras – é grande, diz santo Epifânio[305], maior ainda é este mal – a transgressão consciente – e maior na alma o benefício advindo da palavra ou da oração.

Quando um homem sofre por causa de seu próximo deve rezar por ele, a fim de que o que lhe causa mal não seja afligido, para que sua vontade descanse enquanto está perturbado, diz são Doroteu[306, para que tenha piedade de sua alma, para que carregue seu fardo, para que deseje a sua salvação e todas as coisas boas para seu corpo e sua alma. Nisto consiste a pura ignorância do mal, que purifica a alma e a eleva para Deus. Pois os cuidados para com aquele que lhe fez mal são melhores do que todas as obras e do que todas as virtudes. Nenhuma virtude é maior ou mais perfeita do que o amor ao próximo. O sinal deste amor é de não ter nenhuma necessidade em relação a outrem, mas de por ele sofrer até a morte com alegria. Este é o mandamento do Senhor[307]. Devemos considera-lo como um dever. Pois devemos não somente amar o próximo até a morte, como também amar o sangue precioso que por nós derramou Cristo, que nos ordenou tal amor.

Não seja você mesmo o objeto do seu amor, disse são Máximo[308], e assim você amará a Deus. Não se compadeça de si mesmo, e assim você amará aos seus irmãos. Pois o amor provém da esperança. E a esperança é isto: crer firmemente, com todo seu intelecto, que tudo acontecerá como se espera. A esperança nasce da fé certeira: abandonamos todo cuidado com nossa própria vida e morte, e remetemos a Deus todo cuidado, como foi dito a respeito daquele que quer descobrir a impassibilidade dos sinais, cuja fé é o fundamento. Quem possui esta fé deve sempre considerar o seguinte: assim como Deus criou todas as coisas, e junto com elas do nada criou a nós em sua extrema bondade, da mesma forma ele dirigirá de todas as maneiras a alma e o corpo para a salvação.


Como adquirir a fé verdadeira.

Mas aquele que deseja adquirir a fé (que é o fundamento de todos os bens, a porta dos mistérios de Deus, a infatigável vitória sobre os inimigos, a mais necessária de todas as virtudes, o auxílio da prece e a morada de Deus na alma) deve suportar todas as provas que os inimigos, o número e a diversidade dos pensamentos o farão sofrer. Ninguém pode compreender estes pensamentos, nem dizer deles o que quer que seja, nem descobri-los, senão o diabo, o inventor da malícia. Mas o homem deve ter coragem: se ele sobrepujar com grande força as tentações que lhe chegam, se evita que seu intelecto seja entregue aos pensamentos que chegam ao seu coração, ele vencerá todas as paixões de uma vez por todas. Pois o vencedor não terá sido ele, mas Cristo que nele está pela fé. É dele que o Senhor falou quando disse: “Se vocês tiverem a fé do tamanho de um grão de cevada[309]”, etc.

Mas ainda que, em sua fraqueza, o pensamento se entregue ao inimigo, que ele não tema nem se desespere, que não grave na alma o que disser o príncipe do mal. Que ele se volte pacientemente, atentamente, tanto quanto lhe for possível, para a obra das virtudes e a guarda dos mandamentos, na hesíquia e na consagração a Deus, longe de tudo o que possa pensar por si mesmo, a fim de que o inimigo se retire desencorajado por haver tramado dia e noite com toda imaginação e mentiras e não ter conseguido ocupa-lo com os divertimentos, as formas e todos os pensamentos nos quais ele aparentemente se oculta, mas na realidade pratica a comédia da enganação.

Aquele que trabalha nos mandamentos de Cristo experimenta assim a fraqueza do inimigo. Já nenhum dos seus truques o perturba. Ele faz com alegria e sem que nada o impeça tudo que quer, tudo o que deseja diante de Deus, fortificado pela fé e ajudado por Deus em quem ele crê, como o próprio Senhor disse: “Tudo é possível àquele que crê[310]”. Porque já não é ele quem combate o inimigo, mas Deus que por ele vela na fé. O profeta disse: “Faça do Altíssimo seu refúgio[311]”, etc. Este homem já não se preocupa com nada. Ele sabe que “o cavalo está pronto para o combate, mas que é junto a Deus que está sua salvação[312]”, como disse Salomão. Pela salvação ele ousa tudo, como disse santo Isaac: “Adquira a fé, a fim de vencer os inimigos[313]”.

Pois este homem não leva a vida que quer, mas é conduzido pela vontade de Deus como um animal. Como diz o Profeta: “Eu era como um animal na sua presença, mas estou sempre com você[314]”. Se você quiser me dar o repouso por meio do conhecimento, eu não recusarei. Se mais uma vez, pela humildade, você permitir que eu sofra tentações, estarei com você da mesma maneira. Nada posso fazer por mim mesmo. Sem você eu não teria saído do nada, não poderia nem viver nem ser salvo. Assim, faça de sua criatura o que quiser. Eu creio que na sua bondade você me cumulou de benesses, mesmo que para meu benefício eu não as conheça. Mas eu não sou digno de conhecê-las, nem procuro aprendê-las a fim de estar em repouso. Talvez isto não me sirva de nada. Tampouco ouso pedir que cesse o combate, mesmo sendo fraco e sofrendo por tudo. Porque eu não sei o que é bom para mim, mas você, você sabe tudo[315]. Faça-se como você quiser. Apenas não perca eu o objetivo, se algo suceder. Mas, quer eu vigie quer não, salve-me, se for de sua vontade. Eu nada tenho de meu, estou diante de você como uma coisa sem alma. Entrego minha alma em suas mãos puras[316], no século presente e no século futuro. A você, que tudo pode, que conhece tudo, que por nós deseja toda a bondade, que quer sempre a nossa salvação. Isto é para nós evidente, por todas as benesses que você nos concedeu e que nos concede sempre pela graça, e por tudo o que vemos ou não vemos, por tudo o que sabemos ou não sabemos, e por causa desta compaixão por nós, que ultrapassa o intelecto, Filho e Verbo de Deus.

Mas quem sou eu para ousar apelar a você que conhece nossos corações? Só falo para que eu mesmo aprenda que eu me refugio em você, porto da minha salvação, e para que o saibam meus inimigos. Porque o que sei, sei por sua graça, porque você é meu Deus[317], e não porque ouso falar-lhe. Mas eu queria ser em sua presença não mais do que um intelecto vazio, surdo e mudo. Não sou eu, mas sua graça que coloca tudo em movimento. Eu sei que em mim não existe nada de bom, que estou sempre cheio de vícios. Mas por causa deles, em minha condição servil, eu me prosterno diante de você. Pois você me permitiu arrepender-me. Eu sou seu servo, o filho da sua serva[318].

Mas, Senhor Jesus Cristo meu Deus, não permita que eu faça, diga ou pense aquilo que você não quer. Já bastam minhas inúmeras faltas passadas. Segundo a sua vontade, tenha piedade de mim porque eu pequei. Segundo seu conhecimento, tenha piedade de mim. Eu acredito que você ouve minha pobre voz. Ajude-me em minha descrença[319], você que me concedeu ser, e ser cristão. “É para mim uma grande coisa, disse João Carpatos, poder ser chamado de monge e de cristão”. Você mesmo, Senhor, disse a um dos seus servos: “Para você é uma grande coisa que em você seja invocado meu nome”. Isto é para mim melhor do que todos os reinos da terra e do céu. Que eu possa sempre invocar seu dulcíssimo nome: “Mestre cheio de misericórdia, eu lhe dou graças”, etc., como está escrito.

Assim como ao homem ativo são necessárias outras ordens de leituras, outras palavras, outras palavras, outras orações, também esta fé é diferente da primeira, a que engendra a hesíquia. “Uma é a fé que procede daquilo que ouvimos, outra a que provém da contemplação”, disse santo Isaac; ora, existe uma certeza maior naquilo que vemos do que naquilo que ouvimos dizer[320]. Com efeito, é do conhecimento natural que nasce a fé primeira, a fé comum aos ortodoxos, de onde provém a consagração a Deus de que já falamos, bem como o jejum, a vigília, a leitura, a salmodia, a prece, as perguntas feitas aos que têm experiência. Destas coisas nascem as virtudes da alma, a guarda e a constância nos mandamentos e na conduta. E estas possibilitam a grande fé, a esperança e o amor perfeito que, como vimos, arrebata durante a oração o intelecto para Deus, quando nos unimos a ele por seu intermédio.

É o que disse são Nilo. As palavras da prece foram escritas de uma vez por todas, a fim de que aquele que quiser manter seu intelecto imóvel diante da santa Trindade, a Origem da vida, possa sempre orar a mesma prece, com o pensamento de estar sendo visto, mesmo que, dentre as coisas inteligíveis e compreensíveis de toda a criação, seja impossível para ele ver o que não possui nem figura, nem forma, nem cor, nem confusão, nem distração, nem movimento, nem matéria. Mas numa paz profunda, numa calma perfeita, ele conversa com Deus, não conservando em si senão sua santa memória, até alcançar o arrebatamento do intelecto, quando lhe for concedido pronunciar como se deve a prece do Senhor Nosso Pai, como disseram são Filemon[321], santa Irene, os santos apóstolos, os santos mártires e os santos monges. Fora disto, tudo é derrisório e provém da presunção. Não podemos definir nem limitar o divino. O intelecto que entra em si mesmo deve ser assim. A graça permite que seja visitado pelo Espírito Santo. “Não é com a visão clara, mas na fé, que marchamos[322]”, disse o Apóstolo.

É por isso que devemos perseverar na ascese, para que, com o tempo, o intelecto, em seu desejo, seja pelo hábito atraído pelas coisas divinas. Pois se o intelecto não encontrar com aquilo que é outro, com o que é maior do que as coisas sensíveis, ele não apontará para aí seu desejo e abandonará aquilo a que se habituou por tanto tempo. Os impassíveis que amam o homem são pouco perturbados pelas coisas da vida, pois sabem se conduzir. O mesmo acontece com os que receberam os grandes carismas, pois é a Deus que eles atribuem suas boas ações.


Que a hesíquia é útil sobretudo aos que são inclinados às paixões.

A hesíquia, a fuga das coisas e dos homens, é útil a todos, mas sobretudo àqueles que são inclinados às paixões, e aos fracos. Pois apenas pela ação exterior o intelecto não consegue se tornar impassível. Ele deve ter numerosas contemplações espirituais. Ninguém pode evitar ser levado ao mal pela distração se não adquirir primeiro a fuga que leva à impassibilidade. O cuidado com a vida e a confusão são normalmente tão nocivas aos perfeitos quanto aos impassíveis.

O trabalho do homem, disse João Crisóstomo, de nada serve para a impulsão que vem do alto. Mas o impulso do alto não vem sobre aquele que não pede. Nós sempre precisamos dos dois, do divino e do humano, da ação e do conhecimento, do temor e da esperança, do luto e da consolação, da apreensão e da humildade, do discernimento e do amor. Pois, diz ele, todas as coisas da vida são duplas: dia e noite, luz e trevas, saúde e doença, virtude e vício, tranquilidade e dificuldade, vida e morte. Se somos fracos, por meio de umas amamos a Deus e por meio de outras fugimos do pecado por temor às tentações. Mas se somos fortes, é por todas estas coisas que amamos a Deus nosso Pai, sabendo que tudo é bom[323] e que a tudo Deus dispõe para nosso bem. Podemos nos abster do que é agradável e buscar o que é difícil, sabendo que, por um lado, serão regenerados os corpos para glória do Criador e que, por outro, as almas serão ajudadas em sua salvação pela inefável compaixão de Deus.

Com efeito, podemos classificar os homens em três estados: os escravos, os mercenários e os filhos. Os escravos não amam o bem, mas se abstêm do mal por temor dos castigos. O que eles fazem é um bem, diz são Doroteu[324], mas um bem que não agrada. Os mercenários amam o bem e odeiam o mal, mas na esperança de um salário. Os filhos, os perfeitos, não se abstêm do mal por temor dos castigos, mas porque o odeiam com todas as suas forças. Também não fazem o bem por um salário, mas porque o consideram um dever. Eles amam a impassibilidade por meio da qual eles imitam a Deus, fazem dela sua morada e se abstêm do mal, mesmo que não tenham diante de si nenhuma ameaça. Porque se alguém não se torna impassível, o Santo Deus não lhe enviará o Espírito Santo, de medo que o hábito não o atire novamente às paixões. Pois então ele estaria sob a influência do Espírito Santo que habitasse nele, e sua condenação seria bem maior. Mas quando, uma vez adquirida a virtude, ele cessa toda relação com os inimigos e já não é atraído pelo costume das paixões, então ele pode acolher a graça e já não será condenado ao receber o carisma. Diz João Clímaco que Deus não nos revela sua vontade para que não sejamos previamente condenados por desobedece-lo sabendo[325], mesmo que, como todas as crianças, ignoremos sua infinita misericórdia para conosco os ingratos. Pois, diz ele, quem quiser aprender a vontade divina deve morrer para o mundo todo e para suas próprias vontades também[326].

A partir daí não devemos fazer nada nem colocar nada como bom, se for ambíguo. Sem isto não se pode viver nem ser salvo. Devemos interrogar os que têm experiência. Por meio da fé constante e da oração podemos receber a total certeza que precede a impassibilidade perfeita que torna o intelecto invencível e lhe concede a vitória em toda boa obra. Assim, o combate pode ser intenso, mas o homem é salvo. Pois “meu poder se cumpre na fraqueza[327]”, diz o Senhor. E o Apóstolo: “Quando sou fraco, aí é que sou forte[328]”. Pois os demônios, disse João Clímaco, têm muitas maneiras de partir. Eles podem nos deixar para nos estender uma armadilha, nos entregar à presunção, à autossuficiência ou a algum outro mal. Basta-lhes, naquele que se gaba de si, ocupar o lugar de alguma das outras paixões[329].

Os primeiros Padres, diz o Gerontikon, guardaram os mandamentos. Depois deles, os outros os escreveram. Mas nós atiramos os escritos pela janela[330]. E, se ainda temos vontade de ler, não buscamos nem compreender, nem fazer o que está dito. Ou bem lemos de passagem, ou pensamos estar fazendo uma grande coisa e caímos no orgulho. Ignoramos que, se não trabalhamos, cavamos nossa própria condenação, como diz João Crisóstomo. Também o Senhor diz: “Aquele que conhece a vontade do seu Senhor[331]”, etc.

Assim é que a leitura e o conhecimento são bons, mas apenas se levarem a uma maior humildade. Do mesmo modo o conselho, quando não perturba a vida daquele que ensina. Como disse Gregório o Teólogo: “Não procure justificar sua confiança naquele que lhe ensina ou que prega a você[332]”. É o que diz o Senhor: “Façam o que lhes ordenarem os sacerdotes[333”, etc. Nada temos a temer das obras daquele que nos ensina, se o interrogarmos. Mas elas não nos renderão serviço se não fizermos nada. Pois cada qual dará conta de si próprio. Quem ensina prestará conta de suas palavras; quem é ensinado prestará contas de sua docilidade em coloca-las em prática. Fora disto, tudo o mais é contra a natureza e digno de condenação.

Como disse são Eustrates, Deus é bom e justo, e é por bondade que ele nos concede todo o bem, quando somos reconhecidos e lhe damos graças pelo caminho justo. Mas se não manifestarmos nenhum reconhecimento, cairemos da bondade no julgamento de Deus. Assim é que a bondade e a justiça de Deus são em nós naturalmente a fonte de todo bem. Mas se delas abusarmos, eles nos conduzirão ao castigo eterno.


Que o verdadeiro arrependimento é um grande bem.

Entretanto, se quisermos, se nos arrependermos, sempre poderemos retomar o caminho. “Se você caiu, levante-se. Se você caiu de novo, levante-se de novo[334]”. Jamais desespere de sua salvação, aconteça o que acontecer. Jamais se entregue voluntariamente ao inimigo. Esta paciência e a vergonha de si próprio bastam para a salvação. “Nós próprios éramos antes insensatos e estávamos submetidos às nossas concupiscências[335]”, etc. Portanto, não desespere por ignorar o socorro de Deus, porque ele pode fazer o que quiser. Espere nele e, de um modo ou de outro, ele agirá. Seja por meio de tentações, ou por algum outro meio, ele irá preparar a sua correção. Talvez ele receba como obras suas sua paciência e sua humildade. Talvez, em seu amor pelo homem, através da esperança, ele abrirá um caminho que você desconhece, para salvar sua alma cativa. Apenas não negligencie Aquele que pode curá-lo. Pois ao se recusar a conhecer o objetivo oculto de Deus você sofrerá a dupla morte.

Podemos dizer agora que da ação o mesmo que dissemos do conhecimento. Toda ação do corpo e da alma está cercado por seis armadilhas: à direita e à esquerda, o esgotamento depressivo e a preguiça; acima e abaixo, a autossuficiência e o desespero; no interior e no exterior, a inércia e a temeridade. É o que diz Gregório o Teólogo: mesmo que o nome seja semelhante, a coragem está longe do excesso de temeridade[336]. No meio das seis armadilhas, a obra comedida se faz na humildade e na paciência.

É admirável o modo como o intelecto humano transforma em si mesmo todos os seres ao seu gosto, ainda que eles sejam imutáveis e permaneçam sendo o que são. É por isso que nem todos temos o mesmo objetivo diante dos seres. Ao contrário, cada qual se serve das coisas como quer, seja para o bem, seja para o mal, das coisas sensíveis por meio do trabalho, das coisas inteligíveis por intermédio da palavra e do raciocínio.

Todos os homens, me parece, veem sua vida de quatro maneiras, que correspondem aos estados dos quais fala Gregório o Teólogo. Alguns estão tão bem aqui quanto no século futuro: são todos os santos, os que se tornaram impassíveis. Outros só estão bem aqui: estes não são dignos das benesses que recebem em suas almas e seus corpos, pois não são reconhecidos ao seu Benfeitor, como o rico[337] e outros assim. Outros ainda só são atormentados aqui: eles sofrem de uma longa enfermidade, como o paralítico, ou se deixam atormentar por seus próprios pensamentos. Outros, enfim, são atormentados aqui e o serão no futuro: estes são tentados por suas próprias vontades, como Judas e assemelhados.

Diante das coisas sensíveis, existem também quatro objetivos. Uns odeiam as obras de Deus, como os demônios: sua vontade é má e eles fazem o mal. Outros amam o que é bom, mas permanecem inclinados às paixões, como animais irracionais: eles não cuidam da contemplação natural, nem da ação de graças. Outros, como os homens, se servem naturalmente de tudo com temperança no conhecimento espiritual e na ação de graças. Outros, enfim, como os anjos, contemplam tudo sobrenaturalmente com vistas à glória do Criador: eles não se servem de nada, senão, segundo o Apóstolo, daquilo que é necessário para viver[338].


Das benesses universais e particulares de Deus.

É por estas razões que nós homens devemos todos sempre dar graças a Deus pelas benesses universais e particulares que ele desenvolve em nossas almas e em nossos corpos.

As benesses universais são os quatro elementos, tudo o que provêm deles, todas as maravilhas de Deus, todas as coisas extraordinárias reportadas nas divinas Escrituras. As benesses particulares são aquelas que Deus concedeu a cada homem: a riqueza com vistas à compaixão; a pobreza com vistas à paciência reconhecida; o poder com vista ao julgamento e à formação da virtude; a submissão e a dependência com vistas à salvação efetiva da alma; a saúde com vistas ao socorro dos necessitados e ao trabalho diante de Deus; a enfermidade com vistas à coroa da paciência; o conhecimento e o poder com vistas à aquisição das virtudes; a fraqueza e a ignorância com vistas à submissão na hesíquia, na humildade e na fuga das coisas; a privação involuntária dedicada à salvação voluntária, ao socorro dos que não podem alcançar a despossessão perfeita ou mesmo a compaixão; a calma e a serenidade com vistas a assumir sobre si o combate de outras almas; a tentação e as dificuldades chamadas a salvar – muito contra a sua vontade – aqueles que não conseguem romper com suas vontades próprias, e também para levar à perfeição os que as podem suportar com alegria.

Todas essas coisas, embora se oponham umas às outras, não deixam de ser boas desde que saibamos como nos servir delas. Entretanto, se as usarmos mal, elas deixarão de ser boas e se tornarão nocivas à alma e ao corpo. Mas a melhor de todas as coisas é a paciência nas aflições. Quem recebeu este grande carisma deve dar graças a Deus, pois seu benefício é imenso. Este imita a Cristo, imita os santos apóstolos, os mártires e os santos monges. Renunciando ao que é agradável voluntariamente, buscando antes o que é difícil ao recusar as vontades próprias e os pensamentos que não vêm de Deus, a fim de só pensar no que agrada a Deus, ele recebe uma grande força e um grande conhecimento.

Aqueles a quem foi concedido buscar o bom uso das coisas deve agradecer humildemente a Deus por terem sido libertados por sua graça do mau uso e da transgressão dos mandamentos. Mas nós, que ainda estamos inclinados às paixões e abusamos destas coisas agindo contra a natureza devemos tremer, dar graças humildemente ao Benfeitor com todo o reconhecimento e admirar sua paciência inefável. Pois desobedecemos aos seus mandamentos, abusamos das coisas e nos desviamos dos seus dons, porque ele suporta nossa ingratidão. Ele não nos abandona, ele nos cumula de bens. Ele aguarda nosso retorno e nosso arrependimento até o último suspiro. Todos os homens devem lhe dar graças, conforme foi dito: “Deem graças em todo tempo e lugar[339]”.

A esta palavra do Apóstolo está ligada outra, quando ele diz: “Orem sem cessar[340]”. Vale dizer: mantenham a memória de Deus em todo tempo, todo lugar, toda coisa. O que quer que façamos, devemos guardar a memória d’Aquele que criou tudo o que existe diante de nossos olhos. Ao ver a luz, não se esqueça d’Aquele que lha deu. Ao ver o céu e a terra, o mar e todos os seres: admire e glorifique o Criador. Quando você coloca suas vestes, reconheça de quem você as recebeu e cante Àquele que é a providência de sua vida. Numa palavra, que todo movimento o leve a glorificar a Deus: esta é a prece contínua. A partir daí, a alma estará sempre alegre, diz o Apóstolo[341]. Pois a lembrança de Deus a alegra, diz são Doroteu, citando o testemunho de Davi: “Eu me lembrei de Deus e exultei[342]”.


Que Deus tudo fez para o nosso bem.

Pois Deus fez todos os seres para o nosso bem. Os anjos nos guardam e nos ensinam. Os demônios nos tentam para nos forçar à humildade, à fuga para Deus. Pois é por estas coisas que somos salvos: o temor das tentações nos liberta da autossuficiência e da irresponsabilidade.

E mais: as coisas agradáveis deste mundo – a saúde, a prosperidade, a força, a alegria, a luz, o conhecimento, a riqueza, o sucesso em tudo, o estado aprazível, o conforto, a tranquilidade, a fruição das honrarias, o poder, a abundância, todas as coisas que nesta vida são consideradas como bens – nós por elas nos erguemos em ação de graças e de reconhecimento ao nosso Benfeitor, somos levados a amá-lo e a fazer tanto bem quanto pudermos, pois – pensamos – temos o dever natural de responder aos dons com boas obras, mesmo que não nos seja possível, pois nossa dívida é muito maior do que isto. Quanto àquilo que consideramos como coisas sofridas – a doença, as dificuldades, a fadiga, a fraqueza, a tristeza involuntária, as trevas, a ignorância, a miséria, as infelicidades em geral, o medo das privações, a desonra, o esgotamento, as necessidades e tudo o que é contrário às coisas agradáveis – é por meio delas que alcançamos a paciência, a humildade e a boa esperança que, no século futuro como no presente, nos trazem grandes consolações.

Em sua inefável bondade, Deus nos providenciou maravilhosamente todos os bens. Quem os quiser conhecer e possuir deve se esforçar para adquirir as virtudes, a fim de receber em ação de graças tudo de que falamos, tanto as coisas boas como aquelas que nos parecem contrárias, e a fim de que nada o perturbe. Por outro lado, quando os demônios, tentando alçá-lo acima de si mesmo, metem-lhe na cabeça um pensamento orgulhoso, ele se lembra de que eles disseram as coisas mais infames, derruba este pensamento e se refugia na humildade. E quando eles lhe põem na cabeça uma coisa infamante, ele se lembra do pensamento orgulhoso e a derruba também.  Assim ele derruba um pelo outro, o orgulho e a infâmia, por obra da graça através de sua memória, a fim de jamais cair no desespero por causa das coisas infames, nem no orgulho por causa da pretensão. Quando ele eleva seu intelecto ele foge para a humildade. E quando os inimigos o rebaixam diante de Deus, ele se ergue pela esperança, a fim de jamais cair cedendo à confusão, a fim de jamais desesperar de medo, até seu último suspiro.

Esta é a grande obra do monge, como diz o Gerontikon. Quando os adversários atacam a humildade, ele apela para a esperança. Quando eles atacam a esperança, ele corre para a humildade. Pois ele sabe que nada é absolutamente imutável nesta vida. “Quem perseverar até o final será salvo[343]”. Mas quem quer que as coisas aconteçam conforme seus próprios desejos não sabe para onde vai. Como um cego sacudido por todos os ventos, tudo o que lhe acontece o balança inteiro. Como um escravo, ele teme as tormentas. Ele é arrastado cativo pela presunção. Numa alegria irracional, ele crê possuir o que jamais viu e acredita saber de onde é. Quando ele diz, quando ele afirma saber, sua cegueira só aumenta, porque esta advém do fato de que ele não se envergonha de si, de que ele não acusa a si próprio. A cegueira se chama autossuficiência e perdição oculta, como disse são Macário em seus capítulos[344] a propósito do monge que se perdeu depois de ter visto a Jerusalém celeste ao rezar com seus irmãos, no arrebatamento do intelecto. Pois ele só pensava no que havia lhe acontecido, e não que sua dívida era cada vez maior. Do mesmo modo como os homens profundamente passionais não veem, sob a bruma das paixões, o que é evidente para os demais, também os impassíveis conhecem o que a maioria ignora, graças à pureza de seu intelecto.


Que a palavra de Deus não é falatório.

Pois a palavra de Deus, diz são Máximo, não é falatório[345]. Enquanto nós homens falamos tantas coisas, existe sempre uma palavra de Deus que nunca cumprimos. Deus disse: “Você amará seu Deus com toda a sua alma[346]”, etc. Quanta coisa não disseram os Padres, quantas não escreveram eles, quantas não dizem e escrevem ainda os homens, sem que se tenha cumprido esta única palavra!

Com toda sua alma, diz são Basílio[347], significa que não se pode amar nada ao mesmo tempo em que se ama a Deus. Pois se alguém ama sua própria alma, já não ama a Deus com toda sua alma, mas apenas com a metade. Se amamos a nós mesmos, se amamos tantas e inumeráveis coisas, como poderemos amar a Deus, como ousaremos afirma-lo? O mesmo acontece com o amor ao próximo. Se não rejeitarmos a vida presente e mesmo a futura pelo próximo, como o fizeram Moisés e o Apóstolo, como podemos dizer que o amamos? Pois já foi dito a Deus, falando do povo: “Perdoe suas faltas se assim o quiser. Senão, apague a mim também do Livro da vida, que você escreveu[348]”. E o Apóstolo disse: “Eu queria ser anátema, separado de Cristo[349]”, etc. Ele pedia sua própria perdição para que outros fossem salvos, aqueles mesmos – os israelitas – que procuravam matá-lo.

Assim são as almas dos santos: eles amam a seus inimigos mais do que a si próprios. Neste século como no século futuro, em tudo eles preferem o próximo, mesmo que suas intenções sejam más, mesmo que seja seu pior inimigo. Eles nada pedem aos que amam, e, como se eles próprio recebessem, eles se regozijam em dar a outros aquilo que possuem, a fim de agradar ao Benfeitor e de imitar na medida do possível seu amor pelo homem. Pois ele é bom inclusive para os ingratos e os pecadores[350].

Mas quanto mais tais carismas sejam concedidos a alguém, mais este alguém deve considerar ser devedor a Deus que o elevou da terra e tornou o pó digno de imitar em parte a seu Criador e seu Deus. Pois suportar com alegria as injustiças, não levar o mal em conta, fazer o bem aos inimigos, oferecer sua alma pelo próximo, estas atitudes são dons de Deus. Os que as assumem as recebem ele, por sua atenção em trabalhar e guardar[351], como foi dito a Adão, a fim de que os dons neles permaneçam, através de seu reconhecimento para com o Benfeitor, Pois não temos em nós nenhum bem que seja nosso: todos os bens nos são dados por Deus por meio da graça. Do nada eles chegam ao ser. O que você possui que não tenha recebido, diz o Apóstolo? Vale dizer: que possui você que não lhe tenha sido dado gratuitamente por Deus? E se você recebeu, por que você se glorifica como se não tivesse recebido[352], como se fizesse tudo por si próprio? Isto é impossível. O Senhor disse: “Sem mim, vocês nada podem[353]”.


Que sem humildade é impossível ser salvo.

Eu não conheço, em toda a cegueira causada pelas paixões, maior loucura do que se considerar igual aos anjos ou até superior a eles. Ter tamanha presunção de si próprio, sem a humildade que faltou a Lúcifer, equivale a se cobrir de trevas, fora qualquer outro pecado. Quanto não deverá sofrer aquele que não tem humildade, o mortal e pó, para não dizer o pecador? Porque ele é cego, se pensar não ser pecador.

Diz João Crisóstomo que é óbvio que o homem perfeito se tornará semelhante aos anjos, como afirma o Senhor, mas somente após a ressurreição dos mortos, e não no século presente. E mesmo nesta ocasião eles não serão anjos, mas semelhantes aos anjos[354]. Pois os homens não poderão deixar sua natureza própria, mas a graça pode torná-los imutáveis e livres de toda necessidade como os anjos. Eles se tornam livres em tudo o que fazem. Sua alegria, seu amor a Deus, “aquilo que o olho não vê[355]”, etc., se tornam infinitos.

É impossível nos tornarmos perfeitos aqui, mas recebemos a perfeição como uma garantia dos bens prometidos. Pois mesmo os que são privados de carismas devem ser humildes como os pobres, assim como aqueles que os possuem devem ter a humildade de reconhecer que os receberam de Deus, a fim de não serem condenados por ingratidão. Assim como os ricos devem reconhecer que devem dar graças a Deus pelos seus dons, ainda mais devem aqueles que são ricos em virtudes. Enfim, assim como os pobres devem dar graças a Deus e amar profundamente aos que os auxiliam pelo bem que deles recebem, da mesma maneira, e muito mais, devem os ricos dar graças por poder, por meio da compaixão, serem salvos pela providência de Deus no século presente e no século futuro. Pois, fora da pobreza, não há salvação para sua alma e é impossível escapar às tentações da riqueza.

Os discípulos devem amar a seus mestres, assim como estes devem amar a seus discípulos. Uns e outros devem dar graças a Deus que a todos dá o conhecimento e todos os outros bens. Todos, em especial os que podem reavivar em si o batismo divino pelo arrependimento sem o qual ninguém pode ser salvo, devemos todos agradecer sempre por seus dons. Pois o Senhor disse: “Porque me chamam ‘Senhor, Senhor” se não fazem o que digo[356]?”. Diante destas palavras seria insensato crer que podemos ser irrepreensíveis sem invocar o Senhor. Na verdade, estaremos condenados. Como diz o Senhor: “Se isto acontece com o lenho verde, quanto mais não acontecerá ao seco[357]?”. E, “se com tanta dificuldade se salva o justo, diz Salomão, que dizer do iníquo e do pecador[358]?”. Mas quando nos vemos encerrados de todos os lados pelos mandamentos divinos, também não devemos nos desesperar. Pois, se a condenação seria ainda pior do que a do assassino, devemos entretanto nos maravilhar de como as divinas Escrituras e os mandamentos conduzem o homem à perfeição, aqui e além, para impedi-lo de escapar ao bem, se conformando com o pior. Pois, ao se conformar com o pior e ver diante de si toda a infelicidade, ele se voltará para o bem. Deus fez esta coisa admirável em seu amor pelo homem. Desta maneira, todo homem descobre a perfeição, de certo modo e mesmo que não o queira, por ter este poder em si mesmo. Os que são gratos conduzem seu combate maravilhados com as benesses que recebem, como aqueles de quem fala são Efrém, que atravessaram o rio enquanto dormiam. É por isso, diz santo Isaac, que Deus multiplicou as tentações, para que, temendo-as, fujamos para ele[359].

Quem não compreendeu isto, mas que por amor ao prazer usa mal este dom, fere a si mesmo e está perdido. Recebeu armas para lutar contra os inimigos e delas se serviu para sua própria imolação. Pois, disse são Basílio, como Deus é bom e quer o bem de todos, o diabo, que é mau, deseja atrair a todos para a sua perversidade, ainda que não consiga. Assim como os pai que amam a seus filhos os ameaçam quando eles se perdem e os fazem voltar à força de afetos, também Deus concede as tentações como uma vara que livra da maledicência do diabo aqueles que são dignos. “Aquele que deixa de lado o bastão odeia seu filho; quem ama seu filho repreende-o[360]”. Mas para nós, que amamos o prazer e amamos a nós mesmos, o perigo vem de fora, embora Deus conduza à salvação aqueles a quem ama, por intermédio das tentações que concede a eles. Entre a queda nas tentações pelo orgulho e o afastamento de Deus como filhos castigados mas não condenados à morte devemos escolher a pena mais leve. Pois é melhor buscar o refúgio em Deus pela paciência nas tribulações do que aceitar a queda por medo dos perigos, do que cair nas mãos do diabo, do que ser atraído por ele para a queda eterna e para a danação.

Um dos dois caminhos está sempre diante de nós: ou seguimos a primeira durante algum tempo, ou seguimos a segunda por toda a eternidade. Mas nenhum dos dois perigos ameaça os justos, pois eles amam com alegria aquilo que a nós parece difícil. Para eles as tentações são ocasiões de ganho. Eles as abraçam ao invés de tentar matá-las, pois quem recebe uma flechada e não é ferido por ela não morre. Mas quem tem uma ferida mortal está perdido. Em quê prejudicou a Jó sua ferida? Não foi ele coroado[361]? Alguma vez estas coisas perturbaram os apóstolos e os mártires? Como se diz, eles se regozijaram por lhes ter sido concedido ser desonrados em nome do Senhor[362].  Quanto mais combate o vitorioso, mais coroado ele se torna e maior é a alegria que recebe. Quando ouve o som da trombeta que chama para a imolação, este homem não teme: ao contrário, se alegra por que antevê que logo receberá a coroa.

Nada traz com tanta facilidade a vitória como a audácia e a fé firme. E nada leva tanto à derrota quanto o amor próprio e a preguiça dada pela falta de fé. Nada traz tanta coragem como a atenção perseverante e a experiência das coisas. Nada dá tanta sutileza ao pensamento quanto a leitura na hesíquia. E nada engendra tanto o esquecimento como a ociosidade. Não há caminho mais curto para a remissão dos pecados do que resistir ao mal. Não há progresso mais rápido para a alma do que a rejeição das vontades e dos pensamentos próprios. Nada existe de maior do que se atirar aos pés de Deus noite e dia e pedir que em tudo seja feita sua vontade. Nada existe de pior do que amar o arbitrário, a flutuação da alma ou do corpo. Pois a nós que amamos o bem, mas que ainda estamos temerosos dos castigos e das tentações, importa não sermos livres para fazermos o que bem entendermos, mas sim nos protegermos, fugirmos das coisas, a fim de que, nos abstendo de tudo que nos possa prejudicar em nossa fraqueza, possamos combater os pensamentos.

Os primeiros dentre os monges, os impassíveis, combatem os primeiros dentre os espíritos demoníacos, por que já venceram as paixões infames. Mas os monges submetidos a um Mestre combatem os espíritos demoníacos segundos. Pois como dizem são Macário e o abade Kronios, dentre os demônios os primeiros dirigem, os segundo seguem. Os demônios que dirigem são a vanglória, a presunção e tudo o que a elas se assemelha. Os demônios que seguem são a gula, a prostituição e os vícios desta ordem. Os que atingiram o amor perfeito[363] têm autoridade por que fazem o bem sem que sejam obrigados a isto. Eles se regozijam por fazer o bem e por jamais abandoná-lo por si mesmos. Quando lhes surge um obstáculo sem que o queiram, eles se sentem tiranizados. Atraídos pelo eros divino, eles logo fogem para a hesíquia e o trabalho, como para uma fruição e um costume que lhes são próprios. É destes homens que falam os Padres, quando dizem: consagre sucessivamente um pouco de tempo a tudo, à prece, à leitura, ao estudo, ao trabalho, à guarda do intelecto, e passe assim os dias. Os impassíveis dizem isto para dominar a si próprios e para que nenhuma vontade contrária os capture. Quando eles querem, eles controlam seu intelecto e dirigem seus corpos como servidores.

Quanto a nós, devemos nos manter sob a lei e a regra, a fim de que, mesmo não querendo façamos o bem, como que forçados pelo dever malgrado nossa vontade. Pois ainda amamos as paixões e os prazeres, o conforto do corpo e as vontades próprias. E o inimigo leva nossa inteligência para onde quer. A partir daí, o corpo, atirado a seus impulsos desordenados, faz o que quer, sem razão. Isto não é senão natural. Onde falta a atenção do intelecto tudo é feito sem razão, contra a natureza, e não à maneira dos verdadeiros israelitas, aqueles de quem disse o Senhor, referindo-se a Simão Cananita, o zelote: “Eis aqui um verdadeiro israelita que não tem mácula[364]”. Ele falava da virtude do homem. Pois Natanael significa “o zelo por Deus”. Ele se chamava Simão, e este era seu nome; Cananita, por que era de Cana na Galileia; Natanael, devido à sua virtude; e israelita, por que era uma inteligência que via a Deus sem qualquer truque. “A divina Escritura, diz são Basílio, costuma dar ao homem o nome de sua virtude, mais do que o de seu nascimento”. Assim foi com os príncipes dos apóstolos, Pedro e Paulo. Um se chamava Simão, e o Senhor o chamou de Pedro, por causa da firmeza do homem. O outro se chamava Saulo – zalê, a tempestade – e seu nome foi com toda justiça mudado para Paulo, que quer dizer “repouso”, anapaula[365]. E com toda razão. Pois se antes ele perturbara tanto os fiéis, depois, na mesma medida, por suas palavras e obras, repousou as almas de todos, como disse dele João Crisóstomo.

Veja a piedade do Apóstolo. Ele se lembrava de Deus, mas não ensinou enquanto não lhe rendeu as graças devidas, enquanto não o levou a isto a oração[366]. Com isto ele mostrou que seu conhecimento e sua força vinham dele. Esta é a ordem: o ensinamento chama a oração. Também o admirável Lucas deixou inacabados os Atos dos Apóstolos, não por negligência ou por qualquer outra necessidade, mas por que partiu para Deus. Nós, ao contrário, quando deixamos alguma coisa ou ação inacabada, é sempre por negligência ou incapacidade, pois não fazemos atentamente a obra de Deus, não a amamos como nossa obra fundamental, mas a desprezamos como algo secundário e insuportável. Com isto, não avançamos, ao contrário, recuamos na maior parte das vezes, como aqueles que tornaram atrás[367], e já não seguimos a Jesus. No entanto, disse João Crisóstomo, a palavra não era dura como eles pensavam. O que Jesus lhes dissera então dizia respeito à doutrina[368]. Mas onde não existe resolução nem fervor, as coisas mais fáceis parecem difíceis, e reciprocamente.


Da edificação da alma por meio das virtudes

Assim como a terra necessita da chuva, diz o grande Basílio, todo homem tem, em primeiro lugar, necessidade de paciência[369], a fim de colocar sobre ela o fundamento de que fala o Apóstolo, vale dizer, a fé[370]. Então, como um construtor experiente, o discernimento edifica pouco a pouco a morada da alma. Ele adiciona continuamente a argamassa que obtém do barro da humildade, para unir as pedras umas às outras, ou seja, as virtudes umas às outras, até colocar o teto, que é o amor perfeito. Então o Mestre da casa pode entrar. E ele permanece na alma, desde que esta tenha colocado bons guardas às portas, sempre armados com pensamentos luminosos e obras divinas capazes de proteger o repouso do Rei.

É desaconselhável que a guarda seja feita por uma mulher ocupada com seus trabalhos manuais, como disse são Nilo ao interpretar a antiga história[371]. É por isso, disse ele, que o patriarca Abrahão não entregou a guarda a nenhuma mulher, mas sim ao pensamento viril, duro e armado, dentre outros, com o glaivo do Espírito, que é a palavra de Deus[372], como entendeu o Apóstolo, a fim de destruir e derrubar os assaltantes. Pois o guarda não pode dormir. Ereto, ele destrói os pensamentos estrangeiros, opondo a eles a obra que os combate e a palavra que os contradiz. Ele derruba a todos os que vêm ao coração contra a palavra de Deus. Ele os despreza e rejeita, para que a contemplação de Deus e os pensamentos divinos jamais faltem ao intelecto que recebeu a luz. Esta é a obra da hesíquia, diz são Nilo. Em outra passagem, fazendo uma releitura da santa Escritura, ele explica que a distração é justamente a causa da cegueira do intelecto. Se o intelecto não se mantém unido como a água de um canal, a reflexão não pode se recolher sobre si mesma para se elevar até Deus. E se não nos elevamos em nosso intelecto, se não experimentamos as coisas do alto, como poderemos desdenhar sem maldade as coisas de baixo?

É com fé que devemos correr, diz o Apóstolo[373], trabalhando pacientemente para agradar a Deus. Quando chegar o tempo, aqueles que correram bem[374] poderão em parte conhecer e derrubar o inimigo. Em seguida tudo lhes será dado no século futuro, quando os espelhos – esta vida corrompível – serão abolidos[375]. Então o desejo da alma já não se oporá ao da alma, nem o desejo da carne ao do Espírito[376]. Então a negligência não mais trará o esquecimento, nem o esquecimento a ignorância, coisas de que a maior parte de nós sofre atualmente, por que somos obrigados a escrever para não nos esquecermos. Com efeito, muitas vezes me vem um pensamento por si só: a Escritura o colocou na memória. Na hora do combate, quando a divina Escritura dá testemunho de si, eu recebo um auxílio deste pensamento, um alívio ou uma ação de graças. Mas se eu negligencio este auxílio que ela me traz, já não o encontrarei quando tiver necessidade, pois o imenso mal causado pelo esquecimento me privará do serviço que ele poderia me prestar então. É por isso que devemos aprender as virtudes colocando-as em prática, a fim de guardar a memória do bem pelo costume, e não apenas em palavras. Pois o Reino de Deus, disse o Apóstolo, não está apenas nas palavras, mas no poder[377].

Quem busca por meio de uma obra vê a perda e o ganho que lhe acontecem realmente, diz santo Isaac[378]. Ele pode aconselhar a outros, pois ele sofreu o bastante e aprendeu com a experiência. Existem coisas que parecem boas, diz ele, mas que trazem em si, oculto, um mal incomum. E existem outras que parecem más, mas que em seu interior carregam um bem imenso. É por isso, diz ele, que nenhum homem é confiável o bastante para aconselhar aqueles que buscam. Somente aquele que recebeu de Deus o carisma do discernimento e adquiriu depois de muitos anos de ascese um intelecto clarividente e uma grande humildade, diz são Máximo, pode aconselhar os demais, não todos, mas os que os buscam por si mesmos e o interrogam livremente. Ele então compreende as coisas na ordem. Por meio da humildade, pela demanda voluntária daquele que interroga, a palavra se grava na alma de quem a ouve. Pois este recebe o calor da fé, ele vê o bom conselheiro como este Conselheiro maravilhoso de que fala o profeta Isaías, Deus forte, Mestre[379], etc., vale dizer, nosso Senhor Jesus Cristo, que disse ao que o interrogava: “Quem me estabeleceu como seu juiz para decidir suas disputas?[380]”. Ora, ele disse isto apesar de que o Pai ao Filho todo o poder do julgamento[381]. Mas com isso ele nos mostra – como em tudo – que a via da salvação passa pela santa humildade. Ela nunca constrange. Ele disse: “Se alguém quiser vir depois de mim, que renuncie a tudo e me siga[382]”. Ou seja: que este não tenha nenhum cuidado com sua própria vida, mas que faça o mesmo que eu fiz sofrendo a morte voluntária por todos, que o faça seguindo a obra e a palavra, como os apóstolos e os mártires. Caso contrário, que ele sofra a morte que escolher.

Ele diz ainda ao rico: “Se você quer ser perfeito, vai, vende tudo o que tem, etc. [383]”. E o grande Basílio diz deste rico[384] que ele havia mentido ao afirmar que seguia os mandamentos. Pois se os tivesse guardado não possuiria tantas coisas, como diz em primeiro lugar a Lei: “Amar ao Senhor seu Deus com toda a sua alma[385]”. Com toda a sua alma, isto significa que quem ama a Deus não pode amar coisa alguma além, a ponto de ficar triste se tiver que renunciar a ela. A lei diz a seguir: “Amar ao próximo como a si mesmo[386]”, ou seja, a todos os homens. Mas como poderia o rico guardar este mandamento, se ele possuía apaixonadamente tão numerosas coisas, quando tantos outros têm necessidade do alimento cotidiano? Se, como fizeram Abrahão, Jó e outros justos, ele tivesse possuído essas coisas como bens de Deus, ele não teria partido entristecido[387]. João Crisóstomo disse igualmente: ele acreditou que o Senhor lhe dissera a verdade, mas ele não tinha força para fazer este gesto[388]. Com efeito, existem muitos que acreditam nas palavras da Escritura, mas sua fraqueza os impede de fazer o que ali está escrito.


Que o amor e o conselho dados humildemente são um grande bem.

O Senhor deu estes conselhos e muitos outros. Também os apóstolos os deram, quando escreveram: “Nós, lhes pedimos, bem amados[389]”, façam isto ou aquilo. Mas nós, nós não aceitamos suplicar por aqueles que nos pedem conselhos. Se eles nos encontrassem humildes e cheios de atenção por eles, eles nos obedeceriam com alegria, teriam a certeza de que pregamos a palavra da Santa Escritura com muito amor e humildade. Eles buscariam a honra e o amor que receberam de nós. Eles aceitariam as dificuldades, pois, pelo amor, elas lhes pareceriam fáceis.

Assim é que o santo apóstolo Pedro se regozijava toda vez que ouvia falar de cruz e de morte[390]. A morte para ele não era nada. O amor que ele adquirira pelo Mestre o levara a isto. Do mesmo modo, ele não tinha nenhuma preocupação com milagres, ao contrário dos que não criam. Ele dizia: “Vocês têm as palavras da vida eterna[391]”, etc. O mesmo não aconteceu a Judas, que morreu duas vezes. Ele se enforcou[392] e não morreu. Ele viveu sem arrependimento. Enfim, doente, ele se abriu ao meio atrozmente[393], como disse o apóstolo Pedro nos Atos dos Apóstolos. Também o santo apóstolo Paulo escreveu aos irmãos: “Nós gostaríamos de todo nosso desejo entregar a vocês não só o Evangelho de Cristo, mas nossa própria vida[394]”. E também: “Nós somos seus servidores por Cristo[395”. Ele ainda pede a Timóteo que considere os velhos como seus pais e os jovens como seus irmãos[396].

Quem é capaz de compreender a humildade dos santos, e o ardente amor que eles sentiam por Deus e pelo próximo? Portanto, não devemos estar atentos apenas a eles, mas também àqueles a quem falamos ou para quem escrevemos. Pois quem quer advertir seu irmão, ou lhe dar um conselho, ou ainda recordar-lhe uma lembrança, como disse João Clímaco, deve primeiro se purificar de suas próprias paixões, a fim de conhecer sem erro o objetivo de Deus e o estado daquele que nos pede uma palavra[397]. Pois o mesmo remédio não convém igualmente a todos, ainda que a doença seja a mesma. O conselheiro deve também se informar a respeito daquele que lhe pede o conselho, a fim de ver se ele está dedicado à submissão de uma vez por todas em sua alma e seu corpo, ou se ele chega para pedir no calor da fé, pedindo-lhe uma palavra sem antes haver interrogado a seu próprio mestre, ou ainda se existe alguma outra necessidade que o constrange a fingir que ele deseja de fato ou vir uma palavra, caso em que os dois cairiam no falatório, no engano, na malícia e em muitas outras coisas. Um, forçado pelo que aparentemente lhe ensina a dizer o que não pensa realmente, mente impudentemente e finge querer fazer o bem. O outro, atraído pelo mal, agrada aquele a quem ensina, para aparentemente descobrir o que está oculto em seus pensamentos. Na realidade, ele não faz outra coisa do que suscitar nele as intrigas e a falação. E, como disse Salomão[398], do falatório não pode advir senão o pecado. Também o grande Basílio descreveu essas faltas[399].

Não falamos disto aqui para nos recusarmos a aconselhar aqueles que vivem na submissão e que chegam a nós com uma fé firme, sobretudo se formos impassíveis, mas para que, num movimento de vaidade e de presunção, não tentemos ensinar a quem, seja por suas obras, seja pelo calor de sua fé, não tem a intenção de ouvir, pois neste caso nos comportaríamos como passionais e não faríamos nada de autêntico. Mas, como disseram os Padres: não se deve adiantar nada que possa vir em auxílio sem que os irmãos interroguem, a fim de que o bem se faça com conhecimento de causa[400] e, como afirmam os apóstolos, não para dominar o rebanho, mas para se tornar seu modelo[401], etc. O Apóstolo diz o mesmo a são Timóteo: “É preciso que o trabalhador trabalhe antes de colher os frutos[402]”, ou seja, que ele se aplique às palavras que deve ensinar. E também: “Que ninguém despreze a sua juventude[403]”, ou seja: não faça nada como uma criança, mas seja perfeito em Cristo.

O Gerontikon afirma a mesma coisa: os Padres não diziam nada para a salvação da alma sem que os irmãos os interrogassem. SE eles não agissem assim, com toda a justiça considerariam suas próprias palavras como falatório. Quando temos a pretensão de saber mais do que os outros, é de nós mesmos que extraímos o discurso. Mas quanto mais nos referimos a outros, mais nos sentimos livres. Da mesma forma os santos, dizia são Doroteu[404], quanto mais se aproximam de Deus, mais se consideram pecadores. Maravilhados pelo conhecimento que recebem de Deus, eles já não sabem mais nada. Da mesma forma os santos anjos, em sua alegria e maravilhamento infinitos, jamais se saciam de glorificar. Por que, uma vez que lhes foi dado celebrar tal Mestre eles já não cessam de cantar e admiram tudo o que vem dele, diz João Crisóstomo. E, como acrescenta Gregório o Teólogo, eles progridem mais e mais no conhecimento.

O mesmo fazem todos os santos no século presente e no século futuro. Assim como as Potências espirituais transmitem a iluminação umas às outras, os seres racionais ensinam uns aos outros. Os que receberam a experiência das divinas Escrituras instruem aqueles que estão mais abaixo. Outros, que receberam o conhecimento intelectual do Espírito Santo, transmitiram por meio da Escritura os mistérios que lhes foram revelados.

Temos, portanto, toda a necessidade em sermos humildes diante de Deus e de sermos humildes uns perante os outros. Pois é de Deus que recebemos o ser e todos os demais bens. É por meio dele que recebemos o conhecimento uns dos outros. Aquele que se mantém humilde recebe primeiro a luz. Quem não se humilha permanece nas trevas, como um que antes portava a luz e que se tornou depois o próprio diabo. Pois este um de início pertencia à ordem mais baixa das Potências intelectuais, a saber, a décima a partir da ordem superior que está ao redor o Trono inacessível, mas a primeira a partir da terra. Entretanto, juntamente com aqueles que o seguiram, por seu orgulho ele foi não somente conduzido abaixo das nove ordens de anjos e mesmo abaixo de nós, os terrestres, como ainda, por sua ingratidão, foi rejeitado abaixo do inferno, para o tártaro. É por isso que se diz que independentemente de qualquer outro pecado, basta a inconsciência para fazer com que se perca uma alma. Pois quem considera que suas faltas são pequenas se arrisca a cair nas grandes, dizia santo Isaac[405].

Uma vez que recebemos um dom de Deus e que não nos mostramos reconhecidos, dele nos privamos. Tornamo-nos indignos daquilo que Deus nos confiou, diz o grande Basílio. Pois a ação de graças intercede, desde que ela não seja jamais como a do Fariseu[406], que condenava os demais e justificava a si próprio. Pois a ação de graças é mais devedora do que todas as outras. Em sua pobreza ela agradece e se maravilha, ela compreende a inefável paciência, a inefável tolerância de Deus.

Por outro lado, devemos nos admirar de como Deus, que é infinitamente celebrado e não tem necessidade de nada, recebe de nós a ação de graças, enquanto na verdade não cessamos de provocar a sua cólera e sua tristeza depois de termos sido cumulados de tantos e imensos bens universais e particulares, não apenas as benesses do corpo, como também as da alma. Gregório o Teólogo e muitos outros Padres falaram disto. Dentre suas inumeráveis modalidades devemos reter a seguinte: umas são evidentes e podem ser facilmente encontradas nas divinas Escrituras, enquanto outras são obscuras e difíceis de descobrir. Umas nos ajudam a superar nossa irresponsabilidade, nos conduzem à fé e à busca daquilo que nos falta, nos impedem de cair no desespero e na incredulidade diante daquilo que não podemos compreender. Outras nos impedem de sermos condenados por desdenharmos da palavra mal compreendida. Os que querem se dar ao trabalho põem mãos à obra para encontrar o que está oculto. E, diz João Crisóstomo, estes serão louvados.


Que as repetidas citações da divina Escritura não são falatório.

A divina Escritura repete frequentemente as mesmas palavras, mas não se trata de simples falatório. Pela lembrança frequente, de maneira paradoxal e em seu amor pelo homem, ela conduz à recordação e à compreensão daquilo que nos diz àqueles dentre nós que são mais negligentes em entender. Desta forma a palavra não nos escapa mais. Pois as palavras são curtas e passam depressa, sobretudo quando estamos absorvidos pelas coisas desta vida, não conhecendo nada senão parcialmente, “uma parte que não é sequer uma parte inteira, diz João Crisóstomo, mas uma parte de uma parte[407]”.

 Ora, o que é parcial desaparecerá, não para ser destruído e voltar ao nada – pois neste caso não teríamos jamais o conhecimento, e sequer seríamos homens. O parcial será abolido pela visão face a face, como quando a criança se torna homem, disse o Apóstolo[408] explicando a palavra com esta comparação. Também João Crisóstomo afirma: “Por enquanto nós sabemos que existe um céu, mas não sabemos o que ele é[409]”. Quando o tempo é chegado, o menor é absorvido pelo maior, e saberemos o que é o céu, por que o conhecimento aumenta. Existem muitos mistérios ocultos nas divinas Escrituras, e não conhecemos o objetivo de Deus em tudo o que está dito. “Mas não impeça nosso reconhecimento, diz Gregório o Teólogo, quando confessamos nossa ignorância, você que condena as palavras”.

“É irracional e grosseiro, diz o grande Denis, atentar, não ao poder do objetivo, mas às palavras[410]”. Nós as encontramos quando buscamos por meio do luto bem-aventurado. Esta é a obra do temor: ela nos revela o que está oculto. Assim é que o profeta Isaías disse: “Os mortos não verão mais esta vida[411]”. E em outro ponto: “Os mortos ressuscitarão[412]”. Não existe contradição nisto, como creem os que não conhecem o objetivo de que falamos, este objetivo que é revelado pela contemplação da divina Escritura, quando ela diz que não é por intermédio dos ídolos das nações que veremos a vida, por que eles não possuem alma. Quanto à ressureição de todos e à alegria dos justos, ela afirma que os mortos ressuscitarão. Ela profetiza que todos os que dormem na morte se levantarão com nosso Salvador Jesus Cristo. Da mesma forma, quando, no santo Evangelho, os evangelistas falam da transfiguração do Senhor, um diz que ela teve lugar seis dias[413], outro diz oito dias[414] depois de tê-los ensinado e anunciado o milagre. Mas um corta o primeiro e o último dia e só conta os dias intermediários, enquanto o outro engloba ambos e conta oito dias. Do mesmo modo ainda João o Teólogo afirma a mesma coisa de modo diferente em dois pontos do seu santo Evangelho. Num, ele diz que Jesus fez muitas outras coisas diante de seus discípulos, que não foram escritas[415], etc. Noutro, diz que Jesus fez muitas outras coisas[416], mas não menciona terem sido feitas diante dos discípulos. São Prócoro, lembrando estas duas passagens, escreve que numa o evangelista fala dos milagres e das coisas que o Senhor fez, e que ele próprio, João, não as escreveu para que elas fossem escritas pelos outros evangelistas. Por isso ele acrescentou: diante de seus discípulos. A outra passagem tem em vista a criação do mundo, quando o Verbo de Deus era incorpóreo e o Pai a tudo fez com ele, do nada[417], dizendo: “Que isto seja. E assim foi feito[418]”. João o Teólogo frisa: “Se estas coisas fossem escritas uma por uma[419]”, etc.

Em resumo, toda Escritura, toda palavra de Deus, toda palavra de um santo, traz oculta em si o objetivo das criaturas sensíveis ou inteligíveis. Mas toda palavra humana as traz igualmente. É sempre a revelação que permite a intelecção das coisas da Escritura, como disse o Senhor a propósito do vento: “O Espírito sopra onde quer[420]”, etc. João Crisóstomo comenta assim: Cristo não disse “onde quer” pelo fato de que o vento tenha um poder. Mas o Senhor vinha em auxílio à fraqueza de Nicodemo: ele lhe deu a imagem do vento para que ele soubesse aquilo que ele queria lhe dizer[421]. Ele falava do vento para simbolizar o Espírito Santo, nesta palavra que ele lhe dirigia, como também aos outros: aquilo que eu lhes digo é Espírito, trata-se de coisas espirituais, e não daquilo que vocês pensam por si mesmos. Pois eu não falo das coisas do corpo para que vocês as conheçam nos seus seres corporais. Por isso, diz João Damasceno: Se aquele que diz uma palavra não dá a conhecer seu objetivo, não se pode sabe onde leva aquilo que ele diz. Como ousamos nós dizer que conhecemos, fora da revelação de seu Filho, o objetivo de Deus oculto nas divinas Escrituras? O próprio Cristo afirma: “Ninguém conhece, senão aquele a quem o Filho quiser revelar”.

Isto equivale a dizer que é preciso se esforçar por receber dele, no intelecto, pela observação de seus mandamentos divinos sem os quais quem pretende conhecer, mente. Pois ele conjectura sem ter realmente aprendido de Deus, diz João Clímaco, mesmo que em sua presunção ele se glorifique daquilo cuja dimensão desconhece[422]. É deste que o Teólogo diz: ó grande filósofo, etc. ó escriba. Ele estigmatiza a suficiência de tais homens que em sua ignorância acreditam possuir alguma coisa. Aquilo que eles acreditam possuir lhes será tirado[423]. Pois eles se recusam a dizer, como os santos dizem, que nada sabem, para que tudo lhes seja concedido por meio da humildade, e que, como eles, recebam em abundância[424]. Pois eles, os santos, sabiam, mas diziam não saber. João Crisóstomo frisa que o Apóstolo não disse que os autossuficientes não sabiam nada ainda, mas que eles não sabiam como se deveria saber. Eles sabiam, mas não como se deve saber[425].



Declaração sobre o falso conhecimento.

Este é o falso conhecimento: acreditamos conhecer aquilo que jamais conhecemos. Ele é pior do que a ignorância generalizada, diz João Crisóstomo. Pois ele não aceita ser corrigido por nenhum mestre, e pensa que a pior ignorância é uma coisa boa.

É por isso que os Padres dizem que devemos nos esforçar para buscar com humildade o que existe nas Escrituras, pedindo conselho daqueles que têm experiência e aprendendo antes pelas obras do que pelas palavras. Mas eles acrescentam que não devemos buscar aquilo sobre quê se calam as Escrituras. Com efeito, não há nenhuma razão para fazê-lo, como diz o grande Antônio sobre os que tentam conhecer o futuro ao invés de se recusar a tanto e aceitar serem indignos disto. E no entanto a divina Providência o pode, como um dia o fez a Nabucodonosor[426] e a Balaam[427], malgrado sua indignidade, mas para servir a todos. Tais revelações não vêm dos demônios, sobretudo quando passam por sonhos e por certas imaginações. Mas a Escritura não o diz. De fato, é pelas ações do corpo e pelas ações morais que devemos tentar conhecer, segundo a ordem do Senhor, para nelas descobrir a vida eterna[428]. Não temos nada a buscar aí pela palavra, nem devemos presunçosamente pensar termos compreendido qualquer coisa. Aquilo que está oculto nos ajuda antes de tudo a aumentar nossa humildade, e nos impede de sermos condenados pela transgressão consciente.

É por isso que aquele a quem foi dado adquirir a inteligência do conhecimento e que não se consagra no mais absoluto repouso, com atenção, humildade e temor a Deus, ao estudo das divinas Escrituras e dos conhecimentos que lhe foram dados, cai sob o golpe da ameaça e perde a ciência, por que se torna indigno dos dons que Deus lhe concede, assim como Saul perdeu a realeza, diz são Máximo[429]. Mas quem se consagra ao conhecimento e por ele combate, completa ele, deve implorar sempre como Davi e dizer: “Deus, crie em mim um coração puro e restaure em meu corpo um espírito direito[430]”. Assim ele se torna digno da chegada do Espírito. Assim foi que os apóstolos receberam a graça na terceira hora, como está dito nos Atos. Era a terceira hora do dia[431], um domingo, diz o admirável Lucas. Pois o Pentecostes é o sétimo domingo depois do domingo em que se celebra aquilo que a língua hebraica chama de Páscoa, que em grego significa a passagem e a liberdade. Cinquenta dias mais tarde, o domingo se chamou Pentecostes, cumprindo-se, segundo a Lei, os cinquenta dias que o separam da Páscoa. João o Teólogo diz em seu Evangelho que este domingo é o último dia, o grande dia da festa[432], por que ele é a culminação da festa da Páscoa. “A terceira hora recebeu esta graça”, etc., diz João Damasceno. O acontecimento teve lugar na terceira hora, mas, diz ele, neste dia único, o dia do Senhor, para significar a veneração das três Pessoas na simplicidade do mesmo poder, ou seja, da única Divindade.

O dia do Senhor é chamado na semana de dia um, e não primeiro dia, diz João Crisóstomo, pois a divina Escritura o põe à parte. O Antigo Testamento profetiza este dia. Ele não o nomeia em uma enumeração, como o segundo e os demais. Se ele não estivesse de parte, ele seria denominado o primeiro. Mas ele foi colocado à parte. E foi chamado de dia um depois do Sabbat, ou seja, depois da semana. Na ordem da nova graça, este dia foi chamado de dia do Senhor[433], dia santo, dia eleito[434]. Pois é nele que tiveram lugar os eventos fundamentais da vida do Mestre, a Anunciação, a Natividade, a Ressurreição. É também nele que acontecerá a ressurreição dos mortos. Foi nele que Deus criou a luz sensível, disse João Damasceno[435]. E é nele que acontecerá a segunda vinda do Senhor. Este dia um[436], o oitavo dia, permanece assim nos séculos infinitos, fora destes sete séculos em que transcorrem os dias e as noites.

Foi-nos concedido aprender com os santos o objetivo de tais coisas. Aprendamos então, do início e desde o alto, aonde nos levam as buscas do presente discurso. Antes de tudo, de uma vez por todas, devemos guardar em nós os nomes dos livros e dos santos, para nos lembrarmos de suas palavras e para imitarmos suas vidas, disse o grande Basílio, e para dá-los a conhecer aos que os ignoram[437]. Quem os conhece se recorda. E que os desconhece trate de lê-los. Poderemos então nomear instantaneamente tal santo ou tal escrito, lembrando-os constantemente de memória. Por intermédio de certas palavras, nos recordaremos das obras e das palavras de cada um deles. Elas nos ajudarão a conhecer as consequências de cada palavra da divina Escritura, ou do discernimento e do bom conselho do mestre. Elas me ensinam que o que eu digo não vem de mim, mas das divinas Escrituras. Elas nos permitem ainda admirar e compreender o inefável amor de Deus pelo homem, permitem nos maravilharmos de que, por meio de papel e tinta, ele tenha sido capaz de colocar em movimento a salvação de nossas almas, e de nos conceder a graça de tantos escritos e de tantos mestres da fé ortodoxa.

Eu, que não possuía nem cultura nem zelo, que não tinha de meu sequer um livro e que sempre vivi como estrangeiro, pobre, em repouso e sem cuidados, buscando o bem de meu próprio corpo, me admiro que me tenha sido dado percorrer tantos escritos. Por minha negligência, e para não sobrecarregar meu propósito, eu pude passar sob silêncio por alguns nomes. Mas a pesquisa e as soluções das coisas comuns nos conduzem à ciência. Elas nos fazem dar graças Àquele que deu aos seus santos, nossos Padres, o conhecimento e o discernimento, e por intermédio deles a nós, os indignos. Elas nos convidam também a nos condenarmos por nossa fraqueza e por nossa ignorância.

A Escritura fala igualmente dos justos que foram salvos antigamente. Eles eram ricos, viviam no meio de pecadores e descrentes e eram homens da mesma natureza que eles, como somos nós também, que não queremos nos conformar com a medida da perfeição. Entretanto, a experiência e o conhecimento do bem que recebemos são maiores do que o foram para eles. Pois nós aprendemos com a sua experiência e nos foi concedida uma graça ainda maior: o conhecimento das Escrituras. Ademais, nós monges temos um modo de vida que nos permite saber que podemos ser salvos, desde que abandonemos nossas vontades próprias, e sabemos também que, se não agirmos assim não encontraremos repouso, não seremos capazes de conhecer nem de por à obra as vontades divinas. Pois nossa vontade é um muro que nos separa de Deus[438]. Se o muro não cai, não podemos aprender nem fazer o que é de Deus. Permanecemos fora dele. E os inimigos nos tiranizarão malgrado nosso desejo.

Sabemos também que a hesíquia é maior do que tudo e que sem ela não podemos nos purificar, nem conhecer nossa fraqueza, nem as armadilhas dos demônios. Não é apenas cantando ou lendo as palavras divinas que seremos capazes de compreender o poder e a providência de Deus. Todos os homens temos necessidade de nos aplicarmos a esta hesíquia, parcial ou totalmente. Fora dela é impossível alcançar o conhecimento espiritual e a humildade, por meio da qual aquele que a ela se consagra compreende os mistérios ocultos nas divinas Escrituras e em todas as criaturas.

Sabemos ainda que não se deve usar coisa alguma, nem dizer palavra alguma, nem fazer gesto algum, nem ter qualquer pensamento que vá contra o que é necessário à salvação, à vida da alma e do corpo, e que, fora do discernimento, mesmo aquilo que nos parece bom não é recebido por Deus. Fora do justo objetivo, mesmo a boa obra não nos serve de nada.

Os tropários foram escritos para que os compreendamos, e para que por meio deles compreendamos as demais Escrituras. João Clímaco diz que eles são uma fonte de compunção para aqueles cujo intelecto ainda é fraco. A melodia chama para onde deseja dirigir a reflexão do homem, disse o grande Basílio: seja para o luto, seja para o desejo, seja para a tristeza, seja para a alegria. O Senhor o ordenou: devemos sondar as Escrituras para nelas descobrirmos a vida eterna[439], devemos estar atentos aos sentidos dos salmos e dos tropários para saber com todo o nosso conhecimento o quão ignorantes somos. Pois se alguém, disse o grande Basílio, não provar deste conhecimento, não saberá de fato aquilo tudo que lhe falta.

Foi para que tivéssemos esta experiência e esta ciência que foi escrita a gênese das virtudes e das paixões. Pois devemos saber estas coisas e nos esforçarmos para alcançar suas causas, de modo a adquirir umas e nos desfazermos de outras, vencendo-as ao opor a elas a obra contrária. Em nosso trabalho devemos sempre perseverar nas ações do corpo, assim como cuidamos das plantas, mas também vigiar as virtudes da alma, estudar como adquirir cada virtude, aprender das divinas Escrituras e dos santos homens e, por meio de nossas obras, guardar estas coisas como um tesouro, trabalhando com toda nossa alma até conseguirmos a virtude que nos foi concedida. A seguir devemos abordar a próxima virtude com a maior atenção, como diz o grande Basílio[440]. Pois se nos prendermos a todas as virtudes de uma vez, sem dúvida acabaremos por relaxar. Comecemos pela paciência nas dificuldades, e assim passaremos resoluta e ardentemente para as demais virtudes, no objetivo de agradar a Deus.

Todos devemos guardar os mandamentos como cristãos, pois não é de esforço corporal que precisamos para adquirir as virtudes da alma, mas apenas de resolução e fervor para receber os dons, como disseram o grande Basílio, Gregório o Teólogo e tantos outros. As ações do corpo são feitas com mais facilidade, em especial naqueles a quem a vida sem distrações e na ausência de cuidados de toda sorte conduziu à hesíquia. Pois ninguém pode ver sua conduta e corrigi-la se não estiver disponível e se não se consagrar a esta procura.

É por isso que devemos primeiro adquirir a impassibilidade por meio da fuga das coisas e dos homens e somente então, chegado o tempo, livres de toda paixão, comandar os homens e dirigir as coisas sem nos arriscarmos a sermos condenados ou a fazermos o mal, pois teremos chegado à impassibilidade perfeita, sobretudo se tivermos recebido o chamado de Deus, diz João Damasceno, como Moisés, Samuel, os demais profetas e os santos apóstolos, para a salvação de muitos. Ele ainda acrescenta que devemos nos conter como fizeram Moisés, Habacuque, Gregório o Teólogo e muitos outros, e como são Prócoro diz a respeito de são João: ele não queria abandonar a hesíquia que ele amava, embora tivesse o dever de apóstolo de não permanecer na solidão, mas pregar. Não, não foi como um passional, longe disto, que o mais impassível dos homens fugiu para a hesíquia. Ele não queria se separar da contemplação de Deus, nem jamais ser privado da doçura da hesíquia. Outros ainda, por humildade, quando já eram impassíveis, fugiram para as profundezas dos desertos, temendo a confusão, como o grande Sisoés. Convidado por seu discípulo a descansar, ele não se dobrou, mas disse: “Onde não houver mais homens, é para aí que iremos[441]”. E, no entanto, ele havia conquistado tal impassibilidade que era como que cativo do amor a Deus, e não sentia nada além deste amor, ignorando até se havia comido ou não.

Todos, no fundo, em total hesíquia, haviam rompido com suas vontades próprias. A partir daí, como se fossem discípulos, o Mestre os encarregou de ensinar a outros, receber a confissão dos pecados e comandar, pelo episcopado ou como superiores dos mosteiros. O Espírito Santo descia sobre eles, que receberam o selo, o sentido do intelecto, como os santos apóstolos e outros que vieram antes deles, como Aarão, Melquisedeque e outros ainda. João Damasceno diz: quem tenta chegar imprudentemente a este estado é condenado. Com efeito, se na ordem real aqueles que usurpam imprudentemente as dignidades são passíveis das maiores condenações, quanto mais o serão aqueles que ousam se apoderar das coisas de Deus sem ser chamados, sobretudo se, em sua ignorância e presunção acreditam que esta temível empresa não é condenável, se pensam que ela lhes trará honrarias e conforto e não atirá-los quando menos esperam num abismo de humilhação e morte pelas mãos de seus discípulos e de seus inimigos, como o fizeram os santos apóstolos, eles que eram imensamente impassíveis e sábios, quando ensinavam os demais.

Se não temos consciência de que somos fracos e incapazes, que mais dizer? Pois a presunção e a ignorância tornam cegos aqueles que não querem ver na consagração a Deus sua própria fraqueza e sua própria obscuridade. Como diz o Gérontikon: a cela do monge é a fornalha da Babilônia[442], onde as três Crianças descobriram o Filho de Deus. Ele diz também: “Permaneça em sua cela, e ela lhe ensinará tudo[443]”. E disse o Senhor: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, estarei no meio deles[444”. E João Clímaco: “Não se desvie para a direita nem para a esquerda, disse Salomão, mas siga o caminho real. Viva na hesíquia com um ou dois irmãos. Não permaneça sozinho no deserto, nem esteja em grande companhia. Para a maioria, o mais justo é estar entre dois[445]”. E também: “O jejum humilha o corpo, a vigília ilumina o intelecto, a hesíquia traz consigo o luto, o luto batiza o homem, purifica a alma e livra-a do pecado[446]”.

Ao final escreveremos os nomes da maior parte das virtudes e das paixões, para que saibamos quantas virtudes devemos adquirir e sobre quantos males devemos chorar. Pois não existe purificação fora do luto, e não existe luto em meios às distrações contínuas. Não existe certeza plena fora da purificação total da alma e, sem a plena certeza, a separação da alma e do corpo é perigosa. Pois, diz João Clímaco, neste caso é impossível crer no que está oculto aos olhos[447].

As oito contemplações de que falamos não são nossas obras, mas o salário da obra de nossas virtudes. Não as obteremos apenas pela leitura, ainda que nos dediquemos a ela com uma orgulhosa resolução, como disse João Clímaco a propósito das contemplações mais perfeitas, as quatro últimas, pois elas são celestes e o intelecto impuro não as pode receber. Devemos colocar todo nosso esforço sobre as virtudes do corpo e da alma: é assim quem nasce em nós o primeiro mandamento, o temor a Deus. E se perseverarmos neste temor, logo virá o luto. Cada vez que tivermos uma contemplação, a graça de Deus, mãe comum a todos nós, diz santo Isaac, nos concederá as coisas que estão além desta contemplação, até que adquiramos em nós mesmos os sete conhecimentos. Quanto ao oitavo, a obra do século futuro, será dado aos que estiverem atentos ao trabalho das virtudes no justo objetivo de agradar a Deus.

Mas uma vez que o pensamento de Deus, seja o primeiro ou outro, nos vem por si só e inesperadamente, devemos imediatamente abandonar todo cuidado com esta vida, e muitas vezes a própria regra, e guardar como a menina dos olhos[448] o conhecimento espiritual e a compunção que nos foram dados, até que a providência os queira levar. A partir daí, mesmo tendo a regra, depois de recebermos estas coisas devemos meditar continuamente no que está escrito sobre o temor e o luto. Em cada momento de lazer, dia e noite, quer trabalhemos com as mãos por sermos fracos e facilmente sujeitos ao sono e ao descaso, quer estejamos de repouso se não nos for possível permanecer totalmente de luto, absorvidos pela leitura e pelas lágrimas que nos vêm. Pois mesmo que esses escritos nos tenham sido trazidos por aqueles que não têm a experiência dessas coisas, inclusive eu mesmo nestas palavras que escrevo, eles podem despertar o intelecto e fazê-lo sair da irresponsabilidade por meio do estudo e da atenção. Os que adquiriram a resolução e a experiência na obra das virtudes sabem e dizem, com efeito, muito mais do que expusemos, sobretudo no momento da compunção, quando esta vem por si só. Pois neste momento reside uma grande força, que ultrapassa nossa busca.

Entretanto, que ninguém pense que tais carismas sejam obra sua, mas sim que são recebidos e que ultrapassam de longe o próprio valor de quem os recebe, e que é preciso dar graças e temer para que não sejam causa de condenação. Pois sem o esforço o que recebemos em nós é obra dos anjos. E é para fortificar o intelecto que o conhecimento e a força para guardar os mandamentos e trabalhar as virtudes nos são dados, a fim de que saibamos como e por que os edificamos em nós, e o que é preciso fazer, e o que é preciso evitar para que não sejamos condenados, para que sobre as asas do conhecimento nossa obra seja feliz, para que recebamos sempre e mais a ciência, a força do trabalho e o regozijo, e para que, a partir daí, sejamos dignos de dar graças Àquele que nos deu estas coisas, sabendo de onde provêm os bens que recebemos. Ora, quando damos graças, o Senhor nos concede ainda mais bens. Quando recebemos os dons, amamos mais, e pelo amor chegamos à sabedoria divina, cujo começo é o temor a Deus[449]. A obra do temor, diz santo Isaac[450], é o arrependimento, do qual vem a revelação do que está oculto.

Devemos exercer o sentido do temor: depois do Ofício das Completas, devemos dizer o Credo e o Pai Nosso, além de muitos Kyrie eleison. Sentados voltados para o Oriente, como os que choram a morte, inclinando a cabeça com a alma dolorosa e o coração gemente. Dizemos as palavras de cada conhecimento[451], começando pelo primeiro até chegar à oração. Caímos de rosto ao chão, completamente soterrados diante de Deus, e oramos. Primeiro a ação de graças, depois a confissão e as demais palavras da oração, tudo de que nos lembrarmos. O grande Atanásio diz que devemos confessar as faltas que cometemos por ignorância e aquelas que ainda iremos cometer, lembrando de tudo aquilo de que a graça de Deus nos libertou, para que na hora da morte não tenhamos do que prestar contas. É preciso também orar uns pelos outros, conforme o mandamento do Senhor e do Apóstolo[452].

Este é o objetivo do que dizemos na oração: a ação de graças reconhece que por nós mesmos somos incapazes de dar graças na hora da morte, que no resto do tempo somos negligentes, e que esta hora é uma graça de Deus. A confissão proclama que aquilo que nos foi dado não tem tamanho: somos incapazes de compreender tudo e de conhecer tudo. Só sabemos por ouvir dizer. Não aprendemos por inteiro, mas só algumas coisas. Estamos sempre visível e secretamente cumulados de bens. É impossível descrever a paciência de Deus diante da multidão dos nossos pecados. Somos indignos até de erguer os olhos, como dizia o Publicano[453]. Não confiamos em nada, senão em seu amor pelo homem. Prosternamo-nos diante do Anjo divino, como Daniel[454], como o Apóstolo[455] e os outros Padres, com toda nossa alma, e não sem audácia, por que não somos dignos disto.

Precisamos dizer ainda em poucas palavras todas as formas que adquirem as nossas faltas, para nos lembrarmos delas e chorar sobre elas. Devemos confessar nossa fraqueza, a fim de que sobre nós venha o poder de Cristo[456], segundo o Apóstolo, e que sejam perdoados a multidão dos nossos males. Por que em primeiro lugar não é apenas pelos outros que ousamos orar, mas pela multidão dos nossos males. Devemos primeiro refrear em nós todos os vícios, todos os maus hábitos, pois somos incapazes de resistirmos sozinhos.  Oramos ao Todo-Poderoso para que detenha os impulsos das paixões, para que não pequemos contra ele nem contra nenhum homem, a fim de que possamos com isto descobrir a salvação por sua graça, e assim nos engajarmos com toda nossa memória nas penas da alma, na oração pelos demais – desta forma, cumprindo o mandamento, conforme o Apóstolo[457] – e no amor por todos, opondo-nos também a todas as formas de paixão que nos tiranizam, nos refugiamos no Mestre e na compunção, enfim, orando por todos aqueles a quem afligimos, que nos afligiram, recusando todo traço de ressentimento e temendo que nossa própria fraqueza, ao chegar nossa hora, não nos impeça de ignorar o mal e orar por eles[458], como ordenou o Senhor. “É por isso que, prevenindo o tempo, disse santo Isaac, devemos buscar o médico antes da enfermidade e orar antes da tentação[459]”. Orar por aqueles que partiram antes de nós, para que eles encontrem a salvação e para nos lembrarmos da morte, orar por todos por que precisamos das preces de todos, nos deixarmos conduzir por Deus e nos tornarmos aquilo que ele deseja de nós, nos unirmos aos outros para receber de suas orações a compaixão, considerando que eles são mais do que nós – este é o sinal próprio do amor.

Agora, porém, não ousamos pedir o perdão por nossos pecados. Porém, diminuindo-nos, não devemos considerar os demais como indignos do perdão. Ignorantes, incapazes de tudo, fugimos. Temendo a justiça, por que somos pecadores, oramos para que seu amor pelo homem se cumpra como for de sua vontade. Dizemos: que eu possa me colocar à sua direita, ainda que eu seja o último dos que forem salvos. Pois não somos dignos de nenhum deles. Oramos pelo mundo inteiro, tal como o recebemos da Igreja, e para recebermos a comunhão divina de que tanto precisamos. Oramos para que possamos, quando comungarmos, encontrar pronto Aquele que nos socorre, para nos lembrarmos dos santos sofrimentos de nosso Salvador e para alcançarmos o amor de sua lembrança. Oramos para que a comunhão nos permita ter parte no Espírito Santo. Pois o próprio Consolador consola os que vivem no luto em Deus no século presente e no século futuro, e também os que oram com toda sua alma chorando e implorando: “Rei celestial”, etc., para que a comunhão dos puríssimos Mistérios seja uma garantia da vida eterna em Cristo, pela intercessão de sua Mãe e de todos os santos. A seguir nos prosternamos diante de todos os santos, pedindo a eles que supliquem por nós, por que eles podem levar nossos pedidos ao Mestre.

Acrescentamos agira a prece habitual, maravilhosamente teológica, do grande Basílio: não buscarmos senão a vontade divina, e bendizer a Deus. Em seguida, para expulsar os próprios pensamentos, devemos dizer com toda intensidade e atenção: “Venham, adoremos”, etc., três vezes, conforme está escrito, a fim de que pela prece do coração e a meditação das divinas Escrituras o intelecto seja purificado e comece a ver os mistérios que elas abrigam.

E que nossa alma permaneça longe de toda malícia, em especial do ressentimento, como disse o Senhor, no momento da prece[460]. É por isso que o grande Basílio, denunciando a disputa, por ser ela a mãe do ressentimento, disse ao abade prescrever até mil metanias a quem disputa. Mil ou uma, disse ele: ou o querelante deve fazer mil metanias diante de Deus, ou uma diante de seu superior, dizendo: “Perdoe-me, Padre”. Por esta única metania fundamental que corta nele a paixão pela disputa ele recebe a libertação de seus laços. Santo Isaac diz que a disputa é estranha à vida que os cristãos devem levar[461]. Nisto ele faz suas as palavras do Apóstolo: “Se alguém quer disputar, não é este o nosso costume”. E, a fim de que o querelante não tire alguma glória para si próprio e para que saibamos, quando disputamos, que nos colocamos fora das Igrejas de Deus, ele acrescentou: “nem das Igrejas de Deus[462]”. Temos necessidade apenas desta única e admirável metania. Mas se não a fizermos, se não sentimos arrependimento, tampouco as mil metanias servirão, Pois o arrependimento – a metanoia – é a rejeição do mal, disse João Crisóstomo[463].

Mas as metanias, sejam como forem, não passam jamais de prosternações. Elas mostram que aquele que se prosterna diante de Deus e dos homens humildemente, ao ser ofendido por qualquer coisa, toma a forma de um servidor, a fim de descobrir como se defender sem disputar nem tentar se justificar como o Fariseu[464]. Este se comporta mais como o Publicano[465], considerando a si próprio como pior do que todos e indigno de olhar para cima. Pois se ele aparenta se arrepender, mas tenta disputar com quem o julga a torto e a direito, ele já não é digno do perdão que a graça concede, por que ele busca um tribunal e justificativas, pensando que aquilo que ele faz é justo. Mas este caminho é estranho aos mandamentos do Senhor. É evidente: quem justifica a si mesmo procura o direito e não o amor pelo homem. Torna vã a graça que justifica o ímpio fora das obras da justiça[466], apenas pelo reconhecimento e a paciência, quando ele aceita as reprimendas, dá graças aos que o refutam e suporta sem ver mal naqueles que o acusam, a fim de que sua prece seja pura e seu arrependimento ativo. Quanto mais ele ora pelos que o caluniam e o acusam, mais Deus acusa seus adversários e lhe dá o repouso na prece pura e perseverante.

Nós não fazemos estes pedidos meticulosos por queremos ensinar a Deus, que conhece os corações, mas a fim de que nós mesmos possamos chegar à compunção com tais preces. Desejando sempre e em primeiro lugar permanecer nele, nos dedicamos a multiplicar as palavras, agradecendo e confessando-o por suas grandes benesses, tanto quanto nos é possível, como disse João Crisóstomo a respeito do bem-aventurado Davi. Pois não é nem mero falatório nem mera diversão repetir as mesmas palavras ou palavras semelhantes. O profeta é levado pelo desejo. E a palavra da divina Escritura fica gravada no intelecto daquele que ora ou de quem lê. É claro que Deus de todas as coisas antes que aconteçam, e que ele não tem necessidade de ouvi-las pela palavra. Nós é que precisamos, para conhecer o que pedimos e pelo quê oramos, a fim de lhe testemunhar nosso reconhecimento e nos ligarmos a ele por meio de nossas orações. Temos necessidade disso também para não sermos vencidos pelos inimigos, quando os pensamentos nos atormentam e quando vivemos fora da lembrança de Deus. Enfim, temos necessidade disso, ajudados pela prece e pela meditação das Escrituras, para podermos adquirir as virtudes a respeito das quais os santos Padres, em suas respectivas obras, escreveram pela graça do Espírito Santo. É deles que eu aprendi tudo. Vou agora mencionar estas virtudes, senão todas – pois me falta o conhecimento – ao menos aquelas que eu puder.

Enumeração das virtudes

A prudência, a castidade, a coragem, a justiça, a fé, a esperança, o amor, o temor, a piedade, o conhecimento, a resolução, a força, a compreensão, a sabedoria, a contrição, o luto, a doçura, o estudo das divinas Escrituras, a esmola, a pureza do coração, a paz, a paciência, a temperança, a constância, a boa intenção, a decisão, o sentido das coisas, o cuidado, o socorro divino, o fervor, o despertar, o calor do Espírito, a meditação, o ardor, a sobriedade e a vigilância, a memória, a consciência, a devoção, o pudor, a continência, o arrependimento, a rejeição ao mal, a conversão, o retorno a Deus, a união com Cristo, a recusa ao diabo, a observância dos mandamentos, a guarda da alma, a pureza da consciência, a lembrança da morte, as penas da alma, a obra do bem, o esforço, o labor, a vida dura, o jejum, a vigília, a fome, a sede, a moderação, a medida, a boa ordem, a decência, a modéstia, a gravidade, o desprezo pelos bens, o desinteresse, a rejeição às coisas desta vida, a submissão, a obediência, a docilidade, a pobreza, a despossessão, a fuga do mundo, a negação das vontades próprias, a renúncia a si mesmo, o conselho, a grandeza de alma, a consagração a Deus, a hesíquia, a instrução, o sono sobre a terra nua, a abjeção, a firmeza, o combate, a atenção, o pão seco, a nudez, o esgotamento do corpo, a solidão, a serenidade, a calma, o bom humor, a coragem, a segurança, o zelo divino, a consumação, a progressão, a loucura em Cristo, a guarda do intelecto, as boas promessas, a perfeição monástica, a virgindade, a santificação, a pureza do corpo, a brancura da alma, a leitura em Cristo, o cuidado com Deus, o reconhecimento, a prontidão, a verdade, a discrição, a inocência, a remissão das dívidas, a precaução, a capacidade, a vivacidade de espírito, a clemência, o justo uso das coisas, a ciência, a bondade natural, a experiência, a salmodia, a prece, a ação de graças, a confissão, a súplica, a prosternação, a invocação, a imploração, o pedido, a intercessão, o canto, a glorificação, a confidência, a solicitude, a lamentação, a aflição, a dor, o tormento, a compaixão, o suspiro, o gemido, as lágrimas de sofrimento, a compunção, o silêncio, a busca de Deus, o grito de dor, a despreocupação em relação às coisas, a ignorância do mal, a indiferença em relação à vanglória, a ausência de ambição, a simplicidade da alma, a dó, a modéstia, a honestidade, as obras naturais, as obras sobrenaturais, o amor fraterno, a concórdia, a comunhão divina, as delícias, a vida espiritual, a cortesia, a retidão, a transparência, a bem-aventurança, a integridade, a simplicidade, o louvor, as palavras de bondade, as boas obras, a predileção pelo próximo, a afeição divina, o estado de virtude, a perseverança, a busca da qualidade, o reconhecimento, a humildade, a reserva, a magnanimidade, a tolerância, a longanimidade, o bem-fazer, a benevolência, o discernimento, a abertura, a afabilidade, a ausência de conflitos, a contemplação, o poder de guiar, a firmeza, a clarividência, a impassibilidade, a alegria espiritual, a segurança, as lágrimas da compreensão, o pranto da alma, o desejo divino, a piedade, a misericórdia, o amor pelos homens, a pureza da alma, a pureza do intelecto, a previsão, a prece pura, o pensamento desembaraçado, o vigor, a tensão da alma e do corpo, a iluminação, a restauração da alma, o desprezo por esta vida, o justo ensinamento, o bom desejo pela morte, a infância em Cristo, o enraizamento, a advertência e a exortação comedida e firme, a mudança louvável, o êxtase diante de Deus, a perfeição em Cristo, o esplendor verdadeiro, o eros divino, o arrebatamento do intelecto, a morada em Deus, o amor às coisas divinas, o amor à sabedoria interior, a teologia, a profissão de fé, o desprezo pela morte, a santidade, a obra reta, a perfeita saúde da alma, a virtude, o louvor a Deus, a graça, o Reino, a adoção.

Num total de duzentas e trinta e oito virtudes. O homem se torna o que ele é por adoção, pela graça d’Aquele que nos dá a vitória sobre as paixões, cujos nomes, no meu entender, aí vão a seguir.


Enumeração das paixões

A maldade, a hipocrisia, a malícia, a vilania, a irracionalidade, o deboche, a sedução, a incapacidade natural, a falta de conhecimento, a inércia, a frieza, a estupidez, a gabolice, a loucura, a demência, a perdição, o delírio, a grosseria, a impertinência, o desleixo, o torpor, a preguiça para o bem, a ofensa, a avidez, a retenção, a ignorância, a falta de inteligência, o falso conhecimento, o esquecimento, a confusão, a insensibilidade, a injustiça, a má intenção, a alma inconsciente, a irresponsabilidade, a bravata, a prevaricação, a falta, o pecado, a iniquidade, a ilegalidade, a paixão, a catividade, o mau assentimento, a união irracional, a sugestão demoníaca, a temporização, o excessivo controle do corpo, o vício, a queda, a enfermidade da alma, o relaxamento, a doença do intelecto, a negligência, a languidez, a inquietude censurável, o desdém por Deus, o erro, a transgressão, a descrença, a desconfiança, a má fé, a pouca fé, a heresia, a perversão, o politeísmo, a idolatria, a ignorância de Deus, a impiedade, a magia, a observação dos sinais, a adivinhação, a feitiçaria, a renegação, a paixão pelos ídolos, a intemperança, o desperdício, a discussão, o egoísmo, o ócio, a desatenção, a passividade, a ilusão, a fraude, a temeridade, o envenenamento, a sujeira, a alimentação impura, o conforto, o desregramento, a gula, a prostituição, a avareza, a cólera, a tristeza, a acídia, o amor à vanglória, o orgulho, a presunção, a autossuficiência, o autoelogio, o desespero, o ultraje, o desgosto, a indolência, a pesandez, o prazer, o desejo insaciável, a glutoneria, a necessidade contínua de comer, comer em segredo, a voracidade, comer só, a indiferença, a facilidade, a vontade própria, a irreflexão, o contentamento, o desejo de agradar aos homens, a inexperiência do bem, a falta de instrução, a incompetência, a fragilidade no pensar, a trivialidade, a vulgaridade, a disputa, a rivalidade, a maledicência, a gritaria, a perturbação, a luta, a cólera, o desejo irrazoável, a irascibilidade, o paroxismo, o escândalo, a inimizade, a indiscrição, a calúnia, a amargura, a difamação, a condenação, a aversão, a vergonha ao próximo, a acusação, a raiva, a injúria, a desonra, a falta de medida, a selvageria, o furor, o azedume, a agressividade, o perjúrio, a falsa jura, a crueldade, o ódio aos irmãos, a desigualdade, a ofensa ao pai, a ofensa à mãe, a licenciosidade, o deixar acontecer, a corrupção, o roubo, a pilhagem, a inveja, a discussão, o ciúme, a indecência, a gozação, a invectiva, a ridicularização, a derrisão, o complô, a opressão, o desprezo pelo próximo, a flagelação, a impostura, o enforcamento, o inchamento, a insensibilidade, a dureza, a libertinagem, a influência, o ressentimento, o descaramento, a impudência, a alienação, as trevas do pensamento, o ceticismo moral, a cegueira, a paixão pelas coisas passageiras, a afeição passional, a vaidade, a desobediência, o peso, a obnubilação da alma, o excesso de sono, a imaginação, o excesso de bebida, a embriaguez, permanecer desocupado, o inchaço, as delícias irracionais, o amor pelos prazeres, a licenciosidade, a linguagem grosseira, a vida efeminada, a orgia, o desejo inflamado, o langor, a imoralidade, o adultério, a homossexualidade, a bestialidade, a torpeza, a impudicícia, a decomposição da alma, o incesto, a impureza, o aviltamento, a imundície, a amizade particular, a hilaridade, o gracejo, a pantomina, as palmas, as canções grosseiras, as danças pagãs, a sedução, a liberdade de linguagem, a obsequiosidade, a insubordinação, a instabilidade, a falsa concórdia, a subversão, a guerra, o assassinato, a briga, o sacrilégio, a escroqueria, a usura, a mentira, o roubo dos túmulos, a dureza do coração, a difamação, o murmúrio, a blasfêmia, o reproche, a ingratidão, a maledicência, a indiferença, a pusilanimidade, a confusão, a enganação, a linguagem desabrida, os discursos vãos, a alegria sem razão, a suficiência, a amizade irracional, o vício, a palermice, a linguagem insensata, a verborragia, a estreiteza, a perversidade, a recusa ao acolhimento, a irritação, as numerosas posses, o rancor, o mau uso, o mau humor, a ligação com esta vida, a frivolidade, a arrogância, o amor ao poder, a duplicidade de caráter, a ironia, a dissimulação, a sinuosidade, a palhaçada, o desencorajamento, o amor satânico, a curiosidade, as ofensas, não temer a Deus, o desconhecimento, a desinteligência, o pensamento humano, a jactância, o pensamento altaneiro, a falta de medidas, o desdém pelo próximo, o coração impiedoso, a ferocidade, a desolação, a hostilidade, o ódio às coisas divinas, o desespero, o suicídio, e, sobretudo, a queda para longe de Deus e a completa perdição.

Ao todo, duzentas e noventa e oito paixões. A todas elas eu encontrei nas divinas Escrituras, e as organizei assim como fiz com os livros no início deste discurso. Mas não pude colocá-las em ordem, nem tentei fazê-lo, pois isto está além de minha capacidade, pela razão levantada por João Clímaco: você buscará a inteligência junto aos vilões e não a encontrará[467]. Pois tudo o que pertence aos demônios é desordenado. Eles não têm senão um único objetivo, no qual se encontram os iníquos e os ímpios: por a perder as almas daqueles que acolhem seus maus conselhos.

Mas os demônios estão também na origem das coroas que alguns homens recebem. Então eles são vencidos pela fé e a paciência dos que esperaram no Senhor, que se opõem a eles e os denunciam pelas obras do bem e a resistência aos pensamentos.


Da diferença entre os pensamentos e as sugestões.

Os pensamentos diferem em tudo. Uns são puros de todo pecado, outros ainda não. Assim é com aquilo a que chamamos sugestão, ou seja, a lembrança do bem e do mal, que não traz em si nem recompensa nem condenação. O mesmo com o que chamamos associação, ou seja, o trabalho do pensamento, seja em vista do assentimento, seja em vista da rejeição. A associação merece ser louvada, sem mais, quando agrada a Deus. Pode também chamar a condenação, quando é para o mal. Depois vem aquilo a que chamamos luta, da qual o intelecto pode sair vitorioso ou derrotado. A luta traz, seja o coroamento, seja o castigo, quando se chega ao ato. Da mesma forma o assentimento, que é um movimento da alma seduzida diante daquilo que ela vê. Do assentimento vem o cativeiro que conduz o coração, forçadamente e contra sua vontade, a por em movimento a tentação.

Enfim, quando o pensamento racional permanece por longo tempo na alma, acontece o que chamamos de paixão. Esta investe por si só contra a alma que a ela se habitua, e a faz passar naturalmente ao ato. Sem dúvida, a paixão tem como consequência, em todos, seja o arrependimento que se opõe a ela, seja o castigo inevitável, disse João Clímaco[468]. Pois somos castigados por não nos arrependermos, não por que lutamos. Se assim fosse, a maior parte de nós não poderia receber a absolvição fora da perfeita impassibilidade. O próprio João Clímaco disse: “Não é possível a todos se tornarem impassíveis, mas todos podem ser salvos e se reconciliar com Deus[469]”.

O sábio, portanto, rejeita a má sugestão, a mãe do mal, a fim de romper de uma vez por todas com os perigos que vela advém. Mas ele está sempre pronto a realizar a boa sugestão, a fim de que a alma e o corpo possam adquirir a virtude e se livrar das paixões pela graça de Cristo. Pois não temos nada em nós que não tenhamos recebido dele[470]. E nada temos a oferecer senão nossa intenção. Mas se não a temos, não encontraremos nem o conhecimento nem a força para fazer o bem. Deus ama o homem e a obra de seu amor nos liberta da condenação no seio de nossa inércia. Pois a inércia é o começo de todos os vícios.

Mesmo a obra do bem, diz o Gerontikon, tem necessidade do discernimento. A virgem que jejuava seis dias da semana e não cessava de meditar sobre o Antigo e o Novo Testamento, não considerava da mesma maneira as coisas difíceis e fáceis, embora devesse, depois de tanto penar, trazer em si os frutos da impassibilidade, o que não aconteceu. Pois o bem não é bem se não tem seu objetivo na vontade divina. Muitas vezes na divina Escritura Deus rejeita em certas circunstâncias um homem por uma obra que a todos parece boa, ou recebe a outro que parece fazer o mal. Testemunha disto é o profeta que pediu que lhe batessem: ao crer fazer o bem ele desobedecia e se tornou presa do monstro[471]. Pedro também achou que fazia o bem quando recusou que lhe fossem lavados os pés, mas acabou reprimido por isto[472]. Devemos como toda nossa força descobrir e fazer a vontade divina, mesmo quando nos pareça ser o bem. Por isso é que a obra do bem jamais é feita sem trabalho, a fim de que não alteremos, como nossa liberdade, o louvor que nosso esforço merece.

Simplesmente, tudo o que Deus realiza é maravilhoso ultrapassa o intelecto e o entendimento. O intelecto deve admirar não apenas as celebrações da Igreja ortodoxa, mas também os símbolos destas celebrações. Devemos nos admirar de como pelo batismo divino nos tronamos filhos pela graça, sem que tenhamos feito algo para isto, nem antes nem depois, senão observar os mandamentos; e de como estas coisas temíveis, vale dizer, o santo batismo, a santa comunhão, não podem ser feitas sem o sacerdote, como disse o divino Crisóstomo[473]. É assim que aparece o poder dado a Pedro, o príncipe dos apóstolos. Pois se a celebração litúrgica não abrir as portas do Reino dos céus, ninguém entrará nele[474]. Como disse o Senhor: “Se não nascermos da água e do Espírito[475]”, etc. E também: “Se vocês não comerem a carne do Filho do homem nem beberem seu sangue, não terão a vida em vocês[476]”.

Devemos nos admirar ainda o modo pelo qual o antigo Templo era feito exteriormente à imagem do mundo, sendo lá que os sacerdotes realizavam os sacrifícios[477]. Mas o interior era o Santo dos Santos[478], onde eram oferecidos os perfumes sob quatro formas – o incenso, a mirra, o óleo perfumado e a acácia – que representavam as quatro virtudes gerais. O que se fazia no exterior revelava então a misericórdia de Deus, a fim de que, por meio dos cantos e das delícias, os judeus – que ainda pensavam como crianças – não se voltassem para os ídolos.

Mas a nova Igreja é o símbolo daquilo que virá. É por isso que as celebrações da Igreja são celestes e espirituais. Pois assim como existem nove ordens no céu, existem nove ordens na Igreja: os Patriarcas, os Metropolitas, os Bispos, os Padres, os Diáconos, os Subdiáconos, os Leitores, os Cantores e os Monges.

Devemos nos admirar ainda do modo como os demônios e muitas enfermidades são postos em fuga pelo sinal da preciosa cruz vivificante, coisa que todos podem fazer sem despesas e sem esforço. Quem poderia contar os louvores do sinal da cruz? Os santos Padres nos transmitiram os símbolos, para que os possamos opor aos descrentes e aos hereges: os dois dedos mais o polegar significam Cristo crucificado, revelado em duas naturezas e uma única hipóstase. A mão direita representa sua potência infinita, e lembra que ele está sentado à direita do Pai. O sinal é feito primeiro de alto para baixo: trata-se da descida dos céus entre nós. Depois, da direita para a esquerda: expulsamos os inimigos simbolizando que por seu poder invencível o Senhor venceu o diabo, que está à esquerda, impotente e tenebroso.

Devemos, finalmente, nos admirarmos de como, através de cores ínfimas, na tela em que nos são mostradas, foram perfeitamente colocadas pela divina Providência tantas maravilhas realizadas pelo Senhor e por todos os santos há tantos anos, a fim de que, vendo-os com nossos olhos, nós os queiramos acima de tudo, como disse são Pedro, o Príncipe dos apóstolos, conforme testemunhado por seu discípulo são Pancrácio.

Tudo o que dissemos desde o início deste discurso de nada servirá sem a fé reta, e mesmo sequer teria existido, tanto quanto nossa obras, sem a fé. Muitos dos santos Padres escreveram sobre a fé e as obras.

Para concluir, lembrarei que, cada um em sua ordem, devemos ter tanto as obras escritas quanto a fé ortodoxa que recebemos dos santos que as escreveram antes de nós, a fim de, por meio delas, alcançar os bens eternos, pela graça e o amor pelo homem de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem cabem toda honra e toda adoração, com seu Pai que não teve começo e seu Espírito Santíssimo, bom e vivificante, agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém. Para terminar, eu digo: Cristo, a você toda honra e toda glória. Amém.



[1]Cod. Par. Gr. 1134 (XV e seg.) e Cod. Vat. Pal. 210 (XIII e seg.)
[2] Cf. Gênesis, 2: 8.
[3] Cf. Gênesis 3: 17-19.
[4] Cf. Gênesis 4: 11-12.
[5] Cf. Gênesis 6: 5-6.
[6] Cf. Gênesis 9: 25-27.
[7] Cf. Gênesis 11: 1-7; 19: 4-5; Números 14: 22-23; I Reis 11: 9-11; Jonas 1: 2; II Reis 5: 20-21; Mateus 26: 24.
[8] Cf. Salmo 21 (22): 15.
[9] Cf. Gênesis 1: 26.
[10] Cf. Mateus 25: 41.
[11] Cf. Isaías 66: 16; Jeremias 20: 9.
[12] Cf. Gregório de Nazianze, Discurso XXIX, 19 e XLV, 53.
[13] Talvez as oito contemplações espirituais de que Pedro Damasceno falará adiante. Ver também Evagro o Pôntico, Sobre os Pensamentos.
[14] Cf. João 14: 23; 15: 10.
[15] Cf. I Timóteo 6: 10.
[16] Cf. Gênesis 1: 26.
[17] Cf. Gênesis 2: 18.
[18] Cf. Gênesis 3: 5; Romanos 7: 8.
[19] Cf. João 4: 24.
[20] I Coríntios 14: 19.
[21] Marcos 16: 16.
[22] Lucas 17: 10.
[23] Mateus 28: 20.
[24] Cf. I Tessalonicenses 5: 9.
[25] João 6: 38.
[26] Cf. Romanos 8: 14.
[27] Cf. Mateus 5: 9.
[28] Cf. Salmo 2: 11.
[29] Gregório de Nazianze, Discurso XLV, 7.
[30] Cf. João 15: 5.
[31] Máximo o Confessor, Sobre o amor, II, 39.
[32] Cf. Mateus 7: 14.
[33] Cf. Gênesis 12: 16; 13: 2.
[34] Cf. 1: 3.
[35] Cf. II Samuel 7: 2; I Crônicas 12: 40.
[36] Cf. Lucas 14: 6.
[37] Cf. João Clímaco, A escada santa, I, 45.
[38] Cf. I Coríntios 13: 13.
[39] Sentenças dos Padres do Deserto, Arsênio I.
[40] Cf. Mateus 13: 11-12.
[41] Cf. II Timóteo 3: 16.
[42] Cf. João 15: 5.
[43] Cf. João 1: 12.
[44] Cf. Lucas 21: 34.
[45] Cf. I Pedro 5: 8.
[46] Cf. Tito 3: 1.
[47] Cf. I Coríntios 8: 2.
[48] Cf. Salmo 50 (51): 19.
[49] Salmo 110 (111): 10.
[50] Isaías 11: 2-3.
[51] Mateus 5: 3.
[52] Mateus 5: 4.
[53] Mateus 5: 5.
[54] Cf. Salmo 38 (39): 7.
[55] Cf. Gênesis 1: 31.
[56] Cf. Salmo 24 (25): 9.
[57] Cf. Mateus 6: 15.
[58] Mateus 6: 14.
[59] Mateus 5: 6.
[60] Mateus 5: 7.
[61] Mateus 5: 8.
[62] Mateus 5: 9.
[63] Cf. Gálatas 5: 17.
[64] Cf. Mateus 5: 10-11.
[65] Cf. Mateus 5: 12.
[66] Cf. Mateus 5: 12.
[67] Cf. I Timóteo 6: 15-16.
[68] O olho que vê as coisas do mundo como elas são.
[69] Cf. Gálatas 6: 14.
[70] Cf. Romanos 1: 20-21.
[71] Cf. Romanos 1: 20.
[72] Cf. Gênesis 3: 23.
[73] Cf. I Coríntios 2: 9.
[74] Cf. IV Mac. 1: 16 (apócrifo)
[75] Os quatro pares de paixões que cercam as quatro virtudes.
[76] Cf. I Coríntios 15: 49.
[77] Cf. Gênesis 1: 26.
[78] Cf. I Coríntios 8: 2.
[79] Máximo o Confessor, Sobre o Amor III, 81.
[80] Cf. I Coríntios 8: 2.
[81] Cf. I Reis 3: 12.
[82] I João 3: 21.
[83] A escada santa V, 44.
[84] I Coríntios 4: 4.
[85] I Tessalonicenses 5: 3.
[86] Cf. Tiago 1: 25.
[87] A escada santa VI, 10 e XXII, 29.
[88] Carta ao Monge Nicolas.
[89] Obras espirituais, pg. 107.
[90] A escada santa XX, 11 e 14.
[91] Provérbios 17: 28.
[92] Discurso útil à alma.
[93] Salmo 45 (46), 11.
[94] Cf. Salmo 6: 7.
[95] 4: 5.
[96] Cf. Lucas 10: 41.
[97] Deuteronômio 15: 9.
[98] Homilia sobre Attende tibi ipsi, “Guarda a ti mesmo”.
[99] Cf. I Pedro 5: 8.
[100] Mateus 24: 42; 26: 41.
[101] João Clímaco, A escada santa I, 42.
[102] Eclesiástico 9: 13.
[103] Cf. Provérbios 6: 5.
[104] Cf. II Samuel 11: 12.
[105] Cf. I Reis 11: 9.
[106] A escada santa II, 12 e XV, 650.
[107] Sobre o abade Filemon.
[108] Sentenças dos Padres do Deserto, anon. 1434.
[109] Cf. Sentenças dos Padres do Deserto, Moisés 6.
[110] Carta II, 2.
[111] Eclesiastes 1: 13.
[112] Hierarquia Eclesiástica VI, 1, 3 e III, 2.
[113]  A escada santa VI, 11-12.
[114] Trata-se de João Clímaco, A escada santa XXVII, 28, citando 4, 12.
[115] Salmo 45 (46): 11.
[116] A escada santa XXVII, 52.
[117] Obras espirituais, pg. 230.
[118] Mateus 6: 21.
[119 Cf. Mateus 5: 3.
[120] Evagro, Da oração 58, citando o Salmo 75 (76): 3.
[121] As contemplações – também chamadas de “gnoses” ou conhecimentos – são aqui colocadas como os estágios da vida espiritual.
[122] Obras espirituais, pgs. 377-378.
[123] Instruções espirituais XIII, §148.
[124] A escada santa XXV, 35 e 38.
[125] O tema e as numerosas passagens desta “lamentação de Adão” são extraídas da liturgia bizantina (domingo da Queda de Adão, na tríade da Grande Quaresma)
[126] Cf. Daniel 13: 22.
[127] Cf. Isaías 14: 12.
[128] Cf. Gênesis 3: 23.
[129] Cf. Gênesis 3: 23; 4: 8; 9: 25; 19: 24-25; 25: 32-35; Números 14: 34; II Reis 5: 26-27; Mateus 26: 15-24; II Samuel 11: 12 e Salmo 50 (51); I Reis 11: 9-10.
[130] Cf. Gênesis 18: 27.
[131] Cf. I Samuel 18: 23 e 24: 15.
[132] Cf. I Reis 3: 7.
[133] Cf. Daniel 3: 23.
[134] Isaías 6: 5.
[135] Trata-se na realidade de Jeremias 1: 6.
[136] Cf. I Timóteo 1: 15.
[137] Salmo 142 (143): 8.
[138] Salmo 37 (38): 22-23.
[139] Cf. Lucas 15: 11-32.
[140] Cf. Lucas 18: 9-14.
[141] Os últimos três versos foram extraídos da liturgia bizantina.
[142] Cf. Jeremias 3: 19.
[143] Discurso XIV 2, 3.
[144] Texto da liturgia bizantina.
[145] Cf. Gênesis 3: 19.
[146] Cf. Mateus 17: 20.
[147] Cf. Filipenses 4: 7.
[148] Cf. Mateus 5: 9.
[149] Cf. Lucas 15: 17-18.
[150] Cf. Lucas 18: 13-14.
[151] Cf. Daniel 7: 9-10 e Apocalipse 20: 11-12.
[152] Cf. Hebreus 4: 13.
[153] Cf. Marcos 9: 48.
[154] Mateus 25: 12.
[155] Cf. Lucas 15: 18-21.
[156] Cf. Lucas 7: 37-38.
[157] Texto da liturgia bizantina.
[158] Cf. Salmo 85 (86): 13.
[159] Cf. Daniel 9: 5. 15.
[160] Cf. Salmo 50 (51): 6.
[161] Salmo 6: 3.
[162] Começo da oração das Horas. A longa prece que precede é também inspirada diretamente ou extraída tal qual da liturgia bizantina.
[163] Cf. Lucas 18: 13.
[164] Obras espirituais, pg. 200.
[165] Cf. Eclesiastes 3: 2.
[166] A escada santa XXVIII, 11.
[167] Ibidem VII, 75.
[168] Obras espirituais, pgs. 202 e 108, citando Daniel 10: 9.
[169] Evagro, Sobre a oração, 120.
[170] Cf. João 4: 24.
[171] I Coríntios 14: 19.
[172] I Timóteo 2: 8.
[173] Cf. Eclesiástico 39: 34.
[174] Eclesiastes 3: 1.
[175] Obras espirituais, pg. 277.
[176] Cf. São Basílio, Pequenas Regras 16 e 80.
[177] Cf. I Pedro 2: 22.
[178] Conjunto de orações que era dado a cada monge em particular.
[179] A escada santa VII, 4, citando o Salmo 101 (102): 5.
[180] Em grego: ouranophantor, “aquele que faz aparecer o céu”.
[181] São Basílio, Grande Regra 2, citando o Salmo 115: 3 (116: 12).
[182] Cf. João 1: 14.
[183] Cf. Isaías 42: 7.
[184] Cf. Malaquias 3: 20.
[185] Obras espirituais, pgs. 61 e 434.
[186] Cf. Lucas 6: 36.
[187] Cf. Mateus 5: 48.
[188] Lucas 14: 11; 18: 14.
[189] Cf. Mateus 16: 19.
[190] Cf. I Coríntios 2: 9.
[191] Cf. Romanos 7: 12.
[192] Cf. Mateus 13: 44.
[193] Sobre a Teologia II, 35.
[194] Cf. II Coríntios 1: 12.
[195] Lucas 17: 21.
[196] Eclesiástico 11: 4.
[197] João, 15: 5.
[198] Cf. Lucas 10: 39.
[199] Cf. Mateus 11, 29.
[200] Cf. Efésios 2: 4.
[201] Cf. João 4: 10.
[202] João 7: 37.
[203] Cf. I Samuel 4: 4; Salmo 79 (80): 1.
[204] Cf. João 14: 12.
[205] Cf. Salmo 18 (19): 11.
[206] Mateus 6: 14.
[207] Mateus 7: 7.
[208] Mateus 7: 12.
[209] Cf. João 10: 11.
[210] Cf. Habacuque 3: 2.
[211] Cf. 40: 4.
[212] Cf. Lucas 1: 48.
[213] Provérbios 10: 7.
[214] João 1: 1.
[215] Cf. Filipenses 3: 8.
[216] Cf. Atos 4: 13.
[217] Cf. II Timóteo 4: 7.
[218] Daniel 3: 18.
[219] Daniel 3: 38-39.
[220] Daniel 3: 49
[221] Cf. I Reis 18: 38.
[222] Prece final das Grandes Completas no Ofício Bizantino.
[223] Eclesiástico 23,: 23-28.
[224] Cf. Êxodo 16: 20.
[225] João 5: 17.
[226] Cf. Isaías 11: 2.
[227] Eclesiastes 1: 2.
[228] Cf. Salmo 38 (39), 6 e 12.
[229] Cf. Isaías 11: 2.
[230] Ver Evagro, Sobre o discernimento das paixões 7.
[231] Sobre o amor I, 7.
[232] Cf. Gênesis 1: 31.
[233] Máximo o  Confessor, Sobre o amor III, 97.
[234] A fé ortodoxa II, 12.
[235] A escada santa XXVI, 91.
[236] Cf. Jó 38-39.
[237] Obras espirituais, pg. 289.
[238] Cf. Gênesis 1: 31.
[239] I Coríntios 8: 2. A respeito desta passagem, ver João Crisóstomo, Sobre a incompreensibilidade de Deus II.
[240] Instruções espirituais V, 61.
[241] Pequena regra 20.
[242] Cf. Hebreus 5: 14.
[243 A escada santa VII, 63.
[244] Ibid. VI, 32 e XXVI, 114.
[245] Cf. Provérbios 3: 34; Tiago 4: 6.
[246] Obras espirituais, pg. 157.
[247] Provérbios 25: 16.
[248] Discurso XXXIX, 8.
[249] Homilia sobre o Hexameron IX, onde na realidade se fala do escorpião.
[250] Sobre a incompreensibilidade de Deus III, citando Daniel 10: 5-6.
[251] Ibid. Cf. Isaías 6: 3.
[252] Cf. Mateus 18: 12-14.
[253] Discurso XLV, 5-6.
[254] Sobre o amor I, 10.
[255] Evagro, Sobre a oração 120.
[256] Sobre a Teologia I, 39.
[257] Nomes Divinos I, 6.
[258] Ibid. I, 2.
[259] Cf. João 10: 1.
[260] Sobre o abade Filemon.
[261] Salmo 54 (55): 23.
[262] “Tudo posso naquele que me fortalece” (Filipenses 4: 13).
[263] Cf. João 15: 5.
[264] Cf. I Pedro 5: 7.
[265] A escada santa IV, 95.
[266] Mateus 21: 21.
[267] Cf. Colossenses 1: 23; Hebreus 11.
[268] Cf. João 20: 19.
[269] Ibidem.
[270] Sobre a teologia II, 46.
[271] A referência é confusa, mas deve se tratar de Sentenças dos Padres, Sisão 4.
[272] II Coríntios 5: 13.
[273] Evagro, Sobre a oração 111.
[274] A escada santa XXIX, 7.
[275] João 12: 23.
[276] Sentenças dos Padres, Antônio 8.
[277] Sobre o amor IV, 63-64.
[278] Mateus 6: 25.
[279] Lucas 13: 23.
[280] Cf. I Coríntios 1: 24.
[281] Mateus 5: 21-22.
[282] Tiago 1: 17. Irmão de Deus é o nome dado no Oriente a são Tiago, primeiro bispo de Jerusalém, que o Novo Testamento chama de irmão (primo) do Senhor.
[283] Mateus 13: 52.
[284] A escada santa XXVI, 35.
[285] Cf. II Coríntios 11: 6.
[286] Carta II, 2.
[287] Cf. II Coríntios 10: 5.
[288] Provérbios 11: 15.
[289] Mateus 10: 22.
[290] Cf. II Tessalonicenses 1: 6-7.
[291] A escada santa XXV, 68; XXVI, 173.
[292] Salmo 53 (54): 9.
[293] Cf. Gênesis 1: 3.
[294] A fé ortodoxa II.
[295] Hebreus 12: 14.
[296] Cf. Lucas 15: 17-18 e 7: 37-38.
[297] Cf. Lucas 18: 13.
[298] Cf. Mateus 7: 1.
[299] Sobre o amor II, 38.
[300] Cf. I Timóteo 6: 10.
[301] Mateus 6: 19.
[302] Mateus 6: 21.
[303] Grande Regra 6.
[304] Marcos o Asceta, Dos que pensam ser justificados, 43.
[305] Sentenças dos Padres do deserto, Epifânio 9, 10 e 11.
[306] Instruções espirituais IV, §56 e 60.
[307] Cf. João 15: 13.
[308] Sobre o amor IV, 37.
[309] Lucas 17: 6.
[310] Marcos 9: 23.
[311] Salmo 90 (91): 9.
[312] Provérbios 21: 31.
[313] Obras espirituais, pg. 333.
[314] Salmo 72 (73): 22-23.
[315] Cf. João 21: 17.
[316] Cf. Salmo 30 (31): 6.
[317] Salmo 30 (31): 15.
[318] Salmo 85 (86): 16.
[319] Marcos 9: 24.
[320] Obras espirituais, pg. 126.
[321] Sobre o abade Filemon.
[322] II Coríntios 5: 7.
[323] Cf. Gênesis 1: 31.
[324] Instruções espirituais IV, § 48.
[325] A escada santa XXVI, 105.
[326] Ibid. XXVI, 98.
[327] II Coríntios 12: 9.
[328] II Coríntios 12: 10.
[329] A escada santa XXVI, 44-45.
[330] Sentenças dos Padres do deserto, anônimo 1228.
[331] Lucas 12: 47.
[332] Discurso XIX, 10.
[333] Mateus 23: 3.
[334] Cf. Provérbios 24: 16; Miquéias 7: 8; Sentenças dos Padres do deserto, Sisoés 38.
[335] Tito 3: 3.
[336] Sermões V, 8. Jogo de palavras entre thrasos (temeridade) e tharsos (coragem).
[337] Cf. Mateus 19: 22.
[338] Cf. I Timóteo 6: 8.
[339] I Tessalonicenses 5: 18.
[340] I Tessalonicenses 5: 17.
[341] Cf. I Tessalonicenses 5: 16.
[342 Instruções espirituais XII, § 126, citando Salmo 76 (77): 4 (LXX).
[343] Mateus 10: 22.
[344] Cf. Macário o Egípcio, Paráfrase 82.
[345] Sobre a teologia II, 20.
[346] Deuteronômio 6: 5.
[347] Grande Regra, 2.
[348] Êxodo 32: 32.
[349] Romanos 9: 3.
[350] Cf. Lucas 6: 35.
[351] Cf. Gênesis 2: 15.
[352] I Coríntios 4: 7.
[353] João 15: 5.
[354] Cf. Lucas 20: 36.
[355] I Coríntios 2: 9.
[356] Lucas 6: 46.
[357] Lucas 23: 31.
[358] Provérbios 11: 31.
[359] Obras espirituais, pgs. 274-275.
[360] Provérbios 13: 24.
[361] Cf. , 42: 12.
[362] Cf. Atos 5: 41.
[363] Cf. I João 4: 18.
[364] João 1: 48. O nome de “Israel” foi dado a Jacó depois de sua luta com Deus, durante a qual ele viu Deus face a face (Gênesis 32: 31). Por esta razão, o nome de Israel designa o intelecto contemplativo que vê a Deus; ver Gregório o Sinaíta, Da Hesíquia e dos dois modos da Prece 1.
[365] Cf. Mateus 16: 18; Marcos 3: 16; Atos 13: 9. A etimologia só faz sentido em função do comentário; ela não explica os nomes em si, que são de origem hebraica.
[366] Cf. Atos 9: 11.
[367] Cf. João 6: 66.
[368] Homilias sobre são João XLVII.
[369] Carta XLII.
[370] Cf. II Pedro 1: 5-6.
[371] II Samuel 4: 5-8. Nilo o Asceta, Discurso Ascético 16.
[372] Cf. Efésios 6: 7.
[373] Cf. II Coríntios 5: 7.
[374] Cf. Gálatas 5: 7.
[375] Cf. I Coríntios 13: 12.
[376] Cf. Gálatas 5: 17.
[377] I Coríntios 4: 20.
[378] Obras espirituais, pg. 260.
[379] Cf. Isaías 9: 5.
[380] Lucas 12: 14.
[381] Cf. João 5: 22.
[382] Mateus 16: 24.
[383] Mateus 19: 21.
[384] Homilias sobre a riqueza.
[385] Deuteronômio 6: 4-5.
[386] Levítico 19: 18.
[387] Cf. Mateus 19: 22.
[388] Homilias sobre são Mateus LXIII.
[389] I Tessalonicenses 4: 10.
[390] Cf. João 21: 18-20.
[391] João 6: 68.
[392] Cf. Mateus 27: 5.
[393] Cf. Atos 1: 18.
[394] I Tessalonicenses 2: 8.
[395] II Coríntios 4: 5.
[396] I Timóteo 5: 1.
[397] A escada santa XXVI, 117
[398] Provérbios 10: 9.
[399] Pequenas Regras, 229 e 288.
[400] Cf. Filemon, 14.
[401] Cf. I Pedro 5: 3.
[402] II Timóteo 2: 6.
[403] I Timóteo 4: 12.
[404] Instruções II, § 33.
[405] Obras espirituais, pg. 77.
[406] Cf. Lucas 18: 11.
[407] Sobre a incompreensibilidade de Deus, I.
[408] Cf. I Coríntios 13: 9-12.
[409] Sobre a incompreensibilidade de Deus, I.
[410] Nomes divinos IV, 11.
[411] Isaías 26: 14.
[412] Isaías 26: 19.
[413] Cf. Mateus 17: 1; Marcos 9: 2.
[414] Cf. Lucas 9: 28.
[415] João 20: 30.
[416] João 21: 25.
[417] Gênesis 1: 3-6.
[418] Gênesis 1: 3.6.14.
[419] João 21: 25.
[420] João 3: 8.
[421] Homilias sobre são João XVIII.
[422] A escada santa XXX, 24.
[423] Cf. Mateus 13: 12.
[424] Cf. Mateus 13: 12.
[425] Sobre a incompreensibilidade de Deus II, citando I Coríntios 8: 2.
[426] Daniel 2: 31-35.
[427] Números 23: 8-10.
[428] Cf. João 5: 39; 12: 50.
[429] Sobre a teologia II, 53, citando I Reis 15: 28-35.
[430] Salmo 50 (51): 12.
[431] Atos 2: 15.
[432] Cf. João 7: 37.
[433] Cf. Apocalipse 1: 10.
[434] Cf. Levítico 23: 35-36.
[435] A fé ortodoxa II, 7.
[436] Cf. Gênesis 1: 5.
[437] Carta II, 3.
[438] Cf. Sentenças dos Padres do Deserto, Poêmio 54.
[439] Cf. João 5: 39.
[440] Carta XLII, 2.
[441] Sentenças dos Padres do Deserto, Sisoés 3.
[442] Daniel 3: 23. Sentenças dos Padres do deserto, anônimo, 1205.
[443] Sentenças dos Padres do deserto, Moisés 6.
[444] Mateus 18: 20.
[445] A escada santa I, 45; citando Provérbios 4: 27 e Números 20: 17.
[446] Ibid. XXVI, 28; XIX, 8; XXVI, 45.
[447] Ibid. XXVIII, 46.
[448] Cf. Deuteronômio 32: 10.
[449] Provérbios 1: 7; Salmo 110 (111): 10.
[450] Obras espirituais, pgs. 365-366.
[451] Ver acima, “Das oito contemplações espirituais”.
[452] Cf. Mateus 18: 19 e Tiago 5: 16.
[453] Cf. Lucas 18: 13.
[454] Cf. Daniel 8: 17.
[455] Cf. Apocalipse 1: 17.
[456] Cf. II Coríntios 12: 9.
[457] Cf. Tiago 5: 16.
[458] Cf. Lucas 6: 28.
[459] Obras espirituais, pg. 86.
[460] Cf. Marcos 11: 25.
[461] Obras espirituais, pg. 316.
[462] I Coríntios 11: 16.
[463] Sobre a penitência, Homilia VII, 3.
[464] Cf. Lucas 18: 11-12.
[465] Cf. Lucas 18: 13.
[466] Cf. I Romanos 4: 5.
[467] A escada santa XV, 77, citando Provérbios 14: 6.
[468] Ibid. XV, 74.
[469] Ibid. XXVI, 65.
[470] Cf. I Coríntios 4: 7.
[471] Cf. I Reis 21: 36.
[472] Cf. João 13: 8.
[473] Sobre o sacerdócio III, 3.
[474] Cf. Mateus 16: 19.
[475] João 3: 5.
[476] João 6: 53.
[477] Cf. Êxodo 26: 1-2; Hebreus 9: 1-6.
[478] Cf. Êxodo 30: 10; Hebreus 9: 3; ver Evagro, Sobre a Oração 1.