quarta-feira, 27 de abril de 2016

Higoumeno Simeão - A busca de Deus na Tradição Hesiquiasta



Eu gostaria de abordar de maneira simples o tema da hesíquia, a busca de Deus. Talvez seja importante, para começar, tentar dar uma tradução, uma definição da palavra hesíquia. Trata-se de uma palavra de origem grega que podemos traduzir como “paz, silêncio”, mas também como “tranquilidade do coração”. Vocês sabem como é difícil, a partir de um termo estrangeiro, dar uma tradução justa e é por essa razão que eu invoco diversos significados. Em todo caso, nesse termo que significa paz, silêncio, repouso, é preciso tomar cuidado para não deformar o sentido da tradução. Por exemplo, se utilizamos o sentido de “repouso”, não se trata de um repouso que evoque o sono. Não se trata de adormecer na tradição hesiquiasta. Veremos mais adiante que se trata, ao contrário, de uma tradição ativa e de vigilância.

Não pretendo dar um curso de história sobre as origens do Hesiquiasmo, mas gostaria de lembrar rapidamente como se desenvolveu a hesíquia. Como e onde ela nasceu? Pois bem, eu diria que nós a recebemos, como tantas outras coisas, diretamente da parte de Cristo. Podemos aprender a partir das atitudes de Cristo no Novo Testamento: uma curta passagem do Evangelho que nos mostra esse tipo de atitude nos permitirá compreender o que é a hesíquia.

Esse episódio é aquele que narra a entrada de Jesus na sinagoga de Nazaré, seu país de origem. Ali ele fala e é mal recebido. O final do relato nos diz o seguinte: “Eles todos se encheram de cólera na sinagoga depois de ouvirem essas coisas e, levantando-se, eles o expulsaram da cidade e o conduziram até o alto da montanha onde ela estava construída, a fim de atirá-lo lá de cima. Mas Jesus, passando no meio deles, se foi dali[1]”. A última frase desse texto é significativa. O hesiquiasta, aquele que busca viver na paz do coração, na quietude, encontra seu modelo nessa atitude de Cristo, que, agredido, contestado, violentado, pôde passar pelo meio da multidão sem nada dizer, sem mostrar nenhuma agressividade, porque ele possuía, evidentemente até a perfeição, um coração cheio de paz. Somente um coração silencioso, banhado na hesíquia, poderia responder à agressividade da massa.

A partir do estudo e da meditação sobre o modo de ser de Cristo durante sua vida, os cristãos, e em especial os primeiros monges, buscaram adquirir essa hesíquia, essa paz silenciosa, essa tranquilidade do coração. E podemos dizer que o movimento monástico, o ideal monástico, é totalmente ligado à tradição hesiquiasta. Às vezes ouvimos dizer, entre cristãos ortodoxos, que existem monges hesiquiastas e monges não hesiquiastas. Não me agrada fazer esse tipo de diferenciação. O monge, que é fundamentalmente um buscador de Deus – assim como outros buscam o ouro – deve obrigatoriamente passar por essa procura de paz, de silêncio, de abandono, que trazem consigo outras virtudes, como veremos mais adiante. Assim, eu não faço diferença entre monges hesiquiastas e não hesiquiastas. Para mim, são todos igualmente hesiquiastas.

Os primeiros monges foram também os primeiros eremitas; pois sabemos que o monaquismo nasceu no século IV depois que homens e mulheres, dos quais Santo Antônio foi o mais célebre, partiram para o deserto para buscar a Deus. Ali imediatamente se estabelece o objetivo da hesíquia: esse objetivo é a descoberta de Deus. Direi, antes, é o desejo de encontrar a Deus. O hesiquiasta é um homem que deseja, seu coração está cheio com o desejo de Deus, e, por causa disso, ele vai buscar um modo de libertar seu coração de suas paixões para encontrar a Deus. Os primeiros monges partiam para o deserto, o que é significativo. O deserto, sabemos, é um lugar de retiro, um lugar de silêncio. De certo modo ele se opõe à cidade turbulenta. Essa solidão e esse isolamento são desejados e serão um dos terrenos do hesiquiasta, do monge, para encontrar a Deus.

Não podemos encontrar a Deus no meio da agitação. O próprio Deus no-lo diz em certos textos do Antigo Testamento. Ele explica ao profeta Elias: “Eu não estou na tempestade, nem nos relâmpagos, nem no turbilhão do vento violento, mas na brisa suave que você sente[2]”. Deus só pode ser encontrado no silêncio e é preciso que o monge hesiquiasta parta para o deserto, ou que ele busque a solidão interior. Se eu falo em monge, é porque tudo isso proveio da tradição monástica, mas é evidente que cada um pode viver essa tradição hesiquiasta, se desejar encontrar a Deus. Um leigo pode ser um hesiquiasta e alguns leigos foram canonizados e reconhecidos como santos pela Igreja.

De início, o movimento monástico foi essencialmente eremítico, e os primeiros monges eram acima de tudo solitários. Em seguida aconteceu uma evolução que se deu muito rapidamente, privilegiando a vida em comunidade. Isso se deu notadamente ao redor de São Basílio, no século IV, de São Teodoro Estudita no século IX e muitos outros. Eles organizaram o monaquismo e propuseram as regras de conduta referentes ao modo de viver em comunidade nessa busca de Deus. Isso deu nascimento aos mosteiros que conhecemos e que sustentam essa tradição até hoje.

Vemos, assim, duas correntes: os eremitas, que retiravam verdadeiramente na distância e na total ou quase total solidão, e os monges que viviam em comunidade. Ambos tinham a mesma busca, e ambos passaram pela tradição da hesíquia, e não apenas pelo método. Eu sou reticente em empregar a expressão “método”, porque é preciso muita atenção para isto. A hesíquia não pode constituir um método, no sentido de técnica, como nos arriscamos a entender esse termo hoje em dia, e que é uma coisa ambígua. O homem moderno está como que perdido, e ele busca – e todos nós buscamos, desde que existimos sobre esta terra – ele busca como encontra a si mesmo. Ele esquece de que é se voltando para aquele que o criou, a saber, Deus, seu Criador, que ele poderá encontrar a si mesmo. Mas ele vive essa busca numa tal agitação, em tamanha desordem, que ele está disposto a experimentar não importa que meios para lograr se encontrar.

A hesíquia não é um método similar a um método para aprender inglês, ou como qualquer outro método existente que conduza necessariamente a um dado resultado, desde que bem aplicado. Não, a hesíquia não é dessa mesma ordem. A hesíquia é uma atitude, e não é porque o monge se retira para o deserto, não é porque o monge foge do mundo, não é porque o monge busca o silêncio, que ele vai encontrar a Deus. O método não é mágico. Ele é um suporte, mas necessita de uma tensão de amor, de um profundo desejo de encontro com Deus, e só então o método se colocará no lugar e no momento conveniente para que o monge comece a buscar viver essa hesíquia. Ele viverá no silêncio, como foi dito, num certo retiro, e irá orar. Ele utilizará aquilo a que chamamos de prece do coração, ou prece de Jesus. Essa forma de prece é completamente ligada à tradição hesiquiasta. Qual é essa oração? Nós repetimos usando um terço que temos sempre à mão: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim pecador”. Essa é a fórmula mais completa. Mas a oração pode ser simplificada, dizendo-se simplesmente “Senhor”, ou “Jesus”.

Os Gregos dizem Kyrie eleison, “Senhor, tem piedade”. É a mesma coisa, é a mesma fórmula, mais ou menos desenvolvida. Essa prece repetitiva que o monge utiliza tampouco constitui um meio para que, ao final de 200 ou 300 repetições, encontremos a Deus. Ela é simplesmente um grito de amor, pois quando amamos queremos chamar a pessoa amada por seu nome ou apelido. O amor, sabemos bem, passa pela palavra, mas pela palavra mais despojada. Quando um casal se encontra e decide se casar, sabemos que o efeito amoroso lhes dá uma possibilidade de encontro que passa pelas palavras. Cada qual quer dizer ao outro sem cessar que o ama, mas, quando reencontramos este casal ao fim da vida, ele já não dizem mais nada, e apenas olham um para o outro. O simples olhar lhes basta para manifestar esse amor, que agora é vivido em silêncio, na paz, num coração inteiramente despojado de tudo o que o torturava no início, provavelmente por causa da paixão.

O monge vive essa mesma coisa, à sua maneira, transpondo para si essa experiência. É preciso que ele se cale, é preciso que ele se dirija para o silêncio, e é preciso que ele repita esse nome de amor: “Jesus”. “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim”: trata-se de uma declaração de amor. Nós reconhecemos nosso Deus e lhe dizemos: “Tem piedade de mim”, não numa atitude miserabilista em que Deus tivesse pena de nós. Não se trata disso, de modo algum. Nós simplesmente reconhecemos, com toda humildade, que não sabemos amar. É por causa disso – por não sabermos amar, mas por queremos amar – que dizemos: “Tem piedade, tem piedade de mim, ajude-me a amar”. Pois se quisermos ser amorosos para com Deus, é preciso que ele, que nos criou e que é Amor, nos mostre esse Amor, nos torne parte dele e nos acolhe em si. Não existe outra fonte. Então o monge hesiquiasta se esforça ao longo de toda a sua vida em orar a Cristo, a esse Cristo que disse: “Orai sem cessar[3]”. E nós podemos lhe responder: “Mas como, Senhor, poderemos orar sem cessar?”.

O que significa esse convite à prece perpétua? Pois Cristo não disse: “Falem comigo sem parar”, mas, ao contrário, ele advertiu: “Em suas orações, não usem muitas palavras, como os pagãos: eles imaginam que falando muito eles serão melhor ouvidos[4]”. Como vocês sabem , nós lhe falamos muito, para pedir, pedir e pedir. Existem momentos em que ele deve colocar algodão nas orelhas, dizendo: “Porque ele não para de me pedir sempre seja lá o que for?”. Me parece que Cristo, nosso Deus, ao nos pedir que oremos sem cessar, nos convida antes a contemplá-lo, a desejá-lo: esta é a oração. Não se trata forçosamente de uma formulação exterior. É claro que pode existir uma formulação exterior, mas trata-se, sobretudo – e aqui eu volto ao que dizia no início – de uma atitude do coração: é preciso desejar o Senhor. É neste desejo que se instala a prece perpétua. A prece de Jesus, a prece do coração que utilizamos, nos ajuda a isso, por ser ela tão despojada. Ela se torna, na verdade, um hábito, um apelo interior ao qual nós devemos responder.

Frequentemente, quando chegam jovens monges ao meu mosteiro, eles me dizem: “Ensine-nos a orar”. Eles não sabem orar direito, e então eu sempre lhes dou um terço de oração. De resto, eles o recebem, diria eu, liturgicamente, quando tomam o hábito, e eu lhes digo: “Agora, comecem essa oração!”. Como se trata de jovens monges cheios de desejo, energia e ímpeto, eles pedem uma regra de oração forte, densa, para dizer o máximo possível. Então eu deixo que façam isso, e digo sim. Depois de quinze ou vinte dias eles vêm bater à minha porta e dizem: “Não estou conseguindo”. Eles não entenderam que não se trata de um método. Eles se cansam, se afadigam, e isso pode ser perigoso, repetindo essa invocação obstinadamente. Isso não tem nenhum interesse sobre o plano espiritual e pode representar um risco, sobre o próprio plano físico. Eles não compreendem que é preciso começar suavemente, mas tendo uma atitude de desejo por Deus.

De fato, talvez baste dizer simplesmente o Nome de Jesus. Vocês sabem como, nas tradições espirituais, o Nome tem importância. Assim, basta apenas dizer esse Nome e deixar fluir interiormente, suavemente, sem desejo de heroísmo. É preciso que nossa prece seja humilde se ela quiser ser verdadeira e hesiquiasta. A humildade é absolutamente indispensável. É preciso que, passo a passo, aprendamos a ser humildes. É bem evidente que nenhum homem sobre a terra é absolutamente humilde, nenhum. Somos todos aprendizes do amor e da humildade. Devemos aceitar isso, mas também é preciso lutar para adquirir o máximo possível dessa humildade que nos permitirá um verdadeiro encontro com Deus. Essa é outra atitude indispensável ao monge hesiquiasta: buscar a humildade, pedir a humildade a Deus.

Gostamos muito de um santo russo do século XIX, São Serafim de Sarov, um homem extremamente humilde. Um dia ele explicou a alguém que o procurava para saber como viver a hesíquia, como viver essa quietude em Deus, dizendo esta frase: “Se você tiver paz em seu coração [ou seja, se você for hesiquiasta] você salvará milhares de almas ao seu redor”. O que significa essa frase? É preciso compreendê-la. Se São Serafim disse: “Se você tiver paz em seu coração você salvará milhares de almas ao seu redor”, é porque ele passou por todo um caminho que será para nós como um exemplo. Ele nos mostrou por toda a sua vida que é preciso ser humilde, que é preciso aceitar que somos pequenos, que nada sabemos, que não conhecemos a Deus e, sobretudo, que não possuímos Deus, e que não devemos tentar possuí-lo, o que seria um erro fundamental. É preciso passar pela humildade, e São Serafim passou por ela. É preciso passar pelo abandono.

O que é a humildade senão a descoberta objetiva de que somos pobres, desprovidos e não amorosos? Isso pode nos conduzir ao desespero, o que não é um bom caminho. É preciso que essa descoberta na humildade nos conduza à paz. E o único caminho possível é o abandono nas mãos de Deus. Se eu descubro que sou pobre, não devo me desesperar nem me revoltar; essa não é uma boa solução. Pois se eu me desespero e me revolto, a quem faço referência? A mim, é claro, não ao meu Criador! Mas se sou capaz de ver humildemente minha fraqueza, se eu sei não me revoltar, se sei verdadeiramente me voltar para Deus, com toda confiança, dizendo-lhe: “Eu sou pequeno e pobre, mas você, que pode tudo, tome a mim na palma de sua mão e me guie...”, então, esse abandono, que é a segunda etapa – primeiro a humildade, depois o abandono – esse abandono vai me conduzir à quietude, à paz do coração, porque estarei enfim nas mão do Único, do Único que pode me dar essa paz, aquele que é amor, nosso Deus. Eis aí, pelo exemplo de São Serafim de Sarov, como é possível viver a tradição hesiquiasta.

Eu gostaria de terminar esta pequena exposição por um exemplo bíblico, mais precisamente evangélico, que vocês devem conhecer. Trata-se do episódio em que Jesus se encontra na casa de seus amigos Lázaro, Marta e Maria, judeus que amavam o Senhor e que o acolhiam com frequência. Nesse episódio não se fala muito de Lázaro, mas de suas irmãs Marta e Maria. Uma delas, Marta, atarefada, prepara o jantar, se agita, põe a mesa, enfim, tudo aquilo que podemos imaginar. A outra, Maria, está aos pés do Senhor, e apenas o olha e escuta. Então aquela que põe a mesa vem e diz a Jesus: “Diga a ela para que venha me ajudar”. E o Senhor responde: “Você se agita demais, e ela escolheu a melhor parte[5]”.

Dito de outra forma, nessa passagem evangélica, nessa experiência de Marta e Maria, Cristo nos ensina: “Atenção à agitação inútil”. Ele não quis dizer que essa agitação não era hospitaleira, ele não condenou aquela que preparava a refeição, mas disse simplesmente: atenção, Maria escolheu a melhor parte. Também nós, tentemos isso, pois no interior de cada um de nós vive uma Marta e uma Maria: tentemos escolher sempre a melhor parte.


Exposição do Higoumeno Simeão
(mosteiro Saint-Silouane, Saint Mars de Locquenay, Sarthe)
Ao Institut des Hautes Études Islamiques, Paris, 13 de Maio de 1995.
Revista Contacts, no. 173, 1996.



[1] Lucas 4: 28-30.
[2] Cf. I Reis 19: 11-13.
[3] Cf. Lucas 18: 1; também I Tessalonicenses 5: 17.
[4] Mateus 6: 7.
[5] Lucas 10: 38-42.

domingo, 24 de abril de 2016

Vladimir Lossky - O dogma da Imaculada Concepção





A Virgem real, revestida dos verdadeiros títulos
De glória e de dignidades,
Não necessita de uma falsa glória.
(Bernard de Clairvaux)


Certas pessoas que se deixam enganar por uma semelhança de expressões verbais ou por uma falsa associação de ideias, são levadas a confundir o ensinamento da Igreja romana sobre a Imaculada Concepção de Maria com o dogma da concepção virginal de nosso Senhor Jesus Cristo. O primeiro desses ensinamentos, que representa uma inovação do catolicismo romano, se refere ao nascimento da própria Virgem, enquanto que o segundo, tesouro comum da fé cristã, diz respeito à Natividade de nosso Senhor Jesus Cristo, “que, por nós homens e para nossa salvação, desceu dos céus e se encarnou pelo Espírito Santo na Virgem Maria, e se fez homem[1]”.

A doutrina da Imaculada Concepção tem sua origem na devoção específica que alguns meios espirituais do Ocidente separado dedicavam à Virgem desde o fim do século XIII. Ela foi proclamada como “verdade revelada” em 8 de Dezembro de 1854 pelo Papa Pio IX, sem convocação de concílio (moto proprio). Esse novo dogma foi promulgado com a intenção de glorificar a Santa Virgem, que, como instrumento da Encarnação de nosso Senhor, se tornou Cooperadora de nossa redenção. Segundo essa doutrina, ela desfrutaria de um privilégio especial, o de ter sido isenta do pecado original desde o momento de sua concepção por seus pais Joaquim e Ana. Esta graça especial que a tornaria, por assim dizer, resgatada antes ainda da obra da Redenção, lhe teria sido concedida em previsão do mérito futuro de seu Filho. Para se encarnar e se tornar “Homem perfeito”, o Verbo divino teria necessidade de uma natureza humana não contaminada pelo pecado: seria preciso assim que o vaso no qual ele assumisse sua humanidade fosse puro de toda mancha, previamente purificado. Daí, segundo os teólogos romanos, a necessidade de conceder à Virgem, embora tendo ela sido concebida naturalmente e do mesmo modo como toda criatura humana, um privilégio especial, colocando-a fora da posteridade de Adão e liberando-a da falta original comum ao ser humano. Com efeito, segundo o novo dogma romano, a Santa Virgem teria participado, desde o seio de sua mãe, do estado primigênio do homem antes do pecado.

A Igreja ortodoxa, que sempre rendeu um culto especial à Mãe de Deus, exaltada acima dos espíritos celestes, “mais venerável que os querubins e incomparavelmente mais gloriosa do que os serafins[2]”, jamais admitiu – ao menos no sentido como o entende a Igreja de Roma – o dogma da Imaculada Concepção. A definição de “privilégio concedido à Virgem em vista do mérito futuro de seu Filho” repugna ao espirito da ortodoxia cristã; ela não pode aceitar esse formalismo exagerado que apaga o caráter real da obra de nossa Redenção, vendo aí não mais do que um mérito abstrato de Cristo, imputável a uma pessoa humana antes da Paixão e da Ressurreição, antes mesmo da Encarnação de Cristo – tudo por um decreto especial de Deus. Se a Santa Virgem pudesse desfrutar dos efeitos da Redenção antes da obra redentora de Cristo, não vemos porque esse privilégio não poderia se estender a outras pessoas, a toda a linhagem de Cristo, por exemplo, a toda esta posteridade de Adão, que contribuiu de geração em geração para preparar a natureza humana assumida pelo Verbo no seio de Maria. Com efeito, isso seria lógico e conforme a ideia que temos da bondade de Deus, e, no entanto, o absurdo de tal conjectura é chocante, de uma humanidade que desfrutasse de um “não-lugar” malgrado sua queda, salva previamente e que aguardasse, entretanto, a obra de sua salvação por Cristo! O que parece absurdo quando aplicado a toda a humanidade anterior a Cristo, não deixa de sê-lo quando se trata de um único ser humano. O contrassenso não faz senão aparecer mais claramente: a fim de a obra da Redenção pudesse se realizar para toda a humanidade, seria preciso que ela se realizasse previamente para um de seus membros. Dito de outra forma, para que acontecesse a Redenção, seria preciso que ela já existisse, e que alguém já usufruísse previamente de seus frutos.

Poder-se-ia sem dúvida responder a isso argumentando que é legítimo esse privilégio, uma vez que se trata de um ser excepcional como a Santa Virgem, predestinada a servir de instrumento para a Encarnação, e, por isso mesmo, para a Redenção. Numa certa medida isso é verdade: a Virgem que engravidou sem mácula do Verbo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, não foi um ser comum. Mas podemos separá-la assim de modo  tão absoluto, desde o momento de sua concepção por Joaquim e Ana, do resto da posteridade de Adão? Isolando-a assim, não corremos o risco de depreciar toda a história da humanidade antes de Cristo, de abolir o próprio sentido do Antigo testamento, que foi uma espera messiânica, uma preparação progressiva da humanidade para a Encarnação do Verbo? Com efeito, se a Encarnação não fosse condicionada senão pelo privilégio concedido à Virgem, “em vista do mérito de seu Filho”, a vinda do Messias ao mundo poderia ter se cumprido em qualquer outro momento da história; poderia Deus em qualquer momento, a partir de um decreto especial que só dependesse do arbítrio divino, criar o instrumento imaculado de sua Encarnação, sem levar em conta a liberdade humana nos destinos do mundo decaído? No entanto, a história do Antigo testamento nos ensina outra coisa: o sacrifício voluntário de Abrahão, os sofrimentos de Jó, a obra dos profetas, enfim, toda a história do povo eleito com suas ascensões e quedas, não constituem simplesmente um arranjo da prefiguração de Cristo, mas também uma prova incessante da liberdade humana que respondesse a um chamado divino, fornecendo a Deus, nesse encaminhamento lento e trabalhoso, as condições humanas necessárias à realização da promessa.

Toda a história bíblica se revela assim como uma preparação da humanidade para a Encarnação, para essa “plenitude dos tempos”, quando o anjo foi enviado para saudar Maria e recolher de seus lábios as palavras de consentimento da humanidade para que o Verbo se fizesse carne: “Eis a serva de Deus, faça-se em mim segundo a sua palavra[3]”.

Nicolas Cabasilas, um teólogo bizantino do século XIV, diz na sua homilia sobre a Anunciação: “A Encarnação foi não apenas obre do Pai, de sua Virtude e de seu Espírito, mas também obra da vontade e da fé da Virgem. Sem o consentimento da Imaculada, sem o concurso da fé, esse desígnio teria sido tão irrealizável como sem a intervenção das próprias três Pessoas divinas. Foi somente depois de havê-la instruído e persuadido, que Deus a tomou por Mãe, e dela emprestou a carne que ela concordou em emprestar. Do mesmo modo como ele encarnou voluntariamente, também quis ele que sua Mãe engravidasse livremente e de sua plena vontade[4]”.

SE a Santa Virgem tivesse sido isolada da humanidade por um privilégio de Deus que lhe conferisse previamente o estado do homem antes do pecado, então seu consentimento livre perante a vontade divina, sua resposta ao arcanjo Gabriela, perderia a ligação de solidariedade histórica com todos os demais atos que contribuíram para preparar, ao longo de séculos, a vinda do Messias: ter-se-ia rompido a continuidade com a santidade do Antigo Testamento, que se acumulou de geração em geração para cumprir-se finalmente na pessoa de Maria, Virgem toda pura cuja humilde obediência deveria constituir o último passo que, do lado humano, tornou possível a obra de nossa salvação. O dogma da Imaculada Concepção, tal como foi formulado pela Igreja romana, rasga essa santa continuidade dos justos ancestrais de Deus, que encontra seu termo final no ecce ancila Domini[5]. A história de Israel perde seu sentido intrínseco, a liberdade humana fica privada de todo seu valor e a própria vinda de Cristo, efetuando-se em virtude de um decreto arbitrário de Deus, recebe o caráter de uma aparição de deus ex machina[6], irrompendo na história humana. Tais são os frutos de uma doutrina artificial e abstrata que, pretendendo glorificar a Virgem, a priva de sua ligação íntima, profunda, com a humanidade e, conferindo a ela o privilégio de ser isenta do pecado original desde o momento de sua concepção, diminui singularmente o valor de sua obediência à mensagem divina no dia da Anunciação.

A Igreja ortodoxa rejeita a interpretação católica romana da Imaculada Concepção. No entanto, ela honra a Santa Virgem com os designativos de “imaculada”, “sem mancha”, “toda pura”. Santo Efrém o Sírio (século IV) chega a dizer: “Você, Senhor, assim como sua Mãe, são perfeitamente santos, pois você não possui nenhuma mancha, Senhor, e sua Mãe nenhum pecado”. Como será isso possível fora do enquadre jurídico (privilégio de isenção) do dogma da Imaculada Concepção?

Em primeiro lugar, é preciso distinguir entre o pecado original, enquanto falta cometida contra Deus e comum a toda humanidade desde Adão, e o próprio pecado, força do mal que opera na natureza da humanidade decaída; da mesma forma, é preciso distinguir entre a natureza comum a toda a humanidade e a pessoa própria a cada qual em particular. Pessoalmente, a Virgem foi estranha a toda mácula, a todo pecado, mas, me virtude de sua natureza, ela trazia com todos os descendentes de Adão a responsabilidade pela falta original. Isso pressupõe que o pecado, enquanto força do mal, não agia na natureza da Virgem eleita e progressivamente purificada pelas gerações de seus justos ancestrais e protegida nela pela graça, desde o momento de sua concepção.

A Virgem foi protegida de toda mancha, mas não isenta da responsabilidade pela falta de Adão, falta que não poderia ser abolida na humanidade decaída senão pela Pessoa divina do Verbo.

A Escritura nos fornece outros exemplos de assistência divina e de santificação no seio da mãe: Davi[7], Jeremias[8] e João Batista[9]. É neste sentido que a Igreja ortodoxa festeja, desde a antiguidade, o dia da Concepção da Santa Virgem (8 de Dezembro), assim como a festa da Concepção de São João Batista (24 de Setembro). É preciso notar, a esse respeito, que o dogma romano estabelece, no que se refere à concepção da Virgem por Joaquim e Ana, uma distinção entre “concepção ativa” e “concepção passiva”, sendo aquela obra natural da carne, ato dos pais geradores, e esta se referindo apenas ao efeito da união conjugal; o caráter de “Imaculada Concepção” só se aplica ao aspecto passivo da concepção da Virgem.

A Igreja ortodoxa, estranha a essa aversão diante de tudo o que se refere à natureza carnal, não conhece a distinção artificial entre “concepção ativa” e “concepção passiva”. Ao celebrar a concepção da natividade da Santa Virgem e de São João Batista, ela dá testemunho do caráter milagroso desses nascimentos, ela venera a casta união dos pais, e ao mesmo tempo a santidade de seus frutos. Tanto para a Virgem como para João Batista, essa santidade não reside num privilégio abstrato de não-culpabilidade, mas numa mudança real da natureza humana progressivamente purificada e reforçada pela graça nas gerações precedentes. Essa ascensão constante de nossa natureza, destinada a se tornar a natureza do Filho de Deus encarnado, prossegue na vida de Maria: através da festa da sua Apresentação no Templo (21 de Novembro) a Tradição testemunha essa santificação contínua, essa proteção exercida pela graça divina contra toda mancha do pecado. A santificação da Virgem é consumada no momento da Anunciação, quando o Espírito Santo a torna apta a uma Concepção imaculada, no sentido pleno da palavra: a Concepção virginal do Filho de Deus feito Filho do homem.

Nota que acompanhou a publicação do artigo – “Do dogma da Imaculada Concepção”.

Escritas há mais de doze anos (c. 1942) essas precisões a respeito do dogma romano da Imaculada Concepção deverão ainda ser modificadas e consideravelmente desenvolvidas. Esperando fazê-lo um dia, nos contentaremos neste momento, a fim de não retardar sua publicação neste ano, complementar o texto com um rápido esboço de dois aspectos que devem afastar certos mal-entendidos.

1)      Alguns ortodoxos, animados por um zelo pela verdade bastante compreensível, se veem na obrigação de negar a autenticidade da aparição da Mãe de Deus a Bernadette e se recusam a reconhecer as manifestações da graça em Lourdes, sob o pretexto de que esses fenômenos espirituais servem para confirmar o dogma mariológico estranho à tradição cristã. Essa atitude, acreditamos, não tem justificativa, porque provém de uma falta de discernimento entre um fato de ordem religiosa e sua utilização doutrinal pela Igreja romana. Antes de aplicar um julgamento negativo sobre a aparição de Nossa Senhora em Lourdes, e correr o risco de cometer um pecado contra a graça ilimitada do Espírito Santo, seria mais prudente (e mais justo) examinar com sobriedade de espírito e atenção religiosa as palavras escutadas pela jovem Bernadette, bem coo as circunstâncias nas quais essas palavras lhe foram dirigidas. Durante todo o período de suas quinze aparições em Lourdes, a Santa Virgem falou uma única vez para se apresentar. Ela disse: “Eu sou a Imaculada Concepção”. Ora, essas palavras foram pronunciadas no dia 25 de Março de 1858, na festa da Anunciação. O sentido direto fica claro para quem não está obrigado a interpretá-lo contra a sã teologia e as regras da gramática: a Concepção imaculada do Filho de Deus e o supremo título de glória da Virgem sem mácula.

2)      Os autores católicos romanos costumam insistir no fato de que a doutrina da Imaculada Concepção foi reconhecida, explícita ou implicitamente, por muitos teólogos ortodoxos, sobretudo nos séculos XVII e XVIII. As listas impressionantes dos manuais de teologia redigidos nessa época, a maior parte proveniente do sul da Rússia, testemunham de fato até que ponto o ensinamento teológico da Academia de Kiev e de outras escolas da Ucrânia, da Galícia, da Lituânia e da Bielorrússia foram afetados pelos temas doutrinais e devocionais próprios da Igreja de Roma. Ainda que defendendo heroicamente sua fé, os ortodoxos dessas regiões limítrofes sofreram inevitavelmente a influência de seus adversários católicos romanos, pois eles pertenciam ao mesmo mundo de civilização barroca, com suas formas particulares de piedade.

Sabemos que a teologia “latinizada” dos Ucranianos provocou um escândalo dogmático em Moscou pelo fim do século XVII a respeito da epiclese. O tema da Imaculada Concepção seria tanto mais assimilável na medida em que se exprimia mais pela devoção do que por uma doutrina teológica definida. É sob essa forma devocional que encontramos alguns traços da mariologia romana nos escritos de São Dimitri de Rostiv, prelado russo de origem e educação ucraniana. É o único nome de importância dentre as “autoridades” teológicas que são citadas habitualmente para mostrar que o dogma da Imaculada Concepção de Maria era aceito pelos ortodoxos. Não vamos aqui colocar, de nossa parte, uma lista (bem mais extensa, aliás) dos teólogos da Igreja de Roma, cujo pensamento mariológico se opunha resolutamente à doutrina transformada em artigo de fé há [mais de] um século. Basta citar um único nome, o de São Tomás de Aquino, para constatar que o dogma de 1854 vai contra tudo o que existe de mais são na tradição teológica do Ocidente separado. Devemos reler as passagens dos Comentários às Sentenças (I, 111, 3, I, art. 1 e 2; 4, I) e da Suma Teológica (IIIa, 27), bem como de outros textos nos quais o Doutor angélico trata da questão da Imaculada Concepção da Virgem: encontraremos ali exemplos de um juízo teológico sóbrio e preciso, de uma pensamento claro, que sabe utilizar os textos dos Padres ocidentais (Santo Agostinho) e orientais (São João Damasceno) para mostrar o verdadeiro título de glória da Santíssima Virgem e Mãe de nosso Deus Passados cem anos, essas páginas mariológicas de São Tomás de Aquino parecem seladas para os teólogos católicos romanos, obrigados a se conformar com a “linha geral”; ,mas elas não deixarão de ser um testemunho da tradição comum para aqueles ortodoxos que sabem apreciar o tesouro teológico de seus irmãos separados.


Vladimir Lossky – Em la fête de la Conception de la três Sainte Vierge Marie
Artigo publicado no:
Messager de l’Exarcat di Patriarcat Russe em Europe Occidentale, no. 20, Dez. 1954




[1] Símbolo da fé Niceno-constantinopolitano.
[2] Hino do rito bizantino.
[3] Lucas 1: 38.
[4] Patrologia Orientalis, XIX, 2.
[5] “Eis a serva do Senhor”.
[6] “Deus surgido da máquina”. Refere-se essa expressão ao recurso empregado no antigo teatro Grego para justificar a aparição de um deus no decurso de uma peça, cuja função seria a de dar uma solução arbitrária a algum impasse vivido pelos personagens.
[7] Cf. I Samuel, 16.
[8] Jeremias 1: 5.
[9] Lucas 1: 41.

sábado, 23 de abril de 2016

Antoine de Sourouge - O ícone da Mãe de Deus



Existem dois tipos de ícones da Mãe de Deus. O tipo mais conhecido é aquele que pode ser encontrado no Oriente e no Ocidente: a Virgem que segura o Menino. Essa imagem é mais do que uma representação ou um retrato da Mãe de Deus. Ela é uma imagem da Encarnação, uma afirmação da Encarnação e de sua realidade. Ela é uma afirmação da realidade e da verdade da maternidade da Virgem. Se observarmos o ícone com atenção, constatamos que a Mãe de Deus que segura o Menino jamais está olhando para ele. Em todos esses ícones, ela tampouco fixa o olhar, nem naqueles que a miram, nem ao longe: seus olhos grandes e abertos olham para dentro de si mesma. Ela está mergulhada numa intensa contemplação. Ela não olha para os objetos exteriores. Seu carinho se expressa pela timidez de suas mãos: ela segura o Menino sem apertá-lo contra ela. Ela o segura como quem segura algo de sagrado apresentado em oferenda, e todo o carinho, todo o amor humano estão expressos pelo Menino e não por sua Mãe. Esta permanece sendo a Mãe de Deus; ela trata o Menino não como “o pequeno Jesus”, mas como o Filho de Deus encarnado, tornado filho da Virgem; e é ele que, verdadeiro homem e verdadeiro Deus, manifesta todo o amor e todo o carinho de um homem e de um Deus àquela que é simultaneamente sua Mãe e sua criatura.

Outra imagem, esta muito rara, é a imagem da Mãe de Deus sozinha, sem a presença visível de Cristo. Penso aqui especialmente num ícone russo do século XVII. Nós nos vemos em presença de uma camponesa russa, sem véu, cujo planejamento emoldura um rosto quase quadrado. Ela tem dois grandes olhos que fixam não aquilo que se oferece ao seu olhar, mas o infinito ou profundezas insondáveis. Olhando mais atentamente, percebemos duas mãos, duas mãos cuja posição singular é um desafio à anatomia; elas estão ali não como elementos de uma obra realista, mas para traduzir aquilo que nem o rosto, nem as mãos, nem os olhos poderiam expressar sem deixar de exprimir algo ainda mais importante. São mãos de angústia. Enfim, no canto do ícone, quase invisíveis, destacando-se numa amarelo pálido sobre um fundo amarelo claro, uma colina e uma cruz nua. Esta Virgem é a Mãe que contempla a crucificação e a morte de seu filho único.

Quando na prece nos voltamos para a Mãe de Deus, deveríamos estar conscientes, com mais frequência do que normalmente estamos, de que toda prece à Mãe de Deus significa: “Mãe, eu matei seu Filho! Se você me perdoar, eu serei perdoado. Se você não me der seu perdão, nada poderá me salvar da danação”. E é verdadeiramente surpreendente que a Mãe de Deus, em tudo o que nos revela o Evangelho, nos tenha feito entender, nos concedendo a audácia de lhe dirigir essa oração, que não há nada além que possamos lhe pedir.

Ela é para nós a Mãe de Deus, aquela que introduziu o próprio Deus em nossa terra. É nesse sentido que insistimos na expressão “Mãe de Deus”, pois foi por meio dela que Deus se fez homem. Por intermédio dela ele nasceu em nossa condição humana. E para nós ela não é apenas o instrumento da Encarnação, mas também o do abandono pessoal a Deus: seu amor a Deus, sua disponibilidade para tudo o que Deus quis dela, sua humildade – no sentido que expusemos acima – foram tais, que Deus pôde nascer dela.

Um de nossos grandes santos e teólogos observou a esse respeito: “A Encarnação teria sido tão impossível sem o “eis aqui a serva do Senhor” da Virgem, quanto sem a vontade do Pai”. Descobrimos nesse mistério uma cooperação total entre ela e Deus. Em seu romance All Hallows Eve, o escritor inglês Charles Williams expressa admiravelmente, me parece, aquilo que eu quero sublinhar a propósito da Encarnação e da atitude da Virgem. Ele diz que o caráter único da Encarnação provém de que “um dia, uma virgem de Israel foi capaz de pronunciar o nome sagrado de todo seu coração, com todo seu espírito, com todo seu ser, com todo seu corpo, de tal sorte que nela o Verbo se fez carne”. Estas linhas constituem um excelente enunciado teológico que mostra perfeitamente o lugar da Virgem na Encarnação.

Nós amamos a Virgem Maria; talvez vejamos nela, de modo especial, o Verbo de Deus dizer, como exprime São Paulo: “É em minha fraqueza que se manifesta meu poder”. Vemos essa frágil virgem de Israel, essa frágil menina vencer o pecado, vencer o inferno, triunfar sobre todos os obstáculos pelo poder de Deus que estava nela. É por isso que, nos períodos de perseguição, por exemplo, quando o poder de Deus não se manifesta senão na fraqueza, que a bem-aventurada Virgem se ergue diante de nossos olhos, tão milagrosamente e com tanto poder. Se a ela foi possível vencer a terra e o inferno, ela será para nós um bastião, aquela que pode interceder por nós e nos salvar; e nós sublinhamos o fato de que ela está inteiramente de acordo com a vontade de Deus, que ela se encontra em total harmonia com o querer divino, dirigindo a ela esta invocação, que é reservada exclusivamente a Deus e à ela: “Salva-nos!”. Nós não dizemos: “Reze por nós.”.


Extraído de L’École de la prière, 1972.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Antoine de Sourouge - A ascese da oração



Quando estamos no estado de espírito apropriado, quando nosso coração está cheio de louvor, de amor ao próximo, quando falamos como disse São Lucas, do fundo pleno de nosso coração, orar não é problema; falamos com Deus livremente com palavras que nos são familiares. Mas se tivéssemos que deixar nossa vida de oração à mercê dos nossos humores, sem dúvida rezaríamos de tempos em tempos com fervor e sinceridade, mas durante longos períodos perderíamos todo contato fervoroso com Deus. É uma grande tentação delongar a prece até o momento em que nos sintamos levados a Deus, e considerar que toda prece ou todo impulso a Deus em outros períodos como falta de sinceridade. Mas sabemos por experiência que existem em nós muitos sentimentos que não sentimos a cada instante de nossas vidas; a doença ou o desânimo podem varrê-los do campo da consciência. Mesmo quando amamos profundamente, existem momentos em que não estamos conscientes disso, mesmo sabendo que esse amor vive em nós. O mesmo acontece com relação a Deus: existem causas, internas e externas, que às vezes obscurecem a consciência que temos de crer, de esperar e de amar a Deus. Em tais momentos devemos agir não em função daquilo que sentimos, mas daquilo que sabemos. Devemos ter fé naquilo que nos habita, mesmo que não o percebamos num dado instante. Devemos nos lembrar de que o amor ainda está lá, mesmo que ele não encha nosso coração de alegria ou de inspiração. E devemos nos postar diante de Deus lembrando-nos de que ele não cessa de nos amar, que ele está sempre presente, mesmo que não o sintamos então.

Quando nos sentimos frios e secos, quando nos parece que nossa prece é falsa, pura rotina, que devemos fazer? Seria melhor nos determos até que nossa prece recupere sua vida e seu calor? Mas quando saberemos se o momento chegou? Existe um grande perigo em nos deixarmos seduzir pelo gosto de uma perfeição na prece, da qual estamos tão afastados. Quando nossa prece carece de calor, ao invés de renunciar, devemos renovar com vigor nosso ato de fé, e perseverar nele. Devemos dizer a Deus: “Eu estou nas últimas, já não consigo rezar como se deve, aceite, ó Senhor, essa voz monocórdica e essas palavras que eu pronuncio, e venha em meu auxílio”. Faça da prece uma simples quantidade, se você se sentir impotente para imprimir-lhe qualidade. É certo que vale mais dizer um único Pai Nosso com a consciência de toda a profundidade dessa invocação, do que repetir dize vezes a Prece do Senhor; mas é precisamente isso que somos incapazes de fazer, às vezes. Que nossa prece seja “quantitativa” não significa que pronunciamos mais palavras do que de costume; mas sim que nos atemos à regra de oração que nos fixamos, aceitando o fato de que ela se resuma a uma certa quantidade de palavras repetidas. Como dizem os Padres, o Espírito Santo está sempre presente quando existe oração e, segundo São Paulo, “ninguém pode dizer ‘Jesus é o Senhor’ senão sob a ação do Espírito Santo[1]”. Quando chegar o momento, é o Espírito Santo que concederá à nossa prece fiel e paciente seu significado e sua profundidade de vida nova. Quando nos colocamos diante de Deus nesses momentos de vazio interior, é preciso usarmos de nossa vontade, orar por convicção senão por sentimento, em nome da fé que sabemos possuir, intelectualmente senão com o coração fervoroso.

Se em tais períodos a prece  nos parece ter um aspecto diferente, não é isso que acontece para Deus; como disse Julienne de Norwich[2]: “Ore no secreto de seu coração, mesmo que você pense que isso não o salvará, pois sempre será proveitoso, mesmo que você não o sinta, mesmo que você não veja, mesmo que você não se creia capaz. Pois na secura e na aridez, na doença e na fraqueza, é então que sua prece agrada [a Deus] mesmo que você pense que ela não o salvará, pois Deus conhece toda oração feita com fé”.

Nos períodos de secura, quando a prece se torna um esforço, nossa principal sustentação é a fidelidade, a determinação; é por um ato de vontade, que inclui essas duas coisas, que nos obrigamos, sem apelar para o sentimento, a nos postar diante de Deus e a falar, simplesmente porque Deus é Deus e nós somos suas criaturas. Seja o que for que experimentemos num momento dado, nossa posição deve permanecer a mesma: Deus continua sendo nosso criador, nosso salvador, nosso Senhor, aquele para quem marchamos, o objeto de nosso desejo e o único que pode preencher totalmente nossa espera.

Talvez pensemos ser indignos de orar, e até que não temos esse direito; isso também é uma tentação. Cada gota d’água, venha de onde vier, de um lago ou do oceano, é purificada ao longo do processo de evaporação; o mesmo acontece com nossa prece que sobe até Deus. Quanto mais nos sentimos abatidos, mais a prece é necessária, e é certamente isso que João de Cronstadt[3] sentiu, num dia em que orava, ameaçado por um demônio que lhe murmurava: “Hipócrita, como ousa orar com esse coração impuro, cheio de pensamentos que eu leio?”. João respondeu: “É justamente porque meu coração está cheio de pensamentos que desgostam e que eu combato, que eu oro a Deus”.

Quer se trate da Prece de Jesus ou de qualquer outra fórmula de oração, as pessoas costumam dizer: que direito tenho eu de fazê-lo? Como posso fazer minhas tais palavras? Quando dizemos preces que foram redigidas por santos, por homens de oração, e que são fruto de sua experiência, podemos estar certos de que, se estivermos suficientemente atentos, suas palavras se tornarão nossas, desfrutaremos dos mesmos sentimentos que os animaram e eles nos remodelarão pela graça de Deus, que responde aos nossos esforços. Com a Prece de Jesus a situação é, num sentido, mais simples, porque quanto pior for nossa situação, mais facilmente nos persuadiremos de que, diante de Deus, não podemos dizer senão kyrie eleison, “tem piedade”.

Com mais frequência do que ousamos confessar, oramos esperando alguma misteriosa iluminação, esperando que algo nos aconteça, que iremos conhecer alguma experiência apaixonante. Isso é um erro, o mesmo tipo de erro que cometemos frequentemente em relação aos demais, e que pode facilmente destruir uma relação. Abordamos uma pessoa e esperamos determinada reação; então, se não acontece reação alguma, ou se não é a que esperávamos, nos decepcionamos, ou passamos ao largo da realidade da resposta. Quando oramos, devemos nos lembrar de que o Senhor, que nos permite aproximarmos livremente dele, é igualmente livre em relação a nós; isso não significa que a liberdade que ele toma seja arbitrária, como o é a nossa, que nos torna amáveis ou desagradáveis segundo nosso humor; isso significa que ele não está obrigado a se revelar a nós apenas porque estamos ali e voltamos nosso olhar para ele. É muito importante lembrarmo-nos de que tanto Deus como nós somos livres para irmos ou não um ao encontro do outro; e essa liberdade é de uma importância capital, pois ela é característica de uma verdadeira relação pessoal.

Uma jovem, depois de um período de sua vida de oração no qual Deus parecia espantosamente próximo e familiar, subitamente perdeu contato com ele. Porém, mais do que a dor de havê-lo perdido, ela temia a tentação de escapar dessa ausência de Deus inventando uma falsa presença dele; pois a ausência e a presença reais de Deus são as melhores provas de sua realidade e do caráter concreto da relação implicada na prece.

Assim devemos também estar prontos para oferecer nossa oração e a receber aquilo que agradar a Deus. Esse é o princípio básico da vida ascética. Na luta para manter nosso olhar voltado para Deus e para combater tudo o que existe de opaco em nós, tudo o que nos impede de olhar na direção de Deus, não podemos ser nem totalmente ativos nem totalmente passivos. Não podemos ser ativos no sentido que, quando nos agitamos e fazemos esforços, não podemos nos içar até os céus ou fazer com que Deus desça até nós. Mas também não podemos permanecer passivos, e ficar plantados sem agir, pois Deus não nos trata como objetos; não haveria relação verdadeira se fôssemos simplesmente manipulados por ele.

A atitude ascética é feita de vigilância, da vigilância do soldado que, durante a noite, se faz tão silencioso quanto pode, tão atento e consciente quanto possível, de tudo o que se passa ao seu redor, e pronto para reagir correta e rapidamente a qualquer coisa que sobrevenha. De certo modo, ele permanece inativo, porque está ali em pé e nada faz; mas, de outro lado, ele é intensamente ativo, pois está acordado e totalmente concentrado. Ele escuta e observa com uma percepção aguda, pronto para tudo.

Exatamente o mesmo acontece na vida interior. Devemos nos colocar na presença de Deus no mais completo silêncio, concentrados, lúcidos e em paz. É possível que esperemos por horas, ou mais ainda, mas chegará o momento em que nossa vigilância será recompensada, pois algo haverá de acontecer. Mas, repetimos, se estivermos vigilantes, é para tudo o que puder nos acontecer, e não em relação a um evento específico. Devemos estar prontos para receber de Deus qualquer coisa que eles nos enviar. Depois de havermos orado por um certo tempo, se sentirmos um pouco de calor, teremos a tentação de voltar a Deus no dia seguinte esperando o mesmo resultado. Se ontem oramos com calor e lágrimas, com contrição ou com alegria, voltaremos à presença de Deus esperando ter de novo a mesma experiência, e, muitas vezes, por esperarmos ter com Deus o mesmo contato que ontem, perdemos o contato com ele hoje.

A aproximação de Deus pode suscitar em nós atitudes diversas; pode ser a alegria, o terror, a contrição e muitas outras ainda. Devemos lembrar de que o que vamos perceber hoje é uma coisa desconhecida para nós, porque o Deus que encontramos ontem não é o mesmo que irá se revelar a nós amanhã.

Extraído do livro do Metropolita Antoine Bloom de Sourouge, Prière vivante, 1971



[1] I Coríntios 12: 3.
[2] Mística inglesa que viveu entre 1342 e 1416, considerada santa pela Igreja Anglicana.
[3] Santo russo ortodoxo, que viveu entre 1829 e 1908.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Arquimandrita Sofrônio - CARÁTER UNIVERSAL DA PRECE DE JESUS



O nome de “Jesus” foi dado por revelação do Alto. Ele proveio da esfera divina, eterna, e de modo algum representa o produto da inteligência humana, apesar de ser expresso por uma palavra criada. A revelação é um ato, uma energia da Divindade; como tal, ela pertence a outro plano e transcende as energias cósmicas. Em sua glória supraterrestre, o Nome de “Jesus” é metacósmico. Quando pronunciamos o Nome de Cristo, pedindo a ele que entre em relação conosco, a ele que a tudo preenche, ele presta atenção às nossas palavras, em entramos em contato vivo com ele. Como Logos eterno do Pai, Cristo permanece com ele numa unidade indivisível, e assim Deus Pai, por intermédio de seu Verbo, entra em relação conosco. Cristo é o Filho único e coeterno do Pai, e é por isso que ele pôde dizer: “Ninguém chega ao Pai se não for por mim[1]”. O Nome “Jesus” significa “Deus Salvador”; neste sentido, ele pode ser atribuído a toda a Santíssima Trindade, e também a cada uma das Hipóstases separadamente. Mas, em nossa prece, utilizamos o Nome de “Jesus” exclusivamente como nome próprio do Deus Homem, e é para ele que se dirige a atenção de nosso intelecto. “Nele habita corporalmente toda a plenitude da Divindade[2]”, disse o apóstolo Paulo. Nele se encontra não apenas Deus, mas todo o gênero humano. Ao chamarmos pelo Nome de Jesus Cristo, nós nos colocamos diante da plenitude absoluta, do Ser primeiro e incriado e do ser criado. Para podermos penetrar no domínio dessa plenitude do Ser, devemos recebê-lo em nós de tal maneira que sua vida se torne também a nossa, e isso pela invocação de seu Nome em conformidade com seu mandamento.

Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador.
Aquele que se une ao Senhor forma com ele um só espírito[3].

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Não será inútil precisar que orar por intermédio do Nome de Jesus nada tem de automático, nem de mágico. Se não fizermos esforços para observar seus mandamentos, será em vão que invocamos seu Nome. Ele próprio nos adverte: “Naquele dia, muitos dirão: ‘Senhor! Senhor!, não foi por intermédio de seu Nome que profetizamos, por seu Nome que expulsamos os demônios, por seu Nome que fizemos numerosos milagres?’. E então eu lhes direi: “Não os conheço; afastem-se de mim, vocês que cometeram iniquidades[4]”. É essencial para nós que nos mostremos firmes e pacientes nas dificuldades, como Moisés[5] que parecia ver o invisível, e invocá-Lo com a consciência da ligação ontológica que une o Nome ao Nomeado, com a Pessoa de Cristo. Nosso amor por ele crescerá e se tornará perfeito na medida em que aumentar e se aprofundar no conhecimento relativo à vida do Deus amado. Enquanto estamos no plano humano, amamos a qualquer um, mencionamos seu nome com prazer e não deixamos de repeti-lo. Isso é incomparavelmente mais verdadeiro com o Nome do Senhor.

Quando uma pessoa a quem amamos se abre progressivamente para nós com todos os seus dons, ela se nos torna cada vez mais preciosa, e é com alegria que nela discernimos a cada instante novas qualidades. O mesmo se passa com o Nome de Jesus Cristo. Com interesse crescente descobrimos nesse Nome novos mistérios dos caminhos de Deus, e nós mesmos nos tornamos portadores da realidade que está contido ali. Graças a esse conhecimento vivo, adquirido pela própria experiência de nossa vida, entramos em comunicação com a eternidade: “A vida eterna é que eles O conheçam, a você o único e verdadeiro Deus, e que conheçam aquele que você enviou, Jesus Cristo[6]”.

Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de nós e desse mundo que é seu.

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O homem que verdadeiramente crê que os mandamentos evangélicos nos foram dados pelo Deus único e verdadeiro, extrai dessa fé as forças necessárias para levar uma vida à imagem de Cristo. O fiel não se permite aproximar da palavra do Senhor com um espírito crítico; ao contrário, ele submete a si próprio ao seu julgamento. Nesse caminho, ele se reconhecerá como pecador e se afligirá por seu estado lamentável. Se ele não sentir contrição por seus pecados, este é um sinal de que ele não alcançou ainda a visão do modelo segundo o qual o homem foi concebido desde antes da criação do mundo. Quem quer que experimente um real e profundo arrependimento não buscará as contemplações sublimes, mas estará inteiramente absorvido pela luta contra o pecado e as paixões. Uma vez que se liberte das paixões, ainda que parcialmente, horizontes espirituais banhados de luz, de cuja existência ele sequer suspeitava, se revelarão naturalmente e sem dificuldade aos seus olhos; seu intelecto e seus olhos serão elevados pelo amor divino. Então nossa natureza. Ferida pela queda, se renovará e diante de nós se entreabrirão as ´portas da imortalidade.

A via que conduz à verdadeira contemplação passa pelo arrependimento. Enquanto formos dominados pelas trevas do orgulho – orgulho que se opõe a Deus, que se opõe à Luz na qual não existe mais trevas – não seremos admitidos em sua eternidade. Ora, essa paixão é extremamente sutil e, por nós mesmos, não temos poder para denunciar sua presença em nós até o fim. Daí provém nossa ardente oração: “Seus pecados, quem os conhece? Dos que se ocultam em mim, purifique-me, e dos que me são estranhos, preserve seu servidor; se eles não prevalecerem sobre mim, então nada me reprovará, e estarei puro do grande pecado. Então as palavras de minha boca lhe serão agradáveis, e a meditação de meu coração estará sempre diante do meu Senhor, meu amparo e meu Redentor![7]”.

Nenhum de nós, nenhum dos filhos de Adão é capaz de ver distintamente seus pecados. Somente quando somos iluminados pela Luz divina podemos nos libertar dessas terríveis correntes. E enquanto isso não acontece, devemos gritar entre lágrimas:

Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador.

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No início de nossa ascese, não chegamos a captar os caminhos indicados por Deus; tentamos evitar o penoso enfrentamento com a fornalha da prova[8]. Podemos permanecer num lancinante estado de incompreensão, perguntando-nos então porque Deus, que é um Amor absolutamente perfeito, quis que o caminho que nos leva a ele seja tão terrível em dados momentos. Nós lhe suplicamos que nos revele o segredo dos caminhos da salvação. Pouco a pouco nosso intelecto se ilumina e nosso coração reúne as forças necessárias para seguir a Cristo e, por meio de nossos pequenos sofrimentos, nos associarmos aos seus. É-nos indispensável viver a dor e o medo, se quisermos descobrir as profundezas do ser e nos tornarmos capazes do amor que nos é ordenado: fora da experiência do sofrimento o homem permanece espiritualmente preguiçoso, meio adormecido, estranho ao amor de Cristo. Sabendo disso, quando nosso coração parece um vulcão extinto, devemos reaquecê-lo por meio da invo0cação do Nome de Cristo:

Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus vivo, tem piedade de mim.

E a chama do amor divino tocará nosso coração.

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Adquirir a Prece de Jesus implica adquirir a eternidade. Nos instantes, dentre todos, solenes e penosos, em que nosso organismo físico se desintegra, a prece “Jesus Cristo” se torna as vestes da alma; quando nossa atividade cerebral se interromper e se tornar difícil lembrar e pronunciar qualquer outra oração, o luminoso conhecimento de Deus, procedendo do Nome e intimamente assimilado por nós será apagado de nosso espírito. Depois de assistir ao fim de nossos pais, mortos em oração, temos a firme esperança de que a paz celeste que ultrapassa toda inteligência nos envolverá, a nós também, por todos os séculos.

Jesus, salve-me, Jesus, tem piedade e me salve, Jesus, salve-me, Jesus, meu Deus.

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O triunfo – silencioso e santo – de conhecer o Deus de amor desperta na alma uma profunda compaixão pelo conjunto da humanidade. Este “homem total” é minha própria natureza, meu corpo, minha vida e meu amor. Eu já não posso me despojar de minha “natureza”, me arrancar de meu “corpo” continuamente dilacerado pela violência que opõem, umas contra as outras, as “células” que na realidade formam um organismo único. Esse imenso corpo do “homem total” se encontra permanentemente em estado de doloroso desmembramento. O mal parece ser incurável. Mas também isso faz parte de nosso destino sobre a terra. Na oração, a alma chora até o esgotamento; e, no entanto, a salvação não virá senão quando, em sua liberdade, os próprios homens a desejarem. Amem seus inimigos: eis onde reside a cura da vida histórica e a salvação por toda a eternidade. Quem conheceu a força do amor por seus inimigos, este conheceu o Senhor Jesus, crucificado por seus inimigos; desde logo ele se apodera de sua ressurreição e Reino de Cristo Vencedor[9].

Senhor Todo Poderoso, Jesus Cristo, tem piedade de nós e deste mundo que é seu.

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Quando oramos num lugar silencioso e solitário, costuma acontecer de toda sorte de pensamentos inoportunos virem solicitar nosso intelecto, desviando sua atenção do coração. A prece parece estéril, porque o intelecto não participa da invocação do Nome de Jesus, e somente os lábios continuam a repetir mecanicamente as palavras. Mas quando terminamos nossa oração, habitualmente os pensamentos se afastam e reencontramos a calma. Esse cansativo fenômeno pode se explicar da seguinte maneira: pela invocação do Nome de Jesus nós colocamos em movimento todo um mundo secreto que se esconde em nós; podemos comparar a prece a um facho luminoso dirigido às regiões escuras de nossa vida interior e que nos revela as paixões ou as inclinações que pavimentam nossas profundezas secretas. Em tais casos, é preciso pronunciar o santo Nome com mais intensidade, para que o sentimento de arrependimento cresça em nossa alma.

Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador.

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Incorruptível, segundo o desígnio de Deus a nosso respeito, nosso espírito fenece na estreita prisão das paixões pecaminosas. Quanto mais profunda é a dor provocada em nós pela consciência de nosso afastamento de Deus em razão de nosso pecado, mais intenso será o impulso de nossa alma para Deus, e ela rezará com grande desejo e numerosas lágrimas, buscando ardentemente se unir a ele. Deus não despreza o coração contrito e vem a nós, fazendo com que o coração “profundo” do homem tome consciência de nossa afinidade para com ele, “sensivelmente” presente em nós e agindo em nosso interior. Isso mostra que também nosso corpo é capaz de perceber, da maneira que lhe é própria, o sopro do Deus Vivo.

Jesus, Filho do Deus Vivo, tem piedade de mim.

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Para o fiel, o Nome de Jesus Cristo é semelhante à alta muralha de uma fortaleza. Não será fácil para o inimigo penetrar aí com truques ou atravessando as pesadas portas de ferro, desde que nossa atenção não seja distraída por objetos exteriores. Orar por esse Nome dá à alma não apenas a força para resistir às influências perniciosas provenientes do exterior, mas ainda mais: a possibilidade de influenciar o meio no qual vivemos, saindo do fundo de nosso coração e reencontrando nossos irmãos em paz e com amor. Quando a paz e o amor comandados por Deus se aprofundam, eles se tornam a fonte de uma prece ardente pelo mundo inteiro. O Espírito de Cristo nos conduz pelos vastos espaços de amor que abarcam toda a criação. Nesse estado, a alma ora com grande emoção.

Senhor Jesus Cristo, nosso Deus e Salvador, tem piedade de nós e desse mundo que é seu.

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Deus jamais constrange a vontade do homem, mas, por outro lado, tampouco o homem pode obrigá-lo a fazer seja lá o que for. Em nossa prece, aspiramos a nos colocarmos diante de Deus na unidade e na integridade de nosso ser, e em especial com o intelecto unido ao coração. Para realizar essa bem-aventurada união das duas principais potências de nossa personalidade, não recorremos a nenhum procedimento artificial do tipo psicotécnico. De início habituamos nosso intelecto a perseverar atentamente na oração, como nos ensinaram os Padres, ou seja, a pronunciar o Nome de Jesus Cristo e as demais palavras da prece com grande atenção. Invocar com concentração o Nome divino e se esforçar a cada dia para viver de acordo com os mandamentos do Evangelho têm como efeito produzir a fusão do intelecto e do coração numa única atividade.

Em nossa ascese, jamais devemos nos apressar. É preciso absolutamente descartar a ideia de fazer o máximo nos menores intervalos de tempo. A experiência secular mostra que a união do intelecto com o coração, realizada por meio de uma psicotécnica, nunca dura muito tempo; e, o que é mais grave, ela não une nosso espírito ao Espírito do Deus Vivo. Ora, estamos diante do problema da salvação eterna, no seu sentido mais profundo. Para tanto, toda nossa natureza deve ser renovada: de carnal, ela deve se tornar espiritual. E quando o Senhor nos considerar capazes de receber sua graça, ele não tardará em vir em resposta à nossa humilde invocação. Talvez sua vinda nos absorva de tal maneira que nosso coração e nosso intelecto fiquem inteiramente ocupados apenas com Ele: então, esse mundo visível dará lugar a uma realidade de outra ordem, superior. O intelecto cessa de pensar de modo discursivo: ele se torna inteiro atenção. O coração entra num estado difícil de descrever: ele se vê penetrado pelo temor, mas por um temos reverente, vivificante. Simultaneamente, retemos seu sopro. Deus preenche tudo, e o home inteiro – o espirito-intelecto, o coração-sentimento, e o próprio corpo – não mais vivem senão por Deus.

Senhor Jesus Cristo nosso Deus, tem piedade de nós e desse mundo que é seu.

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O Nome divino, revelado aos homens, serviu de ligação entre Deus e nós. É através do Nome de Deus, ou, melhor dizendo, pelos Nomes divinos, que se realizam na Igreja todos os sacramentos. Toda atividade deve ser cumprida ”em Nome de Deus”. Pela invocação do Nome Altíssimo, sua presença se torna viva, continuamente perceptível; enquanto nossa obra se faz segundo a vontade do Senhor, nosso coração está em paz, mas todas as vezes que nos desviamos da verdade, ele experimenta uma certa angústia. Assim, portanto, por meio da prece, operamos um vigilante controle interior sobre cada movimento de nosso espírito; nenhum pensamento, nenhuma palavra lhe escapa. Essa consequência da prece incessante permite reduzir nossos pecados ao mínimo.

Senhor Jesus Cristo, Filho e Verbo do Deus Vivo, tem piedade de nós.

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“Queira, Senhor, nesse dia guardar-nos sem pecado”. É assim que oramos pela manhã. Mas somente a sutil presença em nós do Espírito divino dá ao nosso espírito a possibilidade de permanecer numa vigilante sobriedade interior. “Ninguém pode dizer: ‘Jesus é o Senhor’, se não for pelo Espírito Santo[10]”. Mais uma vez nos damos conta de que é pela invocação mental do Nome do Senhor que nos protegemos do pecado em nossas palavras e em nossas ações: “Senhor Jesus, você que é a Luz que veio para salvar o mundo, ilumine os olhos espirituais de meu coração, para que eu seja digno de caminhar diante de sua Face sem vacilar, como à luz do dia[11]”.

Para que a prática da oração alcance os resultados de que falam com tanto entusiasmo nossos pais e nossos mestres, é indispensável seguirmos seus ensinamentos. A primeira condição consiste em crer em Cristo como Deus e Salvador; a segunda, de se reconhecer como pecador em vias de perdição. Essa consciência pode atingir tamanha profundidade que o homem chega a se sentir pior do que todos os outros; e isso lhe aparece como uma evidência, não em razão de seus atos exteriores, mas ao constatar seu afastamento de Deus e ao se ver como portador potencial do mal sob todas as suas formas.

Quanto mais nos humilhamos num doloroso arrependimento, mais rapidamente nossa prece alcançará a Deus. Mas quando perdemos a humildade, nenhuma ascese poderá nos ajudar. A presença do orgulho em nós, e do julgamento de nossos irmãos, o desprezo e a raiva de nosso próximo nos projetam para longe do Senhor.

Nós nos aproximamos de Deus como os últimos dentre os pecadores. Nós nos condenamos sinceramente em tudo. Não imaginamos nada, não buscamos nada senão o perdão e a misericórdia. Esse é o nosso constante estado interior. Suplicamos ao próprio Deus que nos ajude a não contristarmos o Espírito Santo com nossas miseráveis paixões, a não causar nenhum mal a nosso irmão nem a qualquer homem que seja. Nós nos condenamos como indignos de Deus aos tormentos do inferno. Não esperamos nenhum dom particular do Alto, e só aspiramos com todas as nossas forças a captar o sentido dos mandamentos de Cristo e viver de acordo com eles. Nós imploramos:

Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de nós e desse mundo que é seu.

***
E Deus nos escuta, e a salvação se aproxima de nós. “Então, quem quer que invoque o Nome do Senhor [num estado de espírito semelhante ao seu] será salvo[12]”.

“Arrependam-se[13]”. Devemos levar muito a sério esse apelo de Cristo, mudar radicalmente nosso modo de vida interior e nossa visão do mundo, nossa atitude para com os homens e para com todo fenômeno que surge no ser criado: não matar nossos inimigos, mas vencê-los por meio do amor. Lembrarmo-nos de que o mal absoluto não existe; o único absoluto é o Bem sem origem. E esse Bem nos ordenou: “Amem a seus inimigos (...) façam o bem a quem os odeia (...) sejam perfeitos, como seu Pai celeste é perfeito[14]”. Deixar-se imolar por seus irmãos é o melhor modo de arrancá-los da escravidão do mentiroso – o Diabo – e de preparar sias almas para acolherem a Deus que deseja que todos os homens sejam salvos. Não existe homem em quem não esteja presente, numa ou noutra medida, a luz, pois Deus iluminou “todos os homens que vieram ao mundo[15]”. O mandamento de não resistir a quem faz o mal[16] é a forma mais eficaz da luta contra o mesmo mal. Quando opomos à violência os mesmos meios que utiliza aquele que comete a injustiça, o dinamismo do mal aumenta no mundo. O assassinato dos inocentes desloca, muitas vezes de maneira imperceptível, as forças morais da humanidade do lado do bem pelo qual morreu o inocente. Não é esse o caso quando de dois lados intervém a mesma tendência má em dominar. A vitória obtida pela força física não dura eternamente. Luz santa e pura, Deus se retira dos criminosos; estes se separam da única fonte de vida, e morrem: “Não se vinguem por si próprios, bem amados, mas deixem agir a cólera de Deus, pois está escrito: ‘Minha é a vingança, minha é a retribuição, diz o Senhor’ (...) Assim, não se deixe vencer pelo mal, mas supere o mal com o bem[17]”.

Os homens portadores de uma verdade apenas relativa lutam muitas vezes com fanatismo para assegurar o triunfo de suas ideias; dessa forma eles destroem a integridade do ser e, no fina de contas, levam tudo à ruína. Em sua cegueira, eles absolutizam o aspecto positivo de suas doutrinas políticas e estão prontos a eliminar todos os que gostariam de ver o mundo se edificar sobre princípios melhores, mais humanos e, certamente e acima de tudo, sobre os mandamentos de Cristo, levado à morte por causa de sua predicação de amor. No mundo contemporâneo, as palavras evangélicas de Cristo se revestem de uma atualidade especial: “Ouvirão falar de guerra e de rumores de guerras; não fiquem perturbados, pois é preciso que essas coisas aconteçam (...); vocês [os cristãos] serão odiados por todas as nações, por causa do meu Nome (...). E porque a iniquidade só fará crescer, a caridade da maioria esfriará (...) e então chegará o fim[18]”.

Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de nós e desse mundo que é seu.

***
“Então o Senhor Deus modelou o homem com o barro do solo, e lhe insuflou nas narinas um sopro de vida, e o home se tornou um ser vivo[19]”. Nós somos atraídos a Ele, sedentos por estarmos eternamente unidos a Ele; e Ele próprio nos aguarda com amor. A sede de Deus é uma nota permanente de nossa existência terrestre; nós nos preparamos mesmo para morrer com ela. O próprio Cristo, antes de morrer sobre a cruz, gritou: “Tenho sede[20]”. Ele teve fome[21], ele teve sede, ele sofreu angústia[22], para que nós conhecêssemos o Pai. E nós languescemos sobre a terra, oprimidos por esse interminável e monstruoso espetáculo de violências, assassinatos e ódio; temos sede de nos dirigirmos ao Pai, e invocamos o Nome de seu Filho único:

Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de nós.

***
A grande desproporcionalidade da tarefa que nos aguarda nos inspira o temor. Foi-nos dito: “O Reino dos céus sofre violência, e os violentos se apropriam dele[23]”. Uma ascese prolongada nos mostrará que na revelação evangélica tudo pertence a um plano diferente, superior. A ofuscante Luz da Divindade se reflete em nosso mundo sob a forma de mandamentos: “Amem seus inimigos (...). Sejam perfeitos como seu Pai celeste é perfeito[24]”. Somente a morada em nós Daquele que nos deu seus mandamentos nos ajudará a realizar tudo o que nos foi ordenado. Daí vem nosso grito:

Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus Vivo, tem piedade de nós.

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A invocação do Nome do Senhor nos une progressivamente a ele. Isso já se realiza em parte quando aquele que ora ainda não compreende “quem é Ele[25]” e ainda não percebe claramente o poder de santificação que emana do Nome. Todo progresso ulterior, no entanto, está estreitamente ligado ao reconhecimento cada vez mais lúcido de nosso estado de pecado, que chega até o desespero. Então, com energia redobrada, invocamos o Nome maravilhoso:

Jesus, meu Salvador, tem piedade de mim.

***
Em que angústia vivem as pessoas que se sabem mortalmente atingidas por uma enfermidade incurável, como um câncer, por exemplo! É com o mesmo horror, e talvez maior ainda, que alguns sentem a presença em si das paixões pecaminosas que os afastam de Deus. Estes se reconhecem como sendo “os piores dentre todos”; ele se veem realmente nas trevas do inferno. Então, neles se concentra uma enorme energia de prece e arrependimento. Este último pode atingir tamanho grau que seu intelecto se imobiliza e não consegue encontrar outras palavras senão:

Jesus, salve a mim que sou pecador.

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 É salutar que se desenvolva em nós uma aversão ao pecado e que ela se transforme em raiva de si mesmo. De outro modo, nós nos arriscamos a nos acomodar e nos habituar ao pecado; este possui inúmeras facetas e, ao mesmo tempo, é tão sutil que na maior parte dos casos sequer percebemos sua presença em tudo o que fazemos, mesmo naquelas ações nossas que são boas em aparência. É uma ascese difícil, mas também bela, a de mergulhar nosso intelecto soberano no centro invisível de nossa personalidade com a invocação do Nome de Jesus Cristo. Sem fé nele, ninguém é capaz de discernir o veneno mortal que opera em nós. Graças a essa luta contra o pecado que vive em nós, descobrimos não apenas as profundezas de nosso próprio ser, como ainda os misteriosos abismos da vida cósmica. Então nosso espírito dará as costas aos eventos superficiais e sem importância da vida de todos os dias, e, horrorizado consigo mesmo, reconhecerá a santa força de outra oração, de outro plano, clamando:

Senhor Jesus, meu Salvador, tem piedade, tem piedade de mim, o maldito.

***

Podemos falar da prece ao Nome de Jesus Cristo nos próprios termos da Sagrada Escritura e das obras dos Santos Padres. Mais precisamente: ela é um fogo que devora as paixões[26]; ela é uma luz que ilumina nosso intelecto, tornando-o perspicaz e capaz de discernir aquilo que acontece ao longe e tudo o que se passa dentro de nós. Podemos com justiça aplicar a ela as palavras da epístola aos Hebreus: “Ela é mais eficaz e incisiva do que uma faca de dois gumes, ela penetra até o ponto de divisão da alma e do espírito, das articulações e da medula, ela pode julgar os sentimentos e os pensamentos do coração. Não existe nada nas profundezas de nosso espírito que permaneça invisível diante dela, e à sua luz tudo está nu e a descoberto[27]”. A prática dessa oração nos faz encontrar várias potências escondidas no cosmos; ela provoca contra nós uma luta encarniçada de parte dessas “potências cósmicas”, ou melhor, desses “regentes do mundo das trevas, dos espíritos do mal que habitam os espaços celestes[28]”. A vitória, porém, pode ser conseguida por meio de um arrependimento que chega até a “raiva de si mesmo[29]”. O modelo dessa batalha está descrito no Apocalipse de São João: “Eles venceram [o Diabo ou Satanás, o sedutor do mundo inteiro] pelo sangue do Cordeiro e pela palavra da qual deram testemunho, porque eles desprezaram suas vidas até o ponto de morrer[30]”.

Acompanhada de um ardente arrependimento, essa prece eleva o espírito do homem às esferas situadas fora do alcance da “sabedoria dos sábios deste século[31]”. É temerário falar a seu respeito: fazendo-nos primeiro passar pelos abismos de trevas ocultos em nós, ela a seguir une nosso espírito ao Espírito divino e nos permite já aqui em baixo viver a santa eternidade. Em todos os séculos, os Padres ficaram estupefatos com a grandeza desse dom concedido ao mundo decaído.

Senhor Jesus Cristo, único Santo, único verdadeiro Salvador de todos nós,
tem piedade de nós e desse mundo que é seu.

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A majestade do mundo criado nos encanta, mas, ao mesmo tempo e com mais força ainda, nosso espírito é atraído para a incorruptível beleza do Ser divino e sem origem. Com uma clareza impressionante, o Senhor Jesus nos permitiu entrever a luz supracósmica do Reino. A contemplação desse esplendor nos liberta das consequências da queda, e a graça do Espírito Santo restaura em nós a imagem original e a semelhança de Deus, manifestadas em nossa carne por Cristo. Assim é que agora a invocação de seu Nome se torna nossa prece perpétua:

Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de nós e desse mundo que é seu.

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Em seu último florescimento, essa prece nos une inteiramente a Cristo. Não obstante, a hipóstase humana não é destruída, não se dissolve no Ser divino como uma gota d’água no oceano. A pessoa humana é indestrutível por toda a eternidade. “Eu sou (...) a verdade e a vida, Eu sou a Luz do mundo[32]”. O Ser, a Verdade, a Luz não são conceitos abstratos, essências impessoais, “o que”, mas “quem”. Onde não existe um modo pessoal de ser, tampouco existem vivos; e menos ainda poderá existir aí bem ou mal, luz ou trevas. Lá, de modo geral, nada pode existir: “Nada do que existe foi feito sem ele, pois nele estava a vida[33]”.

Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus Vivo, tem piedade de nós e desse mundo que é seu.

***
“Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aqueles a quem o Filho quiser revelá-Lo[34]”. Mas nós conhecemos o Filho na medida em que permanecemos no espírito de seus mandamentos. Sem ele não temos forças para nos erguer à altura do que nos é ordenado, pois nos mandamentos se manifesta a vida do próprio Deus. É daí que vem o grito que lançamos ao alto para ele:

Senhor Jesus Cristo, Filho coeterno do Pai, tem piedade de mim!
Vem e habita em mim com o Pai e o Espírito Santo, segundo a sua promessa...
Senhor Jesus, tem piedade de mim, pecador.

***
O Nome de “Pai” era conhecido no Velho Testamento, mas era contemplado dentro das trevas do desconhecimento. Foi Cristo que, de modo extremamente correto, nos fez conhecer nele o Pai; foi ele quem nos revelou as verdadeiras dimensões de tudo o q eu havia sido dado antes dele por Moisés e os Profetas. “Eu estou no Pai, e o Pai está em mim”; “Meu Pai e eu somos um”; “Eu os fiz conhecer seu Nome, e os farei conhecê-Lo [até a plenitude], para que o amor com o qual você me amou esteja neles, e eu neles”. O conhecimento do Nome de “Pai” é também o conhecimento de seu amor paternal por nós. Quando invocamos o Nome de Jesus, somos introduzidos no domínio da Vida divina, e o Pai, o Filho e o Espírito Santo nos são dados neste Nome:

Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de nós e deste mundo que é seu.

***
Invocar o Nome de Jesus, se possível com a plena consciência daquilo que ele contém, significa que já estamos realmente unidos ao Deus Trinitário. Esse Deus se revelou a nós em sua nova relação para com o homem: não mais como Criador, mas como Salvador do mundo, como Luz da Verdade e da verdadeira eternidade.

Senhor Jesus Cristo, Filho do Pai eterno, tem piedade de nós.

***
As teologias do Nome e do ícone têm pontos comuns. Ao contemplarmos um ícone de Cristo, entramos espiritualmente em contato pessoal com Ele. Nós confessamos sua aparição na carne: ele é Deus e homem; inteiramente homem, e perfeita semelhança com Deus. Vamos além das cores e das linhas, e penetramos até o mundo do intelecto, do espírito. Da mesma forma, na invocação do Nome, não nos detemos nos sons proferidos, mas vivemos o sentido. Os sons podem variar em função da diversidade das línguas nas quais oramos, mas o conteúdo – o conhecimento encerrado no Nome – permanece imutável.
Senhor Jesus Cristo, salve-nos.

***
Conscientes da adoção filial por Cristo que nos foi prometida, glorificamos aquele que nos criou. Invocando o Nome de Jesus Cristo, deixamos ressoar em nos o poder e a majestade que lhe são próprias; possa ele destruir as raízes do pecado que vive em nós; que ele faça brotar a chama de seu amor em nossos corações de pedra; que ele nos dê luz e inteligência; que ele nos faça comungar de sua glória; que por intermédio de seu Nome, a paz que ultrapassa toda inteligência permaneça em nós[35]. Quando houvermos passado longos anos a pedir por esse Nome, que Deus nos conceda conhecer a plenitude da revelação contida nele: “Conselheiro maravilhoso, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz, Senhor de Sabaó[36]”.

Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus Vivo, tem piedade de nós e deste mundo que é seu.

***
Devemos invocar o Nome divino com humildade. Aqui, Cristo, Mestre do mundo, se encarnou, e como homem ele se rebaixou até a morte na Cruz. É por isso que seu nome foi exaltado mais acima de todo nome que se possa nomear, não apenas neste mundo, mas ainda no mundo por vir. O Pai o fez sentar-se à sua direita nos céus, e o constituiu como Cabeça da Igreja, que é seu Corpo, a plenitude daquele que preenche tudo em todos[37].

Senhor Jesus Cristo, nosso Deus, tem piedade de nós,
de sua Igreja e desse mundo que é seu,
pelas preces de Mãe de Deus, dos santos Apóstolos
e de todos os Santos desde a origem dos séculos.

***
A verdadeira libertação começa quando aceitamos plenamente e sem dúvidas a Revelação “Eu sou Aquele que é[38]”, “Eu sou o alfa e o ômega, o Primeiro e o Último[39]”. Deus é o Absoluto pessoal, Trindade consubstancial e indivisível. Sobre essa Revelação se edifica toda nossa vida cristã. Esse Deus nos chamou do não-ser para esta vida. O conhecimento do Deus Vivo e a penetração no mistério dos caminhos da criação nos libertam da trevas de nossas próprias ideias (que vêm de baixo) referentes ao Absoluto, e nos salvam da vertigem, inconsciente mas com certeza fatal, de abandonar toda existência. Fomos criados com o objetivo de sermos associados ao Ser divino, àquele que É verdadeiramente. Cristo nos indicou o caminho: “A porta é estreita e apertado é o caminho que conduz à Vida[40]”. Captando as profundidades da sabedoria do Criador, aceitamos os sofrimentos por meio dos quais se adquire a eternidade divina. E quando sua Luz nos cobre com sua sombra, unimos em nós a contemplação das duas extremidades do abismo: de um lado as trevas do inferno e de outro o triunfo da vitória. Somos existencialmente introduzidos no domínio da Vida incriada. O inferno perde seu império sobre nós. Nos é dada uma graça: viver o estado do Logos incriado, de Cristo descendo aos infernos como Vencedor. Então, pelo poder de seu amor, abraçamos a criatura inteira em nossa prece:

Jesus, Mestre Todo-Poderoso e Bom, tem piedade de nós e desse mundo que é seu.

***
A revelação do Deus pessoal confere a tudo esse caráter admirável. A vida não é um processo cósmico qualquer submetido ao determinismo, mas Luz do indescritível amor das Pessoas divinas e das pessoas criadas, movimento livre dos espíritos pessoais cheios da consciência lúcida de tudo o que existe e de si próprios. Fora disso, nada tem sentido, tudo está morto. Mas nossa prece se torna o encontro vivo de nossa pessoa criada com a Pessoa divina, ou seja, absoluta, e esse encontro se expressa pela nossa invocação do Verbo do Pai:

Senhor Jesus Cristo, Verbo coeterno do Pai sem começo, tem piedade de nós,
habita em nós e nos salve, assim como todo esse mundo que é seu.

***
Quando começamos a compreender o sábio desígnio concebido para nós por nosso Deus e Criador, nosso amor por ele é estimulado, e quando oramos sentimos uma inspiração nova. A contemplação da Sabedoria divina que se reflete na beleza do mundo dá ao nosso espírito um novo impulso que nos desenraiza de todo o criado. Esse rapto não é um voo filosófico no domínio das ideias puras, por cativantes que estas possam nos parecer, nem uma criação artística no domínio da poesia, mas sim o esvaziamento de todo o nosso ser pela energia de uma vida até então desconhecida. A leitura do Evangelho, na qual começamos a discernir o Ato da auto-revelação de Deus, eleva nosso espírito acima de tudo o que foi criado. Nisso consiste a entrada na graça da teologia, concebida não como uma ciência humana, mas como um estado de comunhão com Deus. Não submetemos a palavra de Deus ao julgamento de nosso limitado entendimento, mas julgamos a nós mesmos à luz do conhecimento que ela nos concede. Depois disso, é natural que aspiremos a fazer da palavra evangélica o conteúdo de toda nossa existência; isso nos ajuda a nos libertarmos do império das paixões, e, com a força do Deus-Jesus, obtermos a vitória sobre o mal cósmico dissimulado nas profundidades do nosso ser. Então reconhecemos realmente que ele, Jesus, é, no sentido próprio, o único Deus Salvador, e que a prece cristã se realiza pela incessante invocação de seu nome:

Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de nós e desse mundo que é seu.

***
Em nosso estado de morte espiritual, perdemos o sentido do pecado, e agora, sem Cristo e a graça do Espírito Santo, não podemos mais enxergá-lo em nós. Ora, em sua essência, o pecado é sempre uma transgressão contra o amor divino. Tal transgressão não é possível a menos que o “Eu sou”, ou seja, a menos que o Deus absoluto seja pessoal e que nossas relações com ele sejam também profundamente pessoais. Não existe outra fé ou religião na qual o mistério do pecado seja revelado dessa maneira. Eis como, cheio do Espírito Santo, orava São Efrém o Sírio: “Permita-me ver meus pecados”. Todos os Padres disseram que ver seus pecados é algo maior do que ver as aparições dos Anjos. Portanto, também nós, conhecendo o que está oculto desde a origem dos séculos, oramos com humilde enternecimento do coração:

Senhor Jesus Cristo, tem piedade do pecador que eu sou, pois eu caí.

***
“Grande é o mistério da piedade: [Deus] se manifestou na carne, justificado no Espírito, visto pelos Anjos, proclamado entre os pagãos, crido no mundo, e levantado em glória[41]”. Somos todos herdeiros de Adão, que se deixou arrastar por Lúcifer em sua queda. A ideia da deificação é própria ao ser criado à imagem de Deus, mas toda a questão se resume em saber por quais meios é possível alcançar esse objetivo, realizar essa tarefa. Se somos seres criados e não o Ser em si e sem origem, é absurdo supor que poderemos nos tornar “iguais a Deus” evitando-o. “A manifestação de Deus na carne”, tal é o sentido de nossa vida. Se a esperança da deificação está enraizada no mais profundo de nós, a via que conduz até aí consiste em tornar nossa a vida do Deus que se mostrou a nós na nossa forma de existência; sim, devemos assimilar sua palavra, seu Espírito, nos tornarmos semelhantes a ele em todo o nosso comportamento. Quanto mais semelhantes a ele formos neste mundo, mais completa e perfeita será a nossa deificação. Novamente, é o apóstolo Paulo quem diz: “Aquele que se une [pela prece e a comunhão] ao Senhor, forma com ele um só espírito[42]”. E assim clamamos:

Senhor Jesus Cristo, Filho único do Pai, nossa única esperança,
conduze-nos consigo e por você ao Pai...
tem piedade de mim, pecador.

***
Viver eternamente no seio da Trindade, este é o sentido do chamado evangélico. Mas esse Reino “sofre violência, e são os violentos que se apoderam dele[43]”. É preciso se obrigar, pois “a porta é estreita e apertado é o caminho que conduz à Vida[44]”. Desde que nós, cristãos, não estamos de acordo em seguir “aqueles que não encontram” porque não procuram[45], produzem-se inevitavelmente conflitos: tornamo-nos indesejáveis para os filhos deste mundo – esta é a sorte daqueles que amam a Cristo. Quando o Senhor está conosco, todos os sofrimentos da terra não nos parecem terríveis, porque com ele passamos da morte para a vida. Mas não podemos evitar passar horas ou períodos em que nos sentimos abandonados por Deus: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?[46]”. E se, além disso, nos sentimos repudiados pelos homens, nosso desespero poder tomar uma forma aguda; então é hora de invocarmos Aquele que passou, ele próprio, por essas provas, e que pode, por conseguinte, vir em socorro daqueles que estão sendo testados[47]:

Senhor Jesus, assim como você salvou a Pedro, salva-me também, pois me afogo[48].

***
Na ascese da oração cada qual vai tão longe quanto suas capacidades o permitem. Não é fácil encontrar por si só o limite das próprias forças. Os que são guiados pelo Espírito Santo jamais cessam de se condenar, considerando-se como indignos de Deus. Mas no momento em que o desespero se torna insuportável, eles se afastam por um tempo da borda do precipício onde se mantinham espiritualmente, para conceder algum repouso ao seu psiquismo e ao seu corpo. A seguir eles retornam à beira do abismo. Porém, mesmo quando repousa, ou durante seus períodos de calma, o asceta sempre sente nas profundezas de seu coração uma chaga que o impede de se entregar a pensamentos de orgulho. A humildade ascética se enraíza sempre primeiro na sua alma e se torna por assim dizer parte de sua substância. As aflições e as enfermidades são características de nossa peregrinação terrestre. Sem elas, nenhum filho de Adão poderia se manter humilde. Mas aqueles que perseverarem até o fim serão considerados dignos de receber o dom da “humildade de Cristo”, a respeito da qual o estaroste Silouane disse ser “indescritível”, porque ela pertence a outro plano, mais elevado, do ser. A aquisição deste dom é possível mediante a constante lembrança de Cristo, e pela prece dirigida a ele:

Senhor Jesus Cristo, Deus Santo e Grande, ensina-me você mesmo sua humildade...
escute minha prece e tem piedade de mim, pecador.

***
Assim, é apenas através do fogo do arrependimento que nossa natureza é reformulada, é pela prece acompanhada de lágrimas que são exterminadas as raízes do pecado, é pela invocação do Nome de Jesus que nosso ser é purificado, regenerado e santificado: “Agora vocês são puros, por causa da palavra que eu lhes anunciei. Permaneçam em mim...”. Mas, como permanecer? Meu Nome lhes foi dado e em meu Nome o Pai lhes dará tudo o que vocês pedirem: “Aquilo que pedirem ao Pai em meu Nome, ele lhes concederá[49]”.

Senhor Jesus Cristo, único verdadeiramente sem pecado, tem piedade de mim, pecador.

***
Nossos Pais nos ensinaram a orar pelo Nome de Jesus sem modificar com frequência a fórmula da oração. Mas, por outro lado, de tempos em tempos precisamos renovar nossa atenção e também intensificar nossa prece quando o intelecto se eleva a contemplações teológicas, ou quando nosso coração se dilata, a fim de poder abraçar o mundo inteiro. Isso nos permite recobrir com o Nome de Jesus Cristo todos os eventos, interiores ou exteriores. E assim essa prece maravilhosa engloba a tudo e se torna universal.


Extratos do livro do Arquimandrita Sofrônio,
Sua vida é a minha, Éditions du Cerf, 1981.



[1] João 14: 6.
[2] Colossenses 2: 9.
[3] I Coríntios 6: 17.
[4] Mateus 7: 22-23.
[5] Cf. Hebreus 11: 27.
[6] João 17: 3.
[7] Salmo 18: 13-15.
[8] I Pedro 4: 12.
[9] Cf. João 17: 21-23; 11: 51-52; Efésios 2: 14-17; I Coríntios 3: 22-23.
[10] I Coríntios 12: 3.
[11] Cf. João 11: 9-10.
[12] Joel 3: 5.
[13] Mateus 4: 17.
[14] Mateus 5: 44 e 48.
[15] João 1: 9.
[16] Cf. Mateus 5: 39.
[17] Romanos 12: 19 e 21.
[18] Mateus 24: 6-14.
[19] Gênesis 2: 7.
[20] João 19: 28.
[21] Mateus 21: 18.
[22] Cf. Lucas 12: 50.
[23] Mateus 11: 12.
[24] Mateus 5: 44 e 48.
[25] Mateus 21: 10.
[26] Cf. Hebreus 12: 29.
[27] Cf. Hebreus 4: 12-13.
[28] Efésios 6: 12.
[29] Cf. Lucas 14: 26.
[30] Apocalipse 12: 11 e 9.
[31] Cf. I Coríntios 1: 19-20.
[32] João 8: 58; 14: 6; 9: 5.
[33] João 1: 3-4.
[34] Mateus 11: 27.
[35] Cf. João 14: 27; Filipenses 4: 7.
[36] Isaías 9: 5; 8: 18; cf. Atos 4: 12.
[37] Cf. Efésios 1: 20-23.
[38] Êxodo 3: 14.
[39] Apocalipse 1: 8.
[40] Mateus 7: 14.
[41] I Timóteo 3: 16.
[42] I Coríntios 6: 17.
[43] Mateus 11: 12.
[44] Mateus 7: 14.
[45] Cf. Mateus 7: 8.
[46] Mateus 27: 46.
[47] Cf. Hebreus 2: 18.
[48] Cf. Mateus 14: 30.
[49] João 15: 16.