segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Nikolai Berdiaev - O Divino e o Humano - Capítulo IV





Medo


Já havíamos antes falado sobre os temas acima. Agora devemos falar algo sobre o que está por trás disso. O medo está na raiz da vida nesse mundo. Existia o “terror antiquus” – o medo primitivo, que corresponde ao Alemão Angst e ao Francês Angoisse. A terminologia atual, que distingue entre Angst e Furcht, deriva principalmente de Kierkegaard. Dentre as muitas definições de homem, podemos incluir essa que o define como a criatura que está sendo testada em seu medo. E isso pode ser dito de toda criatura viva. O medo que os animais sentem é horrível. É algo doloroso olhar nos olhos de um animal apavorado. O medo se deve à condição perigosa e ameaçadora da vida n mundo. E, quanto mais próxima da perfeição está a vida, quanto mais individualizada ela se torna, mais ela está exposta a ameaças, aos maiores perigos, mais a morte é seu fardo. A necessidade de se defender contra o perigo está sempre presente. O organismo, num grau notável, é construído para a defesa. A luta pela existência, que enche a vida, pressupõe o medo.

É um erro pensar que a coragem e o medo excluem-se totalmente um ao outro. A coragem não é tanto a ausência de medo, como uma vitória sobre o medo, e, mais ainda, sobre o medo que atua numa direção especifica. Um homem pode ser muito bravo diante de determinadas circunstâncias, e um covarde em outras; por exemplo, ele pode ser bravo na guerra, mas um covarde quando se trata de sua própria vida. Ele pode ser um herói e não demonstrar medo diante da morte, e experimentar o medo quando colocado diante de um rato, ou de uma lagarta, ou de uma doença infecciosa. Ele pode ser extraordinariamente bravo numa batalha de ideias, e mostrar medo diante de dificuldades materiais. Existem pessoas corajosas num sentido físico, mas covardes no sentido moral, e vice versa. Um homem pode alcançar um alto grau de bravura numa esfera específica da vida, e abandonar outras esferas ao domínio do medo.

Mas por toda parte e em todas as coisas, a vitória sobre o medo continua sendo um problema espiritual, o problema de conquistar uma coisa que rebaixa o homem. Uma quantidade incalculável de violência e crueldade na vida humana são resultado do medo. O “terror” não é apenas a causa do medo naqueles contra os quais é dirigido, mas também indica o medo daqueles que o praticam. É um fato sabido que povos que estão possuídos pela mania de perseguição sofrem de medo, e assim passam a perseguir os demais, lançando-os também num estado de medo. Os povos mais terríveis são aqueles possuídos pelo medo. O medo opera destrutivamente. Ele está indissoluvelmente ligado ao tempo, com aquilo que o futuro pode trazer, com aquilo que pode ser uma ameaça vindo da mudança dos tempos. No futuro haverá sofrimento, e certamente morte, que é a coisa mais terrível a ameaçar a vida. Um grande número de antigas crenças pagãs e de superstições estavam conectadas ao medo e ao forte desejo.

Nas visões de Kierkegaard e Heidegger, Angst nos coloca face a face com o abismo do não-ser. Trata-se de um evento limítrofe, na fronteira entre o mundo primitivo exterior e o superego. Para esses filósofos, a angústia é a nossa reação quando nos defrontamos com alguém ou algo que parece ameaçar destruir nosso próprio Dasein. Angst, por outro lado, não é evocada por nada definido; ela nos coloca face a face com o mundo pura e simples. De acordo com Heidegger, Dasein se refugia em Das Man, do que é desconhecido e do que é estranho. O medo constitui uma opressão que cai sobre o coração do mundo. Sob essa ótica, Dasein é a ansiedade, isso é, ser lançado no mundo e sentir-se perdido. A ansiedade é uma morte contínua. A aceitação da morte é algo análogo ao amor fati de Nietsche. A consciência moral se eleva acima de Das Man e o destrói. De onde proveio essa ideia de Heidegger? Angst está conectada ao vazio. Das Nichts selbst nichtet. Para Kierkegaard, Angst possui um caráter mais psicológico, enquanto que em Heidegger esse caráter é mais cósmico. Mas o horror diante da face da morte e do vazio só pode existir quando existe a personalidade – esse horror só existe para a personalidade.

Em Heidegger tudo vem de baixo, nunca do alto; de fato, para ele, não existe o “alto” em sentido algum. Permanece inexplicado de onde o elemento mais elevado e discriminatório provém, mas isso não altera seu pensamento. Esse ponto tampouco é explicado por Nietsche. A esse respeito a posição de Kierkegaard é melhor. O medo é o resultado do abandono de Deus. Mas quanto a serem o mundo e o homem abandonados por Deus, ou o mundo e o homem abandonarem a Deus, em qualquer caso o abandono de Deus pressupõe a existência de Deus. Confrontado pelo abismo do nada, o homem experimenta o medo e o horror, por estar separado de Deus. O medo é o resultado da dissociação, da separação, da alienação, do abandono. Psicologicamente, o medo é sempre o medo do sofrimento. O homem sente medo e horror quando, por causa do sofrimento, ele se vê diante de um muro incontornável além do qual está o não-ser, o vazio, o nada. Isso não tem nada em comum com o Nirvana do Budismo, que é uma saída e uma iluminação. Tampouco é esse medo e horror que se confunde com aquilo que Otto chama de Mysterium tremendum, que significa um sentido primário do Divino.

A natureza paradoxal dessa posição reside fato de que ela é precisamente aquilo que liberta do sofrimento, em especial do não-ser, do vazio, do nada, e que também evoca um grande horror. Devemos traçar uma distinção entre o medo animal, que está associado a uma condição de vida mais baixa, e o medo espiritual, que pertence à condição mais alta. Existe um medo que nasce da ameaça do mundo inferior. E existe um medo que surge a partir da força exercida pelo mundo superior, o medo de Deus, que demanda um outro mundo. Deus é um fogo devorador.

Epicuro pensava ter derrotado a religião quando disse que ela tinha sua origem no medo. Mas o medo é uma condição do espírito mais séria e mais profunda do que ele supôs. Ele não tinha lido Kierkegaard e outros. Os primeiros estágios da revelação do Divino no mundo estão associados ao medo. Eles estavam condicionados pela baixa condição do homem, por sua submersão no mundo inferior, pela debilidade de sua capacidade de pensar, pela escuridão que o paralisava por medo da luz. O primitivo Mysterium tremendum mesclava-se de medo. O medo de Deus se confundia com o medo do mundo. A vida religiosa do homem estava cheia de medo, embora possamos afirmar que o objetivo da vida religiosa sempre foi a vitória sobre o medo. No princípio de todas as coisas Deus fez surgir o medo, embora fosse Ele esse poder benéfico que poderia libertar o homem pavor mortal desencadeado pela vida no mundo. A emancipação em relação ao medo, ao medo do diabo e do inferno, a libertação e a purificação da ideia de Deus em relação aos efeitos distorcidos do medo, ocorreu lentamente, mesmo no pensamento mais claramente Cristão.  A grande tarefa espiritual que o homem está encarregado de cumprir consiste na emancipação em relação ao medo, à superstição, ao tormento do diabo e dos demônios, do medo servil diante do poder e da força, do medo de um julgamento impiedoso, do fanatismo e da intolerância, do ódio dos inimigos e da vingança, da objetificação do mal e si mesmo. O medo é sempre o medo basal, o medo do mal, e somente numa mente escurecida pode brotar o medo do mais elevado.

O medo governa o mundo. O poder, por sua própria natureza, se justifica pelo medo. A sociedade humana está construída sobre o medo e, assim, ela se construiu sobre a mentira, pois o medo é o pai da falsidade. Existe uma espécie de alarme para evitar que a verdade mitigue o medo e se interponha ao governo sobre os homens. A pura verdade pode conduzir à queda dos impérios e das civilizações. Por essa razão, mesmo o Cristianismo se adaptou ao medo. Periodicamente, o governo pelo medo conduz aos regimes totalitários e ao terror. O elemento “medo” está presente em todas as formas de autoridade, e a liberdade é a antítese do medo. A verdade que a liberdade contém jaz oculta sob o medo. A acomodação da verdade à prosaica estupidez da experiência cotidiana substitui o medo. O medo sempre esconde a verdade, e a verdade tende a se revelar quando a vivência do medo conduz à sua própria superação, à emancipação em relação ao medo. O medo está ligado não apenas à falsidade, como também à crueldade. Não são apenas aqueles que inspiram o medo que são cruéis, mas também os que sofrem disso. As massas não são apenas governadas pelo medo, mas elas próprias governam pelo medo. O medo dentro da sociedade nasce da desconfiança dos homens; e o medo é sempre conservador, embora as vezes ele tenha se mostrado exteriormente revolucionário na forma. O medo do inferno na vida religiosa, o medo da revolução, da perda da propriedade na vida social, o medo diminui o valor de tudo. O homem vive com medo da vida e com medo da morte. O medo reina tanto na vida individual como na vida em sociedade. A ansiedade, a insegurança da vida, em última instância, propiciam o surgimento do medo. Mas o mais sério é que o medo distorce o pensamento e trava o conhecimento da verdade. O homem se vê diante de um conflito entre o medo e a verdade. Um homem atormentado teme a verdade; ele pensa que a verdade pode feri-lo. A ausência de medo diante da verdade é a maior aquisição do espírito. Também o heroísmo constitui a ausência de medo diante da verdade, diante da verdade e da morte.

A vida religiosa foi distorcida pelo medo, que foi utilizado para manejar várias formas do mal, assim como um ordenamento injusto da sociedade. Quando o mundo antigo se aproximava de seu fim, ele era atormentado pelo medo de demônios e dos espíritos da natureza; assim, ele buscava a salvação nos mistérios. Uma das maiores aquisições do Cristianismo, que mesmo os que não são Cristãos têm que reconhecer, foi ter libertado o homem da demonolatria e dos terrores que o escravizavam. A magia não ajudava, ela simplesmente implicava a dependência em relação às forças cósmicas. Mas o medo primitivo encontrou seu caminho dentro do Cristianismo, e os velhos demônio, junto com seu chefe, o diabo, passaram a atormentar também os Cristãos. O medo do inferior mesclou-se ao medo do superior, o medo do diabo misturou-se ao medo de Deus. A distinção entre Furcht (medo) e Angst (angústia) imiscuiu-se no cenário: as emoções causadas pelas forças cósmicas e sociais inferiores foram transferidas para Deus, e é isso a que damos o nome de antropomorfismo e sociomorfismo. O velho medo cristalizou-se na forma de uma doutrina, e por isso não é fácil libertar a doutrina Cristã do medo. O medo se colocou num plano mais alto do que a doçura, que passou a ser vista com temor, como se fosse uma fraqueza.

A teologia Cristã foi acusada de intelectualismo, e com justiça; o intelecto nunca pode ser divorciado do sentimento e da vontade. As doutrinas teológicas oficiais foram distorcidas pela emoção e o medo, e essas emoções as determinaram em mais alto grau do que o intelecto. A psicopatologia atual faz um ótimo trabalho ao estudar os medos, e todos os tipos de fobias, favorecendo assim a purificação do pensamento religioso, e libertando-o dos medos que o atormentam. Nos confins do mundo fenomênico é provavelmente impossível livrar-se do medo, pois a posição do homem está constantemente sob ameaça. Mas é possível livrar-se de transferir esse medo para a vida religiosa e para a relação com Deus. É possível libertar-se da confusão entre o medo inferior e a condição superior de temor e angústia. Kierkegaard define Angst como sendo a vertigem da liberdade. Para ele, o vazio, o não-ser, adquirem também um sentido positivo, e não permanecem simplesmente como algo negativo. Isso já não se pode dizer do medo. Mas Hegel entendeu melhor do que ninguém que sem o não-ser não existe o porvir.

O medo sempre tem uma relação com o sofrimento; ele é experimentado como sofrimento, como a ameaça do sofrimento. Falarei sobre o sofrimento no próximo capítulo. Mas é impossível dissociar o medo desse elemento central da vida humana. O homem é retirado à força do mundo superior e submetido ao mundo inferior. Isso inevitavelmente faz nascer o medo e o sofrimento. Mas a conexão com o mundo é tão próxima, que o próprio mundo superior começa a se apresentar nos moldes do mundo inferior. O medo e o sofrimento, produtos do mundo inferior que escraviza o homem, podem ser experimentados como se proviessem do mundo superior, o qual deveria constituir um poder libertador. Jacob Boehme disse acertadamente que o amor de Deus opera na escuridão, como um fogo devorador. O medo diminui a dignidade do homem, a dignidade do espírito livre. O medo sempre é visto como algo vergonhoso na guerra: ele é então chamado de covardia. O homem é capaz de alcançar o estágio de não sentir medo na guerra; ele realiza milagres de bravura, e se torna um herói. Mas existe uma enorme dificuldade em estender isso para o resto da vida, e em especial para a vida do espírito. Nunca é demais repetir que a emancipação do medo é a principal tarefa espiritual do homem. Alcançar o estado em que não existe o medo é a mais alta condição do homem, e todo o problema está em alcançá-lo, pois ninguém pode dizer que o medo é inteiramente desconhecido para si.

O medo está conectado à interrelação entre o consciente, o subconsciente e o superconsciente. O medo nasce das profundezas do subconsciente, das origens mais primitivas do homem. O consciente pode ampliar o medo, uma consciência agitada está associada ao medo. A vitória final e decisiva sobre o medo só pode provir do superconsciente. Trata-se de um triunfo do espírito. Já se disse que “o amor perfeito expulsa o medo”, mas o amor perfeito é tão raro que o medo continua a governar a vida humana. O medo no eros do amor é muito poderoso: ele reside nas profundezas da vida sexual. O medo distorce o humano, e é nele que se encontra toda a complexidade do processo do Deus-humano.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Nikolai Berdiaev - O Divino e o Humano - Capítulo III





Desenvolvimento e Novidade


É impossível negar o fato cabal do desenvolvimento e o reconhecimento desse fato certamente não implica o reconhecimento da teoria da evolução, tal como ela se encontra expressa nas teorias evolucionárias da segunda metade do século XIX. A vida do mundo é, acima de tudo, movimento, mudança de posição no espaço e no tempo, e é bastante espantoso o fato do desenvolvimento só tenha sido observado tão tardiamente pelo pensamento humano. Devemos dizer, entretanto, que já no pensamento Grego existiram os germes dessa doutrina do desenvolvimento. Na opinião de Heráclito, tudo acontece numa corrente de mudanças, todas as coisas existem nesse fluxo. Mas foi a ontologia estática de Parmênides e Platão que acabou por prevalecer. A doutrina Aristotélica da potência e do ato pode ser entendida como uma explanação da mudança que acontece no mundo. Os grandes idealistas do princípio do século XIX, Schelling, Hegel e outros, tinham uma doutrina do desenvolvimento, mas não colocada de forma naturalística. Na visão deles, tratava-se do desenvolvimento do espírito.

A doutrina naturalística da evolução, por outro lado, tem sua fonte nas ciências biológicas. Isso se entende facilmente na medida em que aquilo que se desenvolve é, acima de tudo, a vida. A vida sempre teve a tendência de crescer e se desenvolver ou decair e morrer. Tudo o que é vivo se desenvolve. Não existe imobilidade no mundo, tudo muda e se desenvolve, mas existe também uma vis inertiae que se opõe a toda mudança e que é hostil a tudo o que é novo. A vida no mundo está organizada e se desenvolve na direção de formas mais elevadas. O elemento irracional é a fonte da vida que é capaz de se organizar, mas, ao mesmo tempo, ele apresenta ao final uma resistência à racionalização. Não é apenas o desenvolvimento, o surgimento de algo que não havia antes, que caracteriza a vida humana; existe também um processo de endurecimento, de materialização. Duas tendências diametralmente opostas lutam na vida. A atitude das pessoas em relação à mudança que existe no mundo deve ser dupla. A vida é mudança, e sem a presença do novo não existe vida. Mas a mudança é traiçoeira. A realização da personalidade humana pressupõe a mudança e a novidade, mas também pressupõe a imutabilidade, sem a qual tampouco existe a personalidade. No desenvolvimento da personalidade o homem deve ser verdadeiro consigo mesmo; ele não deve se trair; ele deve preservar suas características, que lhes foram pré-ordenadas desde a eternidade. É algo necessário para a vida que o processo de mudança que conduz ao novo seja combinado com a fidelidade.

Eu já disse que o reconhecimento do fato fundamental do desenvolvimento da vida de modo algum requer uma teoria evolucionista à maneira de Darwin, Herbert Spencer ou Haeckel. Esse tipo de teoria da evolução está ultrapassado tanto científica, como filosoficamente. O evolucionismo do século XIX era uma forma de determinismo naturalista, e jamais foi capaz de explicar as origens da evolução. Ele falava de resultados da evolução, de formas da mudança, mas nunca das origens e causas. Na teoria evolucionista do século XIX não havia nenhum objeto de desenvolvimento, nenhum fator interno de desenvolvimento. O evolucionismo é, de fato, uma teoria conservadora que nega a criatividade no mundo. Ela reconhece apenas a redistribuição de partes do mundo. A mudança acontece como efeito de impulsos externos, e não se detecta nenhuma mudança que aconteça interiormente, a partir de uma atividade interna, a partir da liberdade. As influências externas, os impulsos exteriores prosseguem indefinidamente, mas o interior jamais é alcançado, não existe um núcleo, de espécie alguma, que possua uma energia criativa. Mas o desenvolvimento real, que a teoria evolucionista toma como proveniente do exterior, é resultado de processos criativos internos. A evolução é meramente a expressão, no plano horizontal de processos criativos que se realizam na vertical, desde as profundezas.

O materialismo dialético, tal como foi adotado na União Soviética, foi uma tentativa de introduzir correções na teoria da evolução em de reconhecer o movimento autônomo dentro dela. Assim é que a matéria foi ditada das qualidades do espírito, com uma atividade criativa, liberdade e inteligência. Assim a violência adquiriu uma linguagem. Era preciso uma reavaliação transversal que repudiasse as bases aceitas do determinismo naturalista. As leis da natureza não existiriam, vale dizer, leis que dominassem o mundo e o homem como tiranas. Tudo o que existe consiste numa direção na ação das forças que agem uniformemente numa correlação dada, com vistas a seu resultado. Uma mudança na direção das forças pode alterar a uniformidade. Na base primária dessas forças apresenta-se um princípio espiritual, o noúmeno. O mundo material é apenas a exteriorização e a objetificação de princípios espirituais. É um processo de esclerose, de agrilhoamento. É preciso dizer que as leis não passam de hábitos das forças atuantes, e, frequentemente, de maus hábitos. O triunfo das novas forças espirituais pode mudar o efeito do perfil mensurável da necessidade. Isso pode trazer novidades criativas.

A doutrina do desenvolvimento dialético de Hegel chegou a um enfrentamento mais profundo do que o ensinamento evolucionista da segunda metade do século XIX, embora seu caráter não seja naturalista. Trata-se de um movimento dialético do espírito, que acontece de acordo com um esquema triplo de tese, antítese e síntese. O desenvolvimento está condicionado por uma oposição interior que exige solução. A dor da negação desempenha um enorme papel na dialética de Hegel. A dialética, o dinamismo, são determinados pelo fato de que existe o outro, e isso vai muito fundo. Para o bom funcionamento da teoria evolucionista não existe o outro, e, portanto, não existe verdadeiro dinamismo. O monismo de Hegel, que afirma a unidade do ser e do não-ser, a identidade dos opostos, na medida em que é distinto do monismo de Spinoza, é dinâmico. Na filosofia de Hegel estavam em preparo materiais explosivos, apesar do fato de que o próprio Hegek fosse politicamente conservador. Seu erro foi acreditar numa resolução imanente da dialética dos opostos, enquanto que a dialética dos opostos exige o transcendente. O imanentismo amortece o limite das contradições dialéticas. A teoria evolucionista naturalista bidimensional não reconhece contradições. O desenvolvimento dialético mediante a contradição contém uma grande verdade. Aí reside o caminho da história, e aí transcorre o destino do homem.

Mas em Hegel a liberdade não é causa do desenvolvimento, ela é resultado do desenvolvimento. A liberdade é um efeito da necessidade, ela é uma necessidade admitida. A doutrina de Hegel do desenvolvimento dialético é, da mesma forma, determinista, não de um determinismo naturalista, naturalmente, mas lógico. O processo de vir-a-ser é o resultado logicamente necessário e inevitável da correlação entre o ser e o não-ser. Kierkegaard tentou se libertar do determinismo, e na sua visão todas as coisas novas acontecem aos saltos, mas isso implica que todo o novo acontece como resultado da liberdade, e por intermédio da liberdade. De qualquer modo como a entendamos, a evolução é sempre uma objetificação, e é isso que a distingue da criatividade. O título da obra de Bergson, A evolução criativa, é discutível e é uma evidência da presença de elementos naturalistas em sua metafísica. A criatividade pertence ao reino da liberdade, enquanto que a evolução pertence ao reino da necessidade. Eu já disse que o velho evolucionismo está obrigado a negar a possibilidade do novo criativo. Ele está amarrado ao ciclo das forças cósmicas.

O surgimento do novo, daquilo que não existia antes, é o maior mistério da vida do mundo. Não apenas o círculo fechado da natureza, como o círculo mais profundo, igualmente fechado da existência, não permitem e não podem explicar o surgimento do novo. O mistério do surgimento do novo está conectado com o mistério da liberdade, que não pode ser derivado da existência. O ato criativo da liberdade é um rompimento com o mundo fenomênico natural. Ele deriva do mundo noumênico. O ato criativo da liberdade não é resultado do desenvolvimento. O desenvolvimento é que é resultado do ato criativo da liberdade, que é objetificado. É um mistério que começa a se revelar movimentando-se nas profundezas, nas profundezas insondáveis, não através de um movimento exterior, como na teoria evolucionista. A queda do mundo objetificado, no qual reinam a necessidade e o destino, foi determinada pela direção da liberdade nas profundezas, pela ruptura do Deus-homem; e o impulso ascensional só pode ser adquirido por meio do restabelecimento da ligação divino-humana. O mundo criado é um mundo de possibilidades; não se trata de um mundo pronto, acabado e estático. Nele, o processo criativo deve continuar, e deve fazê-lo através do homem. Todas as possibilidades devem ser reveladas e realizadas. E é assim que o desenvolvimento criativo do mundo deve ser entendido como o oitavo dia da criação. A criação do mundo não é apenas um processo que vai de Deus para o homem. Deus pede ao homem um novo criativo; Ele espera pelas obras da liberdade humana.

O processo de desenvolvimento deve ser aplicado também à história da religião e à história do Cristianismo. É impossível entender o Cristianismo de modo estático. Como eu já disse, existem épocas de revelação, e existem éons de história do mundo. Existe uma inspiração criativa na aceitação da revelação; e sua humanização, em termos da mais alta humanidade – que é Deus, enquanto humanidade – é também um fato. O desenvolvimento, no Cristianismo, possui um caráter duplo. Por um lado, ele representou aperfeiçoamento, enriquecimento, criatividade, quando uma novidade real fez sua aparição; por outro lado, ele trouxe consigo deterioração, distorção, adaptação ao nível humano médio, traição às origens, afastamento em relação à sua natureza primitiva. E devemos ser capazes de perceber essa distinção. O Cardeal Newman e Vladimir Soloviev reconheceram a possibilidade do desenvolvimento dos dogmas, a plena abertura daquilo que até então fora insuficientemente revelado. Mas eles não o reconheceram adequadamente, não estabeleceram conclusões minuciosas a partir disso. O desenvolvimento do Cristianismo no mundo constitui um processo divino-humano complexo, e deve ser visto sob a luz da divina-humanidade. As fontes da revelação devem ser entendidas sob uma luz nova e mais forte. A mudança de consciência, a total revelação da real natureza humana, a crescente complexidade e o refinamento das almas, tudo conduz a isso, que uma nova luz se projetou sobre a verdade religiosa; isso equivale a dizer que a revelação, que parte da Verdade eterna, não foi dada estaticamente, de uma forma completa e final, e que ela possui sua própria história interior.  

Conectado a isso está o problema dos movimentos modernistas do pensamento Cristão ao longo dos séculos XIX e XX. A própria palavra “modernismo” tem o defeito de produzir uma impressão de sujeição do eterno ao temporal. Na verdade, o que está de fato em discussão é a emancipação em relação à alegação de poder do temporal e do histórico, e o crescimento em direção ao eterno. Aquilo que se apresentou como sendo o eterno na vida religiosa foi, com mais frequência, o poder do temporal, ou seja, uma deficiência na espiritualidade. Por essa razão eu prefiro não utilizar o termo “modernismo”, mas usar o termo “pneumatismo”. O modernismo está correto quando se trata das mudanças que ocorreram no meio humano e na consciência humana, e, em sua dependência em relação a essas mudanças, a recepção da revelação também muda. A fronteira da estratificação histórica foi ultrapassada; abriu-se um caminho para novas revelações, ou melhor, para a única revelação, para o coroamento da revelação do Espírito.

Os movimentos modernistas estavam especialmente conectados com a relação do Cristianismo com o terrível crescimento do conhecimento científico e com as mudanças da vida social. Esses movimentos não alcançaram a profundidade, mas foram úteis como processos purificadores e preparatórios. A fé do home teve que ir além do ceticismo, através de lutas do espírito; só assim ela pôde adquirir seu mais alto valor. O homem se move adiante através da dúvida, da dicotomia, do sofrimento, e somente quando supera tudo isso ele se torna espiritualmente temperado e pronto para os mais altos graus de espiritualidade. Dostoievski estava certo ao dizer que sua fé passara pelo refino da fornalha da dúvida, para o qual os ateus superficiais não estavam preparados. O que acontece com o homem, e com o homem na história, tem uma enorme importância para a plenitude da verdade divino-humana. O mundo muda de acordo com a perspectiva da qual é visto, de acordo com o grau de crescimento, do meio, da classe, da confissão religiosa, etc. Mas não é só a visão de mundo que muda; a visão daquilo que é revelado do outro mundo, do mundo mais elevado, também se altera. Tudo muda, dependendo da altura até a qual os homens se elevam, ou a profundidade até a qual mergulham, do desenvolvimento criativo do homem ou do nível inferior atingido em sua queda. Os homens quiseram estabilizar a verdade da revelação em correspondência com seu pensamento normal e mediano, que eles identificaram com sua natureza humana eterna, e assim a verdade da revelação apareceu-lhes numa forma estática e petrificada. Impôs-se um veto à criatividade. Os homens não a desejaram. Tiveram medo de reconhecer a natureza criativa do homem e a possibilidade do novo. O mau novo tinha que passar, mas a possibilidade de um novo melhor foi igualmente suprimida. Dessa maneira criou-se uma ossificação do Cristianismo, uma mortificação e extinção do espírito. Mas estava dito: “Não extingam o Espírito”. Aquilo que não se move para adiante, que não se dirige para a novidade do Reino de Deus, move-se para trás e se torna mineral. A verdade é o caminho e a vida, e não algo que pertence ao mundo dos objetos.

A história da alma Europeia sempre foi dinâmica, e nela aconteceram muitas mudanças. A alma que encara o Cristianismo hoje não é, de modo algum, a mesma que encarava o Cristianismo na Idade Média e no tempo dos primeiros Cristãos. Uma sensibilidade inteiramente diferente se revelou a ela. Muito do que é novo na alma humana foi revelado em Petrarca, em Rousseau, nos Românticos do início do século XIX, em Dostoievski, Kierkegaard, Nietsche, Ibsen, nos Simbolistas do final do século XIX e na geração de Comunistas do início do século XX. É impossível não levar em conta a experiência que veio à luz nos mais significativos movimentos intelectuais de nosso tempo. Assim foi com Heidegger e a filosofia existencial, com Freud e a psicanálise, com Karl Barth e a teologia dialética, com Husserl e a fenomenologia, com o racismo, o totalitarismo, o marxismo e o comunismo. Ao mais influentes, e que tiveram mais domínio sobre a alma foram Nietsche, Marx e Kierkegaard. Os velhos catecismo Cristãos não eram capazes de responder aos novos problemas e às novas inquietações. Nos primeiros séculos do Cristianismo os doutores da Igreja deram respostas às questões levantadas pelas heresias de seu tempo. Nossa era não conhece heresias como aquelas, mas sim heresias de um tipo diferente que vêm surgindo, com as quais aqueles que permanecem dentro do sistema dogmático Cristão não são capazes de lidar, e essas heresias exigem uma resposta Cristã. Essa resposta não pode ser dada pelas formas necrosadas do Cristianismo histórico. Questões como a criatividade aventuresca do homem, como as formas inteiramente novas do mal, não se deixam solucionar pela velha ética normatizada. A atração do abismo do não-ser, a liberdade sem precedentes e desconhecida dos primeiros tempos, a transição da liberdade para a escravidão, o mistério da personalidade e de sua destruição, a sociedade humana sobre a terra e suas tentações; e muitas outras formas da autoafirmação humana e do orgulho, que se tornaram diferentes e mais temíveis do que eram no passado.

Numa palavra, o elemento psíquico do homem sofreu grandes mudanças. A antropologia da velha literatura patrística já não corresponde ao estado do homem contemporâneo, que passou por um desenvolvimento complexo. As energias que permaneceram ocultas nos substratos mais profundos da alma vieram a se manifestar. Mas esse desenvolvimento é altamente complexo e tem dois lados. De um lado, o homem tem se tornado mais profundo; por outro lado, ele é atirado à superfície. O lado emocional da natureza humana, desde o tempo de Rousseau e dos Românticos, foi muito fortalecido e desenvolveu-se, em comparação com os séculos anteriores. Por outro lado, ele se enfraqueceu e foi oprimido pelas habilidades técnicas, pelo frio toque do metal.

Essa complexidade fica particularmente evidente em relação ao desenvolvimento moral. Seria falso afirmar que existe algo como um processo que conduz o homem e a sociedade humana a um estado de perfeição moral ao longo de uma linha progressiva. Uma regressão moral acontece simultaneamente. A cada momento novas e mais novas formas da brutalidade se revela, formas mais sutis e repelentes. A consciência moral do passado permitia a tortura, e isso era devido a crenças supersticiosas. Mas à luz da consciência moral atual a tortura se mostra de maneiras ainda mais terríveis. Nos tempos primitivos o homem costumava ser melhor. Não obstante, existe algum progresso na consciência moral. O humanismo é um fenômeno novo; ele é o resultado de uma atividade subterrânea do Cristianismo. O homem vem se tornando mais abominável moralmente, do que o foi num passado menos humano e mais rude. Mas agora ele é julgado por uma nova consciência. O modernismo pode ser mau na medida em que é associado com a aparência e a imitação, com a escravidão em relação ao tempo. A sensibilidade estética e o refinamento aumentaram, mas uma mudança de direção não implica progresso. É quase impossível dizer que os escritores atuais estão num nível superior do que Sófocles, Dante ou Shakespeare. As sucessivas mudanças que aconteceram no classicismo, no romantismo, no realismo, no simbolismo, no surrealismo, no expressionismo, etc., não representam um desenvolvimento, mas apenas a história da alma humana, e elas são um reflexo de sua busca. A evolução não significa infalivelmente progresso, nem um movimento ao um objetivo mais alto, para o Reino de Deus. Ela pode inclusive regredir. A novidade tampouco significa melhoramento e o atingimento de algum valor mais elevado. O culto do novo, pelo novo, é tão ruim quanto o culto do passado, pelo passado. A verdadeira novidade religiosa só pode ser associada a uma nova era do Espírito. E essa será a nova era da revelação, que não poderá resultar apenas de uma ação de Deus, mas também do homem, num ato criativo. Só e possível falar disso a partir da admissão de uma concepção dinâmica, tanto da vida do mundo como da vida em Deus. A expectativa de um desenvolvimento sem fim para o futuro, como propugnava, por exemplo, a doutrina do progresso de Condorcet e outros, é falsa. Mas a ideia de progresso pode encontrar apoio, não em outro infinito, mas num fim. E é por isso que uma concepção mais profunda do desenvolvimento está ligada à escatologia.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Nikolai Berdiaev - O Divino e o Humano - Capítulo II




A dialética entre o Divino e o Humano no pensamento Alemão
O significado de Nietsche
A dialética da Doutrina da Trindade


O tema do Deus-humanidade é um tema fundamental para o Cristianismo. Eu preferia não dizer Deus-humanidade, uma expressão favorita de Vladimir Soloviev, mas Deus-homem. O Cristianismo é antropocêntrico; ele proclama a libertação do homem do poder das forças cósmicas e dos espíritos. Ele pressupõe a crença não apenas em Deus, mas também no homem, e isso o distingue do monoteísmo abstrato do Judaísmo e do Islamismo, e também do Brahmanismo. Devemos dizer enfaticamente que o Cristianismo não é uma religião monística nem monárquica; ele é uma religião do Deus-homem, e é trinitário. Mas a dialética vital entre o divino e o humano se mostrou tão complexa que o humano foi frequentemente reduzido na história do Cristianismo. No destino do Deus-homem na história, houve um tempo em que o divino engoliu o humano; em outro tempo, o humano engolfou o divino. O próprio dogma da humanidade divina de Jesus Cristo expressa o mistério do Deus-homem, da união entre as duas naturezas, sem confusão ou identidade. Trata-se de uma expressão simbólica do mistério. Mas a tendência monárquica e monística sempre existiu no Cristianismo, e houve ocasiões em que ela predominou.

Em meu livro anterior, The Meaning of Creativity, eu disse que, para corresponder ao dogma Cristológico, deverão haver uma nova antropologia, uma Cristologia do homem. Mas isso só poderá ser revelado completamente no futuro. Ainda não existe uma verdadeira antropologia Cristã. Dentro da Patrística, São Gregório de NIssa chegou perto disso. Ele foi o maior filósofo dentre os Doutores da Igreja, e se esforçou por elevar a dignidade do homem. Mas ele teve poucos seguidores. Somente o Cristianismo ensina que Deus se tornou homem. O abismo entre Deus e o homem foi superado. A humanidade de Deus se revelou, não apenas o divino no homem, como também o humano em Deus. Se a humildade de Cristo for entendida até o fim, é preciso reconhecer que a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade é o Homem desde toda a eternidade, e que esse mistério de modo algum indica um reconhecimento da identidade do homem para com Deus, coisa que equivaleria a uma negação drasticamente racional do mistério.

Durante os primeiros séculos do Cristianismo, quando surgiram as controvérsias dogmáticas e foram elaboradas as fórmulas dogmáticas, nas quais os homens se puseram a expressar em símbolos os eventos do mundo espiritual, desenvolveu-se também uma complexa dialética das relações entre o divino e o humano. Tanto o surgimento quanto a condenação das heresias estão conectadas com essa questão. Arianismo, monofisismo, monotelismo, nestorianismo – todas essas foram heresias relacionadas ao tema do Deus-homem. As controvérsias foram conduzidas em conexão com o problema Cristológico, ou seja, com o problema das relações entre das duas naturezas em Cristo. Mas o problema real é mais extenso e profundo: ela levanta a questão da relação entre o divino e o humano em geral. Vamos conceder em que o problema Cristológico foi resolvido nos primeiros séculos, e que uma fórmula que expressava a relação entre o divino e o humano em Cristo foi encontrada, e colocada além do monismo e do dualismo. Mas em nossa época – falo da época do Espírito – a questão se apresenta de outra maneira. Pois o problema do homem está colocado com aguda urgência, desconhecida até então. Trata-se de um problema que o período patrístico não conheceu nessa forma, e as ideias a respeito do próprio Deus estão mudando, como um efeito da mudança de nossas ideias sobre o homem.

A nova alma tem uma consciência da liberdade, da busca pela liberdade, e, como as seduções e a escravidão já não se encontram nela, com uma agudeza e numa profundidade que a alma Cristã jamais conhecera antes. A alma do homem não se aperfeiçoou, mas se desenvolveu e se tornou muito mais complexa, e um novo modo de pensar corresponde a essa nova realidade.

O homem se tornou menos integrado, com uma mente mais dividida, e chegou a encarar face a face algumas questões inquietantes. O catecismo não responde a essas questões. O homem de tipo profético apareceu na cultura do mundo, na literatura e na filosofia, homens como Dostoievsky, Kierkegaard, Nietsche, Vladimir Soloviev, Leon Bloy e outros. Os padres e os doutores da Igreja, os teólogos escolásticos, não tinham respostas aos temas que foram trazidos por esses homens. O fogo profético sempre constituiu uma força regeneradora na vida espiritual entorpecida e enfraquecida; e outra força regeneradora foi o misticismo.

O misticismo apresenta uma relação próxima com o tema da relação entre o divino e o humano. Certos tipos de místicos têm uma tendência ao monismo, ao reconhecimento de apenas uma natureza, à extinção da natureza humana na natureza divina. Todas as formas de quietismo pertencem a esse tipo. O Jansenismo[1] possui interesse na dialética do Deus-homem. Encontramos o padrão clássico do monismo místico na filosofia religiosa da Índia. Tal é a filosofia de Shankara, que considera nossa alma, Brahma, o Um, Sat, como a antítese de toda espécie de acontecimento ou porvir. O mais notável dentre os filósofos modernos da Índia, Aurobindo, ensina que devemos rejeitar a ideia de sermos os autores de nossas ações – é o universal que age por intermédio de nossa personalidade. A impessoalidade é a qualificação essencial para a união com o divino. É preciso alcançar a impessoalidade e a apatia. A alma é uma partícula do divino.

O misticismo costuma ser acusado de uma inclinação para o panteísmo, e por causa disso ele é frequentemente mal interpretado. Isso se deve a uma falha no entendimento da linguagem dos místicos. Mas devemos dizer que, mesmo quando se apresenta o panteísmo, não se trata tanto de uma heresia contra Deus, mas em relação ao homem, uma diminuição do significado do homem, uma diminuição do papel da liberdade e da criatividade humanas. A evolução do humanismo Europeu, seu drama interior, estabelece uma questão religiosa inteiramente nova; e essa questão é também uma questão do Deus-homem.

A evolução do misticismo e da filosofia Alemã é de enorme importância na dialética do humano e do divino. No pensamento Alemão a categoria do destino (Schicksal) desempenha um grande papel. Essa palavra é muito utilizada nas obras Alemãs sobre filosofia. Nada semelhante pode ser encontrado nos livros Franceses ou Ingleses; e isso não é por acaso. O povo Alemão é um povo de destino trágico. Isso está ligado a qualidades espirituais inerentes a esse povo metafísico e que possui uma espécie de doença espiritual. A noção de que o pensamento e o misticismo Alemães estão sempre inclinados ao panteísmo, e que as propriedades do espírito Alemão são desse tipo, se tornou muito disseminada. Não obstante a extensão indevida com que essa opinião se espalhou, existe um elemento de verdade aí, que devemos nos esforçar por esclarecer. Devo dizer que o destino do pensamento Alemão constitui um drama em três atos e que todo esse drama se desenrola fora da questão da relação mútua entre o divino e o humano. Richard Kroner, que escreveu uma notável história da filosofia idealista Alemã diz com entusiasmo que o renascimento metafísico Alemão no início do século XIX foi de caráter profético, messiânico e escatológico, e isso e absolutamente verdadeiro. Essa exaltação espiritual não é encontrada na filosofia Francesa ou Inglesa. As ideias proféticas e messiânicas na França estão associadas principalmente ao pensamento social. O colapso espiritual do pensamento Alemão se deve à sua extraordinária dificuldade em reconhecer o mistério do Deus-homem, o mistério do dois-em-um, no qual a união de duas naturezas acontece sem nenhuma confusão entre elas. Mas isso indica uma dificuldade em reconhecer o mistério da personalidade. O antipersonalismo é típico de todas as metafísicas idealistas Alemãs, com a exceção de Kant, que ocupa uma posição peculiar. Mas somos obrigados a reconhecer que no pensamento e na espiritualidade Alemã existiu uma dialética de gênios que teve enorme importância para os destinos do pensamento Europeu. Como podemos descrever os Atos desse grande drama, que não é apenas intelectual, mas também espiritual?

Ato I: O misticismo Alemão e Lutero.

O misticismo Alemão significa, acima de tudo, Mestre Eckhardt. Ele é mais complexo do que antes se pensava. Ele foi não apenas místico, como também teólogo, embora tenha sido maior como místico do que como teólogo. Como teólogo ele chegou mesmo a se aproximar de Tomás de Aquino. Mas aqui ele me interessa apenas enquanto místico; ele me interessa quando fala a linguagem do misticismo e não a linguagem da teologia. É nisso que reside seu gênio e sua importância. E o místico Eckhardt mostra indubitavelmente uma tendência para o misticismo monista. Já se sugeriu que seu ensinamento deveria ser chamado, não de panteísmo, mas de neopanteísmo, mas isso faz pouca diferença. Eckhardt permanece na linha que descende do misticismo neoplatônico; ele mostra afinidade não apenas com Platão, mas também com a filosofia religiosa da Índia. Isso em nada afeta o Cristianismo de Eckhardt. Eu estou certo de que a filosofia religiosa de Tomás de Aquino era mais Cristã do que a de Eckhardt, o qual jamais desceu até as profundidades da espiritualidade introspectiva.

A coisa mais profunda e original em Eckhardt é a ideia de Gottheit, Deidade, que abre para profundidades maiores do que a ideia de um Deus Criador do mundo, e que se coloca fora da antítese entre sujeito e objeto. Deus aí é secundário, não primário. A Deidade só pode ser pensada apofaticamente. A falha crucial de Eckhardt não reside no fato de ter ele afirmado um completo monismo em relação à Deidade, mas no fato de ter afirmado o monismo na relação entre o homem e Deus, vale dizer: ele era monofisita. Para ele, a Criação era nada, algo que não possuía realidade nem valor essenciais. Qualquer coisa criada não passava de nada. A própria existência do homem era uma espécie de pecado. Aqui surge a contradição do pensamento Alemão. A grande liberdade do homem em seu movimento interior, na direção de Deus e da espiritualidade, é afirmada, mas ao mesmo tempo a independência da natureza humana, a liberdade do homem, é negada. Afirma-se um determinismo místico. Rudolf Otto, que comparou os misticismos de Shankara e Eckhardt, diz que ambos buscam a salvação e o Ser, e que para eles o conhecimento é um caminho de salvação. Na opinião de Otto, o misticismo de Eckhardt não pertence ao tipo de misticismo gnóstico e teosófico, como é o caso do misticismo de Jacob Boehme. Essa distinção é bem captada, mas há nela um exagero, porque em Eckhardt encontrasse um poderoso elemento metafísico que o distingue do misticismo Cristão, que se ocupa exclusivamente com a descrição do caminho espiritual da alma para Deus. O misticismo Alemão é sempre metafísico e cosmológico.

Lutero é muito importante para a dialética existencial entre o divino e o humano. Ele possuía ligações com o misticismo Alemão, embora ele próprio não pudesse ser chamado de místico. Seu livro De servo arbitrio, contra Erasmo, é de especial interesse, e é um livro muito incisivo. Existe um paradoxo no fato de que em sua luta pela liberdade dos Cristãos contra o poder da autoridade sobre a consciência, Lutero negou de forma absoluta a liberdade do homem e afirmou a ação exclusiva de Deus e da divina graça na vida religiosa. A punica coisa que cabia ao homem era a fé; somente a fé salvava, e mesmo a fé provinha da graça; e, aos olhos de Lutero, nisso consista a emancipação em relação ao poder da autoridade. O homem não possuía nenhuma posição independente em relação a Deus. Diante de Deus não poderia haver senão a fé. Mas nessa condição, o homem ainda poderia ser realmente ativo em relação ao mundo. A tradicional doutrina católica do livre arbítrio, por outro lado, e das boas obras, que dela provêm e que são necessárias para a salvação, pareciam a Lutero quase que como uma piada blasfema, uma transgressão da onipotência e da majestade de Deus. Ele não apenas negava o livre arbítrio, como ainda considerava a razão humana maligna. Ele acusava o Cristianismo de Pelagianismo. O ensinamento de Lutero sobre a escravidão da vontade foi muitas vezes cruelmente interpretado, e jamais se observou até que ponto uma profunda e complexa dialética metafísica poderia ser extraída dele. Era difícil prever o quanto a metafísica Alemã do começo do século XIX viria a herdar desse ensinamento a longo prazo. O divino engoliu o humano. Esse era um processo interior ao qual o humano não estava submetido pela força, mas no qual o mistério do Deus-humanidade desaparecia, assim como desaparecera para Eckhardt.

A última e mais interessante manifestação do Protestantismo na Europa, a teologia dialética de Karl Barth – e dos que partilham de sua opinião – seguem a mesma tendência de negar o Deus-homem. Para Barth, Deus é tudo, enquanto o homem não é nada. E aqui encontramos um paradoxo no qual tudo se torna o seu oposto. Ele é um dualista, não um monista. Ele afirma a existência de um hiato entre Deus e o homem, um abismo que separa o homem de Deus. Mas, se o homem é nada e Deus é tudo, a única realidade, existe outra forma de monismo – e até de panteísmo – que se esconde aí. Se é preciso evitar o monismo e o panteísmo, é preciso que o homem não seja nada, que nele exista dignidade e valor, e que haja liberdade nele. Assim é que também Calvino foi um inimigo radical do panteísmo, mas, paradoxalmente, dele podemos dizer que era um panteísta, na medida em que ele degradou o homem e diminuiu sua realidade, e na medida em que, para ele o único ser real era Deus, e Deus era tudo. A dialética do divino e do humano é tão complexa e complicada, quanto difícil é encontrar lugar para o mistério do Deus-homem. Isso se revelou na filosofia Alemã do século XIX. O único pensador Alemão que se aproximou da ideia do Deus-homem e do divino-humano, e que assim se aproximou da filosofia religiosa Russa, foi Franz Baader. Mas ele permaneceu à parte da via principal sobre a qual a dialética do divino e do humano havia sido revelada.

Ato II: A filosofia idealista Alemã.

O segundo ato do drama é a filosofia idealista Alemã, o fenômeno mais notável da filosofia Europeia. Qual é a ligação entre esse ato e o primeiro? A conexão com Eckhardt é fácil de compreender, mas a ligação com Lutero não se consegue captar de primeira. A maior influência sobre a metafísica Alemã foi indiscutivelmente a de Jacob Boehme, mas isso está ligado a outra questão, não com aquela que nos interessa nesse momento. Toda a originalidade da metafísica Alemã, a diferença entre ela e as metafisicas Grega e Medieval, o diferente entendimento da relação entre o racional e o irracional, se devem a Boehme. Mas no problema das relações entre o divino e o humano na questão divino-humana, Boehme se mostrou muito mais Cristão do que Hegel ou Fichte, e menos monista. Costuma-se dizer que Lutero foi o pai do idealismo filosófico e que a filosofia Alemã floresceu no solo do Protestantismo.

À primeira vista, nada poderia ser mais contraditório do que Lutero e Hegel. O primeiro condena a razão como um mal; o segundo a transforma em um deus. Para o primeiro, tudo se deve à graça, e isso certamente não favorece o conhecimento metafísico. Mas, se analisarmos a questão de um ponto de vista mais profundo, é possível entender o porquê desse repudio à razão ter se transformado numa ousada afirmação da razão. Lutero não era um filósofo; sua natureza era profética, e ele não poderia refletir filosoficamente a respeito de sua maldição à razão, e nem ele pretendia isso. Mas a razão, para Lutero, é inteiramente diferente daquela de Hegel. Enquanto que para Lutero a razão é humana, para Hegel ela é divina, como o é a razão de Fichte e de todos os idealistas do começo do século XIX. A razão de Hegel, que para nós possui mais interesse aqui, não é a razão de Lutero, mas a graça de Lutero. Para Hegel, não é a razão humana que apreende, mas a razão divina, e nele tudo provém da graça. O ato de conhecer, um ato religioso, é realizado, não pelo indivíduo, mas pelo espírito universal. Do mesmo modo, o ego em Fichte não é individual nem humano, mas divino, o ego universal. Na metafísica Alemã do início do século XIX tudo está no fio da navalha, e pode cair tanto para um lado quanto para o seu oposto. A filosofia de Hegel, que foi sua principal manifestação, pode ser interpretada tanto como o engolimento final do divino pelo humano, como uma expressão do orgulho do homem, ou do humano pelo divino, como uma negação da personalidade humana. Ambas as interpretações de Hegel são possíveis. A revolta de Dostoievsky e de Kierkegaard a favor da individualidade humana foi uma revolta contra Hegel, contra seu espírito universal, contra a dominação tirânica do universal sobre o individual. A expressão de que die Religion als Selbstbewusstsein Gottes[2] pertence a Hegel.

Karl Robert Eduard von Hartmann, que se insoirou tanto em Schopenhauer como em Hegel, construiu sua religião do Espírito a partir dessa interpretação Hegeliana da religião e da relação que existe entre o divino e o humano. A metafísica Alemã criou o verdadeiro mito, que pode servir tanto ao otimismo quanto ao pessimismo. Hartmann o interpreta de modo pessimista. Um Deus inconsciente, num repente louco de vontade, criou a dor da existência. Mas no homem o Deus primordial inconsciente chega à consciência, e a possibilidade de libertação do sofrimento da existência é revelada. Mas, no otimismo de Hegel, também Deus alcança a consciência no homem, e essa consciência atinge seu ápice na filosofia do próprio Hegel. Assim se completou a deformação do problema enunciado pelo maior gênio místico de tipo gnóstico, Jacob Boehme. De acordo com este, que estava embebido no Cristianismo e na Bíblia, é fora do Ungrund,[3] que precedeu a existência do mundo, na eternidade e não no tempo, que se dá o nascimento de Deus e se revela a Santa Trindade, e a Santa trindade cria o mundo. Na metafísica Alemã, que estava cheia de questões do antigo misticismo, a sicessão ideal foi alterada. Fora do Ungrund, fora da profundidade da inconsciência obscura, o mundo é criado, e é nesse mundo que Deus se forma. Fichte, Hegel e Schelling (em parte) ensinam o começo de Deus. O processo do mundo é o começo de Deus; e é no homem que Deus, finalmente, se torna consciente. Aí têm lugar tanto a deificação do homem quanto o repúdio ao homem. Não há nada que seja puramente humano, distinto do divino e que permaneça diante de Deus nesse drama que se desenrola. O resultado disso se tornará claro no Terceiro Ato. A principal deficiência da metafísica Alemã, essa exibição do pensamento humano marcado com o selo do gênio, foi seu anti-personalismo.

A filosofia de Hegel, que se esforçou pelo concreto, mas que não o alcançou, e que destruiu a individualidade humana, evocou a reação do homem contra o Espírito universal. O divino foi interpretado como uma expressão da escravização do homem.

Ato III: A partir de Feuerbach

É com Ludwig Andreas Feuerbach, um notável pensador, que se inicia o Terceiro Ato do drama. De acordo com Feuerbach o homem criou um Deus para si mesmo, à sua própria imagem e semelhança, e transferindo para a esfera transcendente sua própria natureza mais elevada. A natureza alienada do homem precisaria ser restaurada nele. A crença em Deus é um produto dessa fraqueza e dessa pobreza do homem. Quando o homem é forte e rico, ele não precisa de Deus. O segredo da religião é antropológico. A ideia de Deus é substituída pela ideia de homem: a teologia passa para a antropologia. De acordo com Hegel, Deus chega à autoconsciência no homem. Conforme Feuerbach a autoconsciência do homem basta. A autoconsciência de Deus no homem não passa da autoconsciência do homem sobre si próprio, sobre sua própria natureza humana. Num caso, como no outro, não existe senão uma única natureza. O divino absoluto é substituído pelo absolutamente humano. Feuerbach proclama a religião da humanidade. O livro que Feuerbach, o materialista, escreveu sobre a natureza do Cristianismo foi escrito no estilo dos livros sobre misticismo. A natureza própria de Feuerbach permanece religiosa. Mas nele a deificação do humano é a deificação da raça, da sociedade, não do indivíduo humano, nem da personalidade. Nesse sentido, sua filosofia, não menos do que a Hegel, permanece como uma filosofia do geral, do racial, do universal. Ele não era um personalista. Essa foi a transição de Hegel e Feuerbach para Karl Marx. Feuerbach marca um importante momento dialético na relação entre o divino e o humano no pensamento Alemão; esse pensamento permanece sendo monista em sua tendência: nele não existe um Deus-homem. Hegel atribui a Deus o que cabe ao homem, enquanto que Feuerbach atribui ao homem o que cabe a Deus. Ambos misturaram o divino e o humano, e a transição de um para outro não foi difícil. Khomyakov sempre predisse que Hegel iria gerar o materialismo. Feuerbach foi cria de Hegel, como mais tarde Marx viria a ser. Assim o destino derrubou a dialética do gênio.

O último passo foi dado por Max Stirner, depois Marx, numa direção, e por Nietsche em outra. Max Stirner tentou ser mais consistente do que Feuerbach. Ele negou a realidade do homem, da sociedade e de outras formas de comunidade. Para ele, a única coisa real era o próprio ego da pessoa, e todo o mundo seria propriedade sua. Seu livro, The Unique and its Property, às vezes lembra algum dos antigos livros sobre o misticismo Alemão, da mesma maneira como o faz o livro de Feuerbach, The Nature of Christianity.  Mas essa é a coisa espantosa. Deveria ser de se esperar que Max Stirner fosse um individualista extremo, e que para ele o mais alto valor fosse a singularidade individual. Mas não é o que acontece. Na verdade, ele é do mesmo tipo de anti-personalista que Hegel. Fica absolutamente claro que o Único de Max Stirner não é o homem em si, não é a pessoa humana, mas um pseudônimo do divino. Max Stirner, assim como Feuerbach, dá a impressão de ser um materialista. Mas numa investigação mais profunda o Único possui um caráter místico, e no livro sobre o Único podemos perceber os tons do velho misticismo Alemão sobre o qual todo processo dialético do pensamento foi concebido. O Único é o universal, não um microcosmo, mas o macrocosmo. Existe um certo elemento de verdade no desejo de que o homem seja o mestre de todo o mundo, mas a filosofia de Stirner é impotente para estabelecer isso.

Em Karl Marx o divino-universal e o geral aparecem sob outra forma, como um coletivo social, como a sociedade perfeita do futuro, na qual também a personalidade humana pode estar fundamentada, como ela está no espírito absoluto de Hegel e no Único de Stirner. Ele faz seu ataque contra o capitalismo porque é nele que acontece a alienação da natureza humana, é nele que acontece a desumanização e que o trabalhador é transformado em coisa (Verdinglichung); e ele pretende restaurar ao trabalhador sua natureza, que foi alienada dele. Essa foi uma ideia notável, e uma extensão, na esfera social, do pensamento de Hegel e Feuerbach a respeito da alienação. É o que eu chamo de objetificação. Mas em Marx se revela um dos limites do humanismo dialético, no qual ele passa ao anti-humanismo. Esse processo possui uma profunda base metafísica. Na medida em que o humano é afirmado como sendo o único e o mais elevado, e que o divino é negado, o humano, por sua vez, passa a ser negado e a ser submetido ao comum, seja ele o Único de Stirner ou o coletivo social de Marx. O anti-personalismo sempre triunfa. Isso se revela de outro modo, mas com a agudeza e o gênio de Nietsche, e em seu destino trágico. Nietsche requer especial atenção. Mas antes de passarmos a Nietsche, devo notar que Kierkegaard, embora não sendo Alemão, estava associado ao pensamento e ao romantismo Alemão, teve a mesma dificuldade em afirmar o Deus-homem, vale dizer, as duas naturezas, ele parecia negar a natureza humana de Cristo.

A vida de Nietsche foi a vida de um frágil e doente professor particular, em retiro entre as montanhas da Suíça; uma vida solitária, sem outra preocupação do que a de escrever livros. E ao mesmo tempo toda a história do mundo palpitava nele, e o destino do homem se realizou nele maios do que nos homens de ação. Nietsche escreveu sobre as últimas coisas e sobre os destinos finais. Podemos definir o tema fundamental da vida e do trabalho criativo de Nietsche da seguinte forma: como é possível experimentar o divino, quando não há Deus? Como pode o êxtase ser experimentado, quando o mundo e o homem são tão basais? Como é possível alcançar o cume das montanhas, quando o mundo é tão plano? Nietsche estava atormentado por um problema que possuía um caráter religioso e metafísico. A questão para Nietsche era acima de tudo de natureza musical, e nisso ele era um Alemão típico. Mas havia uma espantosa falta de correspondência entre sua filosofia (uma Lebensphilosophie[4], mais do que uma Existensphilosophie[5]), e isso se ligava ao Darwinismo e o evolucionismo. A ideia escatológica do super-homem estava baseada na seleção biológica. Na Rússia, Nietsche sempre foi entendido de forma diferente do que no Ocidente, sendo considerado acima de tudo como um filósofo da cultura.

Toda a obra criativa de Nietsche se ocupou com três problemas: a relação entre o humano e o divino, que para ele era o super-homem; o poder criativo do homem, que devia criar novos valores; e o sofrimento, o heroico poder de enfrentar o sofrimento. A aspiração de Nietsche às alturas divinas se expressava na vontade de se erguer acima do homem. Ele pregava o super-homem, que para ele era um pseudônimo do divino. aqui a dialética entre o divino e o humano é levada ao seu limite. Nietsche foi um filho do humanismo Europeu, carne de sua carne, ossos dos seus ossos. Mas ele chegou a repudiar o homem. Nietsche traiu o homem. Para ele o homem era uma vergonha e um desastre, uma mera transição para a nova raça do super-homem.

Tanto o humano como o divino desapareciam no super-homem. O pregador do super-homem aclamou entusiasticamente Napoleão, baseado em que ele era feito do não-humano e do super-humano, e que nele nada havia de humano. Ele se engajaria sob a bandeira do destino (amor fati), e não desejava a vitória do homem sobre o destino, como queria Marx. Nisso ele encontrava o sentido trágico da vida; daí sua animosidade contra Sócrates, sua idealização dos instintos, seu misticismo de sangue, que se assemelha ao de Arthur Gobineau. Ele foi um defensor do princípio da hereditariedade e da aristocracia. Ele é considerado um individualista, mas era um anti-personalista. Ele não se deu conta de que Dionísio era democrático, não aristocrático. Antagônico em relação ao Cristianismo, que ele conhecia apenas de uma maneira burguês e decadente, desprovida de seu heroísmo, ele não obstante pretendia saber algo a respeito. Ele entendeu que o Cristianismo constitui uma revolução contra o princípio aristocrático da antiga civilização – “os últimos serão os primeiros”. Com Nietsche, assim como todo o pensamento Alemão antes dele, não existem duas naturezas; não existe encontro; não existe o mistério do Deus-homem. Existe apenas e tão somente, definitivamente, uma natureza. Ele é visto como um ateu. Isso é uma super simplificação, uma falha em compreender que o pensamento e as ideias conscientes não exaurem a profundidade do homem. Foi com amargura e sofrimento que Nietsche disse que Deus havia sido morto. Existe uma imensa diferença entre o ateísmo de Feuerbach e o de Nietsche. Nietsche gostaria que Deus retornasse.

Deus o atormentava, como atormentava os heróis de Dostoyevski. Ele chegou perto da questão de Kirilov[6]. Sua busca era pelo super-homem; mas o que devemos buscar é um homem que seja plenamente homem. O homem atual ainda não é um homem pleno; ele é ainda meio animal, e com frequência pior do que o animal. Existe uma arraigada contradição na atitude de Nietsche em relação ao homem. Para ele o homem é uma vergonha e uma desgraça. Ele gostaria de nada ter de humano; ele vê o homem apenas como um meio. Mas ao mesmo tempo ele dota o homem de uma capacidade de criação, de criação de valores, de criação de um novo mundo, e de uma capacidade de resistência heroica ao sofrimento.

O maior serviço prestado por Dostoyevski foi sua colocação do problema da criatividade. Ele buscava o êxtase, e para ele o êxtase estava conectado à criatividade. Ele estava convencido d3 que o homem podia criar novos valores. Na sua visão, a verdade é criada e não revelada. A verdade não é um dado e não pode ser recebida passivamente pelo homem. Ela é criada num processo vital na luta pelo poder. E a vida constitui um processo criativo no qual todos os valores são criados. Em minha própria terminologia podemos dizer que o que pode ser conhecido como a verdade objetiva é uma ilusão do objetivismo. E Nietsche estava certo em sua sede por criatividade, em sua crença na criatividade. E, de fato, a partir desse ponto de vista Cristão – tão estranho a Nietsche – a verdade é o caminho e a vida, não uma coisa, não uma realidade na esfera das coisas. O homem é capaz de criar novos valores, ele é capaz de criar uma nova vida. Mas existem limites para o poder criador do homem. O homem não pode criar seres vivos; ele apenas pode gerá-los; ele não é capaz de criar sequer uma mosca, e nisso existe um significado muito profundo. Uma criatura criada pelo homem não possuiria uma imagem viva: ela seria um mecanismo.

O colapso de Nietsche provém do fato de que ele pretendia que o homem criasse o super-homem, ele queria que o divino, até então não existente, fosse criado pelo homem, ele queria que o menor gerasse o maior. Mas, de que fonte de dentro de si poderia esse mero nada que é o homem – e Nietsche considerava o homem um mero nada – extrair o poder para criar o super-humanamente divino? para justificar a criatividade do homem, sua criação de novos valores, seria necessária uma nova antropologia. Mas a própria filosofia de Nietsche, sobre a qual ele baseava sua antropologia, era antiquada. Ela não podia encontrar um poder criador no homem. O homem, o mero nada enquanto criatura, deveria criar a Deus. A dialética entre o divino e o humano conduziria à negação tanto do divino quanto do humano, e ao seu desaparecimento no fantasma do titânico super-homem. A enfermidade da qual ele sofria costuma ser considerada como uma explicação para a loucura de Nietsche, mas deveríamos também considerá-la, de um ponto de vista espiritual, como o resultado de um esforço desmesurado e inumano para se erguer a alturas vertiginosas, onde simultaneamente nenhuma altura havia. Esse foi um passo na aspiração ao heroico nada que é característico do espírito Alemão.

Tal foi a estupenda visão de Nietsche de um mundo dionisíaco. Duas ideias o possuíam: a ideia do eterno retorno e a ideia do super-homem. Essas ideias são mutuamente inconsistentes. A ideia do eterno retorno não passa da antiga ideia Grega do movimento cíclico. A ideia do super-homem é uma ideia messiânica e, como todo messianismo, possui fontes Persas, Judaicas e Cristãs. Não foi por acaso que Nietsche tirou dos Persas o nome da maior produção de seu gênio, que introduzia a ideia escatológica no pensamento religioso. Eu dou pouca importância à sombria ideia de um eterno retorno, mas a ideia do super-homem é imensamente importante. Em Nietsche, a orientação para o futuro e para o passado se combinavam, Prometeu e Epimeteu. Nele se combinavam tanto elementos revolucionários, como reacionários, do espírito. Ele foi uma vítima da negação da criatividade humana pelo Cristianismo histórico.

O outro problema levantado por Nietsche foi o do sofrimento. Ele próprio sofreu uma situação extrema: uma doença incurável e uma solidão desesperançada. Ele lutou heroicamente contra o sofrimento. Nenhuma dor evitou seu trabalho criativo. A capacidade de reagir ao sofrimento era para ele a medida do valor de um homem. Ele desejava suportar o sofrimento sem consolo algum. Ele se rebelou contra o Cristianismo porque ele poderia lhe dar um sentido para o sofrimento e, assim, oferecer consolo. Somente a resistência ao sofrimento, sem nenhum tipo de consolação, sem nenhuma esperança em outra vida, poderia ser considerada heroica, e para ele isso estava ligado a um sentimento trágico da vida. Ele buscava o perigo; ele gostava de andar na beira do abismo; ele recusava qualquer garantia de vida. Como pode sua atitude perante o Cristianismo ser entendida em seu sentido mais profundo? Ele era um inimigo do Cristianismo; ele via a si mesmo como seu mais terrível carrasco. Ele escreveu sobre o Cristianismo em termos injuriosos e injustos. Ele escreveu o Anticristo, provavelmente a mais fraca de suas obras. Mas, ao mesmo tempo, Nietsche foi um homem que sentiu o doloroso toque de Cristo e da problemática Cristã. O anti-eros e o eros estavam ligados. Ele lutou contra Cristo, mas combateu como um homem que amava a Cristo no fundo de seu ser. Quando ele já se encontrava num estado de loucura, ele assinava suas cartas como “o Ferido”. Esse é indubitavelmente um forte elemento Cristão que ele carregava, embora distorcido.

Nietsche, o inimigo, estava muito mais próximo do Cristianismo do que Goethe, o bem disposto, que não se deixou minimamente tocar pela questão Cristã. Goethe era-lhe indiferente. Talvez tenha sido ele o único homem do período Cristão a ter passado pelo Cristianismo sem ter sofrido nada dele. Ele dispunha sua vida interior sem traço algum de Cristianismo. Por esse motivo ele é às vezes chamado “o grande pagão”. Mas ele também estava inconsciente da trágica religião Grega de Dionísio. Sabemos que Goethe tinha muito medo do sofrimento e que lutava por escapar a ele; tampouco era ele um apaixonado pela tragédia. Heinrich Von Kleist o repeliu e foi muito injusto com ele. Algumas vezes sua atitude perante o sofrimento transmitia a impressão de covardia, embora ele fosse um homem forte. Por outro lado, não podemos imaginar Nietsche fora do período Cristão da história, por mais que ele tivesse sua atenção voltada para a Grécia antiga. Seu destino foi o destino de um Europeu dentro do mundo Cristão, um dos caminhos que o homem Cristão segue, o cume de sua dialética existencial.

O caso de Nietsche está essencialmente conectado com a dialética entre o divino e o humano. Essa questão já havia sido colocada pelo velho misticismo Alemão. Em Eckhardt e em Angelus Silesius a própria existência de Deus dependia do homem. Isso sempre foi muito perturbador para os teólogos, que tentavam encontrar um sentido intelectual e ontológico para isso, ou seja, um sentido herético, na medida em que se tratava da expressão de uma experiência espiritual. Quando os místicos diziam que Deus dependia do homem, essa colocação podia ser entendida de duas maneiras, tanto reconhecendo-se a existência de duas naturezas que se encontram no amor e interagem, como existindo apenas uma natureza, que para uns é divina, para outros humana. O caminho da metafísica Alemã conduziu em última análise a Nietsche, para o qual o humano que ele criou implicava a desaparição tanto de Deus quanto do homem. A importância de Nietsche é imensa. Nele, a dialética interior do humanismo encontra sua plenitude. Seu aparecimento conduziu à possibilidade e à necessidade de uma nova revelação referente ao homem e ao humano, para completar a dialética entre o divino e o humano.

Kierkegaard propôs se deveria começar, não a partir da dúvida, mas da desesperança. Para ele, a desesperança era a distância entre o subjetivo e o objetivo. Mas a verdade deveria se revelar na experiência da desesperança. O interior jamais poderia se expressar por inteiro no exterior. Para mim, isso significa que o espírito, que está sempre oculto no subjetivo, não pode se expressar pela objetificação, pois nesta ele aparece distorcido. Kierkegaard é uma das fontes da filosofia existencial. Isso fica evidente pelo fato de que, segundo ele, o homem e sua existência não podem ser objeto. A filosofia existencial está conectada com a agitação religiosa, e no próprio Kierkegaard ela é determinada pela experiência Cristã. Os homens, em sua visão geral de vida, diferem radicalmente uns dos outros, conforme reconheçam a existência “de outro mundo”, ou apenas “deste mundo”. A própria experiência de Kierkegaard era Cristã, mas era uma experiência de natureza religiosa movida pela divisão, pela ruptura com o Deus-homem, pelo esquecimento de Deus.

Em Heidegger, o mais vigoroso dos filósofos “existenciais” modernos, já podemos perceber um estado de coisas diferente. Kierkegaard teve certa influência sobre seus problemas, mas nele Deus era substituído pelo mundo, e a desesperança não desembocava em outra coisa diferente. Ele pretendia construir uma ontologia, e construí-la utilizando o mesmo método e o mesmo modo como um filósofo acadêmico o faria. Isso é uma contradição radical com a filosofia existencial, que não admite a possibilidade de uma ontologia, porque esta se baseia sempre na objetificação e na racionalização. Heidegger passou pela escola de teologia Católica e isso transparece em seu ensinamento sobre a Queda, o Geworfenheit[7] do Dasein. Mas a brecha entre a existência humana (Dasein) e o divino, alcança aí sua expressão extrema. Dasein é apenas in-der-Welt-sein, estar no mundo. O nada é a base do Dasein. Trata-se de uma filosofia do nada. Dasein substitui o sujeito. Aqui, como em Sarte, o fenômeno, aquilo que revela a si próprio, possui um sentido diferente daquele que encontramos em Kant. “Estar no mundo” implica ansiedade, “ser” é ansiedade. Daí provém o sentido do tempo. O pensamento de Heidegger é oprimido pelo mundo da ansiedade. Aqui não existe espírito, nem liberdade, nem personalidade. Das Man é um estúpido lugar comum, sujeito a uma existência cotidiana da qual não existe saída real. Sua metafísica esta enterrada na existência humana, no caos de uma vida cruel.

A filosofia de Heidegger pertence inteiramente a uma época diferente daquela dos positivistas, materialistas e ateus do século XIX. Nele encontramos o pecado original, um legado do Cristianismo. Nele, a existência do mundo e do homem é Verfallen, decaída. Mas quando ocorreu essa Queda? Onde devemos buscar a culpa disso? Aqui se disfarçam coisas como valores morais. Aqui surge, como um legado do idealismo, que a verdade não consiste numa correspondência com o objeto, que é o homem quem comunica a verdade ao mundo conhecido. Mas não existe uma justificação para a possibilidade do conhecimento. Ao mesmo tempo, Dasein é a existência histórica. A história revela o universal no um. A criação do futuro é a projeção da morte. Heidegger fala em Freiheit zum Tode, a “liberdade na morte”. O objetivo de nossa existência consiste na liberdade de olhar a morte cara a cara. A arte, a política, a filosofia, lutam com o caos, com a crueza da existência primordial. Mas onde poderemos encontrar forças para tanto? A metafísica de Heidegger está ligada à finitude da existência humana. Existe no homem uma passagem para o infinito; o mundo é um mundo de cuidados, de medo, de abandono, de coisas tolas e prosaicas – um mundo terrível. É a metafísica do abandono de Deus levada ao seu extremo limite. Mas o divino não aparece sob nenhum pseudônimo, como em Feuerbach, Stirner, Nietsche e Marx, e não há satisfação alguma em que ele seja derivado do mundo. O pessimismo de Heidegger é mais consistente e mais terrível do que o pessimismo de Schopenhauer, que tinha consciência de uma certa consolação.

O ser triuno de Deus não consiste apenas numa fórmula escolástica, mas trata-se de uma verdade do escolasticismo teológico, e que possui um significado existencial profundo. Nele encontramos um número sagrado, porque ele indica a completude, a superação de toda dualidade e divisão. Todo o caráter distintivo do Cristianismo reside no fato de que ele não é um puro monismo; é precisamente isso que levantou a oposição e a animosidade do Judaísmo conservador. A tendência puramente monista da Cristianismo e do Islamismo derivam do Judaísmo. A natureza triuna de Deus aponta para uma vida espiritual interior Nele e essa vida está em todo o mundo. A revelação do Deus Triuno é a antítese da concepção de Deus enquanto ato puro, enquanto um ser abstrato que não apresenta em si mesmo nenhuma existência concreta. Na Santa Trindade existe o Um e existe o Outro, e existe uma saída, uma solução, no Terceiro.

Diz-se de Hegel que ele substituiu a Trindade religiosa Cristã por uma trindade puramente filosófica na qual se perdeu o sentido religioso. Mas seria mais verdadeiro dizer que a trindade de Hegel foi tirada da experiência religiosa Cristã, recebendo então uma expressão filosófica. A filosofia depende da religião. A Humanidade eterna é o divino Outro, a Segunda Pessoa da Divindade. A comunidade humana e cósmica, livre e amorosa, é a solução para a divina Trindade, a Terceira Pessoa da Divindade.

Aquilo q eu é exotericamente chamado de criação do mundo consiste na vida interior de Deus, e isso não deve ser reduzido a uma identificação, ao monismo ou ao panteísmo. Temos aqui uma antinomia que é racionalmente insolúvel. O Panteísmo é uma racionalização. Existem duas naturezas, a divina e a humana, que não são identificáveis. Mas ambas estão na divina Trindade. O divino Outro é eterno. A divina humanidade e a divina Trindade estão misteriosamente unidas, o mistério do dois (o Deus-homem) e o mistério do três (a divina Trindade). O mistério da divina Trindade é a antítese da concepção de Deus como mestre e dono do poder, como um monarca autocrático. Em Deus não existe apenas unidade, como também uma pluralidade ideal. Em todos os desvios heréticos dos primeiros séculos, que discutiram a expressão intelectual dos divinos mistérios, havia uma verdade parcial. Em especial no Sabelianismo, condenado pelo pensamento da Igreja, havia alguma verdade, embora incompleta. A Trindade é o modus de revelação do Deus uno da época da revelação. Mas para o pensamento racional acostumado a pensar por conceitos, tudo aqui se passa no fio da navalha, e o que é verdade passa facilmente como erro, e um erro pode se revelar verdade. A distinção que Eckhardt e o misticismo Alemão estabelecem entre Gottheit e Gott, entre a Divindade e Deus, e que deriva da teologia apofática, foi de enorme importância. Existe um mistério Divino que é inexprimível, que está além do Criador e da criação, e existe um mistério da Trindade que está voltado diretamente para o mundo. O Deus que revela a Si mesmo ao mundo e ao homem não é o Absoluto. O Absoluto não pode ter nenhuma relação com o que quer que seja; o Absoluto é um mistério inexprimível. A Divindade é um mistério inexprimível no qual, acreditamos, tudo irá se resolver. Mas Deus é um Mistério que tende a revelar a Si mesmo.

Não estamos falando de vários deuses, mas de um e mesmo Deus que se oculta e se revela em diferentes graus. E a distinção reside aqui não no objeto, mas no sujeito. Na história do pensamento religioso do homem e das sociedades humanas surge uma certa objetificação de Deus. A teologia catafática se refere a um Deus que foi objetificado. A isso corresponde um certo estágio na socialização do Cristianismo. Mas a teologia apofática, ou mística, supera os limites da concepção objetificada de Deus, e a libera de um antropomorfismo distorcido, da interpretação das relações entre Deus e o homem em termos de estado e de autoridade, de procedimento legal e punição. A ideia de Feuerbach de que o homem atribui a Deus sua própria natureza superior, não é um argumento a favor da negação de Deus; ao contrário, é o oposto que acontece. Ela não faz mais do que apontar que existe uma mensurabilidade entre Deus e o homem, não com o homem como criatura natural e social, mas enquanto espírito livre.  A dialética existencial da divina Trindade, assim como a dialética do divino e do humano, acontece em qualquer profundidade da existência.

A dialética da Divina Trindade pressupõe épocas de revelação trinitária, vale dizer, ela leva à admissão da possibilidade, e mesmo da necessidade, de uma terceira revelação. Mas isso significa que as duas épocas precedentes sejam interpretadas à luz da Trindade, ou seja, à luz da revelação do Espírito como revelação final. Somente no Espírito a revelação da Divindade e do Deus-homem se completa e é coroada; e essa é uma revelação de liberdade, de amor, de criatividade, uma revelação daquilo que Deus criou. Aqui aparece a combinação da teologia mística apofática com a antropologia existencial catafática. As controvérsias a respeito do transcendente e do imanente que, pela via do idealismo Alemão, chegaram a muitos movimentos dentro do modernismo Católico e Protestante, estão ultrapassadas. A doutrina da imanência de Hegel ou de Hartmann, de tipo claramente monista, permanecem fora da questão que nos interessa no momento, da do Deus-homem.

A velha doutrina da imanência, assim como o velho evolucionismo, não compreende o momento catastrófico de interrupção da experiência espiritual, nem a quebra do caminho espiritual. A esse respeito, a aparição de Kierkegaard foi de grande importância. A filosofia existencial, se quiser mergulhar fundo na existência do sujeito e basear-se na experiência espiritual, não pode ser uma filosofia imanente no sentido do século XIX. Mas aqui encontramos contradições e antinomias. A revelação do divino no homem e a exaltação do humano ao divino possui o caráter de uma interrupção, de um ato de transcendência. Existe no homem uma experiência espiritual do transcendente e da transcendência. É impossível negar a realidade dessa experiência, sem violência. O homem é uma criatura que transcende a si mesmo, que vai além de seus próprios limites, e que possui uma ávida aspiração ao mistério e ao infinito. Mas a experiência do transcendente e da transcendência é interior e espiritual, e nesse sentido ela pode ser considerada imanente. E aqui entendemos por imanência, não jazer dentro de seus próprios limites, mas ir além dessas fronteiras. O transcendente alcança o homem, não de fora, mas desde dentro, a partir de suas profundezas. Deus está mais no fundo de mim do que eu próprio. Isso já havia sido dito por Santo Agostinho. Eu devo transcender por mim mesmo. A profundeza está oculta no homem, e essa profundeza requer um rompimento, uma transcendência. Através da transcendência o mistério se torna claro, e isso é a revelação.

A revelação do transcendente não é um processo evolutivo; é um processo trágico no homem. A revelação é objetificada e socializada, tornando-se assim imanente no nível do pensamento humano e da sociedade. Profetas, apóstolos, santos, místicos, passaram além das fronteiras dessa imanência maligna. As pessoas falam do imanentismo do místico, mas esse imanentismo não tem nada em comum com o imanentismo da experiência medíocre, familiar, cotidiana e social, com o imanentismo da consciência limitada. A revelação do transcendente no mundo não é uma evolução, mas pressupõe épocas, graus, tanto em relação ao homem como em relação à história da humanidade, e aqui nos encontramos no limite entre uma velha época moribunda e o nascimento de uma nova época de revelação, um novo éon. Aquilo que acontece nas profundezas do homem, acontece também nas profundezas de Deus. Quando pensamos em questões que estão além dos limites do pensamento, que podem tomar várias direções, sempre surgem tentativas de racionalizar o mistério, nas quais encontramos suporte; é o que acontece com as traduções para a linguagem de conceitos de coisas que são inexprimíveis em conceitos. Mas isso não significa que não possamos expressar nada em linguagem humana. Nela o Logos está presente, embora não completamente, e um movimento em direção às fronteiras, em direção ao mistério, só é possível através da linguagem. As ideias finais existem. Mas o processo de pensamento deve ser impregnado por uma experiência espiritual integral. O agnosticismo consiste numa limitação errônea das possibilidades humanas. O gnosticismo pode ser afirmado, mas ele deve ser existencial. O velho gnosticismo dos primeiros séculos, no qual havia uma distorção da experiência espiritual, lidava com mitos. Ainda temos que lidar com mitos, e não podemos ser limitados por conceitos. Mas nossos mitos são de outro tipo, não são os velhos mitos cósmicos associados ao paganismo. Não, o mito fundamental é o mito do divino-humano e do Deus-homem, e esse mito é realista.

Não é possível sustentar uma concepção estática de Deus. O Deus Cristão, em particular, o Deus da religião da Verdade crucificada, só pode ser entendido dinamicamente. Existe em Deus um processo dinâmico criativo que se realiza na eternidade. Isso não deve ser entendido como se Deus dependesse do mundo e dos processos que acontecem no mundo, mas sim que os processos que acontecem no mundo estão interiormente ligados com o processos que ocorrem em Deus, na eternidade, e não no tempo; vale dizer, eles estão ligados com o drama divino, e é apenas nessa medida que as coisas que acontecem no mundo e no homem adquirem um sentido eterno. Um mundo e um homem que não fossem, de modo algum, necessários a Deus, seriam mero objeto do acaso, pelo simples fato de que seriam desprovidos de sentido. Aquilo que realmente não apenas limita a Deus, como degrada o homem, é uma imobilidade pétrea, insensível e autossuficiente. Em Deus existe um anseio pelo Seu amado e isso confere o mais alto significado a esse último. Crer em Deus equivale a crer na mais alta Verdade, na mais alta Justiça, exaltadas acima dos desvios desse mundo. Mas essa Verdade exige a participação criativa do homem e do mundo. Ela é divina humana; é nela que opera a humanidade ideal.

Nessa conjunção da Verdade absoluta de Deus com a verdade humana se esconde todo o mistério da vida religiosa. Várias justificações intelectuais e otimistas da vida foram estabelecidas pelos homens; eles justificaram a vida tanto por meio da ideia teológica tradicional da Divina Providência que está presente em toda parte (Deus é tudo), como por meio de uma ideia panteísta idealista de um mundo desenvolvido pelo espírito, pela Razão, que é a ideia de Hegel, de Schelling e de outros grandes idealistas, como ainda por meio da ideia positivista do progresso do mundo para a perfeição, para uma vida humana mais racional, livre e justa no futuro.  O que essas formas de justificação de fato fazem é refletir princípios irracionais nesse mundo fenomênico. Elas não explicam a existência do mal que triunfa no mundo; elas não conseguem discernir o caráter trágico dos processos do mundo, e não conseguem criar a possibilidade de construção de uma teodiceia. Para mim, o que há de mais incompreensível, são as formas de panteísmo histórico, que é mais disseminado do que compreendido, e que se introduziram mesmo nos mais ortodoxos ensinamentos teológicos. Não é o panteísmo, mas o dualismo que é válido para o mundo fenomênico, pois nesse acontece uma luta entre princípios polares opostos. Mas esse dualismo não é final. Ainda não foi proclamada a última palavra, e ela pertence a Deus e à Verdade divina, que está além do otimismo ou do pessimismo humano; e é nisso que reside nossa fé final. Isso ultrapassa a tragédia nascida da liberdade que constituiu o caminho do homem e do mundo incluído nele. Para esse mundo além, nenhum dualismo, nenhuma divisão entre paraíso e inferno, tão ruidosos aqui e agora, poderão ser transferidos.

A queda do homem permitiu, não um processo legal entre Deus e o homem, do tipo que aparece nas consciências limitadas, mas uma batalha dramática; o esforço criativo do homem responde ao chamado de Deus. Não é apenas Deus que age no mundo, nem somente a liberdade do homem, mas também o Destino. Esse Destino indica uma queda na esfera exterior; ele implica o misterioso abandono de Deus. Mas trata-se apenas do caminho, para a consciência Cristã, para a religião do Espírito. O Destino é algo que pode ser superado. Por uma questão de lógica, seria inconsistente dizer que o processo no tempo enriquece a eternidade, porque a eternidade abarca o tempo. Mas o que é inconsistente na esfera da lógica pode ter um significado existencial para nós.






[1] Jansenismo: conjunto de princípios estabelecidos por Cornélio Jansênio 1585-1638, bispo de Ipres condenado como herege pela Igreja Católica, que enfatizam a predestinação, negam o livre-arbítrio e sustentam ser a natureza humana por si só incapaz do bem.
[2] “A religião do Deus onisciente”. Selbst (próprio, seu) + Bewusst (conhecimento, saber).
[3] Grund foi usado por místicos como Eckhardt para designar a mais profunda essência da alma, onde está em contato com Deus. Eckhardt fala também em Abgrund (“abismo”) de Deus e da alma, e místicos posteriores introduziram Ungrund (“não-fundamento”) e Urgrund (“fundamento original”). Para Boehme, o Ungrund é o primeiro estágio do processo divino, a unidade fechada em si mesma que depois gera Grund, o segundo estágio. Schelling também se referiu à “identidade absoluta”, que precede todos os fundamentos e toda a existência como Urgrund ou Ungrund. (Michael Inwood – Dicionário Hegel, pg. 153)
[4] Escola filosófica de pensamento que enfatiza o significado, o valor e o propósito da vida como o principal foco da filosofia.
[5] Filosofia da existência.
[6] Personagem do livro Os Demônios, de Dostoyevski, que alguns consideram um precursor de Zaratustra, na temática do super-homem nietzschiano.
[7] Literalmente, “ser atirado para fora” do Ser.