quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Nikolai Berdiaev - O Divino e o Humano - Capítulo III





Desenvolvimento e Novidade


É impossível negar o fato cabal do desenvolvimento e o reconhecimento desse fato certamente não implica o reconhecimento da teoria da evolução, tal como ela se encontra expressa nas teorias evolucionárias da segunda metade do século XIX. A vida do mundo é, acima de tudo, movimento, mudança de posição no espaço e no tempo, e é bastante espantoso o fato do desenvolvimento só tenha sido observado tão tardiamente pelo pensamento humano. Devemos dizer, entretanto, que já no pensamento Grego existiram os germes dessa doutrina do desenvolvimento. Na opinião de Heráclito, tudo acontece numa corrente de mudanças, todas as coisas existem nesse fluxo. Mas foi a ontologia estática de Parmênides e Platão que acabou por prevalecer. A doutrina Aristotélica da potência e do ato pode ser entendida como uma explanação da mudança que acontece no mundo. Os grandes idealistas do princípio do século XIX, Schelling, Hegel e outros, tinham uma doutrina do desenvolvimento, mas não colocada de forma naturalística. Na visão deles, tratava-se do desenvolvimento do espírito.

A doutrina naturalística da evolução, por outro lado, tem sua fonte nas ciências biológicas. Isso se entende facilmente na medida em que aquilo que se desenvolve é, acima de tudo, a vida. A vida sempre teve a tendência de crescer e se desenvolver ou decair e morrer. Tudo o que é vivo se desenvolve. Não existe imobilidade no mundo, tudo muda e se desenvolve, mas existe também uma vis inertiae que se opõe a toda mudança e que é hostil a tudo o que é novo. A vida no mundo está organizada e se desenvolve na direção de formas mais elevadas. O elemento irracional é a fonte da vida que é capaz de se organizar, mas, ao mesmo tempo, ele apresenta ao final uma resistência à racionalização. Não é apenas o desenvolvimento, o surgimento de algo que não havia antes, que caracteriza a vida humana; existe também um processo de endurecimento, de materialização. Duas tendências diametralmente opostas lutam na vida. A atitude das pessoas em relação à mudança que existe no mundo deve ser dupla. A vida é mudança, e sem a presença do novo não existe vida. Mas a mudança é traiçoeira. A realização da personalidade humana pressupõe a mudança e a novidade, mas também pressupõe a imutabilidade, sem a qual tampouco existe a personalidade. No desenvolvimento da personalidade o homem deve ser verdadeiro consigo mesmo; ele não deve se trair; ele deve preservar suas características, que lhes foram pré-ordenadas desde a eternidade. É algo necessário para a vida que o processo de mudança que conduz ao novo seja combinado com a fidelidade.

Eu já disse que o reconhecimento do fato fundamental do desenvolvimento da vida de modo algum requer uma teoria evolucionista à maneira de Darwin, Herbert Spencer ou Haeckel. Esse tipo de teoria da evolução está ultrapassado tanto científica, como filosoficamente. O evolucionismo do século XIX era uma forma de determinismo naturalista, e jamais foi capaz de explicar as origens da evolução. Ele falava de resultados da evolução, de formas da mudança, mas nunca das origens e causas. Na teoria evolucionista do século XIX não havia nenhum objeto de desenvolvimento, nenhum fator interno de desenvolvimento. O evolucionismo é, de fato, uma teoria conservadora que nega a criatividade no mundo. Ela reconhece apenas a redistribuição de partes do mundo. A mudança acontece como efeito de impulsos externos, e não se detecta nenhuma mudança que aconteça interiormente, a partir de uma atividade interna, a partir da liberdade. As influências externas, os impulsos exteriores prosseguem indefinidamente, mas o interior jamais é alcançado, não existe um núcleo, de espécie alguma, que possua uma energia criativa. Mas o desenvolvimento real, que a teoria evolucionista toma como proveniente do exterior, é resultado de processos criativos internos. A evolução é meramente a expressão, no plano horizontal de processos criativos que se realizam na vertical, desde as profundezas.

O materialismo dialético, tal como foi adotado na União Soviética, foi uma tentativa de introduzir correções na teoria da evolução em de reconhecer o movimento autônomo dentro dela. Assim é que a matéria foi ditada das qualidades do espírito, com uma atividade criativa, liberdade e inteligência. Assim a violência adquiriu uma linguagem. Era preciso uma reavaliação transversal que repudiasse as bases aceitas do determinismo naturalista. As leis da natureza não existiriam, vale dizer, leis que dominassem o mundo e o homem como tiranas. Tudo o que existe consiste numa direção na ação das forças que agem uniformemente numa correlação dada, com vistas a seu resultado. Uma mudança na direção das forças pode alterar a uniformidade. Na base primária dessas forças apresenta-se um princípio espiritual, o noúmeno. O mundo material é apenas a exteriorização e a objetificação de princípios espirituais. É um processo de esclerose, de agrilhoamento. É preciso dizer que as leis não passam de hábitos das forças atuantes, e, frequentemente, de maus hábitos. O triunfo das novas forças espirituais pode mudar o efeito do perfil mensurável da necessidade. Isso pode trazer novidades criativas.

A doutrina do desenvolvimento dialético de Hegel chegou a um enfrentamento mais profundo do que o ensinamento evolucionista da segunda metade do século XIX, embora seu caráter não seja naturalista. Trata-se de um movimento dialético do espírito, que acontece de acordo com um esquema triplo de tese, antítese e síntese. O desenvolvimento está condicionado por uma oposição interior que exige solução. A dor da negação desempenha um enorme papel na dialética de Hegel. A dialética, o dinamismo, são determinados pelo fato de que existe o outro, e isso vai muito fundo. Para o bom funcionamento da teoria evolucionista não existe o outro, e, portanto, não existe verdadeiro dinamismo. O monismo de Hegel, que afirma a unidade do ser e do não-ser, a identidade dos opostos, na medida em que é distinto do monismo de Spinoza, é dinâmico. Na filosofia de Hegel estavam em preparo materiais explosivos, apesar do fato de que o próprio Hegek fosse politicamente conservador. Seu erro foi acreditar numa resolução imanente da dialética dos opostos, enquanto que a dialética dos opostos exige o transcendente. O imanentismo amortece o limite das contradições dialéticas. A teoria evolucionista naturalista bidimensional não reconhece contradições. O desenvolvimento dialético mediante a contradição contém uma grande verdade. Aí reside o caminho da história, e aí transcorre o destino do homem.

Mas em Hegel a liberdade não é causa do desenvolvimento, ela é resultado do desenvolvimento. A liberdade é um efeito da necessidade, ela é uma necessidade admitida. A doutrina de Hegel do desenvolvimento dialético é, da mesma forma, determinista, não de um determinismo naturalista, naturalmente, mas lógico. O processo de vir-a-ser é o resultado logicamente necessário e inevitável da correlação entre o ser e o não-ser. Kierkegaard tentou se libertar do determinismo, e na sua visão todas as coisas novas acontecem aos saltos, mas isso implica que todo o novo acontece como resultado da liberdade, e por intermédio da liberdade. De qualquer modo como a entendamos, a evolução é sempre uma objetificação, e é isso que a distingue da criatividade. O título da obra de Bergson, A evolução criativa, é discutível e é uma evidência da presença de elementos naturalistas em sua metafísica. A criatividade pertence ao reino da liberdade, enquanto que a evolução pertence ao reino da necessidade. Eu já disse que o velho evolucionismo está obrigado a negar a possibilidade do novo criativo. Ele está amarrado ao ciclo das forças cósmicas.

O surgimento do novo, daquilo que não existia antes, é o maior mistério da vida do mundo. Não apenas o círculo fechado da natureza, como o círculo mais profundo, igualmente fechado da existência, não permitem e não podem explicar o surgimento do novo. O mistério do surgimento do novo está conectado com o mistério da liberdade, que não pode ser derivado da existência. O ato criativo da liberdade é um rompimento com o mundo fenomênico natural. Ele deriva do mundo noumênico. O ato criativo da liberdade não é resultado do desenvolvimento. O desenvolvimento é que é resultado do ato criativo da liberdade, que é objetificado. É um mistério que começa a se revelar movimentando-se nas profundezas, nas profundezas insondáveis, não através de um movimento exterior, como na teoria evolucionista. A queda do mundo objetificado, no qual reinam a necessidade e o destino, foi determinada pela direção da liberdade nas profundezas, pela ruptura do Deus-homem; e o impulso ascensional só pode ser adquirido por meio do restabelecimento da ligação divino-humana. O mundo criado é um mundo de possibilidades; não se trata de um mundo pronto, acabado e estático. Nele, o processo criativo deve continuar, e deve fazê-lo através do homem. Todas as possibilidades devem ser reveladas e realizadas. E é assim que o desenvolvimento criativo do mundo deve ser entendido como o oitavo dia da criação. A criação do mundo não é apenas um processo que vai de Deus para o homem. Deus pede ao homem um novo criativo; Ele espera pelas obras da liberdade humana.

O processo de desenvolvimento deve ser aplicado também à história da religião e à história do Cristianismo. É impossível entender o Cristianismo de modo estático. Como eu já disse, existem épocas de revelação, e existem éons de história do mundo. Existe uma inspiração criativa na aceitação da revelação; e sua humanização, em termos da mais alta humanidade – que é Deus, enquanto humanidade – é também um fato. O desenvolvimento, no Cristianismo, possui um caráter duplo. Por um lado, ele representou aperfeiçoamento, enriquecimento, criatividade, quando uma novidade real fez sua aparição; por outro lado, ele trouxe consigo deterioração, distorção, adaptação ao nível humano médio, traição às origens, afastamento em relação à sua natureza primitiva. E devemos ser capazes de perceber essa distinção. O Cardeal Newman e Vladimir Soloviev reconheceram a possibilidade do desenvolvimento dos dogmas, a plena abertura daquilo que até então fora insuficientemente revelado. Mas eles não o reconheceram adequadamente, não estabeleceram conclusões minuciosas a partir disso. O desenvolvimento do Cristianismo no mundo constitui um processo divino-humano complexo, e deve ser visto sob a luz da divina-humanidade. As fontes da revelação devem ser entendidas sob uma luz nova e mais forte. A mudança de consciência, a total revelação da real natureza humana, a crescente complexidade e o refinamento das almas, tudo conduz a isso, que uma nova luz se projetou sobre a verdade religiosa; isso equivale a dizer que a revelação, que parte da Verdade eterna, não foi dada estaticamente, de uma forma completa e final, e que ela possui sua própria história interior.  

Conectado a isso está o problema dos movimentos modernistas do pensamento Cristão ao longo dos séculos XIX e XX. A própria palavra “modernismo” tem o defeito de produzir uma impressão de sujeição do eterno ao temporal. Na verdade, o que está de fato em discussão é a emancipação em relação à alegação de poder do temporal e do histórico, e o crescimento em direção ao eterno. Aquilo que se apresentou como sendo o eterno na vida religiosa foi, com mais frequência, o poder do temporal, ou seja, uma deficiência na espiritualidade. Por essa razão eu prefiro não utilizar o termo “modernismo”, mas usar o termo “pneumatismo”. O modernismo está correto quando se trata das mudanças que ocorreram no meio humano e na consciência humana, e, em sua dependência em relação a essas mudanças, a recepção da revelação também muda. A fronteira da estratificação histórica foi ultrapassada; abriu-se um caminho para novas revelações, ou melhor, para a única revelação, para o coroamento da revelação do Espírito.

Os movimentos modernistas estavam especialmente conectados com a relação do Cristianismo com o terrível crescimento do conhecimento científico e com as mudanças da vida social. Esses movimentos não alcançaram a profundidade, mas foram úteis como processos purificadores e preparatórios. A fé do home teve que ir além do ceticismo, através de lutas do espírito; só assim ela pôde adquirir seu mais alto valor. O homem se move adiante através da dúvida, da dicotomia, do sofrimento, e somente quando supera tudo isso ele se torna espiritualmente temperado e pronto para os mais altos graus de espiritualidade. Dostoievski estava certo ao dizer que sua fé passara pelo refino da fornalha da dúvida, para o qual os ateus superficiais não estavam preparados. O que acontece com o homem, e com o homem na história, tem uma enorme importância para a plenitude da verdade divino-humana. O mundo muda de acordo com a perspectiva da qual é visto, de acordo com o grau de crescimento, do meio, da classe, da confissão religiosa, etc. Mas não é só a visão de mundo que muda; a visão daquilo que é revelado do outro mundo, do mundo mais elevado, também se altera. Tudo muda, dependendo da altura até a qual os homens se elevam, ou a profundidade até a qual mergulham, do desenvolvimento criativo do homem ou do nível inferior atingido em sua queda. Os homens quiseram estabilizar a verdade da revelação em correspondência com seu pensamento normal e mediano, que eles identificaram com sua natureza humana eterna, e assim a verdade da revelação apareceu-lhes numa forma estática e petrificada. Impôs-se um veto à criatividade. Os homens não a desejaram. Tiveram medo de reconhecer a natureza criativa do homem e a possibilidade do novo. O mau novo tinha que passar, mas a possibilidade de um novo melhor foi igualmente suprimida. Dessa maneira criou-se uma ossificação do Cristianismo, uma mortificação e extinção do espírito. Mas estava dito: “Não extingam o Espírito”. Aquilo que não se move para adiante, que não se dirige para a novidade do Reino de Deus, move-se para trás e se torna mineral. A verdade é o caminho e a vida, e não algo que pertence ao mundo dos objetos.

A história da alma Europeia sempre foi dinâmica, e nela aconteceram muitas mudanças. A alma que encara o Cristianismo hoje não é, de modo algum, a mesma que encarava o Cristianismo na Idade Média e no tempo dos primeiros Cristãos. Uma sensibilidade inteiramente diferente se revelou a ela. Muito do que é novo na alma humana foi revelado em Petrarca, em Rousseau, nos Românticos do início do século XIX, em Dostoievski, Kierkegaard, Nietsche, Ibsen, nos Simbolistas do final do século XIX e na geração de Comunistas do início do século XX. É impossível não levar em conta a experiência que veio à luz nos mais significativos movimentos intelectuais de nosso tempo. Assim foi com Heidegger e a filosofia existencial, com Freud e a psicanálise, com Karl Barth e a teologia dialética, com Husserl e a fenomenologia, com o racismo, o totalitarismo, o marxismo e o comunismo. Ao mais influentes, e que tiveram mais domínio sobre a alma foram Nietsche, Marx e Kierkegaard. Os velhos catecismo Cristãos não eram capazes de responder aos novos problemas e às novas inquietações. Nos primeiros séculos do Cristianismo os doutores da Igreja deram respostas às questões levantadas pelas heresias de seu tempo. Nossa era não conhece heresias como aquelas, mas sim heresias de um tipo diferente que vêm surgindo, com as quais aqueles que permanecem dentro do sistema dogmático Cristão não são capazes de lidar, e essas heresias exigem uma resposta Cristã. Essa resposta não pode ser dada pelas formas necrosadas do Cristianismo histórico. Questões como a criatividade aventuresca do homem, como as formas inteiramente novas do mal, não se deixam solucionar pela velha ética normatizada. A atração do abismo do não-ser, a liberdade sem precedentes e desconhecida dos primeiros tempos, a transição da liberdade para a escravidão, o mistério da personalidade e de sua destruição, a sociedade humana sobre a terra e suas tentações; e muitas outras formas da autoafirmação humana e do orgulho, que se tornaram diferentes e mais temíveis do que eram no passado.

Numa palavra, o elemento psíquico do homem sofreu grandes mudanças. A antropologia da velha literatura patrística já não corresponde ao estado do homem contemporâneo, que passou por um desenvolvimento complexo. As energias que permaneceram ocultas nos substratos mais profundos da alma vieram a se manifestar. Mas esse desenvolvimento é altamente complexo e tem dois lados. De um lado, o homem tem se tornado mais profundo; por outro lado, ele é atirado à superfície. O lado emocional da natureza humana, desde o tempo de Rousseau e dos Românticos, foi muito fortalecido e desenvolveu-se, em comparação com os séculos anteriores. Por outro lado, ele se enfraqueceu e foi oprimido pelas habilidades técnicas, pelo frio toque do metal.

Essa complexidade fica particularmente evidente em relação ao desenvolvimento moral. Seria falso afirmar que existe algo como um processo que conduz o homem e a sociedade humana a um estado de perfeição moral ao longo de uma linha progressiva. Uma regressão moral acontece simultaneamente. A cada momento novas e mais novas formas da brutalidade se revela, formas mais sutis e repelentes. A consciência moral do passado permitia a tortura, e isso era devido a crenças supersticiosas. Mas à luz da consciência moral atual a tortura se mostra de maneiras ainda mais terríveis. Nos tempos primitivos o homem costumava ser melhor. Não obstante, existe algum progresso na consciência moral. O humanismo é um fenômeno novo; ele é o resultado de uma atividade subterrânea do Cristianismo. O homem vem se tornando mais abominável moralmente, do que o foi num passado menos humano e mais rude. Mas agora ele é julgado por uma nova consciência. O modernismo pode ser mau na medida em que é associado com a aparência e a imitação, com a escravidão em relação ao tempo. A sensibilidade estética e o refinamento aumentaram, mas uma mudança de direção não implica progresso. É quase impossível dizer que os escritores atuais estão num nível superior do que Sófocles, Dante ou Shakespeare. As sucessivas mudanças que aconteceram no classicismo, no romantismo, no realismo, no simbolismo, no surrealismo, no expressionismo, etc., não representam um desenvolvimento, mas apenas a história da alma humana, e elas são um reflexo de sua busca. A evolução não significa infalivelmente progresso, nem um movimento ao um objetivo mais alto, para o Reino de Deus. Ela pode inclusive regredir. A novidade tampouco significa melhoramento e o atingimento de algum valor mais elevado. O culto do novo, pelo novo, é tão ruim quanto o culto do passado, pelo passado. A verdadeira novidade religiosa só pode ser associada a uma nova era do Espírito. E essa será a nova era da revelação, que não poderá resultar apenas de uma ação de Deus, mas também do homem, num ato criativo. Só e possível falar disso a partir da admissão de uma concepção dinâmica, tanto da vida do mundo como da vida em Deus. A expectativa de um desenvolvimento sem fim para o futuro, como propugnava, por exemplo, a doutrina do progresso de Condorcet e outros, é falsa. Mas a ideia de progresso pode encontrar apoio, não em outro infinito, mas num fim. E é por isso que uma concepção mais profunda do desenvolvimento está ligada à escatologia.

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