terça-feira, 17 de setembro de 2019

Georges Florovsky - Criação e Redenção - VI. As Dimensões da Redenção







Cur Deus Homo?
O motivo da Encarnação.

“Eu sou o Alfa e o Ômega”.
(Apocalipse 1: 8)

I

Desde o princípio, a mensagem Cristã foi uma mensagem de Salvação, e, de acordo com isso, nosso Senhor foi retratado basicamente como um Salvador, que veio para redimir Seu povo da escravidão do pecado e da corrupção. O próprio fato da Encarnação era usualmente interpretado, na teologia do Cristianismo primitivo, a partir de uma perspectiva de Redenção. As concepções equivocadas a respeito da Pessoa de Cristo, contra as quais a Igreja primitiva teve que lutar, foram criticadas e refutadas precisamente porque tendiam a solapar a realidade da Redenção humana. Era de opinião geral que o próprio sentido da Salvação estava em que a união íntima entre Deus e o homem havia sido restaurada, e isso se inferia devido a que o Redimido tinha que permanecer imutável de ambos os lados, ou seja, que Ele, em primeiro lugar, era tanto Divino como humano, pois, de outro modo, a comunhão entre Deus e o homem, que havia se partido, não poderia ser restabelecida. Essa foi a principal linha de raciocínio de Santo Atanásio em sua contenda com os Arianos, de São Gregório de Nazianze em sua refutação ao Apolinarianismo, e ainda de outros escritores dos séculos IV e V. “Pois é salvo aquilo que está unido a Deus”, disse São Gregório de Nazianze. O aspecto redentor e o impacto da Encarnação eram enfaticamente reforçados pelos Padres. O propósito e o efeito da Encarnação eram definidos precisamente como a Redenção do homem, e sua restauração às condições originais que haviam sido destruídas pela queda e o pecado. O pecado do mundo foi ab-rogado e eliminado pelo Único Encarnado, e somente Ele, por ser a um tempo Divino e humano, poderia tê-lo feito. Por outro lado, seria injusto afirmar que os Padres viam o propósito redentor como a única razão para a Encarnação, de maneira a que ela não teria acontecido caso o homem não houvesse pecado. Essa questão, assim colocada, nunca foi desenvolvida pelos Padres. A questão a respeito do motivo último da Encarnação nunca foi discutida na era Patrística. O problema da relação entre o mistério da Encarnação e o propósito original da Criação nunca foi colocado pelos Padres; eles jamais elaboraram esse ponto sistematicamente. “Talvez seja verdadeiro dizer que o pensamento de uma Encarnação independente da Queda se harmonize com o teor geral da teologia Grega. Algumas frases patrísticas parecem implicar que esse pensamento tenha aparecido aqui e ali, e talvez mesmo, tenha sido discutido[1]”. Mas essas “frases patrísticas” nunca foram coletadas e examinadas. De fato, os mesmos Padres se expressaram a favor de opiniões opostas. Não é o bastante reunir frases, retirando-as de seu contexto e ignorando o propósito, muitas vezes polêmico, por cuja razão tenham sido escritas. Muitas dessas “frases patrísticas” eram colocações “ocasionais”, e só é possível empregá-las com grande cuidado e precaução. Seu significado específico só pode ser alcançado quando lidas dentro do contexto, vale dizer, a partir da perspectiva do pensamento de cada escritor em particular.


II

Rupert de Deutz (1075-1129) parece ter sido o primeiro dentre os teólogos medievais a levantar formalmente a questão do motivo da Encarnação, e sua posição era de que a Encarnação pertencia ao desígnio original da Criação e que, portanto, era independente da Queda. Em sua interpretação, a Encarnação constituía a consumação do propósito criativo de Deus, um objetivo em si e não meramente um remédio redentor para a falha humana. Outro teólogo, o alemão Honorius de Autun (1080-1151) tinha a mesma convicção. Os grandes doutores do século XIII, como Alexandre de Hales (1185-1245) e Albert Magnus (1193-1280), admitiam a ideia de uma Encarnação independente da Queda, como a solução mais conveniente para o problema. Duns Scotus (1266-1308) foi quem elaborou toda a concepção com grande cuidado e consistência lógica. Para ele a Encarnação independente da Queda era não apenas a assumpção mais conveniente, como também uma pressuposição doutrinal indispensável. Para ele, a Encarnação do Filho de Deus era a verdadeira razão de toda a criação. De outro modo, essa suprema ação de Deus teria sido algo meramente acidental, ou “ocasional”. “Mais uma vez, se a Queda fosse a causa da predestinação de Cristo, seguir-se-ia daí que a maior obra de Deus seria não mais do que ocasional, pois a glória de tudo não seria tão intensa como a de Cristo, e pareceria irrazoável pensar que Deus tivesse renunciado a essa obra por causa das boas ações de Adão, caso este não houvesse pecado”. Para Duns Scotus, toda a questão residia precisamente na ordem da “predestinação” ou propósito divino, isso é, na ordem dos pensamentos no Divino conselho da Criação. Cristo, o Encarnado, foi o primeiro objeto da vontade criativa de Deus, e foi por causa de Cristo que todo o resto foi criado. “A Encarnação de Cristo não foi prevista ocasionalmente, mas foi vista como um fim imediato por Deus desde a eternidade; assim, falando a respeito de coisas que foram predestinadas, Cristo, em sua natureza humana, foi predestinado antes do que tudo, uma vez que é Ele quem está mais próximo do fim”. Essa ordem dos “propósitos” ou das “previsões” era, evidentemente, apenas lógica. A ênfase principal de Duns Scotus estava no caráter incondicional e primordial do decreto Divino da Encarnação, visto dentro da perspectiva total da Criação. Tomás de Aquino (1225-1274) também discutiu extensamente a questão. Ele viu o peso total dos argumentos em favor da opinião de que, mesmo independente da Queda, “Deus teria se tornado Encarnado”, e citou a frase de Santo Agostinho: “na Encarnação de Cristo, mais coisas devem ser consideradas além da absolvição do pecado[2]”. Mas Aquino não pôde encontrar, nem na Escritura, nem nos textos Patrísticos, um testemunho definitivo dessa Encarnação independente da Queda, e assim ele se inclinou a acreditar que o Filho de Deus não teria se encarnado se o primeiro homem não tivesse pecado: “Ainda que Deus pudesse se encarnar independentemente da existência do pecado, não obstante seria mais apropriado dizer que, se o homem não houvesse pecado, Deus não teria se tornado encarnado, dado que na Sagrada Escritura a razão da Encarnação está no pecado do primeiro homem”. O mistério insondável da vontade Divina só pode ser compreendido pelo homem se for plenamente atestado pela Sagrada Escritura, “somente na medida em que essas coisas são transmitidas pela Sagrada Escritura”, ou, como diz Aquino em outra parte, “somente quando informadas pela autoridade dos santos, a quem Deus revelou Sua vontade”. Somente Cristo conhece a resposta certa para essa questão: “A verdade a respeito disso somente Ele a conhece, Ele que nasceu e que não erra, porque também Ele o quis”. Boaventura (1221-1274) sugeriu a mesma cautela. Comparando as duas opiniões – uma a favor da Encarnação independente da Queda, a outra dependente dela – ele concluiu: “Ambas as opiniões excitam a alma à devoção por meio de diferentes considerações: a primeira, é verdade, é mais condizente com o julgamento da razão; mas a segunda parece ser mais agradável à piedade da fé”. É preciso confiar mais no testemunho direto das Escrituras do que nos argumentos da lógica humana. De modo geral, Duns Scotus foi seguido pela maior parte dos teólogos da Ordem Franciscana, e por muitos fora dela, como, por exemplo, Dionysius Carthusianus, Gabriel Biel, John Wessl, e, por ocasião do Concílio de Trento (1545-1563), por Giacomo Nachianti, Bispo de Chiozza, bem como por alguns dos primeiros Reformadores, como Andreas Osiander. Essa opinião recebeu forte oposição de outros, não apenas dos Tomistas radicais, e todo o problema foi muito discutido, tanto por Católicos Romanos como por teólogos Protestantes ao longo do século XVII. Dentre os defensores Católicos Romanos do decreto absoluto da Encarnação podemos mencionar especialmente Francisco de Sales e Malebranche. Esse último insistiu fortemente na necessidade metafísica da Encarnação, praticamente independente da Queda, pois, caso contrário – afirmava – não haveria razão adequada, nem propósito para o ato da Criação em si. A controvérsia prossegue entre os teólogos Católicos Romanos, algumas vezes acalorada e vigorosamente, e a questão não ficou resolvida. Dentre os Anglicanos, no último século, o Bispo Westcott arguiu uma “motivação absoluta”, em seu admirável ensaio “O Evangelho da Criação”. Mais recentemente, o Padre Sergei Bulgakov foi de opinião de que a Encarnação deveria ser vista como um decreto absoluto de Deus, anterior à catástrofe da Queda.


III

No decurso dessa longa discussão, um apelo recorrente foi feito ao testemunho dos Padres. Estranhamente, o item mais importante foi deixado de lado nessa antologia de citações. Uma vez que a questão do motivo da Encarnação nunca foi formalmente levantada durante a era Patrística, muitos dos textos empregados nas discussões ulteriores não forneceram nenhuma orientação direta. São Máximo o Confessor (580-662) parece ter sido o único dos Padres que estava diretamente preocupado com o problema, embora não da mesma maneira que os teólogos do Ocidente. Ele colocou claramente que a Encarnação devia ser vista como um propósito absoluto e primário de Deus no ato da Criação. A natureza da Encarnação, dessa união da majestade Divina com a fraqueza humana, permanece um mistério insondável, mas podemos pelo menos captar a razão e o propósito desse mistério supremo, seu logos e seu skopos. E essa razão original, esse propósito último, na opinião de São Máximo, era precisamente a Encarnação em si e nossa consequente incorporação ao Corpo do Encarnado. As frases de São Máximo são diretas e claras. Nas Questio ad Thalassium, existe um comentário a I Pedro 1: 19-20: “Cristo era como um cordeiro sem inculpável e imaculado, que havia sido predestinado desde a fundação do mundo”. Agora, a questão é: São Máximo começa por sumarizar brevemente o verdadeiro ensinamento a respeito da Pessoa de Cristo, e então prossegue: “Esse é o fim abençoado, por cuja causa todas as coisas foram criadas. Esse é o propósito Divino, que foi pensado desde o início da Criação, e ao qual denominamos como a plenitude almejada. Toda a criação existe tendo em vista essa plenitude, mas essa plenitude não existe em função de nada que tenha sido criado. Uma vez que Deus teve totalmente em vista esse fim, então Ele produziu as naturezas das coisas. Esse é verdadeiramente o cumprimento da Providência e de todo o planejado. Através disso existe uma recapitulação a Deus daquilo que foi criado por Ele. Esse é o mistério que circunscreve todas as eras, o maravilhoso plano de Deus, acima do infinito e infinitamente pré-existente às eras. O Mensageiro, que é essencialmente Ele próprio o Verbo de Deus, se tornou homem tendo em vista essa realização. E devemos dizer que foi Ele próprio que restaurou as profundezas mais interiores manifestadas da bondade ordenada pelo Pai; e Ele revelou a plenitude em Si próprio, por quem a criação recebeu o começo de sua verdadeira existência. Pois foi por causa de Cristo, vale dizer, por causa do mistério referente a Cristo, que todo o tempo e tudo o que existe no tempo teve sua existência, do começo ao fim, em Cristo. Pois antes do tempo existiu secretamente uma determinação da união das eras, do determinado com e Indeterminado, do mensurável com o Incomensurável, do finito com o Infinito, da criação com o Criador, do movimento com o repouso – uma união que foi tornada manifesta em Cristo nos últimos dias[3]”. É preciso distinguir cuidadosamente entre o ser eterno do Logos, no seio da Santa Trindade, e a “economia” da Encarnação. A “previsão” se refere precisamente à Encarnação. “Dessa maneira Cristo estava previsto, não tal como Ele era de acordo com Sua natureza, mas como mais tarde ele viria a aparecer encarnado para nossa salvação de acordo com a economia final[4]”.  A “absoluta predestinação” de Cristo é aludida aí com toda clareza. Essa convicção estava em total acordo com o teor geral do sistema teológico de São Máximo, e ele voltou a esse problema diversas vezes, tanto em respostas a Thalassius como em sua Ambigua. Por exemplo, em conexão com Efésios 1: 9, São Máximo diz: “[por Sua Encarnação e por nossa era] Ele nos mostrou o propósito pelo qual fomos feitos e a enorme boa vontade de Deus para conosco antes das eras[5]”. Por sua simples constituição o homem antecipa em si “o grande mistério do propósito Divino”, a consumação última de todas as coisas em Deus. Para São Máximo, toda a história da Divina Providência está dividida em dois grandes períodos: o primeiro culmina com a Encarnação do Logos, e constitui a história do rebaixamento Divino (a condescendência, “através da Encarnação”); o segundo é a história da ascensão humana à glória da deificação, como se fosse uma extensão da Encarnação a toda a criação. “Dessa forma, podemos dividir o tempo em duas partes de acordo com seu desígnio, e podemos distinguir cada uma das eras relativamente ao mistério da Encarnação do Divino, e as eras concernentes à deificação do humano pela graça (...) Resumidamente: tanto as eras que se referem à descida de Deus ao homem, como as que começam com a ascensão do homem a Deus (...) Ou, para expressar melhor, o começo, o meio e o fim de todas as eras, as que já se foram, as do tempo presente e aquelas que ainda virão, tudo isso é nosso Senhor Jesus Cristo[6]”. Na visão de São Máximo, a consumação última está ligada com a vontade e o propósito primordiais criadores de Deus, e assim toda sua concepção é estritamente “teocêntrica”, ao mesmo tempo de também é “Cristocêntrica”. Mas, claramente, em sentido algum isso obscurece a triste realidade do pecado, da absoluta miséria da existência pecadora. A grande ênfase é colocada por São Mácimo na conversão e na limpeza da vontade humana, na luta contra as paixões e o mal. Mas ele vê a tragédia da Queda e a apostasia do criado a partir de uma perspectiva mais ampla do plano original da Criação.


IV

Qual é o verdadeiro peso do testemunho de São Máximo? O que existe aí além de uma “opinião pessoal”, e onde repousa a autoridade de tal “opinião”? É bastante claro que, em relação à “motivação” primeira e última da Encarnação, nada além de uma resposta “hipotética” (ou “conveniente”) pode ser dada. Mas muitas afirmações doutrinais são precisamente afirmações hipotéticas, ou “teologúmenas”. E parece que a “hipótese” de uma Encarnação independente da Queda é, no mínimo, possível dentro do sistema da teologia Ortodoxa, e se encaixa bastante bem na principal linha do ensinamento Patrístico. Uma resposta adequada para a questão do “motivo” da Encarnação pode ser dada apenas dentro do contexto da doutrina geral da Criação.




[1] A frase é do Bispo Anglicano Brooke Foss Westcott, em “O Evangelho da Criação”, 1892 (NT).
[2] De Trinitate, XIII, 17.
[3] P.G. XC, 621, A-B.
[4] P.G., XC, 624D.
[5] P.G., 1097C.
[6] P.G., XC, 320 B-C.