quinta-feira, 13 de maio de 2021

Nikolai Berdiaev - Escravidão e Liberdade - Introdução e Capítulo I

 

 

À GUISA DE INTRODUÇÃO

As contradições de meu pensamento

 Ao começar a escrever esse livro, lancei um olhar para trás e senti a necessidade de explicar para mim mesmo para os outros meu itinerário intelectual e espiritual, e ao mesmo tempo de compreender e de fazer compreender as aparentes contradições de meu pensamento ao longo do tempo. Esse livro fala da escravidão e da libertação do homem; ele se liga, em muitas de suas partes, à filosofia social, mas ele contém toda minha concepção filosófica e tem por base a filosofia personalista. Ele é fruto de uma longa busca pela verdade, de uma longa luta pela revelação de todos os valores. Minha vida filosófica foi dominada pelo desejo não apenas de conhecer o mundo, como também de mudá-lo. Não foi apenas pelo pensamento, mas também pelo sentimento, que eu sempre me recusei a ver no mundo uma realidade última e imutável. Em que medida a ideia que anima esse livro concorda com aquelas que eu desenvolvi em meus livros anteriores? Em que sentido podemos falar em desenvolvimento do pensamento de um filósofo? E esse desenvolvimento, consistirá ele num processo contínuo, ou apresentará rupturas, interrupções, passando por crises e negações de si mesmo? Em que sentido podemos falar em desenvolvimento de meu pensamento, e como se deram suas mudanças? Existem filósofos que estabelecem desde o início um sistema ao qual eles permanecem fiéis por toda a vida. Existem outros cuja filosofia reflete lutas de espírito, e em cujo pensamento podemos discernir diversas etapas. Nas épocas históricas mais agitadas, nas épocas de revoluções espirituais, o filósofo não pode permanecer confinado em seu gabinete, no meio de seus livros, sem tomar parte da luta espiritual. Eu jamais fui um filósofo de tipo acadêmico, e jamais pensei que a filosofia devesse ser abstrata e estranha à vida. Malgrado minhas numerosas leituras, posso dizer que não foram os livros que constituíram a fonte de meu pensamento. Mais do que isso, eu jamais cheguei a compreender um livro, sem me dar conta da relação que ele representa com minha experiência anterior. De resto, penso que a filosofia, no verdadeiro sentido do termo, sempre consistiu numa luta. Esse foi notadamente o caso de Platão, de Plotino, de Descartes, Espinoza, Kant, Fichte, Hegel. Meu pensamento sempre foi do tipo da filosofia existencial. As contradições que podemos extrair dele são aquelas que nasceram da luta espiritual; elas são inerentes à própria existência e não se permitem dissimular sob uma aparente unidade lógica. A verdadeira unidade de pensamento, de resto inseparável da unidade da pessoa, é uma unidade existencial e não lógica. Ora, a existencialidade é contraditória. A pessoa constitui uma invariabilidade na variação. Essa é uma das definições essenciais da pessoa. As variações se dão no interior de um só e mesmo sujeito. Não existe variação no sentido próprio do termo, quando um sujeito é substituído por outro. A variação destrói a pessoa, quando ela se torna uma traição. Ora, o filósofo comete uma traição, quando ele altera os temas fundamentais de sua filosofia, os motivos essenciais de seu pensamento, a base de sua régua de valores. Podemos variar sobre a questão de saber onde e quando se realiza a liberdade, mas cometemos uma traição, quando substituímos o amor à liberdade pelo amor à escravidão e à violência. A mudança de ideia pode ser real, mas também pode ser aparente, por ser vista de uma falsa perspectiva. Penso que, de modo geral, o homem é um ser contraditório e polarizado. E o pensamento do filósofo se torna contraditório e polarizado a partir do instante em que, ao invés de se abstrair das fontes primitivas da vida, ele mantém constantemente contato com elas. O pensamento filosófico constitui uma formação complexa, e mesmo nos sistemas filosóficos mais lógicos e mais unidos é fácil de descobrir a presença de elementos contraditórios. Longe de ser um mal, isso é antes um bem. Um monismo perfeito e definitivo do pensamento é irrealizável, e sua própria realização seria um mal. Eu acredito pouco na possibilidade de sistemas filosóficos, e nem os acho desejáveis. Mas mesmo um sistema filosófico realizado e acabado jamais é definitivo e perfeito. A contradição capital da filosofia de Hegel consiste em que o dinamismo e a dialética do pensamento se revestem aí da forma de um sistema acabado, o que significa a detenção do desenvolvimento dialético. Ora, a detenção do desenvolvimento dialético, em presença de contradições sempre renovadas, equivaleria ao fim do mundo. Enquanto existe o mundo, as contradições são inevitáveis. É por isso que o pensamento desemboca necessariamente numa perspectiva escatológica, que projeta sobre ele uma luz, por assim dizer, retrospectiva, e que ao mesmo tempo ilumina os paradoxos e as contradições da vida do mundo.

 

No que me diz respeito, eu gostaria de definir os temas fundamentais, a base essencial dos valores que inspiraram toda minha vida e meu pensamento. Somente assim eu poderei salientar a coerência interna de meu pensamento, minha fidelidade ao invariável, dentro daquilo que varia. A principal contradição de meu pensamento, relativa à vida social, consiste na coexistência de dois elementos no interior desse pensamento: de um lado, a concepção aristocrática da pessoa, a liberdade e a atividade criadora do homem, e, de outro, a afirmação da dignidade humana, o direito à vida de todos os homens, até o último. Trata-se de um conflito entre dois sentimentos: ligação a um mundo superior, aspiração às alturas, e piedade por um mundo inferior, por um mundo que sofre. Contradição eterna, conflito que não pode ser apaziguado. Sinto-me igualmente próximo de Nietzsche e de Tolstoi. Tenho Marx em alta estima, mas não estimo menos Joseph de Maistre e Leontiev. Amo Jacob Boehme, mas não menos Kant. Quando a tirania igualitária fere minha concepção da dignidade humana, meu amor pela liberdade e pela atividade criativa, eu me revolto contra ela e fico prestes a expressar minha revolta sob a forma mais violenta. Mas quando eu vejo partidários da desigualdade social defender seus privilégios sem pudor, quando vejo o capitalismo oprimir as classes trabalhadoras, transformar os homens em coisas, eu experimento o mesmo sentimento, a mesma necessidade de revolta. Num caso como no outro, eu nego os fundamentos do mundo moderno.

 

Para entender os motores interiores de uma concepção filosófica, é preciso apelar para o primeiro sentimento que o filósofo experimentou em presença do mundo, sua primeira visão do mundo. Na base do conhecimento filosófico sempre sem encontra uma experiência concreta; seria vão pretender explicá-lo por um encadeamento concreto de noções, pela atividade do pensamento discursivo: essas coisas não passam de instrumentos. Sendo o conhecimento de si uma das principais fontes do conhecimento filosófico, eu descubro em mim, como ponto de partida inicial, uma revolta contra o mundo dado, uma recusa em aceitar qualquer objetividade, considerada como uma sujeição do homem, uma oposição da liberdade de espírito às exigências do mundo, à violência e ao conformismo. Eu assinalo esse fato, não a titulo autobiográfico, mas como um fato de conhecimento filosófico, como uma indicação do caminho filosófico que segui. É assim que os móveis internos de minha filosofia se afirmaram desde o começo: primado da liberdade sobre o ser, do espírito sobre a natureza, do sujeito sobre o objeto, da pessoa sobre o geral e o universal, da criação sobre a evolução, do dualismo sobre o monismo, do amor sobre a lei. O reconhecimento da primazia da pessoa implica a da desigualdade metafísica, de uma diversidade, das distinções, da desaprovação de toda mistura, a afirmação da qualidade em oposição à quantidade. Mas essa desigualdade metafísica e qualitativa não comporta, em absoluto, a desigualdade social, a desigualdade de classes. A liberdade que ignora a piedade se torna demoníaca. O homem não deve apenas subir, ele deve também saber descer. Após um longo trabalho intelectual e espiritual, eu acabei por reconhecer, de modo especialmente claro, que nenhuma pessoa humana, sequer a do último humano, não poderia, na medida em que porta em si o ser supremo, servir de meio tendo em vista seja lá o que for, que cada pessoa possui um centro existencial e tem direito, não apenas à vida, coisa que lhe é negada pela civilização moderna, mas a uma participação no conteúdo universal da vida. Essa é uma verdade evangélica, mas cuja evidência ainda não se impôs a todo o mundo. Pessoas qualitativamente diferentes, desiguais, são iguais (no sentido profundo do termo), não apenas diante de Deus, como também diante da sociedade, que não tem direito de estabelecer entre as pessoas diferenças fundamentadas em privilégios, ou, dito de outro modo, diferenças sociais. O nivelamento social, no sentido de uma estrutura sem classes, não pode ser compreendido de outra maneira do que como uma revelação da desigualdade pessoal de ordem qualitativa, não substancial, de uma desigualdade que não tem nada a ver com a situação social da pessoa. Trata-se de um personalismo anti-hierárquico. A pessoa não pode ser parte de um todo hierárquico qualquer: ela é em si mesma um microcosmo em estado potencial. É assim que, em minha consciência, estão associados princípios antagônicos, e cujo antagonismo se manifesta igualmente no mundo: princípio da pessoa e da liberdade; princípio da piedade, da compaixão e da justiça. O princípio da igualdade enquanto tal não possui significado próprio, pois a igualdade não significa alguma coisa, senão na medida em que ela se subordina à liberdade e à dignidade humana. Eu jamais senti a menor dificuldade em sacrificar as tradições sociais, a renunciar aos preconceitos e interesses do meio aristocrático e nobiliárquico em que vivi. Partindo da liberdade, eu segui meu próprio caminho. Jamais me senti ligado pelas ideias e os sentimentos cristalizados, fixados e ossificados da intelligentzia russa. Jamais me senti fazendo parte desse mundo, e nem de qualquer outro mundo. Acrescente-se a isso meu horror pela vida burguesa do Estado, uma tendência anárquica, mas de um tipo particular. É preciso tomar como ponto de partida, não o amor pelo mundo, mas a oposição entre a liberdade de espírito e o mundo. Mas partir da liberdade de espírito não significa partir do nada, do vazio. Existe um conteúdo espiritual do mundo das ideias que é preciso levar em conta para compreender o caminho seguido por um filósofo. Assim, falarei primeiro das ideias filosóficas.

 

Não será a partir do ponto de vista do platonismo ou da filosofia de Hegel e de Schelling que se poderá deduzir a base essencial de minha concepção filosófica, e sobretudo a ideia que eu considero como sendo central dessa concepção, que é a da oposição entre a objetivação, de um lado, e a existência da liberdade, de outro. Platão e Plotino, Hegel e Schelling certamente tiveram um grande papel na filosofia religiosa russa. Mas não são eles as minhas fontes. É mais fácil compreender meu pensamento através de Kant e Schopenhauer do que através de Hegel e Schelling. Kant e Schopenhauer exerceram uma grande influência sobre minha primeira orientação. Eu não sou um filósofo de Escola, jamais pertenci, nem pertenço a nenhuma Escola. Schopenhauer foi o primeiro filósofo que me inspirou. Eu era ainda adolescente quando comecei a ler livros de filosofia, e, ainda que nos meus jovens anos estivesse próximo de Kant, jamais partilhei inteiramente de suas ideias, tanto quanto, aliás, das ideias de Schopenhauer. Cheguei mesmo a lutar contra a dominação de Kant. Mas existem algumas ideias permanentes que se mantiveram ao longo de toda minha carreira filosófica. O que eu mais apreciava em Kant era seu dualismo, sua distinção entre o reino da liberdade e o da natureza, sua teoria a respeito do caráter inteligível do reino da liberdade e seu voluntarismo, sua concepção de um mundo distinto daquele dos fenômenos, de um mundo autêntico, ao qual ele deu o nome bastante mal escolhido de “mundo das coisas em si”. Também aprecio a distinção que Schopenhauer faz entre a vontade e a representação, sua teoria da objetivação da vontade no mundo natural, objetivação que desemboca na criação de um mundo não autêntico; em resumo, eu me sentia bastante próximo de seu irracionalismo. Depois de haver aderido a todas essas concepções e ideias de um e de outro, em me engajei num caminho que iria me afastar desses dois filósofos. Kant barrou o caminho suscetível de conduzir ao conhecimento do mundo autêntico, distinto do mundo dos fenômenos, e a categoria do espírito é completamente ausente de sua filosofia. Também me senti estrangeiro e hostil ao antipersonalismo de Schopenhauer, e ainda, se possível, mais estrangeiro e mais hostil em relação ao monismo, ao evolucionismo e ao otimismo de Fichte, de Schelling e de Hegel, à sua concepção de objetivação do espírito, do Eu universal, da razão no processo cósmico e histórico, e sobretudo à doutrina de Hegel sobre a autorrevelação do espírito e sobre a evolução para a liberdade no decurso do processo cósmico, e sobre Deus enquanto devir. O dualismo de Kant, o pessimismo de Schopenhauer, estão mais próximos da verdade. Mas tudo isso não se refere senão às minhas ideias puramente filosóficas. Mas o que eu quero mostrar acima de tudo, são as circunstâncias que determinaram minha primeira atitude em relação à realidade social ambiente, as fontes das quais eu extraí os elementos de meus juízos de valor sobre o mundo ambiente. Sob esse aspecto, eu recebi, desde minha primeira juventude, a influência de Tolstoi, que me ensinou muitas coisas. Eu adquiri desde logo a convicção de que a civilização repousa sobre uma base falsa, que é a consequência de um pecado original; devo também em grande parte a Tolstoi a ideia de que a sociedade, em seu conjunto, tem como base o erro e a injustiça. Jamais fui um adepto, propriamente falando, de Tolstoi, e nunca tive muita simpatia pelos seus aderentes; mas a revolta de Tolstoi contra a falsa grandeza e as falsas santidades da história, contra os erros que presidem as relações sociais entre os homens, sempre fizeram parte das disposições mais íntimas de meu espírito. Ainda hoje, depois de haver percorrido um longo caminho, encontro em mim essas primeiras apreciações da realidade social e histórica, essa liberdade em relação às tradições sociais impostas, aos preconceitos morais das pessoas bem pensantes, ao horror da violência, à “direita” e à “esquerda”. A tudo isso eu sinto como um estado de revolta espiritual, suscetível de dar nascimento a toda espécie de reações sobre o meio. Mais tarde, minha atitude em relação à realidade social sofreu a influência de Marx e, sob essa influência, tomou uma forma bastante concreta. Eu já não pude me resignar com o papel de um partidário da “ortodoxia”, qualquer que fosse ela, e é contra a “ortodoxia” que eu sempre lutei. Assim, eu jamais fui um “marxista ortodoxo”, um materialista, e permaneci sendo um idealista em pleno período marxista. Eu tentei, nas questões sociais, conciliar minha filosofia idealista com o marxismo. Ao mesmo tempo em que eu aceitava certos ângulos da concepção materialista do mundo, sempre procurei dar ao meu socialismo uma base idealista e moral. O baixo nível de cultura de grande número de marxistas revolucionários sempre me chocou. Eu não me sentia à vontade em seu meio, e esse sentimento de mal-estar se agravou nos anos de meu exílio no Norte. Minha atitude em relação aos marxistas era dúbia, e eu nunca pude aderir ao marxismo totalitário. Quando eu penso nas discussões que tive com marxistas, alguns mais, outros menos totalitários, nos círculos marxistas que frequentei na juventude, encontro um tema que para mim permanece atual até hoje. Trata-se do mesmo tema que suscitou tantas discussões a respeito de André Gide e de seus dois livros sobre a URSS. Lembro-me bem de minhas discussões com A. V. Lounatcharski, meu camarada de juventude, que sempre encontrava nos círculos marxistas. Essas discussões terminaram quando ele se tornou Comissário do Povo, pois a partir de então já não pude encontrá-lo. No decurso dessas discussões, nas quais eu punha todo meu ardor e entusiasmo, eu sempre insistia fortemente sobre a existência do verdadeiro e do bem, como valores ideais, independentes da luta de classes e do meio social; dito de outra forma, eu recusava admitir a subordinação da filosofia e da m oral à luta de classes revolucionária. Sempre procurei mostrar que são a verdade e a justiça que determinavam minha atitude revolucionária em relação à realidade social, em lugar de serem elas determinadas por essa atitude. Meu amigo Lounatcharsky pretendia que essa defesa da verdade desinteressada, da independência do intelecto e do direito ao juízo pessoal estavam em contradição com o marxismo, que fazia com que verdade e a justiça dependessem da luta de classes revolucionária. Também Plekhanov me dizia que não se pode permanecer marxista ao mesmo tempo em que se professa – como eu o fazia – uma filosofia idealista independente. É diante desse problema que se encontram os intelectuais de nossos dias que reconhecem a verdade social do comunismo. Nega-se a Gide o direito de dizer o que ele acredita ser a verdade sobre a Rússia soviética, sob pretexto de que a verdade não pode ser revelada ao homem individual, que o homem individual não deve insistir naquilo que não é sua verdade subjetiva, por ser a verdade o produto da luta revolucionária do proletariado, constituindo por isso mesmo na sua vitória. A verdade, ainda que se refira aos fatos mais incontestáveis, se torna uma mentira, se ela prejudicar a vitória do proletariado, enquanto que a mentira pode se tornar um momento dialético necessário na luta proletária. Ora, seu sempre pensei, e continuo a pensar, que a verdade não está a serviço de nada e de ninguém, que é ela que se serve de tudo e de todos... A verdade deve ser defendida, afirmada e proclamada, ainda que seja de natureza tal que prejudique a luta. A atitude perante a verdade mudou consideravelmente no mundo contemporâneo. Marxistas e fascistas pretendem, uns e outros, que a verdade seja um produto de coletividades e que ela não se revele nem se manifeste senão no decurso de lutas coletivas; que o indivíduo não saberia reconhecer por si mesmo a verdade, nem poderia afirmá-la de encontro à coletividade. Assisti à formação dessa maneira de ver durante os anos de minha juventude marxista. Eu protestava contra esse aspecto do marxismo em nome do personalismo, ao mesmo tempo em que continuava a aprovar as exigências sociais do marxismo.

 

Meu encontro com Ibsen e Nietzsche foi para mim de grande importância durante esses anos, nos quais eu buscava meu caminho, que deveria pôr fim às lutas espirituais que se desenvolviam em mim. Mas foi por razões diferentes daquelas que explicam o papel de Kant e Marx em minha evolução espiritual. Devo dizer, porém, que o papel de Ibsen foi inicialmente maior, sob esse aspecto, do que o de Nietzsche. Mesmo hoje, não posso reler os dramas de Ibsen sem deixar de experimentar uma profunda emoção. Muitos de meus valores morais se aproximam dos de Ibsen, sobretudo no que diz respeito à oposição entre a pessoa e o grupo coletivo. Antes de Ibsen, foi Dostoievski, a quem amei desde a infância, que me fez entrever toda a profundidade dos problemas concernentes à pessoa e ao destino pessoal. Ora, nem o marxismo, nem os intelectuais russos de esquerda tinham, em minha opinião, qualquer consciência desses problemas. Eu li Nietzsche antes que ele se tornasse popular nos maios cultos russos. Ele estava próximo de um dos polos de minha natureza, como Tolstoi estava do outro. Houve um tempo em que Nietzsche ocupava em meu espírito um posto acima de Marx e Tolstoi, mas nunca de modo definitivo. A transmutação dos valores de Nietzsche, sua negação do racionalismo e do moralismo não tardaram a se tornar parte integrante de meu conteúdo espiritual, agindo nele como uma força subterrânea. Mas sobre a questão da verdade, meu descordo com Nietzsche era tão profundo quanto com Marx. Seja como for, todas essas influências contribuíram, cada qual à sua maneira, a me afirmar em meu personalismo e a determinar minha atitude em relação ao Cristianismo.

 

As reações psíquicas desempenham um grande papel na vida humana. O homem consegue, com dificuldade, dominar numerosos elementos que ele traz consigo, contraditórios em aparência e mutuamente excludentes, e realizar sua harmonia e sua unidade. Quanto a mim, sempre tentei conciliar a aposição entre o amor, a liberdade, a vocação criativa e a independência da pessoa, de um lado, e, de outro, o processo social que oprime a pessoa e a considera como um meio. O conflito entre a liberdade e o amor, assim como entre a liberdade e a vocação, ou entre a liberdade e o destino, é um dos conflitos mais profundos da vida humana. Minha primeira forte reação contra meu meio social consistiu em dar as costas à sociedade da nobreza e em aderir ao campo da intelligentzia. Mas eu não demorei a me dar conta, e senti profunda amargura com isso, de que, mesmo nesse campo, a dignidade da pessoa não contava para grande coisa, e que a liberação do povo estava por demais associada à sujeição do homem e de sua consciência. Logo pude constatar os resultados desse processo. Os revolucionários não respeitavam a liberdade de espírito, negavam os direitos da atividade criativa do homem. eu tive uma reação interna, psíquica e moral, contra a primeira, contra a pequena revolução. Não foi uma ração contra a libertação política e social, que era o objetivo dessa revolução, mas contra seu aspecto espiritual, contra os resultados morais que ela poderia obter, totalmente insuficientes, em minha opinião, do ponto de vista puramente humano, para a pessoa humana. Eu conhecia muito bem esses meios. Eu considerava como minha tarefa própria criticar abertamente certas atitudes tradicionais dos intelectuais revolucionários de esquerda. Eu estava mais afastado dos intelectuais radicais de esquerda do que dos revolucionários propriamente ditos, aos quais estava ligado por laços pessoais. Em 1907 eu escrevi um artigo no qual previa a vitória inevitável dos bolcheviques no movimento revolucionário. Nesse tempo, eu estava sob a profunda influência da Conto do Grande Inquisidor de Dostoievski. Eu podia dizer que, tendo me tornado cristão, me identificava com o Cristo do Conto..., e que me levantava, em nome do próprio Cristianismo, contra tudo o que fizesse parte do espírito do Grande Inquisidor. Eu via esse espírito por toda parte, tanto no autoritarismo da religião e do Estado, como no do socialismo revolucionário. O problema da liberdade, o problema do homem, o da atividade criativa, se tornaram questões fundamentais da minha filosofia. Meu livro sobre O Sentido da Criação foi, por assim dizer, um livro de combate e de assalto, no qual estava exposta minha própria concepção filosófica. Devo ainda mencionar, a propósito, o papel que desempenhou, do ponto de vista do desenvolvimento de minhas ideias filosóficas e de minha formação espiritual, meu encontro com Jacob Boehme. A bem dizer, eu não participava dos movimentos religiosos e filosóficos, políticos e sociais, em resumo, de nenhuma das principais correntes do começo do século XX. Eu sofri uma reação espiritual contra o meio político, o meio literário e o meio religioso ortodoxo dessa época. Não havia nada a que eu pudesse me ligar, e eu me sentia bem isolado. O tema do isolamento sempre foi um dos que mais me preocupou. Mas, dotado de um temperamento ativo e combativo, eu não pude me impedir de me misturar, de tempos em tempos, com os negócios desse mundo, embora cada uma dessas intervenções me deixasse uma penosa decepção. A segunda revolução russa, a grande, provocou em mim uma reação tempestuosa, pois, ao mesmo tempo em que julgava essa revolução inevitável e justa, via que seu aspecto espiritual não era aquilo que, em minha opinião, deveria ser. Suas manifestações, às quais frequentemente faltava nobreza, seus atentados à liberdade de espírito, estavam em contradição com minha concepção aristocrática da pessoa e meu culto da liberdade espiritual. Eu desaprovava a revolução bolchevique, não em razão de seus objetivos sociais, mas por causa de suas tendências espirituais. E exprimia minha desaprovação com muita paixão, algumas vezes de forma injusta. Eu via nela o triunfo do Grande Inquisidor. Mas, ao mesmo tempo, eu não acreditava na possibilidade de quaisquer restaurações, e nem as desejava. Devo meu exílio fora da Rússia à minha reivindicação de liberdade de espírito. Mas, uma vez chegado ao Ocidente, eu sofri nova crise psíquica, uma crise de reação, tanto contra os elementos russos emigrados, como contra a sociedade europeia, burguesa e capitalista. Constatei nos emigrados russos a mesma aversão à liberdade, a mesma atitude negativa a seu respeito, que havia na Rússia comunista. Esse fato era incompreensível, e menos justificado ainda do que na Rússia comunista. Jamais uma revolução amou a liberdade, porque a missão de uma revolução está em outra parte. As revoluções fazem subir à superfície novos extratos sociais, até então excluídos da vida e oprimidos, e não há nada de espantoso se, em sua luta por uma nova posição social, eles se mostrem pouco animados por um amor à liberdade e não mostrem muita solicitude pelos valores espirituais. Mas muito menos compreensível e justificado é essa indiferença pela liberdade e pelas criações espirituais entre aqueles que se consideram como portadores e guardiões da cultura espiritual. Ora, quanto à Europa ocidental, tornou-se para mim totalmente evidente que o front anticomunista não estava constituído senão na defesa dos interesses do capitalismo burguês, e que ele tinha um caráter claramente fascista. E foi assim que terminou a evolução de minha filosofia social. Ciclo, mais do que evolução, porque eu retornei à verdade socialista de minha juventude, mas enriquecida com ideias e crenças adquiridas e elaboradas ao longo de toda minha vida. Cheguei naquilo que eu chamo de socialismo personalista que difere radicalmente da metafísica socialista em vigor, fundada sobre o primado da sociedade em relação ao indivíduo. O socialismo personalista reconhece, ao contrário, a primazia da pessoa sobre a sociedade. Esse socialismo não é senão uma projeção social do personalismo, cuja verdade se tornou para mim cada vez mais evidente.

 

Ao longo dos últimos dez anos, eu consegui me desembaraçar definitivamente dos últimos restos do romantismo histórico que comporta uma concepção estética da religião e da política e uma idealização da grandeza e do poder históricos. O romantismo histórico jamais chegou a estabelecer em mim raízes profundas, nunca chegou a uma elaboração verdadeiramente pessoal. A profunda verdade da atitude de Tolstoy diante do falso romantismo dos valores históricos se impôs novamente ao meu espírito, e mais uma vez invadiu minha consciência. O valor do homem, da pessoa humana, é superior aos valores históricos de um Estado e de uma nacionalidade poderosa, de uma civilização florescente, etc. assim como Herzen e Leontiev, entre nós, como Nietzsche na Alemanha e Leon Bloy na França, eu sinto que se aproxima o reinado do pequeno burguês, prevejo o aburguesamento, não apenas da civilização capitalista, como também da civilização socialista. Mas esse argumento, extraído do advento inevitável do reinado do pequeno burguês, me parece enganoso hoje em dia. Eu adquiri a profunda convicção de que toda objetivação do espírito no mundo tem como efeito o aburguesamento deste. Não é possível defender a injustiça social sob pretexto de que a justiça social abre as portas para o aburguesamento. Não se pode recusar resolver o problema do pão para as classes trabalhadoras sob pretexto de que a cultura era bela no tempo em que esse problema não havia sido resolvido, quando as massas permaneciam oprimidas. Esse é um argumento particularmente inadmissível para um cristão. Eu não me levanto menos contra a idealização do elemento “orgânico” da história, que eu já submetera a uma crítica profunda na obra que mencionei acima, assim como contra a idealização daquilo que se chama de “elites” cultas. O sentimento de superioridade que anima essas elites não passa de uma prova de seu egoísmo, do desconhecimento desdenhoso dos laços que os ligam ao corpo social, da necessidade de servir ou de sua incapacidade de servir. Eu acredito no aristocratismo autêntico da pessoa, na existência de gênios e de grandes homens conscientes do dever de servir e que experimentam não somente a necessidade de subir, como também a de descer. Mas não acredito no aristocratismo de grupo, fundado sobre uma seleção social. Nada mais odioso do que o desprezo que aqueles que se consideram como elite mostram pelas classes populares. Uma elite pode até se revelar contra o “plebeísmo”, no sentido metafísico do termo, e isso é especialmente verdadeiro para a elite burguesa. Mas é preciso insistir sobre a incompatibilidade da ideia cristã do reino de Deus, da consciência escatológica cristã, de um lado, e do culto idólatra das tradições sacrossantas, seja da ordem que forem: princípios de conservação social, princípios monárquicos, nacionalistas, princípios de autoridade, de família, de propriedade, do outro. E o que é verdade para todos esses princípios o é igualmente para os princípios revolucionários, democráticos, socialistas. Não basta afirmar a verdade da teologia apofática, negativa, é preciso também afirmar a da sociologia apofática, negativa. A sociologia catafática, sobretudo quando recebe um fundamento religioso, se torna pata o homem uma fonte de escravidão. Ora, esse livro é consagrado à luta contra a escravidão do homem. a filosofia exposta nesse livro é uma filosofia deliberadamente personalista; aqui eu não falo do home, do mundo, de Deus, senão a partir de minha própria experiência vivida; é a filosofia de um homem concreto, que tem olhos para ver e ouvidos para ouvir, e não uma filosofia inspirada pela razão ou pelo espirito do mundo. Para completar a explicação de minha evolução espiritual, acrescentarei ainda que eu percebo o mundo sob um aspecto sempre novo, como por uma primeira intuição, embora a verdade que ele expresse me seja conhecida depois de muito tempo. Seria compreender mal esse livro, procurar nele a exposição de um programa concerto ou uma solução prática para as questões sociais. Trata-se de um livro filosófico, cujo autor procurou, acima de tido, ressaltar a necessidade de uma reforma espiritual.

  

CAPÍTULO I

1.1. A PESSOA

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O homem é um enigma, e talvez o maior de todos os enigmas do mundo. O homem é um enigma, não na medida em que faz parte do mundo animal, ou enquanto ser social, vale dizer, enquanto produto da natureza ou da sociedade, mas enquanto pessoa, e nada mais do que pessoa. O mundo todo não é nada perante a pessoa humana, diante do que existe de único em um rosto humano, num destino humano. O homem vive num estado de angústia constante, porque ele deseja saber o que ele é, de onde vem, para onde vai. Já na Grécia o homem queria conhecer a si mesmo, e era na aquisição desse conhecimento que ele via a solução do enigma do ser, a fonte do conhecimento filosófico. O homem pode conhecer a si próprio, seja através de seu elemento divino, seja através de seu elemento subterrâneo, inconsciente e demoníaco, ou, dito de outra maneira, através daquilo que ele possui de tenebroso. E ele pode fazê-lo, porque ele é um ser duplo, contraditório, polarizado no mais alto grau, tão próximo de Deus quanto do animal, nobre e baixo, capaz de elevações e de quedas, de grande amor e de grandes sacrifícios, bem como de crueldade e de egoísmo desenfreado. Foram Dostoievski, Kierkegaard, Nietzsche que perceberam com particular clareza o que existe de trágico e de contraditório na natureza do homem. mas foi Pascal que, antes de qualquer um, salientou o caráter duplo dessa natureza. Os primeiros, examinando o homem desde baixo, não viram senão seu lado elementar, o menos nobre e menos digno, a marca de sua queda e, enquanto ser decaído, determinado unicamente por forças elementares, ele lhes pareceu movido unicamente por interesses econômicos, por impulsos sexuais inconscientes, por necessidades e preocupações puramente materiais. Mas a necessidade de sofrimento e de martírio nos personagens de Dostoievski, o terror e o desespero de Kierkegaard, a vontade de poder e a crueldade pregados por Nietzsche, permitem igualmente ver no homem um ser decaído, mas que sofre em sua queda e que tenta se reerguer. Se o homem não fosse uma pessoa, mesmo sendo essa pessoa sufocada e oprimida, atacada pela doença, sem existência própria, senão em potência e enquanto possibilidade, ele seria semelhante a todas as outras coisas do mundo e não apresentaria nada em especial. Mas a pessoa que cada homem abriga em si testemunha que o mundo, tal como é, não basta a si mesmo, que ele pode ser superado e ultrapassado. Uma pessoa em nada se assemelha ao mundo, ela não pode ser comparada a nada. Quando uma pessoa, única e incomparável, faz sua entrada no mundo, o processo cósmico se interrompe e é obrigado a mudar seu curso, embora de um modo que escapa à observação externa. Uma pessoa não se deixa absorver pelo processo contínuo e ininterrupto da vida cósmica, ela não pode ser um momento ou um elemento da evolução cósmica. A pessoa, o homem, enquanto pessoa, não é um filho desse mundo; sua origem está em outra parte. O homem, tal como o conhecem a biologia e a sociologia, ou seja, o homem enquanto ser natural e social, é um produto do mundo e dos processos que se realizam no mundo. Ora, a pessoa, o homem enquanto pessoa, não é um filho desse mundo: sua origem está em outra parte. e é isso que faz do homem um enigma. A pessoa constitui uma ruptura, uma solução de continuidade do mundo, para o qual ela traz um elemento novo. A pessoa não se confunde com a natureza, ela não faz parte de uma hierarquia objetiva natural, ao lado de outras tantas partes. E é por isso, como veremos adiante, que o personalismo hierárquico é um falso personalismo. O que faz do homem uma pessoa, não é a natureza, mas o espírito. Naturalmente, o homem não passa de um indivíduo. Em lugar de ser uma mônada, fazendo parte de uma hierarquia, como tantas outras mônadas, a pessoa é um microcosmo, um universo inteiro. Somente a pessoa é capaz de ter um conteúdo universal, de ser um universo em potência sob uma forma individual. Esse conteúdo universal é inacessível a todas as demais realidades do mundo histórico e natural, cuja característica consiste em não ser senão partes. Ora, a pessoa não é uma parte, nem pode ser uma parte de um Todo qualquer, ainda que esse Todo fosse toda a imensidão do mundo. É nisso que consiste o princípio essencial da pessoa, seu mistério. Na medida em que o homem empírico faz parte de um Todo social ou natural, ele se encontra englobado por ele, sem que sua pessoa se veja, por seu turno, subordinada a esse Todo. Em Leibnitz, como em Renouvier, a mônada é uma simples substância, que faz parte de uma formação complexa. Ela é fechada, sem portas nem janelas. A pessoa, ao contrário, tem diante de si o infinito, ela penetra no infinito e se deixa penetrar por ele e, na medida em que se revela a si mesma, ela busca dar a si própria um conteúdo infinito. Mas, ao mesmo tempo, a pessoa é inconcebível sem forma nem limite, ela não se confunde com o mundo ao redor, não se dissolve nele. A pessoa é um universo sob forma individual, e que jamais se repete. Ela reúne em si o universal e o infinito, de um lado, e o particular e o individual, de outro. É nisso que consiste a aparente contradição na existência da pessoa. O que constitui a pessoa é o que ela não tem em comum com as demais pessoas, e é isso que contém o universo em potência. A concepção que vê na pessoa humana um microcosmo se opõe à concepção orgânica e hierárquica que transforma o homem numa parte subordinada a um Todo geral, universal. Longe de ser a pessoa uma parte do Universo, é o Universo que é uma parte da pessoa, sua qualidade. Esse é o paradoxo do personalismo. A pessoa não pode ser pensada como uma substância, pois isso seria uma concepção naturalista. Ela não pode ser pensada como um objeto, dentre tantos objetos que compõem o mundo. Essa é a maneira de ver das ciências a antropológicas: a biologia, a psicologia, a sociologia. Essas ciências nos fazem conhecer o homem parcial, e não o mistério do homem, enquanto pessoa, enquanto centro existencial do mundo. A pessoa não pode ser conhecida senão enquanto sujeito, porque é em seu subjetivismo infinito que reside o mistério da existência.

 

A pessoa é o invariável dentro daquilo que muda sem cessar, a unidade na multiplicidade. A invariabilidade sem a mudança, a unidade sem a multiplicidade, nos chocariam, tanto quanto a mudança sem a invariabilidade e a multiplicidade sem a unidade. Numa ou noutra dessas duas eventualidades, veríamos um atentado contra a qualificação essencial da pessoa. A pessoa não representa um estado fixo: ela se explicita, se desenvolve, se enriquece, mas seu desenvolvimento é o de uma só e mesma pessoa que continua, malgrado tudo, permanente, que jamais cessa de ser si-mesma. A própria mudança não se faz senão com o objetivo de conservação do invariável, do permanente. A pessoa jamais é um dado acabado: ela é o problema, o ideal do homem. É a unidade perfeita, a integralidade da pessoa que constitui o ideal. A pessoa é uma criação contínua. Nenhum homem pode dizer que é uma pessoa no sentido pleno do termo. A pessoa é uma categoria axiológica, uma categoria de valor. E é aqui que nos encontramos diante do paradoxo fundamental representado pela existência da pessoa. A pessoa deve se criar, enriquecer a si mesma, encher-se de um conteúdo universal, realizar sua unidade, sua plenitude ao longo de toda a duração de sua vida. Mas, para isso, ela deve já existir. É preciso que o sujeito que vai tender a esse objetivo exista previamente. O sujeito chamado a realizar sua perfeição por uma criação contínua deve existir antes mesmo de que comece esse processo. O sujeito deve ser uma pessoa, tanto no começo, como no fim. A pessoa não é um composto de partes, um agregado ou uma adição: ela é uma totalidade original. O crescimento da pessoa, sua realização, não equivalem absolutamente à formação de um Todo a partir de suas partes: mas são os atos criadores da pessoa, considerada como um Todo que não se deixa deduzir, nem compor. A pessoa participa inteiramente de todos os atos criadores do homem. ela é uma manifestação única, sem par. Ela é uma Gestalt, para empregarmos o termo da “psicologia da Gestalt”, que, pelo fato de atribuir um grande valor à totalidade, à forma qualitativa e primária, se aproxima mais do personalismo do que todas as outras teorias psicológicas. Mesmo a decomposição da forma da personalidade não equivale à sua desaparição completa. A pessoa é indestrutível. A pessoa se cria e realiza seu destino colocando suas forças num ser que a ultrapassa. A pessoa é potencialmente universal, por ser um ser que difere de todos os outros, que não se repete, que é insubstituível e cuja forma é única. A pessoa é uma exceção, não uma regra. O mistério da existência da pessoa consiste justamente no fato dela ser insubstituível, única, que ela se esquiva a toda comparação. Tudo o que é individual é insubstituível. Substituir um ser individual que amamos, no qual reconhecemos a forma de uma pessoa, por outro, equivale a se tornar culpado de uma baixeza. E não apenas os homens são insubstituíveis, como também dos animais. Uma pessoa pode ter traços de semelhança com outras, que autorizam comparações. Mas esses traços de semelhança em nada afetam a substância, o próprio fundo da pessoa, aquilo que faz dela uma pessoa – não uma pessoa em geral, mas essa determinada pessoa. Cada pessoa humana apresenta um lado geral e universal, mas esse universal não é um universal interior, como é o caso da aquisição criativa de um conteúdo qualitativo da vida: trata-se de um universal exterior, um universal imposto desde fora. Mas a pessoa, essa ou aquela pessoa concreta, existe, não pelos traços que lhe são comuns com outras pessoas, não pelo fato de que ela possui dois olhos, como os outros homens, mas pela expressão desses olhos, que não encontramos em nenhuma outra pessoa. Existem no homem muitos elementos específicos, genéricos, todo um conjunto de características adquiridas ao longo da história, ou devidos à influência da tradição, do meio social, familiar ou de classe, à hereditariedade, em resumo, muitos traços “gerais”. Mas é aí que reside justamente o lado “impessoal” da pessoa. O “pessoal” é original e autêntico, porque ele se liga à fonte primária. Uma pessoa não é uma pessoa, a não ser na medida em que os atos que ela realiza são atos espontâneos, originais, atos que constituem cada qual como que uma criação nova. É essa atividade criativa que confere à pessoa seu valor único. A pessoa deve ser uma exceção que escapa a toda lei. Todo seu lado hereditário e específico ou genérico não passa da fonte de onde ela retira os materiais de sua atividade criativa. O que o  homem recebe da natureza e da sociedade, da história e da civilização se levanta diante de nós como uma dificuldade que é preciso vencer, como sendo materiais que esperam que nossa atividade criativa os transforme em elementos pessoais que irão formar um conjunto único. Os grupos, as classes, os organismos profissionais podem bem encerrar individualidades de primeira ordem, sem que essas individualidades seja pessoas, no sentido próprio do termo. O homem não é uma pessoa senão na medida em que consegue triunfar sobre a determinação do grupo social. A pessoa não é uma substância, mas um ato, e um ato criador. Todo ato é um ato criador. Quem diz pessoa, diz atividade, resistência, vitória sobre a força esmagadora do mundo, triunfo da liberdade sobre a escravidão do mundo. O medo do esforço é um obstáculo à realização da personalidade. A pessoa é esforço e luta, tomada de posse de si mesma e do mundo, vitória sobre a escravidão, libertação. A pessoa é um ser racional, mas que não se deixa determinar pela razão, e do qual não se pode dizer que seja portador de razão. Por si mesma, a razão nada tem de pessoal: ela é universal, comum, impessoal. O que Kant chama de natureza moral racional consiste numa natureza impessoal, comum. A concepção grega do homem como um ser de razão não se enquadra com a filosofia personalista. A pessoa é não apenas um ser de razão, mas também, e sobretudo, um ser livre. A pessoa é a totalidade do pensamento, a totalidade da vontade, a totalidade dos sentimentos, a totalidade da atividade criadora. A razão, tal como a concebia a filosofia grega, a razão de que fala o idealismo alemão, é uma razão impessoal, comum a todos os homens. Mas eu possuo também uma razão que me é própria, ou melhor, uma vontade pessoal. O personalismo não pode ser fundamentado sobre o idealismo, seja platônico ou alemão, sobre a filosofia da evolução ou sobre a filosofia de vida que dissolve a pessoa no processo impessoal, seja ele cósmico ou vital. Max Scheller bem frisou a distinção entre a pessoa e o organismo, entre o ser espiritual e os ser vital.


  

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A pessoa não é uma categoria bíblica ou psicológica, mas uma categoria ética e espiritual. Ela não pode ser identificada à alma. A pessoa possui uma base elementar e inconsciente. Através de seu subconsciente o homem mergulha no oceano tumultuoso da vida elementar e não se vê senão parcialmente racionalizado. É preciso distinguir no homem um “eu” profundo e o “eu” de superfície. Frequentemente é através do eu superficial que a pessoa entre em contato com os demais, com a sociedade e a civilização, mas esse é um contato puramente exterior, não uma comunhão interior. É isso que Tolstoy tão bem compreendeu, ao falar da vida dupla do homem: uma vida convencional e exterior, fundamentada na mentira, e que é a vida em sociedade, no Estado, na civilização; e uma vida interior, autêntica, que coloca o homem em contato com as realidades primeiras, com as profundezas de seu eu e de seu mundo. Quando o príncipe André[1] contemplava o céu estrelado, ele vivia uma vida mais autêntica do que quando tomava parte em uma conversação em São Petersburgo. O “eu” superficial do homem, demasiado socializado, racionalizado e civilizado, longe de representar a pessoa, pode ter mesmo um efeito deformador sobre o homem, a desaparição da pessoa. A pessoa pode ser esmagada, oprimida, o homem pode ter muitos rostos, e seu verdadeiro rosto permanecer impalpável. O homem desempenha muitas vezes um papel na vida, e esse papel pode muito bem não ser o seu. É sobretudo no homem primitivo e nas enfermidades psíquicas que o desdobramento do homem se reveste de uma impressionante intensidade. No homem civilizado, de normalidade mediana, esse desdobramento apresenta um caráter normativo, de adaptação às condições da civilização, sendo uma das formas dessa adaptação o recurso à mentira, como uma arma de defesa. O treinamento social e a iniciação à civilização podem ter efeitos positivos, mas em nada contribuem para a formação da pessoa. O homem mais socializado e mais civilização pode ser um homem impessoal, um escravo, sem que se dê conta disso. A pessoa não é mais parte da sociedade, como o é da espécie. O problema do homem, vale dizer, o problema da pessoa, é anterior ao da sociedade. Todas as concepções sociológicas do homem est]ao erradas, no sentido em que elas não levam em conta mais do que a camada superficial, objetificada, do homem. É somente quando vista desde fora, do ponto de vista sociológico, que o homem aparece como um elemento subordinado à sociedade, elemento pouco significativo em comparação com o caráter massivo desta. É a filosofia existencial, não a filosofia sociológica ou biológica, que é feita para servir de base a uma verdadeira teoria da pessoa. A pessoa é um sujeito, não um objeto dentre outros, ela possui suas raízes no plano interior da existência, ou seja, no mundo do espírito, no mundo da liberdade. Quanto à sociedade, ela é um objeto. Do ponto de vista existencial, é a sociedade que é parte da pessoa, da qual ela representa o lado social, assim como o cosmo representa seu lado cósmico. A pessoa não é um objeto entre objetos, nem uma coisa entre outras. Ela é um sujeito em meio a sujeitos e sua transformação em objeto implica sua morte. Um objeto é sempre nocivo, somente o sujeito pode ser bom. Podemos dizer que a sociedade e a natureza constituem a matéria da forma ativa da pessoa. Mas a pessoa é independente da natureza, assim como o é em relação à sociedade e ao Estado. Ela se opõe a toda determinação exterior, e só conhece determinação que lhe seja interior. A pessoa não pode ser determinada do exterior, mesmo por Deus. A relação entre a pessoa e Deus não é uma relação causal, ela está fora do reino da determinação, ela se coloca no interior do reino da liberdade. Deus não é um objeto para a pessoa, Ele é um sujeito com o qual ela está numa relação existencial. A pessoa é o centro existencial absoluto. Ela se determina desde dentro, independentemente de toda objetividade, e é somente graças a essa determinação desde dentro, com toda a liberdade, que o homem se torna pessoa. Tudo o que é determinado no “eu” do homem faz parte do passado e se torna impessoal, enquanto que a pessoa não existe a não ser por sua atividade criativa do devir. A objetivação implica impessoalidade, a projeção do homem num mundo determinado. A existência da pessoa é condicionada pela liberdade. O mistério da liberdade não é o livre arbítrio, no sentido acadêmico da palavra, não consiste nessa liberdade de escolha que pressupõe a racionalização. É a pessoa que faz a dignidade do homem. Somente a pessoa possui a dignidade humana, que consiste na libertação da escravidão, da concepção servil da vida religiosa e das relações entre o homem e Deus. Com efeito, Deus é uma garantia da liberdade da pessoa e preserva o homem da submissão ao poder da natureza e da sociedade, ao reino de César e ao mundo da objetividade. Tudo o que concerne à pessoa pertence ao mundo do espírito, e não ao mundo objetivo. E nenhuma das categorias do mundo objetivo se aplica às suas relações existenciais interiores. É procurar em vão, buscar no mundo objetivo um verdadeiro centro existencial.

 

 A pessoa, enquanto centro existencial, possui uma sensibilidade para os sofrimentos e as alegrias, sensibilidade que não encontramos em parte alguma no mundo objetivo: nem na nação, nem no Estado, nem nas instituições sociais, nem na Igreja. Falar do sofrimento de um povo equivale a usar uma linguagem figurada. Nenhuma comunidade do mundo objetivo pode ser reconhecida como uma pessoa. As realidades coletivas são valores reais, não pessoas reais, pois sua existencialidade é função da realidade das pessoas. Podemos admitir a existência de almas coletivas, mas não de pessoas coletivas. A noção de pessoa coletiva ou “sinfônica” é uma noção contraditória, sobre a qual voltaremos mais adiante. Nós “hipostasiamos[2]” tudo o que amamos, é verdade, e também tudo de que nos arrependemos, incluindo objetos inanimados e ideias abstratas. Esse é um processo mitogênico, fator de intensificação da vida, mas que não prova que as realidades assim hipostasiadas sejam pessoas no verdadeiro sentido do termo. A pessoa não é apenas capaz de experimentar a dor, como ela é, num certo sentido, a própria dor. A luta pela pessoa, a afirmação da pessoa, constituem atos dolorosos. A realização da pessoa não se efetua sem resistência, ela exige uma luta contra o poder subjugador do mundo, a recusa em transigir com o mundo. A renúncia à pessoa, a aceitação em se submeter à ação dissolvente do mundo possuem o dom de atenuar a dor, e as pessoas consentem nisso facilmente. A aceitação da escravidão diminui a dor, a não aceitação a agrava. No mundo humano a dor é um sentimento que nasce da pessoa, no decurso de sua luta pela sua realidade. Mesmo no mundo animal, a individualidade gera a dor, a liberdade gera o sofrimento. Podemos diminuir o sofrimento renunciando à liberdade. A dignidade do homem, vale dizer, a pessoa – em outros termos, a liberdade – comporta a aceitação da dor, a força para suportar a dor. A humilhação de meu povo ou a ofensa à minha fé são uma causa de dor para mim, e não para o povo ou a comunidade religiosa, que não possuem um centro existencial e que são, por conseguinte, insensíveis à dor. A faculdade de experimentar a dor é inerente a todo ser vivo, ao homem em primeiro lugar, a seguir ao animal, talvez (segundo alguns) às plantas – mas não às realidades coletivas e aos valores ideais. Esse é um ponto essencial, um fato que domina toda a ética personalista. É o homem, a pessoa humana, que constitui o valor supremo, e não as realidades coletivas que fazem parte do mundo objetivo, tais como a sociedade e a nação, o Estado, a Igreja, a civilização. É a tábua de valores personalista, sobre a qual voltaremos adiante. A pessoa é inseparável da memória e da fidelidade, ela comporta a unidade do destino e a da biografia. É por isso que a existência da pessoa é uma existência dolorosa. O Cristianismo sempre manteve uma atitude dupla em relação ao homem, de um lado, com efeito, ele parece humilhar o homem, considerá-lo como um ser inclinado ao pecado e decaído, para exortá-lo à humildade e à obediência. E isso alguns não podem perdoar ao Cristianismo. Mas, por outro lado, o Cristianismo exalta o homem, nele vê a imagem de Deus, declara-o portador de um princípio espiritual que o eleva acima do mundo natural e social, atribui a ele uma liberdade espiritual que o torna independente do império de César e crê que o próprio Deus se tornou homem para elevar a humanidade até o céu. Somente sobre essa base cristã é possível assentar a teoria da pessoa e a transmutação personalista dos valores. A filosofia personalista deve reconhecer que o espírito é uma fonte, não de generalização, mas de individualização, que ele criou um mundo, não de valores ideais extra-humanos e gerais, mas de pessoas, com seu conteúdo qualitativo, e que ele conforma a pessoa. O triunfo do princípio espiritual significa, não a submissão do homem ao universo, mas a revelação do universo na pessoa. Quando afirmamos a respeito de um homem, ser ele dotado das mais altas qualidades, quando a ele atribuímos a razão, a beleza, o gênio, a santidade, tudo elevado ao mais alto grau, se nos contentarmos em deslocar o centro existencial, o centro de gravidade do “eu”, para ligá-lo a princípios qualitativos universais, acabamos por suprimir, de certa forma, o mistério da pessoa, tornando intercambiáveis todos os indivíduos portadores dessas qualidades. A unidade do sujeito e de sua biografia desaparecem, e a memória já não guarda nenhuma lembrança da pessoa. É nisso que reside o erro da filosofia idealista dos valores e da existência ideal.


  

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O homem é um ser que ultrapassa a si mesmo, que transcende a si mesmo. É graças a essa autossuperação, a essa transcendência, que o homem consegue realizar em si a pessoa. O homem deseja fugir de sua estreita subjetividade, e o faz, ou melhor, ele pode fazê-lo em duas direções. Ele pode sair da subjetividade por meio da objetificação, vale dizer, entrando para a sociedade, aceitando suas formas obrigatórias, os dados obrigatórios da ciência. Ao se engajar nessa via, ele se afasta da natureza humana, projetando-a no mundo objetivo, e já não encontra sua pessoa. Mas também é possível escapar da subjetividade transcendendo-a, passando, não para o objetivo, mas para o trans-subjetivo. Esse caminho passa pelas profundezas da existência, e é sobre esse caminho que acontecem os encontros com Deus, com os outros homens, com a essência interior do mundo, pois esse é o caminho, não das comunicações objetivas, mas das comunicações existenciais.  Somente seguindo esse caminho a pessoa consegue se realizar por completo. Esse é um fato muito importante, na medida em que permite compreender as relações das quais falaremos mais adiante, entre a pessoa e os valores suprapessoais. Essas relações podem, com efeito, acontecer seja no mundo da objetificação, o que resulta na sujeição do homem, seja no da existencialidade e da transcendência, vale dizer, no mundo da liberdade. Dentro da objetivação, o homem se vê em poder do determinismo que o torna impessoal, enquanto que na transcendência o homem desfruta de toda liberdade, e seu encontro com aquilo que o ultrapassa possui um caráter pessoal, sem que o suprapessoal sufoque a pessoa. Trata-se de uma diferença capital. O que caracteriza a pessoa é que ela não pode bastar a si mesma, pois sua existência tem como condicionante algo que lhe é superior, igual ou inferior, na falta do que toda distinção se torna impossível. Mas eu repito a esse respeito aquilo que já disse antes, a saber, que as relações da pessoa com aquilo que lhe é superior não são relações da parte para com o Todo. A pessoa permanece sendo uma totalidade que não se integra a nada, mesmo em suas relações com o que lhe é superior. A relação de uma parte com o todo é uma relação matemática, assim como a relação de um órgão com o organismo é uma relação biológica. Essas relações são relações que existem no mundo objetivo, no qual o homem desempenha apenas o papel de uma parte ou de um órgão. Ora, a relação existencial de uma pessoa com outra, um com aquilo que a ultrapassa infinitamente, nada tem a ver com a matemática ou a biologia. O transcendente não implica em absoluto a subordinação da pessoa a um todo qualquer, nem sua integração, como parte constituinte, de uma realidade coletiva, nem sua submissão a outro ser, sequer a um Ser Supremo, como ao seu Senhor. A transcendência é um processo ativo, dinâmico, ela é uma experiência imanente, no decurso da qual o homem passa por catástrofes, transporta-se sobre abismos, experimenta uma interrupção em sua existência, mas tudo isso sem se exteriorizar, mas, ao contrário, interiorizando-se. Somente a falsa objetivação da transcendência, somente sua projeção no exterior, podem criar a ilusão de um transcendente que oprime a pessoa e a domina. A transcendência, no sentido existencial, é liberdade e pressupõe a liberdade, ela é a libertação do homem de seu aprisionamento em si mesmo. Mas essa liberdade é uma liberdade difícil, marcada por uma trágica contradição.

 

O problema da pessoa nada tem em comum com o das relações entre o corpo e a alma, que tanto foi debatido no plano acadêmico. A pessoa não é a alma distinta do corpo, por meio da qual o homem se encontra ligado à vida da natureza. A pessoa representa a imagem total do homem, ela é sua representação total na qual o princípio espiritual domina todas as forças psíquicas e corporais do homem. Ora, assim como a alma, o corpo faz parte da imagem do homem. O velho dualismo “corpo e alma”, que remonta a Descartes, é uma concepção falsa e sem valor. Semelhante dualismo não existe. A vida psíquica penetra a vida do corpo, assim como a vida do corpo reage sobre a vida da alma. Entre a alma e o corpo existe uma unidade vital. Se dualismo existe, não é entre o corpo e a alma, mas entre o espírito e a natureza, entre a liberdade e a necessidade. A própria forma do corpo humano expressa uma vitória do espírito sobre o caos da natureza. Friedrich August Carus, psicólogo e antropólogo da escola romântica, estava muito mais correto do que muitas teorias pretensamente científicas. A alma, dizia ele, tem sua sede, não no cérebro, mas na forma. Ludwig Klages se inspirou nele. A forma do corpo não é feita de matéria, ela não é um fenômeno do mundo físico, ela não é apenas de natureza psíquica, mas trata-se de uma manifestação do espírito. O rosto humano constitui o coroamento do processo cósmico, seu produto supremo. Longe de ser o produto de forças puramente cósmicas, ele pressupõe a ação de uma força espiritual, superior às forças da natureza. O rosto humano é que existe de mais espantoso na vida cósmica, pois ele deixa transparecer um outro mundo. Através de seu rosto, o homem entre no processo cósmico como um fenômeno único, inimitável, que escapa a toda repetição, a toda reprodução. Graças ao rosto, percebemos não apenas a vida corporal, como a vida psíquica do homem. E conhecemos essa vida melhor do que a vida do corpo. A forma do corpo provém ao mesmo tempo da alma e do espírito. É nisso que consiste a totalidade da pessoa. Para os homens do século XIX, a forma do corpo era uma quantidade que podia ser negligenciada. Ocupava-se da fisiologia do corpo, mas não de sua forma, que era deixada de lado. Essa era ainda uma consequência da concepção ascética do corpo, estabelecida pelo Cristianismo, concepção aliás pouco consequente, porque não implicava em absoluto a negação das funções do corpo. Mas, enquanto que as funções do corpo são de ordem fisiológica, funções por meio das quais o homem está ligado ao mundo animal e biológico, a forma do corpo é do domínio da estética. Os gregos concebiam a forma humana como um fenômeno estético, e essa concepção penetrava, por assim dizer, toda a civilização grega. Hoje em dia observamos um retorno parcial à maneira grega de encarar o corpo, e a forma do corpo recupera seus direitos. Isso pressupõe uma mudança na consciência cristã e o abandono do espiritualismo abstrato que opõe o espírito do corpo, e que vê no corpo um princípio hostil ao espírito. O espírito compreende igualmente o corpo, mas para vivificá-lo, para animá-lo, para imprimir a ele uma outra qualidade. É preciso deixar de ver no corpo um fenômeno material, físico. Mas isso pressupõe igualmente o abandono da concepção mecanicista do mundo, que “des-anima” o corpo e se mostra hostil à sua forma. Para o materialismo, a forma do corpo é ininteligível e inexplicável. O espírito imprime uma forma à alma e ao corpo, realizando assim neles uma unidade, ao invés de sufocar e destruir a um e a outro. Isso quer dizer que o espírito forma a pessoa, que ele realiza sua unidade, fazendo nela entrar o corpo, ou seja, o rosto humano. A pessoa representa um conjunto formado por espírito, alma e corpo, conjunto graças ao qual ela se eleva acima do determinismo do mundo da natureza. A forma humana, tal como a percebemos pelo órgão sensível da visão, longe de depender da matéria, representa uma vitória sobre a matéria, opondo-se às suas determinações despersonalizantes. O personalismo deve reconhecer a dignidade do corpo humano, o direito do corpo a uma existência verdadeiramente humana. É assim que o problema da dor se torna, também ele, uma questão de ordem espiritual. Se os direitos do corpo humano são inseparáveis do reconhecimento das reivindicações da dignidade humana, é porque os atentados mais revoltantes contra a pessoa começam sempre por atingir o corpo. Causamos fome ao corpo, ferimo-lo, matamo-lo, para, através dele, atingirmos o homem por inteiro. E isso porque o espírito não se deixa esfaimar, nem torturar, nem matar diretamente.

 

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Os filósofos gregos não possuíam uma ideia muito clara da pessoa. Podemos perceber os primeiros lampejos disso entre os Estoicos. Isso resultou em grandes dificuldades para os Padres da Igreja, do ponto de vista do desenvolvimento dos dogmas. Eles se viram obrigados a estabelecer uma distinção bem sutil entre hypostasis e physis. Deus representa uma só natureza em três hipóstases. Cristo representa uma pessoa e duas naturezas. Todo o pensamento dos Padres da Igreja evoluiu dentro das categorias e noções do pensamento grego, sempre que se tratava de exprimir alguma coisa inteiramente nova, uma nova experiência espiritual que fosse estranha a Platão, a Aristóteles ou a Plotino. É a doutrina das hipóstases da Santa Trindade que, do ponto de vista do problema da pessoa, ocupa um lugar muito importante na história do pensamento universal. Podemos dizer que o reconhecimento de Deus como pessoa precedeu o do homem como pessoa. É por isso que não compreendemos bem como certos autores (Lev Karsavine) negam a existência da pessoa humana, ao mesmo tempo em que reconhecem a da pessoa divina (hipóstase). Ele formula uma teoria da pessoa “sinfônica”, que realiza a trindade divina. Essa teoria da pessoa “sinfônica” está em completa oposição como o personalismo e implica a justificação metafísica da escravidão do homem. trata-se de uma questão que não pode ser resolvida por meio de uma dialética de noções, e sua solução não pode ser senão consequência de uma experiência espiritual e moral. Karsavine não conseguiu conciliar a pessoa com a unidade totalitária. Isso prova apenas que o personalismo não pode estar alicerçado sobre uma metafísica monista. A palavra grega hypostasis, que significa “aquilo que está colocado por debaixo”, e a palavra latina persona, que significa “máscara de teatro”, não exprimem senão de modo muito imperfeito o sentido que o Cristianismo e a filosofia moderna ligam à palavra “pessoa”. Essa palavra sofreu grandes transformações ao longo dos séculos, e acabou por perder seu sentido primitivo de máscara teatral. A escolástica a recebeu de Boécio, que já definia a pessoa como um ser individual e racional. O problema da pessoa foi para a escolástica uma questão muito difícil. O tomismo ligava a forma à matéria: segundo ele, seria a matéria e não a forma que individualiza, pois a forma seria universal. Mas mesmo a filosofia tomista fazia uma distinção importante entre pessoa e indivíduo. Para Leibnitz, a essência da pessoa consiste na consciência de si, ou, dito de outra forma, a imagem da pessoa está associada à consciência de si. Kant introduziu uma modificação importante na concepção de pessoa, deslocando-a do terreno intelectualista para o campo ético. Ele concebeu a pessoa como algo subtraído ao determinismo, independente de todo e qualquer mecanismo da natureza. Ademais, a pessoa não constitui um fenômeno entre fenômenos. Ela é um fim em si, e não um meio; ela só existe por si mesma. Entretanto, não podemos dizer que a concepção kantiana seja personalista no sentido autêntico do termo, porque, segundo essa concepção, o valor da pessoa é estimado segundo valores morais e racionais que seriam aplicáveis a todos. Mas Stirner, malgrado o que existe de falso em sua filosofia, entreviu a verdade do personalismo, mas deformou-a. Nele encontramos a dialética da autoafirmação do “eu”. O “Único” não é uma pessoa, por que esse “Único” desaparece na autoafirmação ilimitada, na ausência de todo desejo de conhecer a outrem e de transcender em direção a algo superior. Mas existe no “Único” uma parte de verdade, no sentido em que ele é concebido como um microcosmo, como um Universo, que o Universo inteiro, num certo sentido, é propriedade sua e pertence a ele, o que significa que a pessoa não é algo parcial, particular, dependente de um todos, de uma generalidade qualquer. Mas Scheler definiu a pessoa como uma unidade de experiências internas, como uma unidade existencial de atos variados. O que há de importante nessa concepção é a ligação que ela estabelece entre a pessoa e o ato. Mas é importante reconhecer, indo ao encontro de Max Scheler, que a pessoa pressupõe a existência de outras pessoas e a comunhão com elas. Nesmielov formulou uma notável concepção do homem. segundo ele, não haveria no mundo senão uma só contradição e um só enigma, que seriam aqueles que se referem à pessoa humana. A pessoa reflete a imagem da existência incondicionada, e ao mesmo tempo ela está condenada a uma existência condicionada. Existe uma contradição entre o que a pessoa deveria ser e as condições de sua existência na terra. E Nesmielov define assim a contradição que a existência do homem sofre: o homem é um objeto físico que traz em si a imagem de Deus. Mas a pessoa inerente ao homem não é um objeto do mundo físico. A teoria vitalista, que desempenha um importante papel no pensamento contemporâneo e que oferece sua própria concepção do homem, é desfavorável ao princípio da pessoa. A filosofia da vida é, de fato, antipersonalista, porque ela implica a absorção do homem, sua dissolução no processo cósmico e social. Igualmente antipersonalistas são o dionisismo, o misticismo panteísta e naturalista, a teosofia, a antroposofia, o marxismo, o fascismo e ainda o liberalismo que se liga ao capitalismo.

 

 

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Para compreendermos bem o que é uma pessoa, de vemos distinguir entre pessoa e indivíduo. Os tomistas franceses insistem com razão sobre a necessidade dessa distinção; e eu digo, “com razão”, embora o terreno filosófico no qual eles se movem seja bem diferente do meu. O indivíduo é uma categoria naturalista, biológica, sociológica. O indivíduo é indivisível em relação a um todo: ele é um átomo. Não apenas ele pode fazer parte de uma espécie ou de uma sociedade, como do cosmo em sua totalidade, mas é impossível pensá-lo de outro modo senão como parte de um todo, fora do qual ele deixa de ser um indivíduo. O indivíduo pode ser definido como sendo ao mesmo tempo subordinado a um Todo e como um centro de autoafirmação egoísta. É por isso que o individualismo, derivado da palavra individu, longe de significar a independência em relação a um todo, em relação ao processo cósmico, biológico ou social, significa o isolamento da parte subordinada e sua revolta impotente contra o Todo. O indivíduo está ligado ao mundo material por laços estreitos, ele é o produto de um processo genético. O indivíduo nasce de pais, ele possui uma origem biológica, ele é determinado tanto pela hereditariedade genética quanto pela social. Não existe indivíduo sem espécie, assim como não há espécie sem indivíduos. O indivíduo evolui em categorias que implicam a distinção entre o específico e o individual, ele conduz a luta pela existência dentro de um processo específico, biológico e social. O homem é de fato um indivíduo, mas ele não é apenas um indivíduo. O indivíduo está ligado ao mundo material, ele vive nele, mas, enquanto indivíduo, ele não possui conteúdo universal, ele próprio não é universal. Se o homem é um universo, um microcosmo, não é enquanto indivíduo que ele o é. A pessoa não é uma categoria naturalista, mas uma categoria espiritual. A pessoa não é algo indivisível ou um átomo em relação a um Todo cósmico, específico e social. Ao contrário, o que caracteriza a pessoa, é a liberdade, a independência em relação à natureza, à sociedade e ao Estado; ela é o oposto exato da autoafirmação egoísta. Ao contrário do individualismo, o personalismo não implica o isolamento egocêntrico. Enquanto pessoa, o homem é independente do mundo material, que fornece somente a matéria para o trabalho do espírito. E a pessoa é ao mesmo tempo um universo, ela está repleta de conteúdo universal. A pessoa não é produto de um processo genético e cósmico, ela não nasce de um pai e uma mãe: ela emana de Deus, ela provém de um outro mundo. Ela mostra que o homem é o ponto de intersecção entre dois mundos, que nele acontece uma luta entre o espírito e a natureza, entre a liberdade e a necessidade, entre a independência e a dependência. Segundo Espinas, o indivíduo seria uma verdadeira célula. Mas a pessoa não é uma célula, ela não é parte de um organismo. Ela consiste numa unidade e numa totalidade primárias, e as relações que ela desenvolve com outrem e com outros, com o mundo, com a sociedade, com os homens, são relações de criação, de liberdade, de amor, e não de determinação. A pessoa está fora das relações entre o individual e o particular, de um lado, e, de outro, entre o genérico e o geral, ou seja, entre as partes e um Todo, e entre os órgãos e o organismo. A pessoa não é uma entidade animal. Ela não é determinada pela hereditariedade biológica e social, ela expressa a liberdade do homem, a possibilidade de uma vitória sobre o determinismo do mundo. O que há de pessoal no homem está em oposição com o automatismo, psíquico e social, que desempenha um papel tão importante na vida do homem. O indivíduo e a pessoa se encontram reunidos no mesmo homem, não como duas entidades distintas, mas como duas qualificações, como duas forças. Charles Péguy diz que o indivíduo é o burguês que cada homem traz em si e que ele deve vencer. O homem-indivíduo vive no isolamento, preocupado egocentricamente consigo mesmo, ele está condenado a conduzir uma luta penosa pela existência, uma vida de defesa contra os perigos que o ameaçam. Ele se livra da dificuldade pelo conformismo, pela adaptação. O homem-pessoa é o mesmo homem, mas que busca superar seu isolamento egocêntrico, tenta descobrir em si o Universo, e que defende sua independência em relação ao mundo que o cerca. Mas é preciso sempre se lembrar que a linguagem nos induz frequentemente ao erro, graças à tendência que temos em empregar palavras num sentido diferente de seu sentido primitivo. O indivíduo, a individualidade, significam o que é único em seu gênero, original, aquilo que difere de outrem e dos outros. Assim compreendido, o individual faz justamente parte da pessoa. A pessoa é mais individual do que o indivíduo. Frequentemente, o individual significa o irracional, aquilo que está em oposição ao geral, ao obrigatório, ao normativo, ao racional. Podemos dizer, nesse sentido, que a pessoa é irracional, enquanto que o indivíduo está desde sempre subordinado à lei obrigatória, por ser mais determinado. É interessante notar, do ponto de vista da história da consciência, que a individualidade, tal como a compreendiam os românticos, difere da pessoa, tal como a concebemos. Os próprios românticos tinham uma individualidade muito pronunciada, mas uma personalidade em geral fraca. A individualidade possui um caráter vital, mais do que espiritual, e ela ainda não representa uma vitória do espírito e da liberdade. O romance contemporâneo oferece um quadro de profunda desintegração, de dissociação da pessoa: citarei os romances de Proust na França, dos de André Biély na Rússia. Somente a pessoa possui uma unidade e uma integridade interiores, sendo o individual, ao contrário, puxado de todos os lados pelas forças do mundo. A pessoa não pode ser um cidadão do mundo e do Estado, no sentido próprio do termo cidadão: ela só pode ser um cidadão do Reino de Deus. É por isso que a pessoa é um elemento revolucionário, no sentido profundo da palavra. Isso se explica pelo dato de que o homem é um ser que pertence a dois mundos, e não a um só. O personalismo é uma filosofia dualista, e não monista.

 

6

 

A existência da pessoa pressupõe a existência de valores suprapessoais. Não existe pessoa na ausência de um ser que lhe seja superior, na ausência de um mundo superior que seja o objetivo de sua ascensão. A relação da pessoa com o universal não tem nada da relação da pessoa com o genérico, com o geral. Estamos aqui na presença do problema mais difícil da filosofia personalista, e essa dificuldade provém de certos hábitos do pensamento, nascidos do fato de que o problema do nominalismo e do realismo está mal colocado. Qual é a atitude do pensamento em relação ao que é geral e em relação ao mundo objetivo? É verdade que os universalia não se encontram nem ante rem (realismo e, ao mesmo tempo, idealismo platônico), nem post rem (nominalismo empírico), mas in rebus. Do ponto de vista do problema que nos interessa, isso significa que o universal se encontra no individual, vale dizer, na pessoa, não como um produto da experiência quantitativa, mas como uma qualidade primária. O universal se encontra, não na esfera ideal suprapessoal, mas na pessoa, situada sobre o plano existencial. O universal e os valores ditos suprapessoais fazem parte do mundo da subjetividade, não do mundo da objetividade. É a objetivação dos valores universais que gera a sujeição do homem. É por isso que convém dizer que o cosmo, a humanidade e a sociedade se encontram na pessoa, e não que a pessoa está mergulhada no cosmo, na humanidade, na sociedade. O homem, ou seja, o individual – ou, para nos servirmos de outra terminologia, o singular – é mais existencial do que a humanidade, a qual extrai seu valor do fato de que ela representa a unidade, por assim dizer, pan-humana do mundo humano, o princípio qualitativo da fraternidade humana, ou, dito de outro modo, uma realidade que não ultrapassa o homem, que não é supra-humana. O universal não é o geral, ele não é o abstrato, mas o concreto, vale dizer: ele á a plenitude. O universal (e isso é ainda mais verdadeiro para o geral) não é uma entidade independente, ele se encontra nos seres particulares, in rebus, para empregar a velha terminologia. O individual está longe de ser uma parte do universal. É errado opor o universal ao singular. A pessoa não é um particular, ela não é o parcial que se opõe ao universal. Seria mais exato dizer que é a pessoa que é o universal. A singularidade do individual em si é penetrada interiormente pelo não-individual, pelo universal. Toda a velha terminologia é desconcertante e está em relação com a filosofia objetivada das noções, e não com a filosofia existencial. Já Leibnitz havia ensaiado uma solução para o debate entre realistas e nominalistas. O universal, encarnado no individual, faz com que desapareça a oposição entre um e outro. O universal é a experiencia vivida pelo sujeito, não uma realidade incluída no objeto. Não existe um mundo de ideias objetivo. Isso não quer dizer que o universal, que as ideias e os valores universais, sejam de natureza subjetiva, no sentido tradicional do termo. A noção de Deus, a ideia de Deus, formadas com a ajuda da objetivação, estão cheias de contradições insuperáveis. Dizer que Deus é o universal seria tão inexato quanto dizer que ele é o singular, o individual. A diferença entre o universal e o singular se encontra no plano da objetivação, mas Deus não se encontra no plano da objetivação: ele existe num plano existencial, na experiência da superação, da transcendência. A relação entre o homem e Deus não é uma relação de causa e efeito, nem  entre o particular e o geral, nem entre o meio e o fim, nem o do escravo e do senhor; ela não se parece com nada que exista no mundo objetivo, natural ou social, e não possui analogia nesse mundo. Deus não existe como uma realidade objetiva que estaria acima de mim, como uma objetivação da ideia universal. Ele existe enquanto encontro existencial, como ato de transcendência. E é a favor desse encontro que Deus é uma pessoa. E, por ser assim, a questão das relações entre a pessoa e os valores suprapessoais recebe uma outra solução.

 

Não podemos dizer que o suprapessoal, que aquilo que é superior ao homem, em resumo, que Deus constitua um fim e que o homem seja somente um meio com vistas a esse fim. A pessoa-homem não pode ser um meio em relação à pessoa-Deus. A doutrina teológica que pretende que Deus tenha criado o homem para sua própria glorificação humilha tanto a Deus como o homem. A relação de pessoa a pessoa, mesmo com a suprema pessoa de Deus, não pode ser uma relação do meio com o fim, pois cada pessoa é um fim em si. A relação entre fins e meios só existe no mundo da objetivação, da projeção da existência no exterior. A pessoa não pode se elevar, se realizar, alcançar a plenitude da vida, na ausência de valores suprapessoais, na ausência de um Deus e de um nível de vida de altura divina. A concepção humana, segundo a qual a pessoa humana seria o estágio mais elevado, por não existir Deus e por ser o homem o próprio Deus, é uma concepção rasa, absurda, que, em lugar de elevar o homem, o rebaixa. Mas tampouco podemos dizer que a pessoa humana seja um meio em relação a um valor suprapessoal, um instrumento à disposição de uma força divina. Quando os valores suprapessoais transformam o homem, a pessoa humana, em um meio, estamos diante de uma idolatria. A pessoa é um paradoxo para o pensamento racional, pois ela compreende de maneira paradoxal tanto o pessoal como o suprapessoal, o finito e o infinito, o imutável e o variável, a liberdade e o destino. A pessoa não é uma parte em relação ao mundo: ela é correlativa ao mundo e a Deus. A pessoa não conhece outra relação que não seja a de encontro e comunhão. E Deus, enquanto pessoa, deseja o homem, não para dominá-lo e para dele se servir para sua glorificação, mas o homem-pessoa, que responda ao seu chamado, e com o qual seja possível a comunhão no amor. Toda pessoa possui seu próprio mundo. A pessoa humana é o Todo, toda a história do mundo em potência. Tudo o que existe no mundo aconteceu a mim. Mas essa pessoa só é atualizada em parte, sendo que a outra parte, que é maior, permanece em estado de sono, em estado latente. Nas profundezas que escapam à minha consciência, eu me vejo mergulhado no oceano da vida cósmica. Ao atualizar, ao descobrir, pela consciência e pelo amor, intelectual e emocionalmente, meu conteúdo universal latente, eu jamais me transformo em um meio a serviço desse conteúdo. Com efeito, existe uma relação complicada e contraditória entre minha consciência e minha pessoa, minha individualidade. É bebendo das suas profundezas que a pessoa ergue sua consciência como se fosse uma fortaleza, como uma barreira que se opõe à confusão, à dissolução, embora minha consciência possa igualmente impedir minha pessoa de se deixar penetrar por um conteúdo universal, servindo de obstáculo à minha comunhão com o Rodo cósmico. Mas, ao mesmo tempo, existe na consciência um elemento supraindividual, pois a consciência jamais permanece confinada no individual. A consciência nasce das relações entre o “eu” e o “não-eu”, ela implica que o “eu” saia de si mesmo, mas ela pode igualmente ser um obstáculo para a saída do “eu” para o “você”, à comunhão interna entre o um e o outro. Ela é objetiva, e, na medida em que objetificar, ela se opõe à transcendência. A consciência é a “consciência infeliz”. Ela está submetida à lei que conhece o geral e não conhece a individualidade. Dessa forma é fácil tornar-se vítima de uma ilusão, que provém de uma compreensão inadequada das relações entre o pessoal e o suprapessoal. A própria estrutura da consciência é tal que ela pode facilmente dar lugar à escravidão. Mas jamais devemos perder de vista o duplo papel da consciência, que é ao mesmo tempo fechada e aberta.

 

O personalismo hierárquico, preconizado por grande número de filósofos (Leibnitz, Stern, Losski e, em parte Scheler), é marcado por uma contradição interna que o transforma num antipersonalismo. Segundo essa teoria, o Todo cósmico, hierarquicamente organizado, seria composto por uma série de pessoas ocupando diversos graus hierárquicos, cada qual subordinada ao grau imediatamente acima numa escada, e consistindo numa parte ou órgão. A pessoa humana não ocupa mais do que um grau da hierarquia e contém as pessoas de todos os graus que seguem. Mas uma nação, o cosmo, a humanidade, podem igualmente ser considerados como pessoas de um grau superior. As comunidades, as coletividades, as totalidades, são reconhecidas como pessoas, e podemos dizer o mesmo de toda unidade real. Ora, um personalismo consequente não pode deixar de se dar conta de que essa maneira de ver está em contradição com a própria essência da pessoa.

 

A concepção hierárquica é obrigada a considerar a pessoa como sendo uma parte em relação ao Todo, a não ver o valor da pessoa senão como pertencente a esse Todo, e a ver no Todo a única fonte de seu valor. O Todo hierárquico, ao qual a pessoa é co-subordinada, é considerado como possuindo um valor maior do que o da pessoa, sendo ele a única sede do universal, da unidade e da totalidade. Isso, o verdadeiro personalismo não pode admitir. Ele se recusa a reconhecer, em uma totalidade, em uma unidade coletiva que não possui um centro existencial, que é insensível à alegria e ao sofrimento, que não possui um destino pessoal, uma pessoa. Fora da pessoa, não existe no mundo nem unidade, nem totalidade absolutas às quais a pessoa estaria subordinada; fora da pessoa, tudo é parcial, inclusive o próprio mundo. Tudo o que é objetificado, tudo o que é objetivo, não pode ser senão parcial: o mundo objetivado, a sociedade objetivada e todos os corpos objetivados que eles contêm. Esse mundo objetivado, objetificado, é um mundo massivo, que sufoca a pessoa com sua massa, e não um mundo de unidade e totalidade. O destino prometido aos sofrimentos e às infelicidades, numa palavra, o centro existencial, tem sua sede na subjetividade, e não na objetividade. Ora, a objetividade é sempre antipersonalista, ela é hostil à pessoa e implica a alienação da pessoa. E tudo o que há de existencial nos escalões objetificados do mundo, de uma nação, da humanidade, do cosmo, etc., tudo isso faz parte da essência interior do homem, da pessoa independente de todo centro hierárquico. O cosmo, a humanidade, a nação, existem em cada pessoa humana, como dentro de um universo ou um microcosmo individualizado, e sua projeção nas realidades exteriores, nos objetos, implica a decadência do homem, sua subordinação a uma realidade impessoal, sua exteriorização, sua alienação de si mesmo. Do ponto de vista existencial, o sol se encontra, não no centro do cosmo, mas no centro da pessoa, humana, e sua exteriorização só se explica pelo estado de decadência do homem. a pessoa realizada, concentrada, que atualizou suas forças, interioriza o cosmo por inteiro, toda a história, toda a humanidade. As pessoas coletivas, as pessoas suprapessoais em relação à pessoa humana não passam de ilusões, de produtos da exteriorização e da objetificação. Não existem pessoas objetivas, só existem pessoas subjetivas. E podemos dizer, num certo sentido, que um cão ou um gato são pessoas são pessoas num grau mais alto, que eles têm mais chances de herdar a vida eterna do que uma nação, uma sociedade e mesmo a totalidade cósmica. Assim funciona o personalismo anti-hierárquico, o único que pode ser considerado verdadeiro e consequente. Nada de total ou de universal existe fora da pessoa: ela é a única sede do total e do universal, e tudo o que existe foram dela não passa de parcial, de objetificado. Esse é um ponto ao qual voltaremos mais tarde.

 

7

 

O personalismo desloca o centro de gravidade da pessoa, substituindo aos valores das comunidades coletivas – nação, Estado, sociedade – o valor da pessoa. Mas a pessoa, tal como ele a concebe, é o oposto exato do egocentrismo. O egocentrismo destrói a pessoa. O homem egocêntrico fecha-se em si mesmo, toda sua atenção e todo seu interesse estão concentrados sobre si mesmo, ele é incapaz de sair de si, e nisso consiste o pecado original que o impede de realizar a plenitude da vida pessoal, de atualizar as forças da pessoa. A mulher histérica apresenta um exemplo notável desse egocentrismo, dessa concentração sobre si mesmo, dessa alienação em relação ao que não é si mesmo. E não há nada que possa estar mais em oposição com a pessoa: nessa mulher a pessoa foi destruída, o que não a impede de conservar ainda uma individualidade marcante. Não merece ser considerado como uma pessoa senão aquele que é capaz de sair de si mesmo, para ir em direção aos outros e para outras coisas, aquele que fica sem ar e sufocado quando permanece fechado em si mesmo. A personalidade não pode ser senão comunitária. Mas essa saída da pessoa de si em direção aos outros não necessariamente equivale a uma objetificação, ou a uma objetivação e uma exteriorização. Para uma pessoa, o outro, o “você”, é uma pessoa tanto quanto o “eu”. Mas o “você” em cuja direção vai o “eu” e com o qual ele entra em comunhão, não é um objeto: é um outro “eu”, uma pessoa. Nenhuma comunhão, nenhuma comunidade, é possível com um objeto: ele não faz outra coisa do que se impor a nós como algo universalmente válido. A pessoa tem necessidade do outro, mas esse outro não é um outro exterior, estranho, e a atitude adotada em relação a ele não tem nada parecido com uma exteriorização. A pessoa está em comunicação, em comunhão íntima com os outros. As comunicações puras e simples resultam da objetivação, enquanto que as comunhões são de natureza existencial. As comunicações no mundo objetivo se encontram sob o signo da determinação e não bastam para libertar o homem da escravidão, enquanto que as comunhões, que acontecem no mundo existencial, vale dizer no mundo que ignora os objetos, fazem parte do reino da liberdade e implicam a libertação da escravidão. O egocentrismo representa uma dupla escravização do homem: escravidão em relação a si mesmo, ligação servil com uma ipseidade engessada, e escravidão em relação ao mundo, transformado unicamente em uma espécie de objeto que constrange. O homem egocêntrico é um escravo, e sua atitude em relação a tudo o que não constitui seu “eu”, é uma atitude de escravo. Ele não conhece outras coisas que não sejam o “não-eu”. Ele não conhece outros “eu”, ele não conhece um “você”, ele ignora a liberdade que permite sair de si. Não é do ponto de vista personalista que o egocentrismo determina sua atitude em relação ao mundo e aos homens: ao contrário, ele se coloca com extrema facilidade para estabelecer sua escala de valores, do ponto de vista objetivo. O que falta ao egocêntrico é humanidade. Ele ama as abstrações que alimentam seu egocentrismo, e não os homens vivos e concretos. Não importa qual seja a ideologia, mesmo que seja a cristã, posta a serviço do egocentrismo. Mas a ética personalista comporta, ao contrário, essa saída do “geral”, na qual Kierkegaard e Chestov veem uma ruptura com a ética, porque eles a identificam com as normas obrigatórias. A transmutação personalista dos valores considera como imoral tudo o que é determinado unicamente do ponto de vista das relações do homem com a sociedade, a nação, o Estado, do ponto de vista da ideia abstrata, do bem abstrato, da lei moral ou lógica, e não do ponto de vista do homem concreto e de sua existência. Não são verdadeiramente morais senão aqueles que se subtraíram à “lei do geral”, enquanto que aqueles que se encontram sob seu império e se deixam determinar pelo cotidiano social merecem ser qualificados como imorais. Homens como Kierkegaard são vítimas da velha ética antipersonalista e da religião antipersonalista, da religião do cotidiano social. Mas a tragédia que esses homens viveram é de uma enorme importância do ponto de vista da transmutação dos valores que ora está em curso. Para compreender a pessoa, é importante não esquecer que a pessoa se define, antes de tudo, não por suas relações com a sociedade e o cosmo, não por suas relações com o mundo submetido à objetificação, mas por suas relações com Deus, e é dessas relações íntimas que ela extrai a força que deve lhe permitir adotar uma atitude livre em relação ao mundo e ao homem. O homem egocêntrico se crê livre em suas relações com o mundo, que é para ele um “não-eu”. Mas, na realidade, ele é determinado como um escravo por esse mundo do não-eu no qual ele se encontra encerrado. O egocentrismo é a expressão de uma determinação pelo mundo, a vontade egocêntrica obedece às sugestões exteriores, pois o mundo como um todo se encontra num estado egocêntrico. Dos dois egocentrismos, o do “eu” e o do “não-eu”, o do “não-eu” é sempre mais forte. A pessoa humana não é um universo, a não ser na medida em que sua atitude em relação ao mundo não tenha nada de egocêntrica. A universalidade da pessoa que, por assim dizer, torna seu o mundo objetivo, absorvendo-o, assimilando-o à sua substância, não constitui uma afirmação egocêntrica de si mesmo, mas uma expansão no amor.

 

O humanismo constitui o momento dialético do desenvolvimento da pessoa humana. Não é por afirmar de modo insistente o valor do  homem, não é por empurrá-lo para o caminho que conduz à divinização, não é nessas coisas que erra o humanismo: seu erro consiste, ao contrário, em não insistir com ênfase bastante sobre esse valor, em não ir suficientemente longe nesse caminho, em não preservar o homem da dependência em relação ao mundo, em relação ao perigo de sua sujeição à natureza e à sociedade. A imagem da pessoa humana não é apenas uma imagem humana: ela é também uma imagem divina. É nisso que residem todos os enigmas e todos os mistérios que se ligam ao homem. trata-se, acima de tudo, do mistério da humano-divindade, que é um paradoxo que escapa a toda e qualquer expressão racional. A pessoa não é uma pessoa humana senão na medida em que é ao mesmo tempo humano-divina. O elemento divino da pessoa humana consiste em sua liberdade e independência em relação ao mundo objetivo. Isso significa que a formação da pessoa se deve, não ao mundo objetivo, mas à subjetividade, animada pela força que lhe é comunicada pela imagem de Deus. A pessoa humana é um ser teândrico. Os teólogos poderiam responder com temor que Jesus era de fato um homem-Deus, mas que o homem é uma criatura que não poderia pretender a dignidade teândrica. Mas essa é uma objeção ditada pelo racionalismo teológico. Admitamos que o homem não seja um homem-Deus, segundo o modelo de Jesus Cristo, que é o Homem-Deus, o Único. Mas existe no homem um elemento divino, ele contém, por assim dizer, duas naturezas, ele está na intersecção de dois mundos, e traz em si uma imagem que é ao mesmo tempo humana e divina, e que não é humana senão na medida em que nela se realiza a imagem divina. Essa verdade referente ao homem está além das fórmulas dogmáticas e não pode ser esgotada por elas. É uma verdade que decorre da experiência espiritual e existencial, e essa verdade pode ser expressa apenas com a ajuda de símbolos, e não com o auxílio de noções. Que o homem traz em si a imagem de Deus, e que é somente graças a ela que ele se torna homem, esse é um símbolo que escapa a toda e qualquer elaboração conceitual, pois a teandria constitui uma contradição para o pensamento que não conhece nada além do monismo e do dualismo. A filosofia humanista jamais se elevou à compreensão dessa verdade paradoxal que é a teandria. Quanto à filosofia teológica, ela sempre tentou racionalizá-la. Todas as doutrinas teológicas do dom gratuito não tinham por objetivo outra coisa que não formular a verdade teândrica do homem, da ação interna do divino no humano. Ora, esse mistério da teandria permanece absolutamente ininteligível, quando tentamos compreendê-lo à luz da filosofia da identidade, do monismo ou do imanentismo. A expressão desse mistério pressupõe a intervenção de um momento dualista, de uma experiência de superação, da ameaça de uma queda no abismo e da vitória sobre o abismo. O divino é transcendente em relação ao homem, e ao mesmo tempo ele está misteriosamente unido ao homem no homem-Deus. E isso – e somente isso – que torna possível a aparição, no mundo, da pessoa não submetida ao mundo. A pessoa é humana, e ela ultrapassa o humano que não depende senão do mundo. O homem é um ser complexo, pois carrega em si a imagem do mundo, mas ele não é apenas a imagem do mundo, como também é a imagem de Deus. Ele é o teatro de uma luta entre o mundo e Deus, sendo um ser ao mesmo tempo dependente e livre. “Imagem de Deus” é uma expressão simbólica, e nos veremos em dificuldades insuperáveis se tentarmos transformá-la em noção. O homem é um símbolo, porque ele traz em si o signo daquilo que é diverso dele (do que é “outro”, que não ele), ao mesmo tempo em que ele próprio é o signo daquilo que é diverso dele (do que é “outro”, que não ele). É somente nisso que reside a possibilidade de libertação do homem de sua escravidão. Essa é a base religiosa da concepção da pessoa, não sua base teológica, mas a base existencial, vale dizer, aquela que é constituída pela experiência espiritual. A verdade teândrica não é nem uma fórmula dogmática, nem uma doutrina teológica, mas uma verdade experimental, uma verdade que brota de uma experiência espiritual.

 

Essa verdade referente à dupla natureza do homem, dupla e ao mesmo tempo única, encontra sua confirmação na atitude do homem em relação à sociedade e à história, mas uma confirmação, por assim dizer, invertida. A pessoa é independente das determinações sociais, ela possui um mundo seu, ela é uma exceção, singular e inimitável. Mas ao mesmo tempo ela é social, carregada de uma herança do inconsciente coletivo, ela corresponde à saída do homem de seu isolamento, ela é histórica e se realiza na sociedade e na história. A pessoa é comunitária, ela está engajada em suas relações com outros e na comunhão com outros. Esse fato é fonte de profundas contradições e de graves dificuldades na vida humana. A escravidão embosca o homem no caminho de sua realização. E ele é sem cessar obrigado a retornar à sua imagem teândrica. O homem está submetido a uma socialização forçada, enquanto que a pessoa humana não conhece senão relações livres, a livre comunhão, a vida comunitária fundamentada sobre a liberdade e o amor. E o maior perigo ao qual o homem se expõe no caminho da objetivação, é o perigo da mecanização, da automatização. Ora, tudo o que, no homem, é mecânico, automático, é impessoal, contrário à imagem da pessoa. Resulta daí um conflito entre o homem-Deus e o homem autômato, o homem mecanizado. A dificuldade resulta da ausência de correspondência, de identidade entre o exterior e o interior, do fato de que nenhum dos dois encontra sua expressão adequada e direta no outro. É nisso que consiste o problema da objetivação. Também a vida religiosa da humanidade está submetida a essa objetivação. Podemos dizer, num certo sentido, que a religião é, em geral, social, que ela forma um laço social. Mas esse caráter social da religião tem como efeito uma deformação do espírito: ele subordina o infinito ao finito, transforma o relativo em absoluto, distorce as fontes da revelação, da experiência espiritual e viva. Interiormente, a imagem da pessoa é o reflexo da imagem de Deus, ela resulta da penetração do humano pelo divino; exteriormente, a realização da verdade implica a submissão do mundo, da sociedade, da história à pessoa, sua penetração pelo pessoal. É nisso que consiste o personalismo. Interiormente a pessoa recebe suas forças de Deus e se liberta pela teandria; exteriormente, o mundo inteiro, a sociedade e a história, por inteiro, são transfiguradas e libertadas pelo humano, graças à supremacia do humano. O comunitarismo vai de dentro para fora sem que esse movimento constitua uma objetivação, sem que ele comporte uma submissão da pessoa ao objetivo. A pessoa deve ser teândrica, mas a sociedade deve ser humana. A mentira e a escravidão têm sua fonte na objetivação social e histórica da teandria. É isso que faz nascer o falso hierarquismo objetivo, contrário à dignidade e à liberdade da pessoa humana. É também o que dá lugar à falsa sacralização, que encontramos em todas as formas da escravidão humana.

 

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À pessoa é inerente um caráter. Uma personalidade forte possui um caráter pronunciado. O caráter exprime a vitória do princípio espiritual do homem, mas trata-se de uma vitória que possui uma forma concreta e individual, obtida com a participação da estrutura psíquica e corporal do homem. O caráter consiste no domínio de si, ele resulta da vitória sobre a sujeição a si mesmo, vitória sem a qual é impossível se libertar da escravidão em que nos mantém o ambiente do mundo. Um temperamento é um dom da natureza, mas o caráter é uma conquista, e ele pressupõe a liberdade. Todas as classificações de caráteres e de temperamentos são demasiado aproximativas e artificiais. O mistério da pessoa escapa à classificação. O caráter se uma pessoa implica sempre sua independência; ele consiste em sua concentração e representa uma liberdade adquirida. A pessoa, o caráter da pessoa, significa que o homem fez uma escolha, que ele estabeleceu uma distinção, que ele não é indiferente, que ele não faz confusões. Essa liberdade não é o livre arbítrio no sentido no sentido tradicional que a Academia atribui ao termo, ou seja, a liberdade da indiferença; mas se trata de uma liberdade muito mais profunda, ligada a toda a existência do homem: é a liberdade de espírito, a energia criadora espiritual. A vida psíquica do homem contém o princípio da criação ativa, síntese da pessoa; ela é a manifestação da atividade do espírito que influi igualmente sobre a vida do corpo. É o espírito que cria a forma da pessoa, o caráter do homem. Sem essa atividade sintetizadora do espírito, a pessoa se dissocia, o homem se decompõe em partes, a alma perde sua unidade e se torna incapaz de reagir ativamente. A liberdade da pessoa não é um direito: essa é uma concepção superficial. Ela é um dever, uma vocação, a realização da ideia de Deus no homem, uma resposta ao chamado de Deus. O homem deve ser livre, ele não tem o direito de ser escravo, pois ele deve ser homem. Essa é a vontade de Deus. O homem ama a escravidão, ele reivindica o direito à escravidão sob diversas formas. É a escravidão que ele considera como um direito. Ora, a liberdade não se reduz àquela afirmada numa declaração de direitos do homem: ela deve fazer parte de uma declaração dos deveres do homem, a declaração do dever de uma pessoa de manifestar seu caráter pessoal. Podemos, e dizemos isso com frequência, renunciar à vida, mas não podemos renunciar à personalidade, à dignidade humana, à liberdade da qual depende essa dignidade. A personalidade é inseparável da consciência de uma vocação. Todo homem deve ter essa consciência, quaisquer que sejam seus dons naturais. A vocação de cada um consiste em responder, sob uma forma individual, única, ao apelo divino e utilizando criativamente os dons. Ao tomar consciência de si mesma, a pessoa escuta sua voz interior, e só a ela obedece, ficando surda às vozes que provêm de fora. Os maiores dentre os homens sempre escutaram sua voz interior, sempre disseram não ao conformismo em suas atitudes em relação ao mundo exterior. Quem diz pessoa diz ascese, e a primeira é inconcebível sem a segunda, que comporta exercícios espirituais, uma concentração das forças internas, uma escolha, uma recusa de sofrer a influência das forças impessoais, tanto no interior de si quanto no mundo exterior. Isso não quer dizer que seja preciso adotar as formas tradicionais da ascese, como as do Cristianismo histórico por exemplo, que aliás continha muitos elementos não cristãos, contrários, e até hostis à pessoa. A ascese deve consistir essencialmente na manifestação e na preservação da pessoa sob todas as suas formas, na resistência ativa aos poderes do mundo que tendem a destruir a pessoa, a subjugá-la. A ascese é a luta da pessoa contra a escravidão, e somente nessa luta ela encontra sua justificação. Quando a ascese se transforma em escravidão, fato que se produziu mais de uma vez ao longo da história, ela deve ser rejeitada, é preciso levantar-se contra ela numa luta que, por sua vez, exige uma verdadeira ascese. Longe de ser submissão e obediência, a ascese é uma insubmissão e uma desobediência da pessoa, uma fidelidade à sua vocação, uma resposta ao chamado de Deus. A pessoa é essencialmente insubmissão e desobediência, luta, ato de criação contínua. A verdadeira ascese, aquela que é inerente à pessoa, constitui o elemento heroico do homem. a ascese servil é uma ignomínia. O caráter pressupõe uma ascese capaz de escolha e de resistência. De resistência à escravidão e de recusa em dizer “sim” aos comandos opressores do mundo.

 

A pessoa é a união do um e do múltiplo. No Parmênides, Platão, para resolver o problema do um e do múltiplo, se serve da dialética mais sutil. Essa dialética é, ao mesmo tempo, a da noção do ser. O monismo absoluto de Parmênides se mostra impotente em resolver o problema do múltiplo. Ele constitui o protótipo do falso ontologismo, a submissão sem saída à ideia do ser absoluto. O problema do um e do múltiplo preocupou o pensamento grego e ocupou um lugar especial em Plotino. Como passar do um ao múltiplo, e como pode o múltiplo alcançar o um? Existirá um “outro” para o um? Mas, sendo absoluto, o um não admite a existência de um “outro”. É nisso que consiste o grande erro da própria ideia do absoluto, que nega toda relação, toda passagem ao “outro”, ao múltiplo. Esse problema não comporta solução racional, ele está marcado por paradoxo. E é por isso mesmo que ele se relaciona estreitamente ao problema da pessoa. O mistério de Cristo, que escapa a toda racionalização, é o mistério da união paradoxal entre o um e o múltiplo. Cristo representa toda a humanidade. Ele é o homem universal no tempo e no espaço. O mistério de Cristo projeta uma luz sobre o mistério da pessoa. O indivíduo é uma entidade particularizada, ele faz parte do mundo múltiplo. Ora, a pessoa está associada ao Único, ela é a imagem do Único, mas sob uma forma individual e particular. É por isso que a pessoa não faz parte do mundo do múltiplo, onde tudo é particularizado. O pensamento e a imaginação humana são levados a hipostasiar, a personificar as forças e as qualidades. É essa tendência à hipóstase e à personificação que está na origem do processo mitogênico na vida dos povos. Mas a hipostasiação mitogênica muitas vezes é falsa, ilusória, e só serve para reafirmar a escravidão do homem. A única hipostasiação verdadeira é a do próprio ser humano, considerado como uma pessoa. O verdadeiro mito do homem é o resultante da hipostasiação do homem, da atribuição de qualidades de pessoa ao homem. Esse mito exige, de sua parte, um trabalho de imaginação e consiste em representar o homem, não como sendo uma parte, algo de particular, mas como sendo a imagem do Único, e também um universo. Trata-se do mito da semelhança divina do homem, que tem como contraparte a semelhança humana de Deus. Esse é o verdadeiro antropomorfismo, e todos os outros são falsos. Somente à luz desse antropomorfismo podemos compreender a possibilidade de um encontro entre o homem e Deus, das relações entre o homem e Deus. Não conhecemos a Deus senão hipostasiando-O como uma pessoa, coisa que é impossível fazer sem recorrer à imaginação. Essa é a verdadeira hipóstase, a outra metade da hipóstase do homem. O homem é uma pessoa, porque Deus é uma pessoa, e inversamente. Mas a pessoa pressupõe a existência daquilo que não é ela, e se encontra em relação não apenas com o Um, mas também com o Múltiplo. Mas o que dizer da pessoa de Deus? A pessoa é um centro existencial e possui uma sensibilidade para as alegrias e os sofrimentos. Não existe pessoa sem essa sensibilidade. A teologia tradicional nega o sofrimento de Deus, no qual ela enxerga um atentado à Sua grandeza, e ela nega também todo e qualquer movimento em Deus. Para ela, Deus é ato puro. Mas essa concepção de Deus resulta, não da revelação bíblica, mas da filosofia de Aristóteles. Se Deus é uma Pessoa e não o Absoluto, se Ele não é apenas essência, mas também existência, se Ele se abre a relações pessoais com o “outro”, com o múltiplo, Ele deve ser acessível ao sofrimento. É preciso que ele contenha em si um elemento trágico. Na falta disso, Ele não seria uma Pessoa, mas uma ideia abstrata, a Essência, o Ser dos Eleatas[3]. O Filho do Homem sofre, não apenas enquanto homem, mas enquanto Deus. Ele não tem apenas paixões humanas, como também paixões divinas. Deus partilha do sofrimento dos homens. Deus aspira ao seu “outro”, ao amor partilhado. Se atribuímos a Deus o poder de amar, devemos atribuir-Lhe também o poder de sofrer. O ateísmo, a bem dizer, estava em oposição com a concepção de Deus como sendo um ser abstrato, uma ideia abstrata, uma entidade abstrata, e, no entanto, ele não estava inteiramente errado. Em relação a semelhante Deus, uma teodiceia é impossível. Deus não pode existir senão através do Filho, que é o Deus do amor, do sacrifício e do sofrimento. E assim é também a pessoa. Ela á afligida pelo sofrimento e pela contradição trágica, porque ela é a união entre o Um e o Múltiplo, ela sofre em decorrência de suas relações com o “outro”. E esse “outro” jamais é um Todo, uma unidade abstrata da qual a pessoa faria parte: trata-se de relações de pessoa a pessoa, de relações entre a pessoa e as outras pessoas. Se a concepção monista do ser fosse exata, se a primazia pertencesse a esse ser, resultaria disso naturalmente que a pessoa não existe, e estaríamos no direito de nos perguntarmos como foi possível nascer a noção de pessoa. Ora, a consciência da pessoa se levanta contra o totalitarismo ontológico. Mostraremos isso ao falarmos da escravidão do homem em relação ao ser. A pessoa não é um ser, nem parte de um ser: ela é espírito, liberdade, ato. O mesmo acontece com Deus: também Ele é espírito, liberdade, ato, não um ser. O ser é a objetificação, enquanto que a pessoa está na subjetividade. A filosofia abstrata, racional, baseada em noções, sempre compreendeu mal a pessoa, e, ao falar dela, era sempre para subordiná-la ao impessoal e ao geral. O problema da pessoa só foi colocado com clareza no século XIX por homens como Dostoievsky, Kierkegaard, Nietzsche, Ibsen, como protesto contra a teoria do “geral”, contra as restrições da filosofia racional. Mas é justo dizer que Nietzsche, que desempenhou um papel importante na problemática personalista, acabou por desembocar numa filosofia destruidora da pessoa, seguindo uma direção oposta à dos filósofos racionalistas. Veremos a seguir que é impossível obter uma noção única da pessoa, porque a pessoa é essencialmente contraditória, ela é em si uma contradição no mundo.

 

Sem transcendência, não existe pessoa. A pessoa se coloca diante do transcendente e, ao se realizar, ela transcende. É justamente o temor e a angústia que caracterizam a pessoa. O homem possui esse sentimento de estar suspenso sobre um abismo, e é no homem, enquanto pessoa, vale dizer no homem separado da coletividade primitiva, que esse sentimento atinge seu mais alto grau de agudeza. É importante distinguir a angústia (Angst) do temor (Furcht), como o faz Kierkegaard, embora tendo em conta as particularidades terminológicas de cada língua. O temor tem suas razões, ele é provocado por um perigo, como tantos que existem no mundo empírico. Mas a angústia é sentida, não diante de um perigo empírico, mas diante do mistério do ser e do não-ser, diante do abismo da transcendência, diante do desconhecido. Em presença da morte, experimentamos não apenas um temor provocado por esse acontecimento empírico, como também uma angústia inspirada por seu caráter transcendente. O temor comporta cuidados, a triste perspectiva de sofrimentos, de golpes da sorte. O homem que está sob o domínio do temor não pensa num mundo superior, ele se encontra, por assim dizer, puxado para baixo, ligado ao mundo empírico. A angústia é, ao contrário, um estado vizinho ao transcendente, que está diante da eternidade, é diante do destino que somos tomados pela angústia. Mas o homem é um ser capaz de experimentar não apenas o temor e a angústia, mas também a nostalgia que, ao mesmo tempo em que possui um caráter próprio, se aproxima mais da angústia do que do temor. Ela não é provocada por um perigo e, longe de provocar cuidados, ele atenua os cuidados que eventualmente temos. A nostalgia se dirige para cima e revela a natureza superior do homem. Na nostalgia, o homem experimenta um sentimento de abandono, de solidão, de ruptura com o mundo. Nada é mais penoso do que se sentir assim, estranho a tudo. É ao longo de sua formação progressiva que o homem experimenta esse estado. Existe na nostalgia algo de transcendente, no duplo sentido da palavra. De fato, ao mesmo tempo que a pessoa se sente transcendente, estranha ao mundo, ela é aterrorizada pelo abismo que a separa do mundo superior, de um mundo que deveria ser o seu. É possível sentir uma nostalgia aguda, mesmo nos melhores momentos da vida. O homem tem a nostalgia do mundo divino, da pureza, do paraíso, e é isso que explica o profundo sentimento de pena de espírito que ensombrece sua vida. Nada na vida empírica é capaz de explicar essa tristeza, que nasce justamente da ruptura com a personalidade empírica, da impossibilidade de se adaptar a ela. Em sua infinita subjetividade, a pessoa está, por assim dizer, encurralada entre o subjetivo e o transcendente, entre a objetivação e a aspiração à transcendência. A pessoa não pode se resignar com o cotidiano do mundo objetivo no qual está mergulhada. Ela pode bem assistir à exaltação de sua subjetividade sem ao mesmo tempo aspirar a um outro mundo, e é isso que constitui sua fase romântica. A angústia, a nostalgia são a expressão de uma falta e de uma aspiração à plenitude da vida. Existe uma penosa angústia de natureza sexual. A sexualidade é uma fonte de angústia nostálgica. E essa nostalgia jamais pode ser superada no mundo da vida cotidiana, porque o mundo não é capaz de conceder essa plenitude definitiva sem a qual a sexualidade se eternizaria em sua subjetividade. A passagem à objetividade significa o enfraquecimento da consciência pessoal e sua submissão aos fatores genéricos da vida sexual. Aquilo que nós chamamos de pecado, falta, arrependimento, não no sentido usual, mas no sentido existencial dessas palavras, não passa de um produto da transcendência, diante da qual nos encontramos sem podermos alcançá-la. A angústia mais profunda é que o homem sente diante da morte. Existe uma nostalgia da morte, uma angústia mortal. O homem tem a experiência de uma agonia, mesmo em vida. A morte só é trágica para a pessoa; para aquilo que é impessoal, essa tragédia não existe. É natural que tudo o que é mortal morra. Mas a pessoa é imortal; ela é a única coisa imortal, ela foi criada para a eternidade. E a morte é o maior paradoxo no destino da pessoa. A pessoa não pode ser transformada em coisa, e essa transformação do homem em coisa – à qual nós chamamos de morte – não diz respeito à pessoa. A morte significa a ruptura das relações da pessoa com o mundo. A morte não significa o fim da existência da pessoa, mas da existência do mundo, que é estranho à pessoa, e que se encontrava em seu caminho. Entre minha desaparição para o mundo e a desaparição do mundo para mim, não existe diferença alguma. A tragédia da morte é, antes de tudo, uma tragédia de separação. Mas a atitude em relação à morte é dupla, porque a morte ainda possui um sentido positivo para a pessoa. Nesse mundo objetificado, a plenitude da pessoa é irrealizável, e sua existência aqui é estreita e parcial. A passagem da pessoa à plenitude da eternidade tem como condição a morte, uma catástrofe, um salto sobre o abismo. É por isso que a nostalgia é inerente à existência da pessoa, e é por isso que ela sente essa angústia diante da eternidade transcendente. Em sua defesa da imortalidade da alma, a metafísica espiritualista dá provas de uma total incompreensão da tragédia da morte, ela passa ao lado do problema da morte. A imortalidade não pode ser senão total, ela não pode ser outra coisa do que a imortalidade da pessoa total, na qual o espírito toma posse do lado psíquico e corporal do homem. O corpo faz parte da imagem eterna da pessoa, e dizer que a alma se separa do corpo em seguida de sua decomposição e da perda de sua forma, consiste, propriamente falando, em negar a imortalidade da pessoa, do homem total. O Cristianismo é oposto à concepção espiritualista da imortalidade da alma, ele crê na ressurreição do homem total, vale dizer, tanto do corpo quanto da alma. Através das desagregações e das rupturas, a pessoa atinge sua reconstituição completa. A imortalidade natural do homem não existe; o que existe é a ressurreição e a vida eterna da pessoa por intermédio de Cristo, pela união do homem com Deus. Fora dessa ressurreição e dessa união, não há mais do que a dissolução do homem na natureza impessoal. É por isso que a vida da pessoa é uma vida de temor e angústia, mas também uma vida de esperança. Ao ligar a imortalidade do homem a Cristo, eu não quero dizer que a imortalidade só alcança aqueles que creem conscientemente em Cristo. O problema é muito mais profundo. Cristo existe mesmo para aqueles que não creem nele.

 

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A pessoa é inseparável do amor. A pessoa é um ser que ama e que odeia, um ser do Eros e do anti-Eros, um ser agônico. Não existe pessoa sem paixão, assim como não existe gênio sem paixão. O amor é o caminho que conduz à realização da pessoa. E existem dois tipos de amor: o amor ascendente e o amor descendente, o amor erótico e o amor agápico. Os dois são inerentes à pessoa, os dois são necessários à sua realização. Platão só ensinava o Eros, o amor ascendente, o Eros que nasce da riqueza e da pobreza e que consiste na ascensão da multiplicidade do mundo sensível à unicidade do mundo das Ideias. O Eros não é o amor a um ser vivo e concreto, a um ser misturado (no sentido da mistura do mundo das Ideias com o mundo sensível), mas o amor à beleza, ao bem supremo, à perfeição divina. O amor erótico consiste nessa atração pelas alturas, no movimento para o alto, no arrebatamento, no enriquecimento da existência empobrecida, na reconstituição do ser fragmentário na sua plenitude. Ele é o elemento que determina o amor entre o homem e a mulher, mas no qual se encontram mesclados outros elementos. A sexualidade é um fator de deficiência que faz nascer a nostalgia da plenitude, que provoca o movimento em direção a essa plenitude, que, de resto, jamais é alcançada. A tragédia do amor resulta de um conflito entre o amor por um ser concreto que faz parte do mundo sensível, e o amor pela beleza do mundo das Ideias. Nenhum ser concreto é capaz de encarnar a beleza do mundo das Ideais, no sentido platônico do termo. É por isso que o amor-Eros, o amor-ascensão, o amor-arrebatamento devem sempre se unir ao amor-descendente, ao amor-piedade e ao amor-compaixão. O amor-Eros pertence a todo amor eletivo, ao amor-amizade, ao amor à pátria, e é também o que sentimos pelos valores ideais da filosofia e da arte, e também pelos da vida religiosa. O amor Ágape é um amor descendente, ele não busca nada para si mesmo, ele não procura se enriquecer, mas ao contrário, ele dá, ele está pronto a todos os sacrifícios, ele está mergulhado num mundo que sofre, que agoniza nas trevas. O amor-Eros exige a reciprocidade, e é nisso que consistem sua força e sua riqueza. O amor-Eros vê a imagem do outro, do ser amado, através de Deus, através da ideia que Deus tem do homem, em resumo, ele vê a beleza do ser amado. O amor-piedade, ao contrário, vê o “outro” em seu abandono por Deus, ele o vê mergulhado nas trevas do mundo, nos sofrimentos e na pesandez. Encontramos em Max Scheler ideias interessantes sobre a diferença entre o amor cristão e o amor platônico, entre o amor por uma pessoa concreta e o amor por uma ideia. Mas o platonismo está profundamente infiltrado no Cristianismo. O problema da pessoa não se colocava para o platonismo, nem para o Eros platônico. Já o Cristianismo coloca esse problema, mas a prática e o pensamento cristãos o obscureceram por uma concepção impessoal do amor, tanto do amor erótico como do amor caritativo. Poder-se-ia dizer que foi a impessoalidade do Eros platônico que inspirou a concepção impessoal da caritas cristã. Mas qualquer um que saiba penetrar até a essência do amor não o poderá conceber de outra forma que a de um movimento que vai de pessoa a pessoa. O Eros impessoal está orientado para a beleza e a perfeição, não para um ser concreto, para uma pessoa única que não se parece com nenhuma outra; quanto ao amor agápico e caritativo impessoal, ele se volta para o próximo impessoal, que sofre e que necessita ser socorrido. Trata-se de uma refração do amor num mundo superior e num mundo inferior, num mundo impessoal de ideias e num mundo impessoal de sofrimento e trevas. Mas o amor que se eleva acima do mundo do “geral”, do impessoal, é um amor orientado para a imagem da pessoa, um amor que busca eternizar essa imagem e sua comunhão com a pessoa. O mesmo acontece, tanto quando a relação com a outra pessoa constitui um arrebatamento, um movimento para o alto, como quando consiste em piedade e num movimento para baixo. As relações com o outro não podem ser unicamente ascendentes, nem unicamente descendentes, mas é preciso a união, a associação das duas coisas. O amor unicamente erótico encerra um elemento demoníaco e de destruição; o amor unicamente caritativo, descendente, possui algo de humilhante para a dignidade do outro. É nisso que consiste a complexidade do problema do amor, vale dizer, em suas relações com a pessoa. O amor cristão, que se reveste facilmente de formas retóricas e humilhantes para o homem, se transforma num exercício ascético que visa a salvação da alma, e em “boas obras” e em gestos caridosos; o amor cristão, na sua mais alta expressão, é um amor espiritual, e não vitalista. Mas, espiritual, ele não pode sê-lo de maneira abstrata, mas deve sê-lo de maneira concreta, e ele deve ter como objeto tanto a alma como o espírito, ou seja, a totalidade da pessoa. O amor-Eros não pode se estender a todos, ele não pode ser imposto, ele resulta de uma escolha; ao passo que o amor-piedade, o amor-descendente se estende a todo o mundo que sofrem, e assim ele é capaz de transformar o mundo. Voltaremos adiante sobre o problema do amor e da sedução erótica. Mas do ponto de vista do problema da pessoa, é importante saber que ela é um ser capaz de amor, de arrebatamento, de piedade e de compaixão.

 

Ao problema do amor está ligado o da genialidade, que não devemos confundir com o gênio. A genialidade representa a totalidade da natureza humana, ela exprime sua atitude intuitivamente criativa em relação à vida, enquanto que o gênio corresponde a um dom particular, associado a essa natureza. A genialidade é virtualmente inerente a qualquer pessoa, sem que por isso ela seja necessariamente um gênio, pois toda pessoa é uma totalidade e possui uma atitude criativa em relação à vida. A imagem de Deus que o homem traz em si é genial, mas essa genialidade pode ser mascarada, obscurecida, sufocada. Não existe relação alguma entre o problema da genialidade e o do gênio, de um lado, e da hierarquia social e objetivada de outro. A verdadeira hierarquia, não social, nada tem a ver com a situação social, com as origens sociais ou com a fortuna: ela está fundada exclusivamente sobre as diferenças de dons e de vocações, de qualidades pessoais. A esse propósito coloca-se a questão da projeção social do personalismo. Ora, essa projeção não pode ser socialmente hierárquica. O gênio é solitário, ele não pertence a nenhum grupo, a nenhuma elite senhora de privilégios; ele encerra um elemento profético. A existência do mal se impõe à consciência da pessoa colocada diante do mundo, e essa consciência afirma a pessoa na resistência ao mal do mundo, que possui sempre uma cristalização social. A pessoa é o produto de uma escolha, e é nisso que ela se assemelha ao gênio, que podemos definir como um caráter acabado e uma vontade dirigida em vista da escolha a operar. Mas essa escolha é uma luta, uma resistência ao poder subjugador do mundo, ao seu poder de a tudo confundir e embaralhar. A pessoa se forma no decurso desses conflitos com o mal que existe em si mesma e ao seu redor. Um dos paradoxos da pessoa é o fato de que sua consciência pressupõe a existência do mal e do pecado. A insensibilidade para o mal, o pecado, a falta, anda de mãos dadas com a insensibilidade para com a pessoa, com sua dissolução no geral, no social e no cósmico. A ligação que existe, de um lado, entre o mal e a pessoa e, de outro, entre o pecado e a falta, tem como efeito a personificação do mal, a representação de uma pessoa como a encarnação universal do mal. Mas essa personificação do mal tem coo efeito, por sua vez, o enfraquecimento da falta e da responsabilidade pessoais. É isso que faz a complexidade do problema que se coloca igualmente a propósito das relações entre qualquer pessoa em particular e o mal. Nenhum homem, tomado de parte, pode ser uma personificação e uma encarnação do mal. Cada um traz em si uma parcela do mal, o que torna impossível estabelecer um julgamento definitivo sobre quem quer que seja, e isso coloca limites ao princípio do castigo. Um homem pode bem cometer um crime, mas o homem, enquanto pessoa completa, não pode ser um criminoso, e não pode ser tratado como uma encarnação do crime: ele permanece sendo uma pessoa, e traz em si a imagem de Deus. E a pessoa que cometeu um crime não pertence inteiramente ao Estado e à sociedade. A pessoa é um cidadão do reino de Deus, não do reino de César, e os julgamentos e condenações que recaem sobre ela de parte do Estado ou da sociedade não podem ser mais do que parciais, jamais definitivos. É por isso que o personalismo se pronuncia enérgica e radicalmente contra a pena de morte. A pessoa humana não pode ser socializada, pois a socialização é sempre parcial e não se estende jamais às profundezas da pessoa, à sua consciência, às suas relações com as próprias fontes da vida. A socialização que se estende até as profundezas da existência, às fontes mesmas da vida, significa o triunfo do on (Das Man), do cotidiano social, do poder tirânico do meio e do geral sobre o individual e o pessoal. É por isso que o princípio da pessoa deve ser posto na base de uma organização social que não araste consigo nenhuma socialização para a existência interior do homem. A pessoa deve ser vista de outro modo do que sob o aspecto de um meio a serviço do “bem comum”. O bem comum, com efeito, tem servido para justificar muitas formas de tirania e de escravidão. Estar a serviço do bem comum, ou seja, de qualquer coisa que não possui uma existência própria, não exprime senão de uma maneira abreviada, abstrata, impotente, o dever de estar a serviço do bem do próximo, de todo ser concreto. Equivale, no mundo objetivado, a colocar o homem sob o signo de um número matemático. A primazia da pessoa constitui o elemento trágico do homem, pois o impessoal entra igualmente na composição do homem, e é esse elemento impessoal que se opõe a que a pessoa se realize em meio à contradição e à ruptura. É a objetividade que é a fonte da escravidão. A objetivação equivale à formação de um poder em oposição à dignidade do homem. É justamente devido à objetivação, à exteriorização, à alienação de sua natureza, que o homem cai sob o domínio da vontade de poder, da sede de dinheiro, do desfrute, da glória, em resumo, de tudo o que é feito para destruir a pessoa. A pessoa realiza sua existência e seu destino através das contradições e das aproximações entre o finito e o infinito, entre o um e o múltiplo, entre o relativo e o absoluto, entre a liberdade e a necessidade, entre o interior e o exterior. Entre o interior e o exterior, entre o subjetivo e o objetivo, não existe unidade completa, identidade: o que existe é apenas falta de correspondência e conflitos. A unidade e a universalidade se realizam, não no infinito da objetividade, mas no infinito da subjetividade, na subjetividade que se transcende.

  

CAPÍTULO I

1.2. O MESTRE, O ESCRAVO, O HOMEM LIVRE

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Uma verdade que não se deve cansar de repetir, é que o homem é um ser contraditório e em conflito consigo mesmo. O home busca a liberdade, aspira por ela sem cessar e com todas as suas forças, mas acontece com frequência que ele não apenas caia facilmente na escravidão, como chegue mesmo a amar a escravidão. O homem é ao mesmo tempo rei e escravo. Encontramos na Fenomenologia do Espírito, de Hegel, alguns pensamentos notáveis sobre o mestre e o escravo. Aqui se trata do mestre e do escravo, não enquanto categorias sociais, mas num sentido muito mais profundo: trata-se da questão da estrutura da consciência. Ora, existe, penso eu, três estado do homem, três estruturas da consciência que correspondem àquilo que podemos designar pelos nomes de “mestre”, “escravo” e “homem livre”. O mestre e o escravo são correlativos, eles não podem existir um sem o outro. Quanto ao homem livre, ele existe por si mesmo, ele possui sua qualidade própria, sem correlação com nada que se oponha a ele. o mestre é uma consciência que não existe senão em virtude de sua correlação com uma outra, que é o escravo. Mas, se por um lado a consciência do mestre é a da existência de um outro que está a seu serviço, por outro lado a consciência do escravo é a de sua própria existência, na medida em que essa está a serviço de um outro. Quanto à consciência do homem livre, ela é a da existência de cada um por si mesmo, com a livre saída de si mesmo em direção aos outros e a todos. A existência da escravidão não é possível senão na ausência da consciência da escravidão. O mundo da escravidão é o do espírito alienado de si mesmo. É a exteriorização que constitui a fonte da escravidão, enquanto que a liberdade é produto da interiorização. A escravidão resulta sempre da alienação da natureza humana, de sua projeção no exterior. Feuerbach e, depois dele, Marx, reconheceram essa fonte da escravidão do homem, mas, por encará-la do ponto de vista da filosofia materialista, acabaram por legitimá-la. A alienação, a exteriorização, a projeção para fora da natureza espiritual do homem, tudo isso implica a escravidão do homem. na esfera econômica, a alienação, a exteriorização, a projeção para fora da natureza espiritual significam mais do que escravidão, porque então o homem se vê simplesmente transformado em coisa. Sob esse aspecto, Marx tem toda razão. O homem não pode ser libertado a menos que recupere sua natureza espiritual, que ele reconheça a si mesmo como sendo um ser livre e como um ser espiritual. Na medida em que ele é considerado e se considera como um ser material e econômico, enquanto sua natureza espiritual é considerada como uma ilusão da consciência, o homem permanece escravo e possui a natureza de um escravo. No mundo objetificado, o homem não pode ser livre senão de modo relativo, jamais de maneira absoluta, e sua liberdade não pode ser conquistada senão ao preço de uma luta e de uma resistência contra a necessidade que é preciso vencer. Também a liberdade pressupõe a existência, no homem, de um princípio espiritual que lhe permita se opor à necessidade que o subjuga. A liberdade que resulta da necessidade não é uma verdadeira liberdade, ela não passa de um dos elementos da dialética da necessidade. No fundo, Hegel não conhecia a verdadeira liberdade.

 

Uma consciência que exterioriza, que aliena, é uma consciência de escravo. Deus é mestre, o homem é escravo; a Igreja é senhora, o homem é escravo; a natureza é senhora, o homem é escravo; o objeto é mestre, o homem-sujeito é escravo. A escravidão possui sempre sua fonte na objetificação, na exteriorização e na alienação. E essa escravidão se estende a tudo: ao conhecimento, à moral, à religião, à arte, à vida política e social. A escravidão desaparece quando cessa a objetificação. Mas a desaparição da escravidão não traz consigo necessariamente sua transformação em dominação, que não passa do inverso da escravidão. O homem deve se tornar um ser livre, não um mestre. Platão diz com razão que o próprio tirano era um escravo. Ao sujeitar os outros, ele sujeita a si mesmo. A submissão e a dominação estavam primitivamente associadas à magia que não conhecia a liberdade. A magia primitiva era a expressão de uma vontade de poder. O mestre não passa da imagem do escravo, feita para iludir o mundo. Prometeu era um homem livre e libertador, mas um ditador é um escravo que impõe a escravidão aos outros. A vontade de poder é sempre uma vontade de escravo. Cristo era livre, o mais livre dentre todos os filhos dos homens, livre perante o mundo, ao qual só se ligava pelo amor. Cristo falava como quem tinha autoridade, mas ele não tinha poder, bem era mestre. César, o herói do imperialismo, era um escravo do mundo, um escravo da vontade de poder, um escravo da massa humana sem a qual ser-lhe-ia impossível satisfazer seu desejo de poder. O mestre não conhece outra coisa que não a altura à qual é içado pelos escravos, pela massa. Mas são igualmente os escravos, as massas, que derrubam todos os mestres e todos os Césares. É preciso ser livre, não apenas em relação aos mestres, mas também em relação aos escravos. O mestre não é determinado senão desde fora, ele não é mais pessoa do que o escravo, pois livre é somente a pessoa, e ela permanece livre, ainda que todo o mundo queira sujeitá-la.

 

A decadência do homem se expressa acima de tudo em sua propensão à tirania. O homem sempre possui uma tendência a exercer a tirania, senão nas grandes coisas, nas pequenas; senão no Estado e na história do mundo, em sua família, sua loja, seu escritório, numa instituição burocrática qualquer, por mais baixo que seja o cargo que ocupe. O homem é animado por um desejo irresistível de desempenhar um papel, de se atribuir nesse papel uma importância especial, e de se servir dele para tiranizar os outros. O homem é tirânico não apenas com aqueles a quem odeia, mas também com aqueles a quem ama. Frequentemente, nada é mais tirânico do que um apaixonado. E o ciúme não passa de uma manifestação tirânica sob uma forma passiva. O ciumento é um tirano para si próprio, e sobretudo para si próprio. Ele se tiraniza, como ser duplo que é, por ter perdido sua integridade. Ele se tiraniza por uma falsa consciência de culpabilidade, enquanto que a verdadeira consciência de culpabilidade possui justamente o efeito de libertar o homem. Ele se tiraniza por crenças falsas, por superstições, por mitos; por temores de todo tipo, por complexos mórbidos; pela inveja, o amor-próprio, o ressentimento. O amor-próprio mórbido exerce a mais terrível tirania. O homem se tiraniza pela consciência de sua fraqueza e de sua nulidade, e pela sede de poder e de grandeza. O homem submete à sua vontade dominadora não apenas os outros, como a si mesmo. Existe uma eterna tendência ao despotismo, ao poder, à dominação. O poder do homem sobre o homem, os atentados à dignidade do homem, a violência e a dominação, eis em que consiste o mal original. A exploração do homem pelo homem, na qual Marx viu um mal original, não passa de um mal derivado, que somente a dominação do homem pelo homem torna possível. Mas um homem não se torna mestre de outro a não ser que ele próprio seja escravo de sua vontade de poder. A força que lhe serve para sujeitar os outros se volta contra ele, para subjugá-lo por sua vez. Um homem livre não pretende dominar ninguém. Segundo Hegel, a consciência infeliz é aquela que considera como essencial aquilo que lhe é oposto e que está penetrado por sua própria nulidade. Quando o homem vê seu oposto em sua própria essência, ele experimenta um sentimento deprimente de dependência servil. Então ele tenta se subtrair a esse sentimento, ele tenta compensá-lo submetendo os outros. Mas o que é mais terrível é o escravo que se torna mestre. O aristocrata, quando é mestre, é menos odioso, porque se lembra da nobreza e da sua dignidade nativas e é mais livre de ressentimentos. Ora, o ditador, o homem com vontade de poder, jamais se comporta como um aristocrata. A psicologia do ditador, no fundo, é a de um recém-chegado, a de um homem desnaturado. Ele se torna escravo daqueles a quem submete. Não existe oposição mais profunda do q eu aquela que se estabelece entre um ditador e o Prometeu libertador. O chefe de uma massa é tão escravo quanto a própria massa, ele não tem existência fora da massa que ele domina, ele está totalmente projetado para fora. O tirano é uma criação das massas sobre as quais ele inspira terror. A vontade de poder, de dominação, de predominância, são vontades de um homem possuído: não se trata de uma vontade livre, nem de uma vontade de liberdade. Aquele que é possuído pela vontade de poder está sob o poder de um destino irremediável e se torna um homem fatal. O diretor cesário, herói da vontade imperialista, coloca a si próprio sob esse destino irrevogável. É impossível a ele limitar-se, ele corre para sua própria perda, incapaz de moderar seu curso impondo a ele um limite razoável que o impediria de se precipitar no abismo. É um homem condenado. A vontade de poder é insaciável, e ela não deriva de um excesso de força que se comunica aos outros, a vontade imperialista reina sobre um reino fantasmagórico, efêmero, e ela gera catástrofes e guerras. Trata-se de uma perversão demoníaca da verdadeira vocação do homem, do universalismo do qual ele estaria incumbido. Procura-se realizar esse universalismo com a ajuda de uma falsa objetivação, projetando fora da existência humana, exteriorizando o homem, transformando-o em escravo. O homem é chamado a ser rei da terra e do mundo, a ideia de homem é inseparável da ideia de realeza. Ele é chamado a se estender, a se expandir, a ocupar os espaços. Ele é arrastado por uma grande aventura. Mas a decadência do homem imprime a essa vontade de universal uma direção falsa e subjugadora. Essa é a vontade solitária e infeliz de Nietzsche, que foi o filósofo da vontade de poder. Mas vejam a que ponto suas ideias foram deformadas, vulgarizadas, voltadas para fins que ele detestava. Nietzsche se dirigia a uma minoria, pois ele era, enquanto pensador, um aristocrata que desprezava a massa humana, sem a qual a vontade imperialista não pode se realizar. Ele dizia do Estado ser ele o mais frio dos monstros, e afirmava que o homem não começa senão onde o Estado termina. Como, nessas condições, organizar um império, que é sempre obra das massas, do homem médio? Nietzsche era um homem fraco, desprovido de poder, o homem mais fraco do mundo. Ele tinha, não a vontade de poder, mas a ideia da vontade da ideia de poder. Ele exortava os homens a serem duros. Mas é pouco provável que ele entendesse como dureza a violência dos Estados e das Revoluções, a violência da vontade imperialista. A imagem de César Borgia não era para ele mais do q eu o símbolo da tragédia vivida por seu próprio espírito. Seja como for, a vontade de poder e de submissão, a exaltação da vontade imperialista, significam uma ruptura com a moral evangélica. É essa ruptura que vemos acontecer no mundo, ela não existia antes do velho humanismo, nem na revolução francesa. O gesto subjugador da violência pretendia ser uma prova de força, quando, na realidade, ela não passa de uma prova de fraqueza. César é o mais impotente dos homens. Quem quer que inflija um castigo de morte é um homem cujo espírito não possui força, um homem que perdeu toda consciência dessa força. Nós estamos aqui diante do problema bastante complexo da violência.

 

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Que a vontade de poder, a vontade imperialista, sejam contrárias à liberdade e à dignidade do homem, nada pode ser mais claro. De resto, a filosofia imperialista jamais pretendeu defender a liberdade e a dignidade do homem. ela exalta a violência, na qual ela vê a expressão mesma de um estado de alma que não pode ser senão o apanágio de alguns, de um estado de alma superior. Mas o problema em si da violência e o da atitude que ela comporta são problemas extremamente complicados. Quando nos levantamos contra a violência, em geral temos em vista não mais do que suas formas mais grosseiras, aquelas que mais ferem, só pensamos nos homens que sofrem os golpes, que são aprisionados, que são assassinados. Mas existem na vida forma de violência por assim dizer imperceptíveis, quase que refinadas. A violência psicológica desempenha na vida um papel bem mais importante do que a violência física. Não é só por causa da violência física que o homem perde sua liberdade e se torna escravo. Ele também pode se tornar escravo sob a influência de sugestões sociais que ele recebe desde a infância. O sistema de educação, tal como costuma ser aplicado, pode privar por completo o homem de sua liberdade, roubar-lhe a liberdade de julgamento. A história, com seu peso, com sua pressão massiva, aniquila o homem. o homem ainda sofre violência sob a forma de ameaças, de um contágio que se exerce de forma coletiva. A sujeição é um assassinato. O homem envia sempre aos demais homens influxos de vida ou influxos de morte. O ódio é sempre um influxo de morte, dirigido ao outro, que o sente como uma violência feita à sua pessoa. O ódio constitui sempre um atentado à liberdade daquele que é seu objeto. Mas o mais espantoso, é que também o amor pode se tornar mortal e enviar um influxo de morte. O amor não é menos subjugador do que o ódio. A vida humana é atravessada por correntes subterrâneas que arrastam o homem numa atmosfera de violência e escravidão. Existe uma psicologia da violência individual e uma da violência coletiva, social. A opinião pública, quando se torna cristalizada, engessada, toma a forma de uma violência exercida sobre o homem. Com efeito, o homem pode ser escravo da opinião pública, dos hábitos, dos costumes, dos julgamentos e das opiniões impostas. O homem médio de nossa época contenta-se, em seus juízos e opiniões, com o que lê no jornal toda manhã e que exerce sobre ele uma espécie de imposição psíquica. E, dada a venalidade e a insinceridade da imprensa, ela exerce uma influência perniciosa, submetendo o homem, privando-o da liberdade de consciência e de julgamento. Entretanto, essa violência é relativamente pouco perceptível, salvo nos países com ditaduras, nos quais a falsificação das opiniões e dos juízos constitui um procedimento governamental. Existe um outro fator que exerce uma violência ainda maior: é o dinheiro, que exerce uma ditadura oculta na sociedade capitalista. Sua violência não é direta, não salta aos olhos, mas toda a vida do homem está subordinada ao dinheiro, a essa força mais do que impessoal, a mais desprovida de valor qualitativo, que pode ser trocada por tudo e por qualquer coisa. Em lugar de ser privado diretamente, pela violência física, da liberdade de consciência, de pensamento, de julgamento, o homem se vê colocado num estado de dependência material, ele vive sob a ameaça da morte pela fome, o que equivale à privação da liberdade. O dinheiro traz a independência, a falta de dinheiro cria a dependência. Mas mesmo aqueles que possuem dinheiro vivem na escravidão, sofrendo uma violência oculta. No reino de Mamom, o homem é obrigado a vender seu trabalho, e seu trabalho não é livre. O homem jamais encontra a verdadeira liberdade no trabalho. O trabalho do artesão e o trabalho intelectual são relativamente mais livres, mas sofrem igualmente uma violência pouco aberta. Mas a massa humana passou do trabalho escravo para o trabalho servil, para recair na escravidão sob o regime capitalista de trabalho e na servidão sob o regime de trabalho comunista. O homem sempre permanece escravo, e é um fato psicológico interessante que a liberdade seja facilmente concebida como ausência de movimento, como um estado estacionário. O movimento pressupõe já uma certa violência sobre o mundo ao redor, sobre o meio material e sobre os demais homens. Ora, o movimento é uma mudança que não pergunta se o mundo está pronto a aceitar suas consequências. Essa aceitação do repouso, considerado como uma ausência de violência, e do movimento ou mudança considerados como efeitos da violência se traduzem na vida social por consequências conservadoras. A escravidão, uma vez que existe há muito tempo e que acabou por constituir o estado habitual, pode bem aparecer como uma violência, enquanto que o movimento que tem por objetivo a abolição da escravidão pode, ao contrário, aparecer como uma violência. As tentativas de reforma social são consideradas como violência por aqueles aos olhos dos quais o regime social a que estão acostumados aparece, malgrado sua injustiça, como um regime de liberdade. Todas as tentativas de reformar a situação das classes trabalhadoras levantam ardentes protestos por parte das classes burguesas, que qualificam essas tentativas como violência, como atentados à liberdade. Tais são os paradoxos da liberdade na vida social. Para qualquer lado que nos voltemos, a escravidão oprime o homem. a luta pela liberdade pressupõe uma resistência, sem a qual ela perde seu pathos. Quando se torna um elemento da vida cotidiana, a liberdade se transforma insensivelmente em escravidão, porque ela acaba por se objetivar, enquanto que a liberdade é o reino do sujeito. O homem é escravo, porque a liberdade é difícil e a escravidão é fácil.

 

No mundo da escravidão, que é o da objetividade, a violência é considerada como uma força, como uma manifestação de força. A exaltação da violência sempre implica o uso da força. Mas a violência está longe de se identificar com a força, ela jamais deve ser confundida com a força. A força, no sentido profundo do termo, significa a tomada de posse daquilo para o que ela se dirige, não uma dominação com a conservação da exterioridade do objeto, mas uma união íntima obtida por uma ação persuasiva. Cristo fala com força, o tirano não. O autor de uma violência é impotente diante daquele a quem ele violenta. É por causa da impotência que se recorre à violência: recorre-se à violência quando não se tem nenhum poder sobre aquele a quem é infligida a violência. O mestre não tem nenhum poder sobre o escravo. Ele pode torturá-lo, mas, ao fazer isso, ele mostra apenas que ele se bate contra um obstáculo invencível. Um mestre que possui a força deixa de ser mestre. E quando a impotência diante do outro atinge um limite extremo, ela se expressa ela sede de matar. Poderíamos falar de força ilimitada, se essa força tivesse o poder de devolver o homem à vida. A real força é transfiguração, iluminação, ressurreição de outrem. Mas a violência, a tortura, o assassinato são prova de fraqueza. O que chamamos de força no mundo objetificado, ordinário, exteriorizado, despersonalizado, não é outra coisa do que a força no sentido existencial da palavra. É isso que se manifesta no conflito entre a força e o valor. Os mais altos valores do mundo são mais fracos do que os valores inferiores; os mais altos são desprezados, os inferiores triunfam. O policial e o capataz, o banqueiro e o negociante são mais fortes do que o poeta e o filósofo, do que o profeta e o santo. No mundo objetificado a matéria é mais forte do que Deus. O Filho de Deus foi crucificado. Sócrates morreu envenenado. Profetas foram lapidados. Os precursores e os criadores de um pensamento e de uma vida novos foram perseguidos, e, com frequência, mortos. É o homem médio, o homem do cotidiano social que sempre triunfou. O triunfo sempre foi feito para o mestre e para o escravo, mas o homem livre jamais foi tolerado. Ninguém quer reconhecer o valor mais alto, o que representa a pessoa humana: todas as preferências vão para os valores mais baixos. O Estado, com sua violência e suas mentiras, com sua espionagem e suas frias condenações a morte, sempre foi objeto de uma adoração servil, sempre foi considerado como um valor inapreciável. No mundo objetivo, não se ama outra coisa do que o finito, não se suporta o infinito. E esse poder do finito se revela sempre como sendo a escravidão do homem, enquanto que o infinito, que permanece escondido para ele, seria a sua libertação. A força sempre foi associada aos maus meios que se considera como necessários com vistas aos bons fins. Mas toda a existência está cheia desses meios, e, quanto aos fins, esses jamais são atingidos. É assim que o homem se torna escravo dos meios que se supõe irão torná-lo forte. O homem buscou a força onde não havia chance alguma de encontrá-la, seguindo especialmente o falso caminho da impotência, que só pode se satisfazer através de atos de violência. Ele realizou atos de vontade que subjugam, não atos de vontade que libertam. O assassinato sempre desempenhou um grande papel dentre os meios de que se servem aqueles a quem chamamos de grandes homens da história e de heróis da vontade imperialista. E lançar mão desse meio sempre foi uma prova da fraqueza metafísica desses homens “fortes”, a expressão de sua vontade patológica de poder e de dominação, acompanhada da mania de perseguição. A fraqueza espiritual, a impotência em alcançar a vida interior do homem, a ausência de uma força capaz de operar a ressurreição dos homens com vistas a uma vida nova, tiveram com efeito inculcar nos homens a crença numa vida infernal num outro mundo, e fazê-los aceitar a necessidade de uma vida de torturas e de castigos severos, chegando até o assassinato, nesse mundo. A verdade é crucificada no mundo, mas é a verdade, a verdade divina que possui a verdadeira força.


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O monismo é a fonte filosófica da escravidão humana. A prática do monismo é uma prática tirânica. O personalismo se opõe radicalmente ao monismo, que prega a dominação do “geral” e do universal abstrato, negando a pessoa e a liberdade. A pessoa e a liberdade são inseparáveis do pluralismo, ou, mais exatamente, elas se revestem exteriormente da forma do pluralismo, mas podem significar interiormente um universalismo concreto. A consciência não pode ter seu centro numa unidade universal qualquer, ela não pode ser alienada, mas deve residir nas profundezas da pessoa. Do fato de que a consciência reside nas profundezas da pessoa não se deduz que essa esteja fechada em si mesma, dobrada sobre si mesma, condenada a uma vida egocêntrica: ao contrário, isso pressupõe a abertura para o interior e não para o exterior, o enriquecimento do interior por um conteúdo universal concreto. Mas ao enriquecer sua consciência com um conteúdo universal concreto, a pessoa não a situa no Estado, nem na sociedade, nem no povo, na Igreja, numa classe ou num partido, em resumo, ele não imprime a ela um caráter social. O único sentido válido, distante de tudo o que lembra a escravidão, que podemos dar ao termo “sobornost[4]”, é o de um universalismo interior concreto da pessoa, e não o de uma alienação da pessoa em benefício de uma coletividade exterior. Só é livre aquele que rejeita a alienação, a projeção de sua consciência e de seu julgamento para fora, enquanto que quem consente nisso é um escravo. O mestre consente nisso de bom grado, mas ele não passa de um escravo à sua maneira. Falar de autonomia da pessoa, da consciência, constitui uma linguagem inexata do ponto de vista terminológico. Em Kant, isso significa a submissão da pessoa à lei moral racional. Nesse caso, o que é autônomo não é o homem, mas a lei moral racional. A autonomia do homem enquanto pessoa deve ser designada pelo termo mais exato de “liberdade”. É a razão e a natureza que em geral opomos aos regimes autoritários e hierárquicos na história europeia. É em nome da razão e da natureza que nos levantamos contra a autoridade. Mas não é partindo desses princípios que se pode realizar a liberdade do homem, que permanece, apesar de tudo, submetido à razão impessoal, à sociedade soberana ou, simplesmente, às necessidades naturais. O q eu é preciso opor à consciência ou ao regime autoritários, não é a razão, nem a natureza, nem a sociedade soberana, mas o espírito, a liberdade, o princípio espiritual, ao qual o homem deve sua personalidade e que é independente tanto da natureza objetificada, como do mundo lógico objetificado. Isso pressupõe uma mudança na orientação da luta contra a escravidão, ou, dito de outra forma, uma transmutação dos valores, e é a isso que consagramos essa obra. É preciso contrapor o universalismo interior, existencial, ao universalismo exterior, objetivado, fonte inesgotável de formas de escravidão, sempre renovadas. Tudo o que é impessoal, alienado na esfera do “geral”, é uma ilusão sedutora e traz consigo a escravidão do homem. o homem livre é aquele que dirige a si próprio, e não o que é dirigido; a liberdade não é a direção da sociedade e do povo por si mesmos, mas a direção do homem por si mesmo, do homem tornado pessoa.

 

A mudança de orientação da luta pela liberdade humana, para a revelação do homem livre, implica antes de tudo uma mudança da estrutura da consciência, uma mudança na escala de valores. Trata-se de um processo muito profundo, e cujos resultados são lentos em se manifestar. Trata-se de uma revolução interior e profunda, que se desenrola, não no tempo histórico, mas no tempo existencial. A essa mudança de estrutura de consciência corresponde uma mudança no modo de conceber a imanência e a transcendência, bem como suas relações. A continuidade imanente, graças à qual o homem é atirado em pleno processo evolucionário, equivale a uma negação da pessoa, que pressupõe a descontinuidade e a transcendência. O homem se encontra aí submetido à unidade universal, em relação à qual Deus seria absolutamente imanente. Mas Deus é inteiramente transcendente em relação a essa unidade e ao processo que aí se desenrola. É essa transcendência de Deus, essa liberdade de Deus em relação à necessidade cósmica, em relação a toda objetividade, que constitui a fonte de liberdade do homem, da possibilidade de existência da pessoa. Mas a transcendência também pode ser interpretada colocando-nos do ponto de vista do escravo, e nesse caso ela significa a humilhação, o rebaixamento do homem. a transcendência pode ser concebida como uma objetificação, uma exteriorização, e a atitude perante ela pode ser não a de uma transcendência interior para a liberdade, mas uma relação de escravo e mestre. O caminho da libertação não é nem o da imanência, nem o da transcendência tradicionais. A transcendência para a liberdade jamais significa uma submissão à vontade estrangeira, o que equivaleria à escravidão, mas a submissão à Verdade, que é ao mesmo tempo a Via e a Vida. A verdade é sempre inseparável da liberdade e só é concedida à liberdade, enquanto que a escravidão é a negação da liberdade, o horror à liberdade. O amor à liberdade é uma vitória sobre o medo dominador. O homem primitivo, que sobrevive no homem moderno, está sob o poder do medo, ele é escravo do passado, do cotidiano, do espírito dos ancestrais. Os mitos podem gerar a escravidão. O homem livre escapa ao poder dos mitos, mas os homens da civilização moderna, do apogeu da civilização, estão sempre debaixo do poder dos mitos, e mais especificamente do mito das realidades universais, do reino do “geral” ao qual o homem deveria estar submetido. Ora, não existem realidades gerais, universais: elas não passam de fantasmas e de ilusões criadas pela objetivação. Existem valores universais, verdade, por exemplo, mas sempre sob uma forma concreta e individual. Ao hipostasiar os valores universais, a consciência se engaja numa falsa direção. Essa é a velha metafísica, que nada justifica. O universo está encarnado na pessoa humana, na pessoa de Deus. A personificação de princípios constitui justamente uma objetivação na qual a pessoa desaparece.

  

4

 

A escravidão é passividade. A vitória sobre a escravidão é, de fato, uma atividade criadora, que se manifesta no tempo existencial. A atividade histórica é uma atividade de objetivação, de projeção no exterior daquilo que se passa nas profundezas. O tempo histórico tenta escravizar o homem, enquanto que o homem livre não deve se dobrar nem diante da história, nem diante da espécie, nem diante da revolução, nem diante de qualquer generalidade objetiva que reivindique uma importância universal. Sob esse aspecto, o mestre nada fica a dever ao escravo: também ele se inclina diante das generalidades, diante do pseudo-universalismo, e entre ele e o escravo existem mais semelhanças do que se pode imaginar. O homem livre pode mesmo se recusar a se tornar mestre, pois isso significa para ele a perda de sua liberdade. Para permitir à consciência que ultrapasse tanto a escravidão como o desejo de dominação, é importante construir uma sociologia apofática, por analogia com a teologia apofática. A sociologia catafática evolui em categorias de escravidão e de dominação, sem saída para a liberdade. As noções sociológicas correntes são inaplicáveis às considerações sobre uma sociedade em que não houvesse nem escravidão nem dominação, pois tal sociedade supõe o desligamento, uma atitude negativa em relação a todas as coisas sobre as quais repousa a sociedade no reino de César, vale dizer, o mundo objetificado no qual o homem se encontra, por sua vez, transformado em objeto. Uma sociedade de homens livres, uma sociedade de pessoas, não é nem uma monarquia nem uma teocracia, nem uma aristocracia, nem uma democracia, nem uma sociedade fascista ou comunista; ela sequer é uma sociedade anarquista, na medida em que a anarquia supõe ainda uma certa objetivação. Trata-se de uma sociedade apofática pura, ou seja, fundamentada sobre o conhecimento de Deus, uma sociedade estranha às noções, livre de toda e qualquer racionalização. E isso pressupõe uma tal mudança de estrutura da consciência, que essa se torna incompatível com a objetivação, com a oposição entre sujeito e objeto, entre escravo e mestre: nós nos encontraríamos então na presença de uma subjetividade infinita, plena de conteúdo universal, e esse seria o reino da pura existencialidade. É um erro pretender que a sociologia apofática se aplique a um outro mundo, ao mundo celeste, à vida de “além-túmulo”, baseando-se na ideia de que nesse mundo, no mundo imanente, na vida antes da morte, tudo deve permanecer como no passado. Veremos adiante que essa maneira de ver é ditada por uma falsa concepção de escatologia, pela ideia que o fim é desprovido de todo significado existencial. Na realidade, a mudança de estrutura da consciência, o fim da objetificação, a criação de uma sociedade de homens livres, que não pode ser concebível senão à luz da sociologia apofática, pode e deve se realizar nesse mundo de aqui e agora.

 

O homem não vive apenas no tempo cósmico da evolução cíclica da natureza e no tempo histórico orientado para o futuro, mas ele vive também no tempo existencial, fora da objetivação que ele coloca para si mesmo. Veremos na última parte desse livro que o “fim do mundo” – que, em linguagem filosófica, significa o fim da objetivação – pressupõe a atividade criadora do homem e se realiza, não somente no “além”, como também no “aquém”. Esse é o paradoxo do destino do homem e do destino desse mundo, paradoxo que escapa às categorias do pensamento racional. Paradoxo incompreensível para o escravo e para o mestre, acessível apenas ao pensamento do homem livre. O escravo e o mestre poderão fazer esforços sobre-humanos para se opor ao fim do mundo, ao fim da objetificação, ao advento do reino de Deus, ao reino da liberdade e dos homens livres; eles não deixarão de criar novas formas de escravidão e de dominação, de se atirar a novas paródias, de dar à objetificação formas sempre renovadas que colocarão em cheque a atividade criativa do homem e perpetuarão os crimes da história. Mas os homens livres devem preparar seu reino, não no “além”, mas desde já, aqui e agora, e começar a se preparar para se fazerem livres, para realizar sua pessoa. O homem livre é aquele que não foge às responsabilidades. Os escravos não são capazes de preparar um novo reino, ao qual, aliás, o termo “reino” sequer seria aplicável, porque a revolta dos escravos não desemboca senão em novas formas de escravidão. Somente os homens livres possuem tal poder. Quanto aos mestres, eles não fazem outra coisa do que partilhar da sorte dos escravos. Parece-nos agora necessário passar em revista todas as formas de escravidão, tão múltiplas quanto variadas, que ameaçam o homem, ao mesmo tempo em que o atraem.



[1] Leon Tolstoy, Guerra e Paz.

[2] De “hipóstase”, no sentido antigo do termo, se refere à natureza de algo, ou a uma instância em particular daquela natureza; realidade permanente, concreta e fundamental; substância.

[3] Escola eleata é uma escola filosófica pré-socrática. Recebeu esse nome em função da cidade Eleia (da antiga Magna Grécia), situada no sul da Itália e local de seu florescimento e beleza. Nessa escola encontramos quatro grandes filósofos: Xenófanes, Parmênides, Zenão e Melisso.

[4] Termo russo que significa “ecumenismo”.