segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Nikolai Berdiaev - Espírito e Liberdade - Capítulo IX: O desenvolvimento espiritual e o problema escatológico

 

I

 

 

É difícil tratar do princípio mesmo de certas questões, pois existem associações de ideias que nos afastam da situação exata do problema. Os homens são muito pouco livres em seus pensamentos, pois esses são deformados por sua emotividade. Assim é que o pensamento religioso se recusa a colocar e a examinar imparcialmente o problema do desenvolvimento espiritual, porque a própria ideia de um “desenvolvimento” evoca uma associação de ideias da teoria evolucionista e a teoria do progresso, características do século XIX. As teorias de evolução e de progresso esconderam de nós a ideia do desenvolvimento criador do espírito. A introdução do princípio do desenvolvimento na vida religiosa é qualificada de “modernismo”, e é visto como uma adaptação ao evolucionismo irreligioso contemporâneo. Ora, é indispensável estabelecer o seguinte ponto: é possível rejeitar a teoria da evolução, mas é impossível negar o fato cabal do desenvolvimento no mundo. É igualmente necessário estabelecer uma distinção entre o desenvolvimento do espírito e a evolução da natureza. Nós criticamos com justa razão a teoria do progresso, na qual vemos uma pseudo-religião que tende a substituir a religião cristã.

 

Mas é preciso lembrar que a ideia de progresso religioso é de origem cristã, que ela não passa da secularização e da deformação da ideia messiânica, da procura e da espera cristã do Reino de Deus. A ideia de progresso é uma ideia religiosa teleológica, que pressupõe que a história possui um sentido e um objetivo absolutos. Vista do ponto de vista do positivismo, essa ideia é, em verdade, desprovida de qualquer interesse, e apresenta uma notória contradição. O positivismo não tem como falar de uma evolução desprovida de objetivo e de sentido. Pois o progresso implica valores espirituais que, elevando-se acima dele, determinem seu sentido. Essa é uma verdade elementar, estabelecida desde muito tempo. Mas nunca nos damos conta o bastante, a respeito de que a ideia de progresso, vale dizer, de um movimento, de um processo histórico em direção a um objetivo absoluto e supremo, não foi possível senão graças ao Cristianismo, e que ela jamais poderia ter nascido no contexto da consciência helenista.

 

 A história se dirige para um acontecimento central e absoluto por sua importância: a vinda de Cristo. E, a partir de Cristo, ela se dirige além, para o acontecimento final que deverá encerrar a história universal: a segunda vinda do Salvador. É isso que determina a existência de épocas na história universal, e que determina seu progresso espiritual. É assim que se constrói o dinamismo espiritual interior da história. Essa não consiste simplesmente numa evolução exterior desprovida de sentido, vale dizer, numa repartição dos elementos do mundo, na qual nenhum valor absoluto se manifesta; na história universal existe uma dinâmica do sentido, existe o Logos, que determina o movimento interior. O Cristianismo é messiânico e escatológico, ou seja, dinâmico e progressivo no sentido espiritual, no sentido mais profundo da palavra. Existe um movimento em direção a um fim, no qual tudo irá se resolver. Não se trata de uma evolução, no sentido atual do termo, pois ele não está submetido ao desenvolvimento determinado pela necessidade natural. O Cristianismo não surgiu como uma verdade estática e imutável, que teria sido dada sob sua forma definitiva; ele veio ao mundo como uma verdade dinâmica e como um irresistível desdobramento. Não ficou entendido desde o começo, em que consistia o Cristo, e o ensinamento da Igreja não foi imediatamente revelado; a liturgia não foi criada desde logo, e a organização da Igreja não foi instituída desde os começos. A própria Igreja de Cristo é resultado de um desenvolvimento, ela evoluiu a partir da ideia escatológica primitiva do Reino de Deus; ela passou por graus e períodos em seu desenvolvimento e sua eclosão. É preciso considerar essa verdade como definitivamente estabelecida, e não existe razão alguma para temê-la. Ela não abala de forma alguma o absoluto do Cristianismo, nem a possibilidade, para esse, de conhecer um desenvolvimento subsequente no mundo.

 

A revelação cristã encerra inumeráveis riquezas virtuais, que não podem ser disponibilizadas na história, nem se atualizar no mundo. Cada palavra do Evangelho não é mais do que um grão, não passa de um germe latente de um processo infinito de desenvolvimento. Se o Cristianismo foi dinâmico no mais alto grau no passado, ele também pode sê-lo no futuro. A redução do dinamismo não representa um enfraquecimento, um torpor espiritual. Na Igreja, sempre é possível se produzir um desenvolvimento dogmático, como insistiram particularmente o cardeal Newman e Solovieff. Nem todas as questões foram resolvidas; o Cristianismo não está terminado e não terminará antes do fim dos tempos: sua realização final corresponderá ao advento do Reino de Deus. Mas quando buscamos pelo Reino de Deus, quando nos movemos em sua direção, nos encontramos num estado de desenvolvimento, e não num estado estático. A existência de uma ortodoxia ou de um catolicismo estático é uma ficção e uma autossugestão, e não passa de uma objetivação e de uma “absolutização” de correntes e de períodos temporários na Igreja.

 

Quando não se propõe uma missão criativa, logo se manifestam uma decadência espiritual, um silenciamento e uma extinção do espírito. Todos os homens eminentemente ativos do mundo cristão foram “modernistas” em suas épocas. Isso não significa que eles se acomodavam ao espírito do tempo, à razão do século, mas que eles se colocavam e tentavam resolver os problemas criativos de sua época particular do Cristianismo. São Tomás de Aquino foi um modernista em seu tampo, assim como Santo Atanásio o Grande. No Cristianismo, o modernismo – entendido aqui como a possibilidade da inovação em conformidade com uma dada época espiritual – está sempre ligado à profundidade, e não à superficialidade dos tempos; ele sempre liga o futuro ao passado. A própria ideia de desenvolvimento e de progresso está ligada à existência de épocas religiosas, a graus de revelação. A distinção entre o Antigo e o Novo Testamentos, entre o paganismo e o Cristianismo, estabeleceu épocas, demonstrou que existe um desenvolvimento espiritual. A ideia gnóstica dos éons é em si fecunda e torna possível a filosofia da história. A vinda de Cristo divide a história universal em dois períodos fundamentais, em dois éons cósmicos, dos quais cada um pode ser por sua vez submetido a diferentes subdivisões. Esse próprio fato, esse fenômeno original do processo universal, implica a existência de um desenvolvimento espiritual, de um processo dinâmico na história. A interpretação estática do mundo torna incompreensível e impossível o fato da vinda de Cristo, que é um fato cosmogônico; ela própria provém de uma concepção estática da estrutura da consciência.

 

Essa visão estática, ontológica e metafísica, justificada pela teologia, provém do fato de que a consciência de um dado período se acha afirmado como eterno e imutável. Mas a própria natureza da vida espiritual é inacessível a semelhante consciência, porque ela é movimento, dinamismo e desenvolvimento, não no sentido exterior e evolucionista de uma nova repartição de elementos externos, mas n o sentido interior, espiritual e criador. Não existe ordem universal que seja imutável, estabelecida por toda eternidade, tal como o imagina a consciência estática. A existência é vida e espírito. O espírito é fogo, e assim a chama da vida se abrasa e se move eternamente. A concepção estática representa o mundo como um vulcão extinto.

 

Mas a criação do mundo não se encontra terminada, e nela o homem coopera ativamente, e nós percebemos as consequências disso na forma de um desenvolvimento. A consciência bíblica da Antiga Aliança não percebia mais do que uma parte da criação do mundo; mas, em sua limitação, ela a tomava pela totalidade, considerando-a como terminada. Essa cosmogonia se transmitiu ao próprio Cristianismo, que tem dificuldade em se liberar dela. A consciência bíblica cosmogônica é incapaz de conter em si o mistério da liberdade; dessa forma, ela não percebe o desenvolvimento criativo, e representa sempre o mundo como um mistério acabado, como uma ordem imutável.

 

Mas um desenvolvimento criativo no mundo é possível, porque existe uma fonte abissal de liberdade jorrando de uma profundidade inefável, e ele é também inevitável, porque o homem traz em si a imagem do Criador, de Sua liberdade e de Sua força criativa. Produz-se uma eclosão criadora daquilo que está contido em estado de potência nas profundezas da liberdade, nas profundezas do espírito. O desenvolvimento implica a existência em potência. Trata-se de um desenvolvimento de outro tipo daquele professado por Darwin, Spencer ou Haeckel, pois não é consiste numa evolução naturalista, mas constitui um desenvolvimento que procede do espírito. O desenvolvimento que nasce da liberdade não tem nada em comum com aquele que deriva da necessidade, pois ele não é determinado, mas constitui um ato criador. O desenvolvimento não é outra coisa do que a expressão exterior daquilo que se realiza no interior; assim é que se produz um desabrochar e um desenrolar criativo que procede da liberdade. Não existe nenhuma lei universal do desenvolvimento ou do progresso. A teoria otimista relativa à continuidade do desenvolvimento e do progresso universal é forçosamente uma teoria naturalista e não espiritual, que não pode se conciliar com a liberdade do espírito humano, com a liberdade da criação. No mundo age uma liberdade que lhe é anterior, uma força irracional, e é por isso que não somente o bem, como o mal, se desenvolvem. O triunfo do bem, do princípio divino, não conhece movimento gradual no mundo, algo que seja sucessivo e ascendente. O bem é obra da liberdade e não da necessidade. Os elementos, os princípios, os organismos tomados isoladamente, se desenvolvem e progridem, mas o desenvolvimento e o progresso não constituem a lei obrigatória da vida universal.

 

As teorias da evolução e do progresso, que predominaram no século XIX, simplificaram o problema e o interpretaram dentro de um espírito de otimismo naturalista. Esse otimismo desconhecia por completo o laço que une a verdadeira evolução a liberdade e à força criativa, e assim ele rompeu com as fontes autênticas do desenvolvimento espiritual. O evolucionismo ignora o objeto da evolução e, por isso, ele desemboca na negação daquilo que evolui. Ele é estático, ele rejeita ao passado os graus hierárquicos do estado natural contemporâneo, alinhando-os numa ordem cronológica; ele não compreende o mistério da gênese. O selvagem, tanto quanto o animal e a planta, todos são nossos contemporâneos. Na aurora da vida universal, tudo era infinitamente mais misterioso, tudo era diferente.

 

As eras da humanidade, as épocas do espírito humano na história, não necessariamente implicam uma melhoria espiritual regular, a realização progressiva do Reino de Deus no mundo. A própria passagem do mundo pré-cristão para o mundo cristão não constituiu uma melhoria moral; ela não significou que os homens tivessem vencido o mal e que a partir daí ele iriam se aproximar progressivamente do Reino de Deus. Ela anunciou a chegada de uma nova era espiritual do homem, a divulgação de novas forças espirituais, de uma nova luta do bem contra o mal, de um novo bem – mas também de um novo mal. Os homens da antiguidade eram mais pacíficos, mais equilibrados, mais submissos ao destino do que os homens do mundo cristão, que perderam a medida, a harmonia, a beleza das formas clássicas conhecidas dos gregos. Muitas coisas foram descobertas ou progrediram, mas outras, ao contrário, caíram no esquecimento e não mais regressaram. Alguns conhecimentos antigos foram perdidos, e paralelamente desenvolveram-se outros que eram desconhecidos dos antigos. Um grande número de faculdades, das quais os homens da antiguidade desfrutavam, parecem haver desaparecido para sempre. O homem nos tempos novos parece ser menos resistente, menos viril, mais medroso do que o eram os homens das épocas anteriores. Existe nisso um processo extremamente complexo, que não pode ser encarado como um crescimento gradual e positivo, como uma desaparição do negativo.

 

O desenvolvimento espiritual do homem e da humanidade se efetua através de contradições e de oposições. Trata-se de um processo trágico, que nem a teoria da evolução, nem a do progresso, compreendem. Para além do desenvolvimento espiritual está a liberdade, e ela complica infinitamente o processo. Nós não vemos mais do que o lado exterior, superficial, da evolução, mas aquilo que se realiza nas profundezas da vida espiritual é um processo criativo, no qual a liberdade é orientada, seja para o bem, seja para o mal, seja para Deus, seja para Satanás. Não podemos julgar essa complexidade pelo processo de desenvolvimento da história moderna, pelo destino do Cristianismo. Produziram-se mudanças nas profundezas, novas eras começaram, existe um desenvolvimento espiritual, mas não existe progresso no sentido que era afirmado pelos homens do século XIX. O progresso é inelutavelmente acompanhado de regressão, a evolução se une à dissolução. Uma nova espiritualidade mais refinada começa a crescer, e simultaneamente a espiritualidade diminui, e o mundo se materializa. Mas o universo, a criação de Deus é um devir, um absoluto que virá, por distinção com o absoluto que é.

 

 

II

 

Podemos falar de uma lei da evolução? Essa lei não existe, no sentido que é atribuído pelo evolucionismo naturalista. A evolução verdadeira, como dissemos acima, é determinada de dentro e não de fora, ela parte do espírito e não da natureza, da liberdade e não da necessidade. Para além da evolução, que constitui uma espécie de quadro exterior, descobrimos um processo interior; ora, esse processo não está submetido à lei. Podemos adaptar a todo desenvolvimento algo de análogo à lei dialética. É assim que se descobre a via pela qual se efetua todo crescimento, todo enriquecimento na vida universal.

 

A fonte desse desenvolvimento aparece na experiência daquilo que foi vivido e experimentado. A verdade fundamental, referente ao mistério do desenvolvimento, se expressa no aforismo de Léon Bloy, que citamos na introdução desse livro: “Sofrer passa; haver sofrido, não passa jamais”. Podemos superar o sofrimento, mas não podemos apagar o fato de que ele existiu. Toda experiência enriquece, mesmo que o enriquecimento consista numa negação dessa experiência. Assim é que experiência do mal, quando é superada e desmascarada, enriquece e conduz a um bem superior. A experiência do mundo, quando conquistada, desemboca numa qualidade de fé superior. A experiência dos contrários e do desdobramento, quando se triunfa sobre ela, conduz à unidade suprema. Depois da experiência da revolução, é impossível para mim retornar ao estado que a precedeu. Depois de ter passado pela filosofia de Kant, sou incapaz de retornar à filosofia pré-Kantiana. Depois de ter vivido o humanismo, não é possível apagar seus traços. Depois do romantismo, já não cabe o retorno ao velho classicismo. Tendo experimentado a liberdade, daí em diante não posso mais aceitar a necessidade.

 

A unidade é adquirida por meio das contradições. Sem experiência, não existe movimento na vida, pois o movimento não pode se produzir segundo normas estabelecidas a priori. Recusar as lições da experiência e da prova equivale a negar no mundo o desenvolvimento da vida, equivale afirmar a imutabilidade estática. É preciso provar os espíritos. O mundo e o homem devem passar por grandes provas. Esse é seu caminho. O valor essencial do idealismo alemão, enraizado na mística, é o de ter trazido à luz o movimento dialético do espírito. O significado da experiência dos contrários se refere ao problema da consciência cristã; é o problema que consiste em superar a ingenuidade original na vida religiosa, a ligar o conhecimento que foi experimentado, a uma fé inquebrantável.

 

Mas será que o Cristianismo reconhece o caminho da prova, ou será que ele próprio é, a priori, um sistema estático que se desvia desse caminho, ou seja, um desenvolvimento criativo? Sabemos que no Cristianismo predomina o ponto de vista estático, sabemos que ele receia a experiência do movimento, e que esse inspira o temor, profetizando consequências fatais, e sofremos com isso. Esse sofrimento constitui em si uma experiência, da qual necessariamente deve nascer alguma coisa. Na história do Cristianismo abusou-se demasiado do método que consistem em preservar os “pequenos” desse mundo de toda tentação. Recusava-se todo desenvolvimento criativo em nome desses pequenos. Mas era impossível preservá-los, pois não há força no mundo capaz de frear a experiência, de petrificar a vida, mas, na tentativa de fazê-lo, reduziu-se o Cristianismo à rigidez e ao entorpecimento. Ora, atualmente são esses “pequenos” os que mais se escandalizam com o estado estático do Cristianismo, com sua aversão a todo e qualquer movimento na vida. É impossível precaver-se contra uma nova experiência, contra a prova das contradições, estabelecendo barreiras artificiais; é impossível manter o homem e o mundo num estado de sonolência ou de inércia tradicional.

 

O desenvolvimento no mundo é inevitável, ele se produz necessariamente, porque a liberdade criativa do homem desperta, porque a experiência humana se complica, porque as contradições da vida se desenrolam. O mundo não é um sistema isolado em si mesmo, mas o infinito age sobre ele de todos os lados. E esse infinito gera nele uma nova experiência, estabelece continuamente novas contradições que devem ser superadas por meio de provas. O tema insondável do infinito deve ser iluminado. O homem está destinado a experimentar o infinito e a torná-lo inteligível pelo sentido supremo, ele é chamado a introduzir a luz na origem das trevas. O desenvolvimento é determinado pela existência de um nada inicial. O homem não está predestinado a permanecer na ordem estática estabelecida para eternidade; sua missão é a de experimentar todas as forças pelo exercício da liberdade.

 

Qual pode ser o sentido da liberdade, se ela deve permanecer inativa, se a ela não for permitido se manifestar seja de que modo for? A liberdade conduz à experiência, à prova das contradições, vale dizer, ao ato criativo e ao desenvolvimento espiritual. A negação da criação e do desenvolvimento espiritual no Cristianismo implica sempre a negação da liberdade. O sistema de São Tomás de Aquino é, na realidade, obrigado a rejeitar a liberdade como se ela fosse uma imperfeição; ele é obrigado a remeter tudo à necessidade da verdade, e, por conseguinte, a refutar o desenvolvimento criador.

 

Penetramos nas profundezas mesmas do problema do desenvolvimento no Cristianismo, bem como no problema da liberdade, se o encaramos do ponto de vista das relações de Deus com o mundo e com o homem, ou seja, com a criação. Desejará Deus que o homem e o mundo provem de sua liberdade, manifestem suas forças por meio da experiência, ou quererá Ele que o homem e toda a sua criação se limitem a obedecer formalmente à Sua vontade, cumprindo Sua lei? A solução para essa questão depende da libertação de uma concepção e de uma veneração servis a Deus, desse último vestígio da idolatria no mundo. Uma religião idólatra, alimentada pelo terror, desemboca na negação do desenvolvimento criativo, no temor a qualquer experiência nova, no estabelecimento de barreiras que entravam o processo da vida.

 

A metafísica e a moral estáticas sempre foram exotéricas e nunca refletiram mais do que uma experiência passageira, do que um período transitório na história do Cristianismo. Mas a limitação humana erigiu o relativo e o temporal em absoluto e eterno. Essa é uma das formas da afirmação de si, da autossuficiência do homem, que se compraz com sua limitação e teme o infinito do mundo espiritual. O ato criador é precisamente a Transição, a saída do isolamento e da limitação. O infinito espiritual é esotérico; o finito e a limitação são exotéricos. A concepção estática do mundo o é igualmente, assim como a concepção evolucionista, no sentido em que a afirmam o positivismo e a ciência contemporânea. O evolucionismo nega a liberdade, o ato criador, a nova experiência vivida nas profundezas do ser, na medida mesma em que afirma a concepção estática do mundo.

 

Hegel atingiu uma certa verdade em sua teoria da evolução através dos contrários e de sua conciliação numa fase superior de desenvolvimento; mas sua teoria do desenvolvimento natural do espírito apresenta também um isolamento, uma naturalização da vida espiritual em sua misteriosa infinitude abissal. Ora, a naturalização da vida espiritual é sempre exotérica, e jamais alcança a profundidade interior. Não podemos exprimir a verdade relativa ao desenvolvimento senão em termos de experiência espiritual, e não nas categorias da metafísica. É impossível elaborar uma metafisica do desenvolvimento, porque ela encerraria e limitaria sempre a experiência espiritual, que é insondável, infinita e íntima. A única verdade indiscutível é essa: qualquer que tenha sido a experiência, boa ou má, ela jamais é inútil, ela sempre fará parte do estado subsequente do desenvolvimento, a prova humana jamais é estéril e não pode jamais haver retorno aos estados precedentes ela. É preciso ir adiante, e até mesmo a reação na vida espiritual é uma inovação, e não uma repetição.

 

 

III

 

Para a consciência cristã, existe não somente um desenvolvimento espiritual, como também um desenvolvimento histórico, social e universal. O próprio Cristianismo é uma das etapas, e a mais importante, da revelação universal. Nosso mundo é uma das fases da existência, da vida original em si. Somente uma consciência exotérica pode conceber esse “mundo” como um resumo de todo o universo, ou seja, de toda a criação divina. Na consciência medieval, notadamente no mundo de São Tomás de Aquino e de Dante, a ideia de ordem (ordo) dissimulava a ideia do desenvolvimento, do processo criativo. O mundo era concebido como uma ordem eterna estabelecida por Deus.

 

Contemporaneamente, a ideia do desenvolvimento substituiu a ideia de ordem de uma hierarquia cósmica imutável. Para alcançar a verdade integral, é preciso conciliar a ideia da hierarquia cósmica com a do desenvolvimento. O mundo não se reduz ao cosmo, ele também constitui uma cosmogonia; nosso éon universal é um processo cosmogônico, e o próprio mundo conhece alguns éons do processo antropogônico, que não existem apenas na história da consciência religiosa universal, como também na história do Cristianismo. A vinda de Cristo ao mundo é o fato capital da antropogonia, o desabrochar da imagem humana. Mas a consciência que o homem tem de si mesmo não se revelou imediatamente no Cristianismo, mas também passou por épocas. Não há nenhuma razão para afirmar que esse processo esteja terminado. O desenvolvimento no tempo existe, ainda que seja pelo fato de que a plenitude não pode estar contida no tempo – onde ela se revela apenas parcialmente – e que ela só pode se realizar na eternidade. O Cristianismo não se realizou até o final; nele, ainda existe uma imensa energia potencial. A corrente conservadora no Cristianismo não pode suportar a ideia da existência de uma energia criativa potencial, pois para ela tudo já está definitivamente realizado. É assim que se empobrece o Cristianismo: quando se pretende limitá-lo, quando suas possibilidades são temidas. Nossa tarefa certamente não consiste em adaptar o Cristianismo ao evolucionismo naturalista contemporâneo, como o fizeram certos “modernistas”, mas antes descobrir em suas profundezas um princípio independente de desenvolvimento.

 

Se a Igreja cristã é o Deus-humanidade, então as novas experiências que se revelam nas lutas do espírito, nas contradições e nas provas da liberdade humana, devem fazer parte da nova era do Cristianismo. É assim que se revela a humanidade, e ela é chamada por Deus a se revelar livremente. Mas o que torna essa questão particularmente angustiante é não saber se essa experiência vem de Deus e se realiza por Deus, ou se vem de Satanás e se realiza por esse último. Pois todo o mistério da liberdade reside precisamente no fato de que ela pode se orientar para Deus ou contra Ele. e a história moderna a esse respeito é singularmente complexa.

 

O desenvolvimento criativo do espírito, o livre desdobramento das forças humanas, não pode ser encarado de um ponto de vista jurídico, como a realização de uma norma exterior, como a submissão a uma ordem estabelecida por toda eternidade. Devemos concebê-la como a livre cooperação do homem à obra divina. No desenvolvimento espiritual, criativo, existe um novo princípio, que a liberdade humana oferece a Deus, e que Deus espera do homem. A vida do espírito não constitui uma ordem natural de duração eterna, mas sim um processo dinâmico criador. O desenvolvimento espiritual é possível porque existe a liberdade. A fonte do desenvolvimento não é o ser transcendente, enquanto norma imutável, mas o abismo (Ungrund) que deve ser iluminado, e no qual nasce a luz. Uma concepção intelectualista da natureza conduz à negação da possibilidade do desenvolvimento, porque ela tende a reconhecer a ordem estabelecida como definitiva. Ela encara o desenvolvimento apenas como uma transposição quantitativa que se efetua no mundo material, como uma evolução exterior. Mas o desenvolvimento, no sentido autêntico do termo, é o desabrochar do espírito, a eclosão das forças íntimas ocultas que jazem nas profundezas, e não num deslocamento que se dá no mundo exterior. O evolucionismo ignora o sujeito livre e criativo e não reconhece o mistério da criação que procede da liberdade do espírito.

 

NA vida religiosa, é evidente que não existe evolução, no sentido moderno da palavra, pois o Cristianismo não evolui, ele não tem necessidade de progresso, que constituísse um processo necessariamente bom, que realizasse uma norma absoluta e encaminhasse ao objetivo supremo do futuro. O desenvolvimento espiritual constitui um dinamismo que se fundamenta sobre a liberdade, não sobre a necessidade. Para a teoria da evolução, o desenvolvimento constitui uma necessidade natural. Para a teoria do progresso, o desenvolvimento da humanidade representa a necessidade moral da realização progressiva de uma norma, de uma aproximação inevitável do objetivo. Mas aqui existe igualmente uma negação da liberdade de espírito e da criação. O desenvolvimento no Cristianismo não é um processo inelutável, ele é uma eclosão do espírito, que se produz desde o interior, uma penetração do mundo espiritual no mundo natural. Aqui, o desenvolvimento espiritual aparece também como uma penetração do espírito transcendente. O desenvolvimento espiritual não consiste numa revelação imanente da natureza, provocada por ela mesma. No processo imanente da natureza, não existe mais do que uma nova repartição da energia e da matéria. O desenvolvimento espiritual é a vitória do espírito sobre a natureza, uma vitória que é preciso compreender como um ato de liberdade, não de necessidade.

 

A esperança num desenvolvimento do Cristianismo é uma esperança na possibilidade de superar sua sujeição ao mundo natural; é também a esperança de uma divulgação e de uma manifestação ainda maior do espírito, que se efetue pela liberdade. A negação da possibilidade de um desenvolvimento no Cristianismo é o resultado da ligação do espírito às formas naturais; ela testemunha a ignorância da verdadeira natureza do espírito, que é uma natureza de fogo. Heráclito, Jacob Boehme e Dostoievsky compreenderam essa natureza do espírito melhor do q eu muitos outros. Neles, encontramos mais verdade do que em Parmênides, São Tomás de Aquino, Hegel ou Spencer. Mas para a consciência cristã, a ideia primordial não é a do progresso ou do desenvolvimento, mas a da iluminação e da transfiguração.

 

 

IV

 

O mundo espiritual é uma torrente abrasadora, um dinamismo criativo na liberdade. Mas, no mundo natural, o movimento do espirito se torna lento, pesado, e se reveste da forma da evolução. Um movimento criador autêntico se efetua sempre segundo uma vertical, ou seja, em profundidade. Sobre o plano horizontal, periférico, ele apenas se projeta, se objetiva. Assim é que a fonte do desenvolvimento criador reside sempre nas profundezas do espírito. O movimento se produz numa linha horizontal, porque nela são transpostos os pontos para os quais se dirige o movimento vertical, nascido nas profundezas. Um dos mais tristes erros do evolucionismo foi o de situar a fonte do movimento, do desenvolvimento, em fatores externos. O evolucionismo do século XIX jamais pôde alcançar o núcleo da existência, nem pôde ver nele a energia que gera todo o movimento. O método evolucionista consiste em se mover cada vez mais para a superfície, em situar a fonte da vida, não no interior da própria vida, mas fora dela, em um princípio que não possui nenhuma semelhança com ela. Quando situamos a fonte da vida, do movimento, no exterior, nos damos conta de que tampouco ali se encontra a causa interior, e então é preciso ir mais longe, mais para fora, para encontrar pontos exteriores que permitam justificar o desenvolvimento. A teoria evolucionista não atinge senão um domínio secundário, e não o original; ela não atinge mais do que a projeção, jamais a iniciativa criadora.

 

A inserção do princípio do desenvolvimento no Cristianismo não implica sua subordinação a uma evolução que se produz em linha horizontal, determinada por fatores exteriores ao espírito cristão. Nesse sentido, o Cristianismo é anti-evolucionista. Mas o princípio do desenvolvimento no Cristianismo pode existir em função da natureza livre, criativa e dinâmica do espírito. No interior, nas profundezas, sempre se produz uma criação derivada da liberdade, e o que a nós aparece como desenvolvimento não se efetua senão exteriormente, numa linha horizontal, sobre um plano de projeção.

 

O desenvolvimento é uma categoria exotérica. É sobre o plano de nosso mundo que se produz o desenvolvimento, mas é também aí que encontramos o estado estático, a inércia e o entorpecimento. No próprio espírito, no mundo interior, nada existe de inerte, tudo está em movimento, mas não existe aí nem desenvolvimento, nem evolução, no sentido superficial do termo. Aí, nada é determinado por fatores externos, tudo deriva da profundidade. O processo de desenvolvimento no Cristianismo, no sentido em que eu o entendo, não significa senão uma coisa: é que não existe ruptura entre os dois mundos, o eterno e o temporal, que a eternidade pode penetrar no  tempo e que o tempo pode entrar na eternidade. O estado estático denota sempre o isolamento do mundo, seu caráter fechado, o limite estabelecido por toda eternidade. Falamos de um desenvolvimento dogmático da Igreja: isso significa que nas profundezas se forma uma nova experiência religiosa, que a natureza abrasadora do espírito tende a de expressar exteriormente nas formas desse mundo. Exteriormente, esse processo adquire o aspecto de um desenvolvimento. Quando um movimento criador do espírito se realiza segundo uma vertical, ou seja, em profundidade, é inevitável que se desenvolva uma linha horizontal, assim como é impossível detê-la. Um novo vinho do espírito se elabora, e ele necessita de novos odres.

 

Existem épocas em que se produz uma espécie de “reencarnação” no mundo. Nossa época é uma dessas. Todas as formas antigas caíram em desuso, a carne histórica se corrompe; ela já não pode satisfazer as almas. O mundo se desencarna, se podemos nos expressar assim, e é difícil prever de que maneira ele se “reencarnará” novamente. Esse processo de desencarnação é acompanhado da perda da beleza plástica da vida, que se torna informe, e muitas vezes disforme; a perda do estilo arquitetônico é um dos sintomas característicos disso. A Beleza desaparece, não apenas da vida, como também da arte; é o que o futurismo proclama em alta voz. A receptividade estética se intensifica nas épocas de desdobramento e de desencarnação. Mas o objeto dessa receptividade morre.

 

O que se produz na civilização contemporânea, a materialização e a mecanização da vida, constitui precisamente um processo de desencarnação, a morte da carne histórica. Perece a forma concreta do agregado orgânico. A materialização da vida humana não é uma encarnação, mas uma desencarnação. A máquina separa o espírito da carne. Na civilização mecânica desaparece a síntese orgânica entre a alma e o corpo. A máquina destrói as formas plásticas da carne histórica; ela substitui o elemento orgânico por um elemento mecânico. Toda a organização da vida do mundo cristão sofre um terremoto. E muitos homens, amarrados a esse estado – o qual identificam com a existência – imaginam assistir ao fim do Cristianismo, ao fim do mundo. Na realidade, é o Cristianismo gregário que acaba e perece. As próprias bases da ordem social, à qual enxertou-se o Cristianismo histórico, são sacudidas. Mas, para além das convulsões exteriores de uma ordem que se supunha eterna, esconde-se uma experiência espiritual. O Cristianismo de costumes se corrói, porque o espírito o ultrapassou. Mas a verdade eterna do Cristianismo não foi atingida por esse solavanco. O Cristianismo não pode se unir para sempre à carne histórica temporária, a uma estrutura social. Não podemos encarar esse processo de desencarnação e de reencarnação do mundo, da maneira como o faz a teoria do progresso, para a qual toda transição é necessariamente um processo bom. Na realidade, esse processo é duplo: se forças malignas agem nele, o espírito também obtém conquistas positivas.

 

Do ponto de vista da teria da evolução, somos obrigados a reconhecer que a civilização mecânica conduz à regressão da organização humana. Em épocas anteriores, o homem estava muito mais armado, do ponto de vista antropológico, ele era mais forte, seu organismo era mais desenvolvido do que o é hoje, no auge da civilização. Ao progresso social juntou-se uma regressão biológica e antropológica. O aperfeiçoamento foi transposto, do homem para o meio social. Sem os meios técnicos desse meio, o homem se vê impotente e desarmado. Por conseguinte, se encaramos objetivamente a evolução, do ponto de vista antropológico, devemos reconhecer nela um duplo processo, e a questão se torna singularmente complexa se considerarmos isoladamente cada época histórica.

 

Assim é que se apresenta uma profunda dualidade no processo da história moderna. Seu desenvolvimento e seu progresso vêm acompanhados de uma diminuição do espírito, de uma orientação do homem para a vida terrestre e passageira. Os povos se tornam menos religiosos, eles hoje são incapazes da santa loucura religiosa da Idade Média. A razão destruiu o mundo espiritual no homem; o desejo de aproveitar a vida terrestre, a concupiscência dos bens desse mundo domina o homem da nova história. Esse é apenas um dos aspectos desse processo, mas existe ainda outro.

 

A história contemporânea e o desenvolvimento que se realiza nela constituem uma acumulação, um entesouramento de novas experiências da humanidade. A alma humana se complica, desabrocha e se desenvolve. A rudeza e a crueldade dos séculos anteriores diminuíram, despertou uma maior humanidade; uma nova compaixão surgiu no mundo, não apenas entre os homens, mas em relação aos animais. Uma consciência mais sensível e mais refinada se manifesta hoje, que não pode se reconciliar com a crueldade, a violência, a mentira, e ela exige o amor e a liberdade.

 

Por que motivo o Cristianismo – ortodoxo e católico – não buscou modificar, num espírito de amor cristão, as relações sociais, por que, com tanta frequência, ele sustentou uma organização da vida fundada sobre princípios não cristãos de violência e crueldade, por que tantas vezes na história ele defendeu os ricos e os poderosos desse mundo, em detrimento dos pobres e dos fracos? Não é o Cristianismo, mas os cristãos, que são culpados disso. A alma humana, cruel e limitada, animada por instintos ferozes, deformou o Cristianismo e nele deixou sua marca. Essa deformação da verdade cristã muitas vezes se revestiu da forma de um amor e de uma solicitude em relação à salvação eterna da alma. O medo da danação eterna, não apenas para si, mas também para o próximo, determinou violências e crueldades, ao custo das quais se esperava obter a libertação e a salvação;

 

Mas no decurso do processo histórico, a alma humana se transformou, ela se tornou mais pacífica sob a ação misteriosa e imperceptível do Cristianismo, embora exteriormente ela tenha com frequência se distanciado dele. O desenvolvimento positivo da alma humana é obra do Cristianismo. Mas o progresso humanista, ao mesmo tempo em que diminuía a crueldade, suprimindo a violência e afirmando a dignidade da personalidade, desembocou em novas crueldades e novas violências, no nivelamento das individualidades, na civilização impessoal, no ateísmo, na supressão da alma e na negação do homem interior. Uma nova alma efetivamente nasceu, e ela exige mais compaixão e mais doçura em relação a tudo o que vive. Novos sentimentos se desenvolveram.

 

Os cristãos contemporâneos têm dificuldade em se reconciliar com a ideia do inferno e dos suplícios eternos. O apelo constante a esses tormentos fazia sentido para o homem da Idade Média, dada sua baixa educação e disciplina; esse apelo o retinha, de certo modo, dentro da Igreja; mas é impossível educar a alma contemporânea, e menos ainda atraí-la para a Igreja valendo-se de semelhantes procedimentos. Ao contrário, do ponto de vista pedagógico, é melhor hoje em dia falar o mínimo possível a respeito, pois a ideia do inferno se tornou um obstáculo para o ingresso na Igreja. O homem atual prefere adotar o teosofismo e sua doutrina de reencarnações. Mas, quando comparada à alma das épocas anteriores, percebemos que a alma contemporânea se tornou menos íntegra, que ela se desdobrou; ela vive em contrariedades, ele tem menos fé, ela é mais fraca e muitas vezes mais superficial.

 

O Cristianismo se encontra, nesse momento, em presença de almas diferentes, e esse fato exige uma modificação de seus meios de ação. A alma humana, no fim de nosso período moderno, conheceu todas as tentações, todas as dúvidas; ela sofreu todas as provas, passou por todas as contradições da vida, desceu aos subterrâneos onde as trevas a invadiram. Ora, as Igrejas ortodoxa e católica, por tradição ou inércia, se obstinaram, anacronicamente, em preservar seu rebanho, a massa humana, contra as tentações, contra todas as experiências perigosas, contra as complicações da alma, contra o desenvolvimento intelectual.

 

O problema prático fundamental que se coloca atualmente para o Cristianismo, já não consiste em precaver exteriormente os homens contra as tentações, nem em preservá-lo das provas, mas, bem ao contrário, em ajudá-lo a sair daí, ajudá-lo a adquirir resultados espirituais fecundos. Nenhuma força é capaz de deter a evolução com todas as contradições que ela encera. O próprio Deus a quer, ele deseja a eclosão de todas as possibilidades; ele quer que a liberdade humana seja experimentada, que a experiência seja ampliada e aprofundada.

 

A Igreja cristã é eterna, mas ela deve levar em conta a evolução que se efetua no mundo, as modificações que acontecem na alma humana, e o advento de uma nova consciência. Se é possível um renascimento cristão, ele não acontecerá por meio da preservação das almas contra as tentações, mas, antes, por um retorno ao Cristianismo de novas almas que tenham atravessado as tentações e as provas. O renascimento cristão conduzirá o filho pródigo ao Pai. Nós não nos encontramos em presença do perigo de uma deserção do Cristianismo – faz tempo que o mundo se afastou da fé cristã e se deixou seduzir por todo tipo de tentações – mas em presença de um desejo de superar essas coisas e de retornar ao Cristianismo. A proteção contra as provas constitui, nesse momento, o maior dos anacronismos. O mundo já não é cristão, e o Cristianismo, exteriormente, já não predomina. É preciso ver as coisas tais como elas são: é preciso reconhecer o fato consumado. Esse é nosso primeiro dever. Nosso século não é, em absoluto, um século de “preservação”. O medo das ideias sedutoras se mostra pueril, numa época em que essas ideias se tornaram predominantes. Daqui por diante, a dominação, e, por conseguinte, a “preservação”, caberão, não mais ao Cristianismo, mas ao ateísmo que lhe é hostil, ao comunismo, e à civilização mecânica.

 

A consciência predominante da Igreja parece não ter ainda compreendido o que aconteceu no mundo, ela parece estar com um atraso de séculos. A apologética cristã, com seus métodos, parece de tal modo em desuso, que ela não pode ser nada além de algo nocivo, que entrava o retorno ao Cristianismo. O renascimento cristão não poderá se espalhar senão através de um sentimento de juventude e de criação. É difícil assustar a alma atual, com o quer que seja; ela já passou pelas tentações extremas do homodeísmo, pela religião do humanismo, pelo marxismo, por Nietzsche, pelo socialismo, pela anarquia, pelo esteticismo e o ocultismo[1]. Para essa alma, voltar a Deus, retornar ao Cristianismo, não corresponde a uma conservação, mas a uma revolução espiritual. É por meio da liberdade profunda e insondável, que a alma se aproxima de Deus e de Cristo. Esse movimento da alma contemporânea foi genialmente compreendido por Dostoievsky. Toda a literatura russa nos ilustra essa busca de Deus pela alma livre, que foi destroçada pelas tentações e que se esforça por fazê-las conhecidas pelo que elas são. Não se pode deter o desenvolvimento espiritual, é preciso que ele se realize, custe o que custar.

 

A alma humana se modificou depois da experiência trágica do humanismo; ela conheceu novas aspirações e novos tormentos. O Cristianismo, sob sua antiga forma, já não corresponde à estrutura da alma contemporânea; mas essa alma procura nele a verdade eterna. As relações entre Deus e o homem já não são determinadas pela força exterior, por um movimento horizontal, mas pela força interior, por um movimento vertical. A atitude em relação ao mal se modificou; ela se tornou mais espiritual e menos jurídica. Já não se crê que o mal possa ser freado ou vencido por meio de uma imposição exterior; a concepção atual é de que ele só pode sê-lo peça força espiritual positiva, que deve obstruir seu caminho a partir do interior. E nossa vontade deve tender a que essa força espiritual se desenvolva no mais alto grau; pois, se ela não existir, a experiência do mal e de suas consequências será inelutável e terá um significado providencial. É nisso que reside o sentido de todas as revoluções. Não é possível opor a essas um conservadorismo exterior e arbitrário, pois essa atitude em relação à vida está condenada ao fracasso. Não se pode opor à revolução outra coisa do que uma força espiritual positiva e criativa, que reforme e transfigure a vida. O mesmo acontece com o homem: se sua vida não é espiritual e criativa, ela desembocará fatalmente na vitória das tentações e da revolução.

 

É impossível proteger o homem contra o “mundo” e suas tentações, por meios coercitivos e exteriores, pois ele está mergulhado no “mundo” e nas suas seduções, e ele deve superá-los interiormente em liberdade. Doravante não será possível manter seja lá quem for sob uma “redoma”, porque todas as redomas foram destruídas, e todas as barreiras foram arrancadas. Cada um dentre nós partilha do destino do mundo e da humanidade, e devemos todos assumir nossa responsabilidade, e trabalhar aqui em baixo pela sua regeneração. É a graça de Deus que, agindo desde dentro na liberdade do homem, a transfigura interiormente.

 

 

V

 

Ao problema do desenvolvimento espiritual se liga o problema da escatologia, o do destino último da alma humana e do mundo. A nova alma cristã já não pode se conciliar moralmente com a antiga escatologia. É difícil admitir uma metafísica que pendure o destino eterno da alma na vida temporal, que escoa desde o nascimento até a morte. Para semelhante concepção, nossa breve vida terrestre pareceria uma peça, e a dignidade da eternidade estaria determinada por uma experiência cuja duração é insignificante. Em nosso Cristianismo atual, o medo dos tormentos já não pode determinar o conjunto da vida na mesma medida como que agia na consciência religiosa da Idade Média. Esse é um dos resultados do processo espiritual vivido. Para nossa consciência, essa questão é, antes de tudo, moral e espiritual, e não dogmática; ela não consiste em elaborar, como fizeram Orígenes e Gregório de Nissa, uma teoria da apocatástase. Da esfera teológico-metafísica, que resolvia os mistérios últimos do destino humano com o apoio de categorias racionais, tudo se transporta hoje para a esfera de nossa orientação espiritual, de nossa vontade moral. Já não devemos aspirar apenas à nossa salvação pessoal, mas à salvação e à transfiguração universais. A questão de saber se todos os homens se beneficiarão com a salvação, e de como se efetuará a vinda do Reino de Deus, constitui o mistério derradeiro, racionalmente insolúvel; mas devemos, como todas as nossas forças, voltar nosso espirito para que todos os homens participem da salvação. É preciso que nos salvemos todos juntos, com todo o universo, ecumenicamente, e não isoladamente.

 

Essa ideia corresponde ao espírito da ortodoxia, sobretudo ao da ortodoxia russa. Feodoroff, em sua doutrina sobre a ressurreição e sobre o caráter condicional das profecias apocalípticas, se expressou de maneira genial sobre a orientação de nossa vontade para a salvação universal. Existe aqui um grande progresso moral, uma vitória sobre o egoísmo religioso transcendente. O desejo de salvação universal é uma manifestação do amor. Nunca se elaborou uma ontologia na qual a salvação universal fosse necessária. Reconhecemos que as maiores dificuldades provêm aqui do problema da liberdade. Deus não pode salvar o homem contra sua vontade, nem forçá-lo a entrar no paraíso. Deus não deseja violar a liberdade humana. O homem é livre para escolher os tormentos longe de Deus, ao invés da beatitude em Deus; de certa forma, ele tem o direito ao inferno. Ora, o inferno é a impossibilidade de amar a Deus, em razão de uma determinada orientação da liberdade humana, em consequência de um afastamento de Deus e de uma separação em relação a Ele, de um isolamento em si.

 

A noção das penas eternas nasce da experiência em virtude da qual todo sofrimento experimentado, já durante a vida, parece se eternizar para nós. Tormentos que não fossem eternos não seriam as penas do inferno. O inferno consiste precisamente nesse infinito, nessa ignorância do fim, nessa eternidade de um sofrimento contido num único instante – e não na sua perpetuação. Uma ontologia transcendente do paraíso e do inferno não passa de uma objetivação da experiência espiritual nas categorias do mundo natural: ela é uma concepção naturalista. A doutrina das sanções póstumas não passa do produto de uma época bárbara e cruel, que via uma justiça sobre a terra baseada na afirmação dos suplícios, das torturas e dos castigos. A ideia do paraíso e do inferno constitui uma concepção que relaciona a vida espiritual com as esferas naturalistas. O inferno de Dante é ainda impregnado de elementos pré-cristãos e pagãos. Mas a escatologia deve ser liberta de todo naturalismo e deve ser expressa em termos de vida espiritual. Ora, nós encaramos a vida espiritual com um dinamismo criador, o que traz consigo uma concepção diferente da realização do Reino de Deus, da Verdade de Cristo. O Reino de Deus, assim como o inferno, não é uma existência no sentido naturalista. O Reino de Deus é a vida no espírito, e o inferno não é outra coisa do que uma experiência e um caminho espiritual; ele é o impasse, o obstáculo inextricável que parece eterno e infinito; ele representa a tragédia da liberdade humana. Se por um lado a solução do problema escatológico, fornecida pela teologia tradicional, é exotérica e racionalista, por outro a teoria do desenvolvimento e da evolução infinita o é em mesmo teor e grau. Ela torna nossa vida rarefeita, e nos impede de intensifica-la espiritualmente.

 

Nada é mais torturante do que o problema escatológico na vida e no pensamento religiosos. Três pesadelos assaltam o homem: o pesadelo religioso, ou seja, os tormentos eternos do inferno; o pesadelo ocultista e teosofista – a evolução e a reencarnação em infinitos mundos; e o pesadelo místico – a desaparição da personalidade humana em Deus. É difícil estabelecer qual desse três é o menor. Às vezes parece que o homem está pronto para consentir no inferno, a fim de evitar, a esse preço, as evoluções infinitas ou a dissolução definitiva em Deus.

 

Na ideia religiosa do inferno existe uma profunda afirmação do ser pessoal. Tocamos aqui na antinomia, na aporia fundamental, na qual desemboca o problema escatológico. Se afirmamos sistematicamente a personalidade e a liberdade, vemos aí a possibilidade do inferno. É fácil superar a ideia do inferno, mas assim agindo retiramos de nós a personalidade e a liberdade. Por outro lado, nossa personalidade e nossa liberdade não podem se reconciliar com os suplícios eternos; nossa consciência moral protesta contra essas penas. Eu ainda posso admitir a possibilidades desses tormentos para mim, e pode acontecer de que eu venha a prová-los por antecipação. Mas me é difícil concebê-los para os outros. É ainda possível admitir esses suplícios do ponto de vista do homem, mas é impossível admiti-los do ponto de vista de Deus. Já Orígenes acreditava que Cristo não aceitaria a danação, ainda que de um único ser humanos, e que Seus sofrimentos na cruz durariam até a salvação universal.

 

Outra dificuldade reside no seguinte problema: a possibilidade de um desenvolvimento infinito, a manifestação de sua natureza eterna e criativa deve ser concedida à personalidade; mas a infinitude do desenvolvimento, a ausência de um fim e de uma saída é concebida por ela como um pesadelo, como uma impossibilidade de atingir o Reino de Deus. Essa dificuldade nos ensina que o problema escatológico é insolúvel, quando o concebemos sob a perspectiva de um racionalismo naturalista. Ele só pode ser resolvido no Reino de Deus.

 

O problema da origem, do destino e do fim da alma ainda não encontrou no Cristianismo uma solução dogmática definitiva. Não apenas o destino último da alma, como também sua origem e suas fontes, são misteriosos. A opinião teológica tradicional segundo a qual a alma humana seria criada por Deus no momento da concepção física é de tal forma lamentável, que sequer vale a pena nos determos nela seriamente. Ao contrário, existe uma verdade eterna na doutrina órfica da alma, tal como enunciada por Platão. É indispensável admitir a preexistência da alma humana no mundo espiritual; ela não é filha do tempo, ela é filha da eternidade.

 

Mas a doutrina da reencarnação sobre a terra é incompatível com a ideia cristã. Ela fraciona a personalidade e introduz uma concepção naturalista na vida espiritual. Aqui chegamos aos limites da inserção do princípio do desenvolvimento no Cristianismo. Quando consideramos que esse princípio é capaz de resolver o mistério da origem e do destino final da alma humana, ele se transforma num princípio naturalista e se torna necessariamente hostil ao Cristianismo. Porém, a negação do desenvolvimento espiritual equivale à negação da necessidade que o homem tem de se aperfeiçoar, de alcançar uma perfeição semelhante à do Pai Celeste; trata-se de uma negação da busca e da realização do Reino de Deus. O limite do princípio do desenvolvimento é um mistério que protege a vida divina. O problema escatológico desemboca na distinção que é preciso estabelecer entre a infinitude e a eternidade. A infinitude das reencarnações e dos suplícios do inferno permanece no mundo natural; quanto à eternidade, ela pertence ao mundo espiritual e ao ser divino. é impossível admitir que exista paralelamente à eternidade divina, uma eternidade maligna, diabólica e infernal.



[1] N.T.: podemos acrescentar um sem-número de tendências contemporâneas, nascidas no bojo do capitalismo e do neoliberalismo, tão ou mais nocivas do que tudo o que a humanidade já assistiu antes.

Nikolai Berdiaev - Espírito e Liberdade - Capítulo VIII: O Teosofismo e a Gnose

 

 I

 

 

Frequentemente as palavras provocam falsas associações de ideias, que não correspondem ao seu sentido ontológico. É isso que aconteceu com o termo “teosofia”, que pode ter diferentes significados. Os movimentos “teosofistas” contemporâneos o deformaram e nos fizeram esquecer a existência de uma teosofia verdadeiramente cristã, de uma autêntica sabedoria divina. A tradição teosófica se irradia através de toda a história do Cristianismo. O primeiro teósofo cristão, no sentido profundo do termo, representante da gnose cristã, para distingui-lo dos pseudo-gnósticos, foi o apóstolo Paulo. Também Clemente de Alexandria e Orígenes foram teósofos e gnósticos cristãos. As obras do Areopagita e a mística medieval, os escritos do grande Boehme, malgrado alguns desvios, comportam uma autêntica teosofia cristã, em tudo diferente daquela reivindicada por Steiner ou Annie Besant. O mesmo podemos dizer de Baader e Solovieff, numa época mais próxima da nossa. A Cabala é teosófica e exerceu uma considerável influência sobre a mística cristã. Heráclito e Platão foram grandes teósofos do mundo antigo, que em seu declínio ainda chegou a conhecer Plotino. Eram pessoas ébrias, se podemos nos exprimir assim, de sabedoria divina. A teologia mística, não escolástica, foi sempre uma teosofia, assim como toda contemplação na qual se dê a síntese da filosofia com a religião.

 

Mas é evidente que o teosofismo[1] contemporâneo é totalmente distinto da antiga teosofia. O espírito de Blavatsky e de Annie Besant é por demais diferente daquele de Heráclito e Plotino, de Orígenes e do pseudo-Dionísio o Areopagita, de Meister Eckart e de Jacob Boehme, de Baader e de Solovieff. Trata-se de outra formação; eles não pertencem à mesma raça. O selo da inspiração criadora e divina não existe nos escritos dos teosofistas contemporâneos. Aqui, nenhum talento se manifesta; eles são entediantes, seu estilo se parece com o dos manuais de mineralogia e de geografia, quase impossíveis de se ler. Os alunos do moderno teosofismo aprendem de cor os termos dessa geografia, e são constantemente obrigados a compulsar os de Baedecker, pois se arriscam a confundir as montanhas e os rios do mundo espiritual. É fácil se perder na sucessão de encarnações terrestres, confundir Júpiter, Vênus e Mercúrio, pois é desconfortável traduzir esses avatares numa linguagem de experiência espiritual viva. A maior parte dos teosofistas e dos antroposofistas não possuem nenhuma clarividência pessoal. Eles não são capazes de perceber, na memória do mundo, a evolução cósmica, e se socorrem do libro de Steiner, Crônica akashika, ou de qualquer outro, que aprendem e decoram. Assim se cria uma orientação de vida espiritual, na qual até o ponto de partida é falso.

 

O teosofismo abusa de nomes, aos quais não pode pretender. É tão difícil encontrar a Deus no teosofismo de Annie Besant, quanto encontrar o homem na antroposofia de Rudolf Steiner. Abram algumas obras teosofistas: encontrarão aí tratados sobre a formação e a evolução do cosmo, a estrutura complexa do homem como resultado dessa evolução, a reencarnação; mas o nome de Deus não é mencionado. O teosofismo poderia se intitular, com mais justiça, como cosmosofia, ou seja, o ensinamento relativo à composição e ao desenvolvimento do cosmo, pois ela não reconhece nada além disso, e nisso ela é perfeitamente monista. Para ela Deus não existe, só existe o divino, que constitui precisamente o cosmo com seus múltiplos planos. Nele o homem se encontra dissolvido, inteiramente submetido aos processos cósmicos.

 

O teosofismo contemporâneo traz a marca indelével da época intelectual na qual nasceu. Essa época foi a do triunfo do naturalismo, do evolucionismo, do racionalismo e do materialismo. O movimento teosofista contemporâneo, inaugurado por Blavatsky, pretendia afirmar desde o início um naturalismo e um evolucionismo específicos. Ele não se levantou contra os hábitos intelectuais do homem do século XIX, ele não exigiu dele um ato de fé, nenhuma revolução espiritual. O mundo espiritual devia ser conquistado por uma via pacífica, por uma evolução. O intelectualismo do homem contemporâneo, toda sua mentalidade, eram tanto acolhidas, como justificadas. O conhecimento teosófico deve ser assimilado ao naturalismo, ao evolucionismo, quase que ao materialismo da ciência contemporânea.

 

Steiner era um discípulo de Haeckel, a quem venerava como seu mestre. A consciência teosofista adotou o monismo mais vulgar, que as obras do pensamento teosófico mais refinado já haviam ultrapassado. É chocante notar que a teosofismo se uniu aos movimentos filosóficos mais simplistas, evitando aqueles mais complexos e mais profundos; ela rapidamente adotou um caráter popular. Ela se dirigiu às almas contaminadas pelo evolucionismo, o positivismo, o naturalismo, vale dizer, pelas correntes claramente inferiores da consciência filosófica contemporânea, da cultura espiritual de nossa época. Os teosofistas tentam justificar, por isso mesmo, a vulgarização de sua literatura. Chegamos mesmo a ouvir de antroposofistas que Steiner, o mais considerável dos teosofistas, escreveu seus livros para os insensatos, mas que reservou aos iniciados suas palavras mais profundas.

 

Entretanto, malgrado o nível baixíssimo da literatura teosofista popular, malgrado o charlatanismo que aí se encontra frequentemente amalgamado, não devemos tratar com desdém o teosofismo; é preciso reconhecer nele um sintoma importante. Sua popularidade crescente está estreitamente ligada às crises da ciência e do Cristianismo. Esse sintoma denota no homem moderno uma profunda inquietação e um retorno ao mundo espiritual. Tampouco a ciência e a Igreja oficial dão suficiente importância ao teosofismo e ao ocultismo ligado a ele. A popularidade do teosofismo se explica facilmente em nossa época sincretista. O teosofismo escolheu na evolução o caminho mais fácil para passar, do ateísmo contemporâneo, do materialismo e do naturalismo, ao reconhecimento e ao conhecimento dos mundos espirituais. O teosofismo transporta o homem para além desse abismo que separa os dois mundos. Ele prega o aperfeiçoamento, o desenvolvimento de novos órgãos receptivos, mas seus preceitos diferem radicalmente daqueles dos caminhos religiosos ou místicos. O teosofismo não exige a renúncia à sabedoria desse século. Ele se conforma com os instintos do homem médio, que pretende, apenas aflore o mundo espiritual, estender seus domínios e multiplicar suas riquezas. Jamais ele poderá satisfazer a sede espiritual dos povos, pois esses não podem viver senão de uma fé religiosa. Quanto à aristocracia espiritual autêntica, ela está igualmente ausente do teosofismo contemporâneo.

 

O teosofismo contemporâneo está fundado sobre a contradição inerente ao tratamento exotérico de um pretenso esoterismo. Sua preocupação essencial é a revelação do esotérico. Ele não desperta nenhum sentimento de excitação diante dos mistérios derradeiros. Seu esoterismo oferece bem menos um mistério do que um segredo. O esoterismo verdadeiro não dissimula nada, nem esconde enigma algum, mas afirma o mistério, que se revela a uma profundidade maior ou menor, segundo o dom ou o nível espiritual alcançado. A distinção entre o esotérico e o exotérico existe efetivamente, ela e eterna, e podemos encontrá-la mencionada mesmo no apóstolo Paulo. Existe ao mesmo tempo uma compreensão mais profunda e uma compreensão mais exterior do Cristianismo. O esotérico, no Cristianismo, quase coincide com o místico. Os místicos cristãos foram os verdadeiros esotéricos. Mas suas contemplações, inacessíveis aos simples cristãos, nada têm de enigmáticas. Para poder compreendê-las completamente, basta simplesmente ter feito uma experiência semelhante à sua. Para perceber o esoterismo do Cristianismo, é preciso ter uma consciência orientada para o outro mundo. Mas na teosofismo e no ocultismo, que têm pretensões religiosas, o esoterismo se reveste de um caráter equívoco.

 

A diferença entre o exotérico e o esotérico é relativa. O esoterismo pretende colocar a verdade secreta e o mistério ao abrigo da profanação e da incompreensão das massas, incapazes de os assimilar. Mas o que pode haver de esotérico na teosofismo contemporâneo? Será a sabedoria divina ou o monismo naturalista? A qual das confissões predominantes se opõe esse esoterismo? À Igreja cristã, ou ao positivismo e ao materialismo contemporâneos? Talvez o mistério resida em que Deus não existe e que somente exista o cosmo infinito? Os livros teosofistas nos fornecem sérias razões para compreender assim seu esoterismo. Nisso, Blavatsky e Steiner se distinguem radicalmente de Jacob Boehme e de Saint Martin. Na época do politeísmo pagão, o monoteísmo era esotérico; essa verdade era preservada das massas incapazes de se elevar até ela. Na época do domínio cristão da Igreja, o monismo naturalista era esotérico. Mas o que resta a saber, é o que pode subsistir de esotérico em nossa época confusa e perturbada, desprovida de uma fé única, integral e predominante.

 

O teosofismo parece dissimular alguma coisa à consciência da Igreja e à consciência materialista. Mas quando penetramos no fundo de seu esoterismo, é sempre uma forma espiritualista, de naturalismo, de evolucionismo ou de monismo, que aparece. Steiner é um monista, assim como Haeckel, e ele naturaliza os mistérios divinos. Mas seu monismo está ligado a um dualismo maniqueísta particular.

 

O que existe de verdadeiro no ocultismo, é que a diferença que existe entre o esotérico e o exotérico é função dos graus da consciência; o que é justo, também, é sua concepção dinâmica da consciência, pois o estado estático, com seus limites intangíveis, não é senão temporário e passageiro. Estamos cercados de forças invisíveis e desconhecidas, e a receptividade de nossa consciência só está fechada para elas momentaneamente. A esfera do oculto e do mágico existe, e o mundo se encontra penetrado por sua ação. É preciso reconhecê-lo, independentemente de qualquer juízo de valor sobre essas forças. A própria ciência positiva reconhece cada vez mais a existência da “meta-física”. Mas o ocultismo científico tem pouco em comum com as pretensões religiosas do ocultismo e do teosofismo.

 

 

II

Em suas concepções a respeito do homem, o Cristianismo e o teosofismo se diferenciam profunda e radicalmente. Não existe similaridade alguma entre a antropologia cristã e a antropologia teosofista popular. É preciso seguir, até suas últimas consequências, o conflito entre essas duas concepções do destino humano. O Cristianismo é antropocêntrico e antroposófico, no sentido mais autêntico da palavra. Segundo ele, o homem constitui o grau supremo do ser, sendo superior inclusive à hierarquia angélica. O Filho de Deus se encarnou num homem, não num anjo. O homem existe desde toda eternidade e ele herda a eternidade; ele foi criado à imagem e semelhança de Deus, ele não surgiu nem se reabsorve na evolução cósmica; ele não é produto dessa evolução, ele não é filho da natureza, nem dos processos que se realizam nela. O homem é “filho de Deus”. A espécie humana não pode ser superada por uma nova raça, como a de um super-homem, de um anjo ou de um demônio. Nenhuma evolução pode transformar uma hierarquia em outra. O desígnio divino relativo ao homem não pode ser modificado, ele só pode ser realizado ou destruído. O homem herda a vida divina eterna; por intermédio de Cristo, o Deus-homem, ele está enraizado nas profundezas mesmas da vida divina. O homem pode se colocar em contato imediato com Deus, e nenhuma evolução cósmica pode separá-los. Se existe alguma coisa esotérica no Cristianismo, certamente não é a noção de que o homem é um produto da evolução cósmica, que ele pode ser ultrapassado por ela, que um novo éon universal virá a acontecer sob o signo de uma nova raça super-humana, mas sim a ideia de que o homem é mais do que uma simples criatura, que a segunda Hipóstase da Trindade é o Homem nascido na eternidade.

 

Na Cabala havia uma teosofia, uma antroposofia e um esoterismo autênticos. Esse esoterismo era estranho ao teosofismo moderno; quaisquer que fossem suas formas e nuances, a Cabala possuía seu próprio esoterismo, que favorecia o orgulho humano no tempo e diminuía o homem perante a eternidade. A concepção cristã do homem é hierárquica e não evolucionista. O homem não é uma parte fracionada, transitória, do cosmo, um grau em sua evolução, mas lhe é superior, independente de sua infinitude e, em princípio, ele o abarca por inteiro.

 

A consciência teosofista, embora admitindo as subordinações cósmicas, é inteiramente evolucionista; para ela, todo grau hierárquico pode se transformar em outro grau. As correntes predominantes do teosofismo negam radicalmente a ideia cristã do homem. Segundo elas, o homem nem sempre existiu e tampouco herdará ele a eternidade. O cosmo é eterno; mas o homem não é mais do que temporário e passageiro, ele não corresponde senão a um éon da evolução cósmica. Ele não existia nos períodos precedentes e não existirá mais nos ulteriores. O homem é oprimido pelos mundos inferiores e superiores, ele não está enraizado senão no tempo, não na eternidade, enraizado no cosmo e não em Deus.

 

A consciência teosofista é monista, monofisita; ela não reconhece senão uma natureza: o cosmo divino e impessoal. O homem é o produto e o instrumento da evolução, ele se agrega e desagrega em seu processo. Ele é uma entidade composta por três corpos (o físico, o etérico e o astral) e por um “eu” espiritual impessoal. Ele não passa de uma síntese temporária das forças cósmicas. Sua estrutura evocaria aquela desses ovos de Páscoa que se embutem uns dentro dos outros; ele não possui um núcleo espiritual sólido, e mesmo que exista algum, esse núcleo não é humano, mas algo impessoal e cósmico. A antroposofia, cujo nome provém da palavra “homem”, pressupõe que um único éon universal se encontra sob o signo do homem, e que esse será ultrapassado. Esse período cósmico consiste, de certo modo, no Antropo desagregado, cujos fragmentos compõem o mundo desse éon. Mas esse exagero aparente do valor do homem não implica seu significado absoluto e eterno. Tudo não passa de um jogo de forças cósmicas. As épocas seguintes não estarão sob seu signo; deverá se formar um novo gênero que não será humano. Existe uma hierarquia de espíritos que é superior ao homem, e que o dirige. Entre Deus e o homem se encontra uma gradação complexa de anjos e demônios, que torna impossível sua comunicação imediata. Mas, de resto, Deus não existe; o que existe não é mais do que uma hierarquia cósmica divinizada. O teosofismo restabelece uma vez mais a antiga demonolatria, e o homem permanece sob o jugo dos gênios.

 

A libertação cristã do espirito do homem é eliminada e assistimos ao retorno do antigo gnosticismo semi-cristão, semi-pagão. O homem se ensombrece e desaparece, sua imagem se dilui nas hierarquias e nas evoluções cósmicas, na sucessão infinita dos éons. O teosofismo e a antroposofia, quaisquer que sejam suas variedades, negam a personalidade, lutam contra esse princípio em nome do comunismo cósmico. Elas complicam o problema, pelo fato de que não levam em conta a distinção existente entre a personalidade e a individualidade. Para a consciência cristã, a personalidade é uma categoria espiritual, enquanto que a individualidade é uma categoria biológica. Para os teosofistas, assim como para a escola filosófica de E. Hartmann, a personalidade não é, na realidade, mais do que o resultado do aprisionamento do espírito na matéria, no corpo físico, e, por causa disso, ela deve ser superada por uma evolução ulterior. A doutrina teosofista da reencarnação, emprestada da Índia, destrói o ser integral. A síntese temporal das forças cósmicas, dos fragmentos planetários das evoluções, se desagrega em partes constitutivas e numa nova síntese, numa nova coesão de forma. Mas a unidade e a integridade da personalidade, sua unicidade, desaparece.

 

Os teosofistas têm razão quando ensinam a estrutura complexa do homem, a presença, nele, de superposições cósmicas. Eles também têm razão quando recusam ver no homem natural o substrato intangível e imutável da personalidade. A personalidade é a ideia que Deus tem do homem, e seu destino eterno está indissoluvelmente ligado a essa ideia divina única. Sua imagem permanece em Deus e não no mundo aqui de baixo, na substancialidade natural. Mas para os teosofistas existe entre o ser divino e o ser humano, uma evolução infinita de mundos espirituais. Na realidade, essa evolução infinita constitui precisamente a existência divina.

 

A experiência mística da comunhão com Deus é considerada por eles como sendo irrealizável. O teosofismo é obrigado a negar que a imagem humana integral e única repousa em Deus, que essa imagem é a ideia divina, por considerá-la sempre como resultado de processos complexos que se desenrolam no mundo. A consciência teosofista e antroposofista nega o homem enquanto desígnio divino, enquanto nome eterno. Nisso ela se aproxima do comunismo. O teosofismo popular constitui um naturalismo transferido aos mundos espirituais, um monismo naturalista do tipo de Haeckel. É por isso que Steiner se permite afirmar que Haeckel corrigiu e aperfeiçoou Boehme. Mas, se nesse último encontramos uma doutrina cristã sobre o homem, sobre o primeiro Adão, em Steiner, discípulo de Haeckel, não subsiste nenhum traço dela. Schuré pretende que o homem procede de um ser metade peixe, metade serpente. Vemos que esse tipo de antropogênese já não possui nenhuma relação com o Cristianismo. O evolucionismo naturalista dos teosofistas é o oposto da doutrina platônica relativa às ideias, aos gêneros, à hierarquia do ser. O teosofismo é anti-hierárquico, como de resto o é todo evolucionismo, e ele não admite que uma espécie possa ter existido eternamente, e que existirá por toda eternidade. Ele também nega isso para o homem. existe nele um darwinismo espiritual. Para a consciência cristã hierárquica, o homem não provém do animal e não pode evoluir até um super-homem. Ele pode decair, assim como pode se desenvolver, mas ele permanecerá sendo homem, mesmo no Reino de Deus.

 

Já mostramos de que maneira nossa antropologia varia segundo o caráter de nossa cristologia. Nossa atitude para com o homem é determinada por nossa atitude para com Cristo. O homem não atinge uma consciência absoluta de si mesmo senão por Cristo, o Deus-homem. A cristologia teosofista é elaborada de tal maneira que ela termina necessariamente pela negação do homem. Ou bem o teosofismo se encontra no terreno pré-cristão da consciência hindu, que não vê Cristo senão como um iniciado entre outros, ou bem ele criou uma cristologia naturalista que vê em Cristo um impulso cósmico. Mas todas as formas de teosofismo separam, na mesma medida, Jesus de Cristo, e negam o Deus-humanidade. Madame Blavatsky nãopodia suportar o Cristianismo, e considerava o Brahmanismo como uma forma de consciência religiosa superior a ele. Já o teosofismo moderno tende a se adaptar ao Cristianismo. Havia no Brahmanismo uma verdade religiosa pré-cristã, da qual o teosofismo atual nada possui. Steiner considerava seu teosofismo como sendo pré-cristão; ele reconhecia que uma nova época universal começara com a vida de Cristo, e estava quase pronto para qualificar de reacionário o teosofismo oriental. Entretanto, sua cristologia se reveste de um caráter naturalista e evolucionista, que influenciam sua antropologia.

 

O homem é um conjunto, composto de fragmentos de evoluções planetárias; ele e a terra não passam de etapas dessa evolução cósmica. O homem se reencarna, perdendo assim sua imagem, o substrato de sua personalidade. A própria terra está também submetida a essas peregrinações; a entidade única e integral, o núcleo ontológico se perde, em tudo e por toda parte. A personalidade se agrega e se desagrega, reaparecendo em outras personalidades. Toda a humanidade passa por um processo análogo, reencarnando-se num gênero que já não é mais humano. Existe no homem um corpo físico que corresponde aos minerais, um corpo etérico que corresponde às plantas, um corpo astral que corresponde aos animais e um “Eu” espiritual que o aparenta a Deus. Todas essas partes constitutivas se dissociam, e então a personalidade desaparece. O “Eu” espiritual não constitui em si mesmo a personalidade; essa só se forma pela união com os corpos físicos, etérico e astral, como síntese evolutiva, passageira e transitória de elementos aptos a se unir e se dissociar. Jesus e Cristo são distintos, e não se unem senão no momento do batismo, mas mesmo a imagem de Jesus se fraciona, pois, segundo Steiner, existem duas crianças Jesus. Cristo, enquanto Logos, enquanto agente cósmico, é uma reencarnação de Zoroastro em Jesus.

 

A cristologia de Steiner consiste numa reconstituição original e modernizada das antigas heresias, de um lado o maniqueísmo, de outro o nestorianismo, para as quais as duas naturezas de Cristo permaneciam distintas. Steiner nega o mistério da humanidade divina em Cristo, Sua Imagem integral. Cristo não constitui uma Personalidade, mas um impulso, um agente cósmico. Para outros teosofistas, Jesus Cristo faria parte da mesma linhagem de Buda, Zoroastro e outros grandes iniciados. O teosofismo e a antroposofia veem Cristo, não em Deus, não na Trindade Divina, mas na natureza, no processo cósmico. A infinidade cósmica engole a Imagem de Cristo, e nisso ela engole também a imagem do homem que partilhe de Seu destino.

 

Tal é a consciência teosofista, que se arroga sem ter o direito, os nomes de teosofia e antroposofia. Essa consciência não quer conhecer nem Deus, nem o homem, nem a personalidade, mas um cósmico impessoal idêntico ao divino impessoal, não existem limites hierárquicos, nem fronteiras, nem distâncias, e, por conseguinte, não existe integridade, seja lá de que espécie for; tudo é confundido, tudo está em tudo, e tudo passa por tudo. Aqui nós encontramos a antiga consciência hindu que oprime a consciência teosofista. A verdade da mística, a da unidade, da profundidade do mundo espiritual, aqui se encontra naturalizada e vulgarizada.

 

O teosofismo se vê na obrigação de negar o valor eterno da alma individual; ele não é capaz de reconhecer o significado indefectível do nome humano. Ele não acolhe em si a revelação cristã da personalidade, mas permanece num período pré-cristão. E mesmo Steiner, que gosta de falar do impulso de Cristo, da época universal colocada sob Seu signo, ignora essa revelação. O Cristianismo é personalista; para ele, todo ser constitui uma personalidade única e concreta. O teosofismo e a antroposofia são antipersonalistas. A doutrina antroposófica do “eu” espiritual não é uma doutrina da personalidade. Esse “ego” é totalmente impessoal, ele se agrega a corpos que fazem parte de outros planos e deles se separa a seguir. A personalidade humana não passa de uma coesão passageira. Um coletivismo original é próprio ao teosofismo; ele afirma, de certa forma, um comunismo anti-hierárquico do ser. A imagem humana é obscurecida e fracionada por um medíocre infinito de mundos. É por isso que a consciência teosofista ignora o mistério do amor cristão, como também o ignoram a religião e a filosofia hindus.

 

 O mistério do amor é o mistério da personalidade, a penetração na identidade única, que não se renova, de um outro homem, a visão de sua imagem em Deus. Somente o sujeito que ama pode contemplar a face do amado. A imagem humana é sempre deformada e mascarada por aquele que não ama. Somente por meio do amor podemos ver a beleza da face humana. O amor não é a confirmação da identidade, a descoberta de um só e mesmo princípio em mim e no outro, tat twan asi, como afirma a consciência religiosa da Índia. Se “eu” e “você” não somos senão um, então meu amor por você não passa de um amor por mim mesmo. Não existe mais um e outro. O sujeito amoroso e seu amor implicam sempre o outro, pressupõe a saída de si em direção a esse outro, o mistério da união de dois seres que desfrutam realidades distintas e independentes. A imagem eterna e absoluta do amor nos é dada na Trindade Divina, e ela não pode ser adquirida num monoteísmo ou num panteísmo abstratos. A bem dizer, o teosofismo nega o “eu” e o “você”. Ora, o amor é sempre uma relação de personalidade a personalidade. Se não existe a personalidade, não pode haver amor. A imortalidade, a ressurreição, a eternidade da personalidade são uma reivindicação do amor, a afirmação do ser amado em Deus, vale dizer, na eternidade.

 

É evidente que, para a consciência teosofista, que professa a agregação e a dissolução cósmica da personalidade, seu caráter composto e efêmero, a personalidade não pode desfrutar da eternidade. A personalidade, o amor e a imortalidade estão unidos na experiência espiritual, e ali se acham indissoluvelmente ligados. O amor possui um sentido eterno, quando se orienta para o ser eterno, e quando afirma essa eternidade com toda a sua energia. O mistério da unicidade, daquilo que não pode se repetir, é estranho e inconcebível para o teosofismo, assim como o é para a consciência religiosa da Índia. O teosofismo considera que tudo se reproduz, que tudo é múltiplo. A personalidade única de Jesus Cristo não existe. Cristo se reencarnou diversas vezes. O homem e a terra estão submetidos a essas reiteradas peregrinações. Não existe acontecimento único na história que, por isso, que confira um sentido único. O sentido e a individualidade da história estão, no entanto, ligados a essa unicidade de seus eventos e, antes de tudo, à vinda única de Cristo. Toda a vida espiritual e concreta repousa sobre essa mesma unicidade. A consciência hindu pré-cristã, assim como o teosofismo, não veem a personalidade e não compreendem a história, precisamente porque negam esse fato essencial.

 

O teosofismo recusa-se a ver o fim, a eternidade divina, que dá sentido a tudo o que é único e pessoal. A negação do fim divino, da saída final, está intimamente ligada à negação do mistério absoluto. O mistério nos mergulha no absoluto divino. a negação desse mistério nos submerge na infinitude do processo universal. Tudo aqui se acha inelutavelmente ligado: a personalidade, a unicidade, a eternidade e o mistério. A afirmação do mistério não é o agnosticismo. No conhecimento, é possível um movimento infinito em profundidade. Mas toda gnose desemboca no mistério, o que significa que toda gnose se dirige a Deus. Ora, Deus é um mistério, no qual todas as coisas encontram seu fim.

 

A gnose teosofista jamais desemboca em Deus; ela está completamente imersa no mundo, na evolução cósmica. Ou bem o mundo encontra seu fim em Deus, ou bem o mundo é infinito. Se ele encontra seu objetivo final em Deus, então sua solução última está mergulhada no mistério, o qual devemos considerar com religioso recolhimento. Se o mundo é infinito, então não há nem solução, nem mistério final, nem veneração religiosa. O teosofismo, tal como o encontramos expresso na sua literatura popular, afirma a infinitude do mundo, não considera a Deus como sua saída, ignora o mistério e só conhece o segredo. Ora, quando esse segredo se entreabre, não vemos nele mais do que as evoluções de mundos infinitos, nada além da divinização do próprio mundo. Não existe aí nem a personalidade do homem, nem a personalidade de Deus, mas apenas e tão somente uma divindade cósmica impessoal e neutra. A gnose teosofista r3ecusa-se a reconhecer a antinomia da consciência religiosa, ela estabelece uma continuidade evolutiva. O Cristianismo é, antes de tudo, histórico, ele libera o conhecimento de Deus e do homem do jugo esmagador da infinitude cósmica, ele afirma a existência de uma origem única, não sujeita a repetições, sobre a qual se fundamenta a história, e que a diferencia da natureza.

 

O teosofismo não tem uma consciência do mistério da liberdade. Esse não repousa, para ela, na base do mundo. É por isso que ele não compreende o mal: ela o considera exclusivamente do ponto de vista do evolucionismo. Steiner, no início de suas atividades, escreveu A filosofia da liberdade. Mas não existe liberdade alguma nesse livro, ou antes, a que existe não passa de um produto da necessidade. O homem chega à liberdade em consequência da evolução, mas não procede dela. Steiner desconhece a liberdade inicial. Percebemos em suas obras a influência de Haeckel e Max Stirner. De resto, nenhum livro teosofista menciona essa liberdade inicial. O espírito humano está acorrentado à evolução cósmica; ele se liberta dela, mas isso demonstra precisamente que a liberdade não é resultado dessa evolução. Para o teosofismo, homem não foi criado à imagem e à semelhança divinas, e é por isso que a liberdade, como princípio inicial e eterno, não é inerente a ele.

 

O homem é filho do processo universal; por conseguinte, sua força propulsora é a necessidade. É verdade que Steiner afirma que o homem deve ser livre, e que o será. Mas isso não passará de um momento no processo cósmico, pois o homem está condenado a desaparecer. Ele nem sempre existiu, e não existirá para sempre, ele será substituído pelas hierarquias superiores; um novo éon virá em seu lugar. Com essa concepção do ser, na qual o “eu” espiritual impessoal não passa de um dos elementos constituintes, nos perguntamos porque o homem teria necessidade de liberdade.

 

Por negar a liberdade, o teosofismo está obrigado a negar o mal. Ele adotou, no que lhe concerne, o ponto de vista evolucionista, ao qual ele acrescenta às vezes um certo maniqueísmo. Se a liberdade não existe, tampouco o mal existirá. Os teosofistas oscilam entre o monismo evolucionista e naturalista e o dualismo maniqueísta. Mas o monismo e o dualismo são ambos incapazes, não apenas de resolver o problema do mal, como simplesmente colocá-lo. Com efeito, o dualismo também concebe o mal de uma perspectiva naturalista, por não ver nele mais do que uma esfera particular, independente do ser, nada além da natureza inferior e má. A interpretação espiritual do mal está sempre ligada à liberdade. O mal tem sua fonte na liberdade e não na natureza, e é por isso que ele é irracional. Esse é o ponto de vista do Cristianismo. O teosofismo, ao contrário, faz o mal derivar da evolução cósmica e não admite que ele possa ser derrotado nela. O problema do mal, como o do homem e de Deus, se escurece na infinitude cósmica. Definitivamente, não existe nem liberdade, nem mal, nem homem, nem Deus, mas unicamente um processo cósmico, uma alternância infinita de éons, uma agregação e uma dissolução de planos universais. Existe um infinito em potência, mas não um infinito atual, um infinito cósmico, mas não um infinito divino, e nenhuma eternidade.

 

 

III

 

A distinção fundamental entre o Cristianismo e o teosofismo reside em que um é a religião da graça, enquanto que o outro ignora a graça. A concepção teosofista do mundo traz a marca da lei, não da graça. O caminho professado pelo teosofismo, e que é seguido pelos teosofistas, é exclusivamente aquele que vai de baixo para cima. O homem natural faz esforços sobre-humanos para alcançar os mundos espirituais, subindo pelos degraus de uma escada sombria. Mas nenhum raio de luz vem do alto para iluminar esse caminho temível em meio à escuridão. O homem se encaminha para a luz através de trevas espessas, sem receber apoio algum.

 

Segundo o teosofismo, o destino humano é regido ela lei e não pela graça. Esse naturalismo atinge mesmo as profundezas da vida espiritual e divina. A justiça se identifica com essa lei naturalista, com a lei da natureza espiritual. O karma é precisamente uma dessas leis do destino humano, da qual o homem não pode escapar, devendo resgatar, no decurso de suas infinitas reencarnações no devir, as consequências de suas infinitas encarnações do passado. O passado se estende indefinidamente em direção ao futuro, ele é invencível. O karma é, de um lado, a lei natural da evolução espiritual, que indica que o destino humano é regido pela lei e que ele não se beneficia da graça; e, de outro lado, ele é a lei da justiça, a recompensa merecida, a colheita do que foi semeado, o resgate do que foi cometido. Para a consciência teosofista, a lei natural e a lei moral se identificam.

 

Podemos contemplar sob um prisma sinistro e inextricavelmente sombrio a perspectiva dessas transmigrações e dessas evoluções; e, no entanto, a própria doutrina teosofista está baseada sobre a hipótese otimista que admite na evolução natural dos mundos espirituais a manifestação de uma lei equitativa, o triunfo de uma justiça cósmica e divina. O teosofismo não considera a incursão do mal livre e irracional na vida universal; por isso, ele não sente necessidade de ser libertado do mal pela graça. Tudo e adquirido pelo trabalho, nada é concedido gratuitamente. A graça é gratuita, e por isso ela é incompreensível e inadmissível para o teosofismo. A justiça karmica, que subordina o homem à evolução cósmica natural, nega igualmente a superabundância criadora. A natureza do home não é chamada à criação, mas ao desenvolvimento, à evolução, ao resgate do passado no devir.

 

Em tudo isso o Cristianismo se distingue radicalmente do teosofismo, porque ele é a religião da graça superabundante e gratuita. No mistério da redenção, a lei e a justiça karmicas do destino humano são superadas. O Cristianismo é a religião do amor; ele triunfa, ao mesmo, sobre a lei da natureza e sobre a lei da justiça. O homem que comungou do mistério da Redenção, que recebeu a Cristo em si e que participa da geração de Cristo, já não pode estar submetido à lei karmica, já não pode ser obrigado a resgatar o passado, de superá-lo através de infinitas transmigrações, por um longo processo de justiça em conformidade com a lei. O ladrão sobre a cruz, que, num impulso espontâneo, recebeu o socorro de Cristo, já não estava mais subordinado à lei e à justificação karmicas; ele atingiu subitamente o final do caminho espiritual, que, segundo as leis da evolução e da  justiça, ele não poderia alcançar senão depois de percorrer uma série interminável de encarnações. Ele, que viveu uma vida de pecados e crimes, foi colocado com Cristo no paraíso, no seio do Pai Celeste.

 

Do ponto de vista teosofista, o destino do ladrão do Evangelho é inconcebível, ainda que por vezes os teosofistas admitam a possibilidade de uma redução do karma. No destino do ladrão, essa lei foi ab-rogada. A natureza mais profunda do Cristianismo reside nessa supressão do karma, na vitória da graça sobre o destino humano submetido à lei. O Cristianismo subtrai o homem a esse poder do tempo e dos processos transitórios, enquanto que o teosofismo o mantém aí. Não há livro teosofista em que possamos encontrar, não apenas a solução do problema relativo ao tempo e à eternidade, mas mesmo sua colocação. O homem permanece separado de Deus pelo infinito processo cósmico; ele não pode comungar imediatamente da eternidade, da vida divina, mas permanece encadeado à vida cósmica.

 

A Igreja cristã coloca o homem face a face com Deus e lhe abre o caminho de acesso que conduz à comunhão com Ele. Esse caminho se abre, antes de tudo, pela prece. Nessa experiência, o homem se coloca diante de Deus sem o intermediário de hierarquias e de evoluções; ele sai do tempo para entrar na eternidade, ele deixa a vida do mundo para penetrar na vida divina. A experiência da comunhão com Deus, estabelecida pela prece, não é justificada pela consciência teosofista. A prece, para ela, adquire um sentido totalmente diferente, ela não passa de uma das formas de meditação.

 

Ao subordinar o homem à evolução cósmica, ao lhe recusar a luz absoluta adquirida por toda eternidade, o teosofismo torna ininteligível o sentido, o Logos da vida universal e humana. O sentido não procede da evolução, pois essa pressupõe um sentido que plana acima de cada processo temporal e seu precedente. Aluz deve estar no começo, e não no fim do caminho, pois ela deve iluminar a rota seguida pelo homem. O teosofismo conduz o homem pelo caminho de uma evolução cósmica, cujo sentido é inexplicável, que permanece obscuro e cujo término ignoramos. Se a luz só se coloca no final no termo da evolução infinita, ela não ilumina o caminho e não é capaz de explicar seu significado. O homem se vê assim como um instrumento de agentes cósmicos que são ininteligíveis para ele. O Logos, sendo um desses agentes, não domina o processo cósmico e o homem não tem nenhuma possibilidade de comungar com ele. Mas o sentido não é adquirido senão na eternidade, ele é inacessível na infinitude, na qual todo sentido é engolido. Recusa-se ao homem o ponto de apoio na eternidade, ele não está enraizado senão no tempo infinito. A ausência da graça no teosofismo nos torna ininteligível o sentido do mundo e o significado da vida humana. Em nome de que, em nome de quem, deve o home percorrer seu caminho de evolução? A bem dizer, o teosofismo ignora a revelação, e isso determina todas as suas peculiaridades.

 

O Cristianismo é menos otimista, porque ele reconhece o princípio irracional do mal no mundo e porque ele não presume que a lei de evolução espiritual seja necessariamente boa. Mas ele é infinitamente mais alegre e mais luminoso do que o teosofismo, porque ele tem fé na boa nova da libertação do mal e da vinda do Reino de Deus. A noção desse Reino não desempenha nenhum papel na doutrina teosofista. Ela não aborda a escatologia, pois o karma, as evoluções das encarnações infinitas e mesmo a fusão com a divindade impessoal, não oferecem nenhuma solução para o destino final do homem. Para a consciência teosofista, a redenção parece não ter sido realizada, ou ao menos ela não lhe atribui mais importância do que a consciência hindu, embora os teosofistas se encontrem numa épica cristã da vida universal. Pata eles, o mundo permanece enfeitiçado pela magia, pela sua necessidade. Sua concepção do mundo é mágica, e não mística. O teosofismo consiste numa reação, dentro cristão, dos princípios espirituais pré-cristãos, mas, como ele é um sincretismo, ele absorve alguns elementos do Cristianismo, mas deformando inevitavelmente as noções cristãs sobre o homem, a liberdade e a graça. Os teosofistas consideram evidentemente como inexata tal interpretação de suas doutrinas. Eles tentaram provar que o teosofismo ensina uma antiga sabedoria divina, anterior a toda evolução de nosso mundo, a ciência dos grandes iniciados, que dirigiriam toda essa evolução. Eu já conhecia essas objeções, mas elas não me farão admitir que o sentido da evolução universal se revele assim ao homem e santifique seu caminho por toda eternidade. Sua relação diante da sabedoria antiga e dos grandes iniciados, é uma relação autoritária, e dela eles pretendem ser os únicos a possuir o segredo.

 

 

IV

 

As correntes teosofistas e ocultistas, que se tornaram mais ou menos populares, levantam o problema da gnose perante a consciência cristã. É nisso que reside seu significado positivo. O próprio Cristianismo, ou mais exatamente a humanidade cristã, é responsável por sua popularidade. O teosofismo seduz por sua negação dos suplícios eternos do inferno, que a consciência moral do homem contemporâneo se recusa a admitir. Ele seduz também por sua tentativa de resolver o problema da origem, do desenvolvimento e do destino da alma, problema que não tem solução determinada e admissível fora da consciência da Igreja. Ele seduz ainda por sua reconciliação entre a fé e o conhecimento, entre a religião e a ciência.

 

Os que acreditam que o problema da gnose pode ser resolvido pela teologia oficial não aprofundam a questão. Na consciência da Igreja subsiste um forte agnosticismo, consequência de sua luta contra o gnosticismo. A convicção de que a gnose autorizada foi depositada e cristalizada na teologia ortodoxa da Igreja, de que toda outra gnose é proibida e herética, predomina oficialmente no mundo cristão. Porém, por sua natureza e seus métodos, a teologia não é uma gnose. Nela os resultados são conhecidos previamente, e não são obtidos pelo próprio processo de conhecimento, e a teologia não é chamada senão para os sustentar e motivar. Na teologia, a doutrina do cosmo não é, em absoluto, revelada, e a doutrina do homem só o é de maneira unilateral. A cosmologia sempre se revestiu, no Cristianismo, de um caráter de contrabando. A doutrina da Sabedoria (Sophia) foi uma das tentativas que teve por objetivo preencher essa lacuna. É curioso constatar que todas as doutrinas cosmológicas na teologia e na filosofia cristãs tenham sempre despertado certa desconfiança. A consciência teológica oficial concedia uma preferência ao positivismo científico e à doutrina mecanicista da natureza, em detrimento de qualquer gnose cosmológica. De medo de divinizar o mundo, era preferível torná-lo ateu.

 

No Cristianismo moderno foi estabelecida uma concordata, um equilíbrio relativo, uma paz, entre a religião e a ciência. A consciência cristã, predominante em nossa época, acusa em si uma perda do sentido do cosmo e da faculdade de sua contemplação. O mundo medieval, assim como o mundo antigo, ambos entreviam no cosmo o sistema hierárquico da natureza. O homem moderno perdeu essa faculdade de contemplar o cosmo, e a natureza se transformou para ele em um objeto submetido ao conhecimento das ciências matemáticas e físicas, e à reação prática da técnica.

 

A consciência da Igreja perdeu cada vez mais em nossa época seu caráter cósmico. Começou-se a ver na Igreja não mais do que uma comunidade de crentes, uma instituição; começou-se a interpretar os dogmas de um ponto de vista moralista, já não se distingue nos sacramentos nada além de seu aspecto psicológico e social, esquecendo-se de seu elemento cósmico. O nominalismo na consciência da Igreja triunfou sobre o realismo.

 

A realidade do cosmo desaparece e se concentra exclusivamente sobre as realidades da psíquica e social. Avalia-se a religião de um ponto de vista prático, na medida apenas em que ela constitui uma força social e organizadora. Desaparece da teologia a doutrina que via na Igreja o Corpo místico de Cristo, como um corpo cósmico e não unicamente como um corpo social. Um espírito de positivismo, sem que nos déssemos conta, penetrou no Cristianismo e na consciência da Igreja. Esse positivismo teológico de natureza bastante peculiar é desprovido de todo sentido místico da vida. É curioso constatar que o positivismo que concerne à concepção da natureza penetrara desde muito tempo o Cristianismo, e que essa concepção teria mesmo nascido sobre o terreno do Cristianismo.

 

A obra de São Basílio o Grande, que é uma interpretação livre do Gênesis, é um exemplo desse positivismo sui generis. Ela é consiste num tratado naturalista que, para o nível científico daquela épica, poderia ser comparado aos de Haeckel. O positivismo e o naturalismo dessa obra ficam particularmente manifestos, mormente se os aproximamos do Mysterium Magnum de Boehme, que também comporta uma interpretação do Gênesis. Em São Basílio encontramos uma física descritiva, em Boehme uma gnose cosmológica. Mas essa gnose não é reconhecida pela consciência da Igreja, que permanece na defensiva em relação a suas doutrinas. No Cristianismo e na ciência moderna, o conhecimento antigo foi perdido, e os ocultistas têm razão quando o afirmam. Como compreende a consciência cristã a relação entre o gnosticismo e o agnosticismo?

 

Até os nossos dias, as consequências últimas da controvérsia entre gnosticismo e agnosticismo não foram esclarecidas. A teologia oficialmente predominante rejeita os dois sistemas e tenta se afirmar numa esfera intermediária. Mas é impossível se manter por muito temo nessa zona mediana. A consciência dogmática da Igreja foi elaborada na luta contra o gnosticismo. Por esse motivo, muitas coisas foram predeterminadas. O anti-gnosticismo se tornou, num certo sentido, o agnosticismo. O conhecimento dos mistérios da vida cósmica foi proibido. A obra dogmática dos Doutores da Igreja e dos Concílios Ecumênicos não constituiu uma gnose; as fórmulas foram elaboradas tendo em vista uma experiência religiosa normativa, e essa elaboração se realizou com base na refutação de doutrinas errôneas. A consciência da Igreja fazia uma associação entre a gnose e a deformação da experiência religiosa.

 

A Igreja cristã escolheu primordialmente como missão retirar o homem do domínio da natureza, libertá-lo do poder dos elementos e dos demônios. O agnosticismo da Igreja preservava o espírito humano desse jugo dos elementos naturais, desse infinito cósmico que ameaçava engoli-lo. Foi uma luta que se travou pelo homem, pela sua imagem, pela liberdade de seu espírito. Eis porque não devemos considerar com desdém o agnosticismo da Igreja, nem criticá-lo de forma inconsequente, mas, ao contrário, é preciso captar seu sentido. A consciência da Igreja admite com mais facilidade a concepção mecanicista da natureza, o positivismo, do que admitir o gnosticismo, a cosmologia gnóstica. Ela teme o poder da magia sobre a alma humana e pretende libertar dela seu espírito.

 

Os antigos gnósticos eram, sob muitos aspectos, notáveis pensadores. Os Doutores da Igreja foram, sem dúvida, injustos para com eles, e deformaram suas ideias. Valentino foi um homem genial; podemos constatá-lo mesmo a partir do tratado extremamente parcial feito por Santo Irineu. Mas entre os gnósticos, cuja atitude perante o cosmo seguia sendo pagã, o homem não estava livre do poder dos espíritos e dos demônios, mas permanecia sob o feitiço da magia. A bem dizer, os gnósticos não eram heréticos cristãos, mas iniciados pagãos, que absorveram de modo sincrético alguns elementos da sabedoria cristã. Jamais, porém, eles acolheram o mistério fundamental do Cristianismo, o da redenção do homem, da transfiguração da natureza inferior em natureza superior. Eles tinham, na realidade, uma concepção estática do mundo, e não concebiam o dinamismo cristão. Podemos encontrar neles rudimentos de evolucionismo: eles falavam em épocas e períodos históricos. Essas noções apresentavam certo interesse, mas estavam muito distantes do dinamismo cristão, que prega a transubstanciação, a transfiguração da natureza inferior. Para os gnósticos, a imagem de Deus e a imagem do homem se esvaem e se fragmentam nos processos cósmicos. O cosmo, com sua estrutura hierárquica extremamente complexa, com seus éons infinitos, não esmagava apenas o homem, esmagava a Deus também.

 

A consciência da Igreja se rebelou, em nome de Deus e do homem, contra essa forma de gnosticismo, e se recusou a deixar que o homem se tornasse presa das forças cósmicas. A libertação espiritual, a libertação em relação ao poder dessas forças, essa foi a obra significativa da consciência da Igreja. Para compreender o mistério da transfiguração do inferior no superior, é preciso retirar o homem da lei cósmica. Assim sendo, enquanto o homem não se emancipar espiritualmente em relação ao elemento natural, enquanto ele não tiver unido sua natureza espiritual a Deus, a Igreja estabeleceu limites à sua penetração gnóstica aos mistérios da vida cósmica. O gnosticismo exaltou o orgulho dos homens “pneumáticos” e sua presunção de superioridade sobre os homens “psíquicos” e os homens “carnais”, mas não foi capaz de encontrar o caminho de santificação da alma e do corpo, de sua transfiguração e de sua inserção no espírito.

 

A consequência do agnosticismo na Igreja, na história intelectual da humanidade, apareceu no desenvolvimento da ciência e da técnica, na mecanização da natureza. O Cristianismo libertou o homem das forças que a seguir se levantaram contra ele. tal é o trágico destino do ser humano. E até agora existem homens, os quais, mesmo tendo o sentido da Igreja, dão preferência à mecânica e à física positivistas, que, segundo eles, não apresentam nenhum perigo para o Cristianismo, em detrimento da cosmologia gnóstica, que eles veem como uma concorrência. Mas a união do Cristianismo com a concepção mecanicista da natureza não é, em princípio, obrigatória.

 

Seria errôneo concluir que o Cristianismo não admite a gnose, que ele não é capaz de tolerar o conhecimento dos mistérios cósmicos. Não é isso que pretende a consciência dogmática da Igreja. Clemente de Alexandria, Orígenes, São Gregório de Nissa e São Máximo o Confessor foram todos gnósticos cristãos. A gnose cristã é, portanto, possível. O Cristianismo não pode admitir um retorno à concepção pagã da natureza, à demonolatria, à dominação da magia sobre o espírito humano, à desagregação da imagem humana pelos espíritos dos elementos.

 

Foi dito: “Sejam prudentes como as serpentes e simples como as pombas[2]”. Por isso, a sabedoria da serpente, a gnose, se encontra afirmada. Mas essa sabedoria não tem nada de incompatível com a simplicidade do coração. O Cristianismo nega que o homem possa alcançar a Deus e os mistérios divinos pelo caminho de uma incessante evolução do pensamento; ele afirma que, sobre as vias do conhecimento divino, o homem sofre uma catástrofe intelectual ao modificar sua consciência e seu pensamento, que ele passa pela experiência da fé, na qual o mundo das coisas invisíveis é demonstrado. Nessa experiência se entreabre a possibilidade de um conhecimento. A fé não nega a gnose, ela aplaina seu caminho na experiência espiritual.

 

Essa questão se coloca, para nós ortodoxos, de modo bem diferente do que o é para a consciência católica. Essa afirma que Deus pode ser conhecido não apenas pela revelação, mas também pelas forças naturais da razão humana. Essa noção constitui a pedra de ângulo do sistema tomista. Existe aí um racionalismo que recusa admitir que possa haver, em todo conhecimento de Deus, uma antinomia para a razão. O Concílio Vaticano condenou ao anátema todo ser que afirme que Deus, único e autêntico, nosso Criador e Mestre, não possa ser conhecido por intermédio das coisas criadas, pela luz natural da razão humana. Essa sentença, que censura o fideísmo e condena pensadores católicos como Pascal e Joseph de Maistre, afirma na consciência da Igreja um naturalismo racional, um modo de pensar em categorias racionais. A teologia natural é reconhecida assim como obrigatória.

 

Para a consciência ortodoxa, o problema se coloca de outra maneira: não existe aí nenhuma doutrina racional obrigatória semelhante ao tomismo. Esse naturalismo racionalista é o fruto do agnosticismo e se dirige contra toda gnose. Deus e o mistério da vida divina são incognoscíveis; mas na natureza, na criação, é possível, por meio de um caminho racionalista e naturalista, adquirir as provas da existência divina. Estabelece-se uma paz entre a revelação e o conhecimento natural de Deus, entre a religião e a ciência. Essa concórdia entre as ordens sobrenaturais e naturais não expande o domínio da gnose, mas, ao contrário, o estreita; ela resulta de uma falta de fé na possibilidade de iluminação da razão, na possibilidade de um conhecimento no Espírito, de um conhecimento teândrico. Mas, se a gnose cristã é possível, ela não pode ser outra coisa do que um conhecimento espiritual, místico, e não natural ou racional.

 

O trabalho do pensamento foi menos intenso no Oriente ortodoxo do que no Ocidente católico. O pensamento ortodoxo não elaborou uma doutrina precisa, e, no entanto, o Oriente é mais gnóstico do que o Ocidente, pois ele crê desde o início na possibilidade de uma gnose mística, de uma gnose que o Ocidente frequentemente considera como heresia. Os Doutores da Igreja do Oriente são mais gnósticos do que os Doutores ocidentais. Da mesma forma, a gnose crista pode se desenvolver com mais facilidade sobre o terreno espiritual da ortodoxia do que sobre o do catolicismo. Os movimentos russos, religiosos e filosóficos, dão testemunho disso. O agnosticismo cristão, que subsiste e se afirma integralmente no racionalismo católico, tinha sua justificação.

 

Mas pode chegar o dia em que ele deverá desaparecer do Cristianismo, por se tornar perigoso. Esse agnosticismo cristão afirma um pragmatismo do não conhecimento. É preciso limitar a receptividade do homem, a fim de que ele não se torne surdo ou cego pelos trovões e a luz cósmicos. Somos protegidos por nossa insensibilidade, pela ausência de receptividade, contra tudo o que é perigoso para nós, e para as coisas para as quais não estamos espiritualmente maduros. O não conhecimento pode ser uma salvaguarda, tanto quanto o conhecimento. Se pudéssemos ver e conhecer no mundo tudo o que não vemos nem conhecemos, não seríamos capazes de suportar e seríamos dispersos pelos elementos do mundo. A clarividência é perigosa, ela não pode ser acessível senão a uma minoria, pois ela exige uma grande preparação espiritual. O homem não seria capaz de suportar a visão da aura que envolve os seres.

 

Mas pode vir um tempo em que o não conhecimento seja mais perigoso do que o conhecimento, do que a receptividade sensível. O sentido pragmático do não conhecimento pode perder seu valor; é então que o pragmatismo do conhecimento fará valer seus direitos. O conhecimento é útil, enquanto proteção contra as forças hostis do mundo. Não é apenas o conhecimento mecânico da natureza, que nos arma com a técnica, que nos é indispensável, mas também o conhecimento da vida interior do cosmo, da estrutura do mundo. Para essa, o homem deve estar espiritualmente fortalecido, ele deve adquirir a sabedoria de Cristo, não essa inteligência validada pelo Concílio Vaticano, que é racional e natural, mas uma inteligência iluminada. A partir daí, o homem não mais correrá o risco de ser despedaçado pelos elementos cósmicos, ele já não correrá o risco de cair sob o poder dos demônios. A gnose cristã repousa sobre a aquisição da sabedoria de Cristo, sobre o conhecimento teândrico em Cristo e por Cristo. Não podemos vencer a pseudo-gnose, senão opondo a ela uma gnose autêntica, a gnose de Cristo. É isso que nos ensinaram os místicos cristãos. Chegou o tempo em que a ciência já não pode permanecer neutra; ou bem ela será cristã, ou bem se tornará uma magia negra.

 

Encontramos no teosofismo algumas verdades e alguns elementos de conhecimentos antigos. O teosofismo está ligado ao ocultismo; esse último não constitui uma tendência contemporânea, mas remonta a uma antiquíssima tradição, que se perpetua através de toda a história do espírito humano. As chamadas ciências ocultas não comportam mais do que o charlatanismo. A esfera do oculto, a magia, enquanto força real, existe no mundo natural. Essas forças secretas, que ainda não foram estudadas pela ciência, agem sobre o homem e no cosmo. No decurso das últimas décadas, a ciência contemporânea se orientou progressivamente para o estudo desses fenômenos ocultos, que se manifestam no homem e na natureza. A esfera do subconsciente, que era conhecida pelos homens da antiguidade, mas que parecia estar fechada para a humanidade moderna, se expande pouco a pouco. A ciência começa a admitir, no campo de suas pesquisas, manifestações mágicas, que por muito tempo foram consideradas como sobrevivências de superstições e como imposturas. Du Prel, representante do ocultismo científico, afirmava, há tempos, que a ciência deveria inevitavelmente retornar às suas verdades mágicas, que a magia consiste precisamente na ciência física desconhecida. Fenômenos como a telepatia, a clarividência, o magnetismo animal, o sonambulismo, a materialização, e outros, devem se tornar objetos de análise científica. A ciência está obrigada a reconhecer certos fatos que ela negou até hoje. A Sociedade de Estudos Psíquicos da Inglaterra consagra-se há muito tempo ao estudo desses fatos, e numerosas descobertas foram efetuadas nesse domínio por psiquiatras e neuropatologistas.

 

A opinião oficial predominante, que, estabelecendo limites intransponíveis ao conhecimento, determina previamente aquilo que não pode ser obtido pela experiência, já não é admissível, pois nele podemos discernir um caráter supersticioso e dogmático. Hoje em dia reconhece-se o campo ilimitado da experimentação e já não se crê nas proibições mantidas pelo empirismo racionalista. Não nos encontramos artificialmente subtraídos à receptividade de toda uma classe de fenômenos ocultos da natureza, que eram percebidos em épocas anteriores, quando a consciência ainda não estava oprimida pelas limitações racionalistas. A ciência se vê obrigada a recuar até o infinito o seu horizonte, e a estudar todos os fenômenos, por mais inacreditáveis, ocultos e milagrosos que lhe possam parecer. A natureza do universo e a do homem são infinitamente mais ricas em forças, do que consegue conceber a consciência científica da época das “luzes”. A esfera do subconsciente faz definitivamente parte da esfera das pesquisas científicas, e essa esfera constitui uma fonte inesgotável. Todo poder criativo da humanidade provém do subconsciente. O desenvolvimento da ciência nessa direção confirma muitas das asserções da tradição oculta. A magia primitiva não chegou a se cristalizar definitivamente na ciência, que ela própria gerou; mas ela possui igualmente sua linha diferenciada de progresso. Não existe apenas a magia dos selvagens, existe também uma magia dos homens civilizados. Esse caminho seguiu paralelamente ao do desenvolvimento da ciência. Mas chegou um momento em que essas duas paralelas se encontraram num ponto comum, no qual a ciência, chegada aos seus últimos aperfeiçoamentos, voltou a se unir à magia. É esse processo que estamos assistindo atualmente. A popularidade das correntes ocultistas não passa de um sintoma disso.

 

O ocultismo, na medida em que constitui uma expansão da esfera relativa ao conhecimento do mundo e do homem, é conciliável, ao menos em princípio, com o Cristianismo, que não se opõe a ele, assim como não se opõe à ciência. O ocultismo não está em maior contradição com o Cristianismo do que a física ou a psicologia. Mas ele se choca com o Cristianismo e provoca uma viva reação da parte da consciência cristã, cada vez que pretende se substituir à religião. O ocultismo, enquanto religião, é o antípoda do Cristianismo. Podemos dizer o mesmo do espiritismo, que tanto pode ser um estudo científico como uma pseudo-religião, como ocorre em Alan Kardec. Dentro da consciência cristã o ocultismo pseudo-religioso dá lugar às mesmas objeções que antigamente provocava o ensinamento dos gnósticos. Nosso conhecimento de Deus, nossa cristologia e nossa concepção da missão do homem, não podem resultar de conhecimentos ocultos. As ciências ocultas fazem buscas em cima de forças ocultas da natureza, mas não conseguem resolver os problemas últimos da existência. Podemos ver, nas contemplações teosofistas da vida cósmica, o lado perigoso do ocultismo, quando ele transgride seus limites.

 

O teosofismo pretende fazer a anatomia do homem e do cosmo, ele disseca tudo o que possui uma perfeita unidade orgânica, e contempla o estado cadavérico do mundo. Não se trata de uma contemplação, ou de um conhecimento vivo. A vida se extingue em contato com os teosofistas e com os ocultistas que pretendem conhecer o mistério derradeiro. Eles são capazes de perceber as partículas do ser, mas não lhe é dado ver sua integridade. O teosofismo pretende constituir uma vastíssima síntese, mas na realidade ele é analítico; ele faz a autópsia dos tecidos vivos do corpo universal e procede à sua preparação, e a isso corresponde bem o esquematismo extremo da doutrina teosofista. Em seus esquemas, que é preciso aprender e decorar, existe um quase cheiro de cadáver. O teosofismo nos dá os traçados do despedaçamento terrestre, no qual tudo é dissecado em partes constituintes. Quanto ao mistério da agregação dessas partes num corpo vivo, num organismo integral, isso ele ignora. O teosofismo não constitui uma síntese da religião, da filosofia e da ciência, mas, ao contrário, uma mistura confusa no qual já não se pode encontrar nem religião, nem filosofia, nem ciência verdadeiras.

 

O ocultismo deve ser inteiramente referenciado ao domínio da ciência, cujos horizontes ele amplia. Mas, de modo algum, a religião pode ser submetida a ele. A gnose cristã autêntica pressupõe um fundamento religioso positivo, ela extrai sua força das revelações do mundo espiritual, e ela une a religião, a filosofia e a ciência, sem subordinar a fé a uma pseudociência.

 

A consciência da personalidade pode e deve ser desenvolvida; e a esse desabrochar deverá corresponder uma nova interpretação da natureza, que não mais será percebida de um modo estático. Mas a afirmação de uma consciência cósmica também apresenta alguns perigos. A emancipação da personalidade, que lhe permite alcançar a extensão do cosmo, pode conduzir à perda dos seus limites, ou à sua absorção pelo infinito cósmico. Ora, a consciência cristã não pode admitir mais do que uma gnose cósmica, na qual a natureza da personalidade permanecerá precisa, na qual nada ela não será perturbada, nem dissociada por essa infinitude.  O problema da gnose é, para toda a consciência cristã, uma questão de dois gumes. A proibição da gnose concede a supremacia à pseudo-gnose, gera a doutrina teosofista, onde as verdades esparsas são artificialmente sintetizadas. É preciso opor ao falso teosofismo uma teosofia cristã autêntica.

 

 

V

 

O ocultismo tem razão quando vê na natureza, não um mecanismo, mas uma hierarquia de espíritos; ele também tem razão quando nega a unicidade, o isolamento e a estagnação de nosso éon universal. Não apenas a consciência positivista, como a própria consciência da Igreja identifica, de certo modo, o universo e a criação com o éon de nosso mundo. Não existem limites precisos que o isolem daquilo que o precedeu, daquilo que lhe sucederá, ou daquilo que se encontra além dele.

 

Na aurora da vida universal, a natureza se encontrava menos materializada, menos condensada do que ela o é na evolução de nosso éon. As tradições ocultas nos falam dessa incandescência do mundo, e elas encerram grandes verdades esquecidas por nossa consciência religiosa e científica. No início de nossa vida universal a consciência do homem era sonolenta; a esse estado corresponde uma ausência de limites precisos entre nosso mundo e os outros. A própria crônica akashika contém elementos de verdade a esse respeito. O endurecimento da natureza material não constitui a verdade última. Na consciência cristã, a concepção materialista da natureza sofrerá inevitavelmente uma crise. Presentemente, o homem já receia essa espécie de mecanicismo mumificado. O ocultismo se perde na contemplação da natureza viva e animada, mas a questão que ele propõe é justa.

 

Os filósofos e os teósofos da época da Renascença abordavam melhor os mistérios da natureza do que os homens contemporâneos. Boehme considerava que a vida do cosmos se desenrolava em categorias de bem e de mal, de pecado e redenção, de trevas e de luz, vale dizer, em categorias de vida espiritual; Paracelso, rico em ideias profundas, já seguira essa via, e nós podemos sempre nos socorrer deles. Sua teosofia e sua cosmologia são infinitamente superiores ao teosofismo de Besant ou de Steiner. Não podemos conceber o cosmo senão como um organismo vivo. É preciso ver o espírito na natureza e a natureza no espirito. É preciso perceber o subjetivo no objetivo, o natural no espiritual, o cósmico no antropológico. A cosmologia sempre foi fundamentada sobre a visão da identidade interior entre o espírito e a natureza, vale dizer, sobre uma concepção da natureza que contempla o fenômeno do espírito.

 

A doutrina sofiológica do pensamento religioso russo é uma dessas tentativas que têm por objetivo restituir ao Cristianismo sua consciência cósmica, de dar em Cristo um lugar para a cosmologia e a cosmosofia. Ela possui um valor sintomático, pois ela se esforça em superar o positivismo da Igreja. Encontramos aqui uma das expressões do platonismo cristão, a penetração do mundo das Ideias na consciência da Igreja, da doutrina relativa à alma universal, do realismo platônico, que podemos opor à degeneração nominalista do Cristianismo. É preciso reconhecer que a consciência da Igreja, nas suas formas oficiais e dominantes, não crê na realidade do cosmo, que ela encara o mundo sob o ângulo do positivismo, adotando uma interpretação moralista do Cristianismo. A natureza cósmica da Igreja é totalmente inacessível a essa consciência, que não entrevê mais do que seu alcance social. Mas a doutrina sofiológica se reveste de um caráter tal, que o problema do cosmo ameaça absorver definitivamente o problema do homem; sua liberdade e sua atividade criativa desaparecem aí. Entretanto, em nossa época, o problema religioso capital é o do homem, e não o da Sophia ou do cosmo. A sofiologia deve ser conectada ao problema antropológico. Boehme, nesse sentido, é um grande precursor. Para nossa consciência, ele tem mais valor do que Platão. Sua doutrina é também menos panteísta do que a dos adeptos da sofiologia russa. Lembremos aqui brevemente o que foi dito sobre essa doutrina de Boehme, e tentemos tirar algumas conclusões daí.

 

A Sophia é a Virgem do homem, sua Virginitæt. O homem é andrógino quando nele habita sua Virgem, ou seja, quando ele é virgem, casto e integral. A queda do homem-andrógino significa para ele a perda da Virgem, que retorna ao céu, ao passo que sobre a terra aparece a mulher, que resgata seu pecado na maternidade. A natureza feminina atrai e seduz eternamente o princípio masculino desprovido de integridade, ao mesmo tempo em que aspira a se unir a ele sem jamais obter satisfação. O homem cai sob o poder do elemento sexual e se submete à necessidade natural. Ademais, a perda da Virgem marca, para ele, a perda da liberdade, pois a integridade e a castidade constituem a liberdade. O mundo natural não é Virgem, pois ele não é regido por um elemento feminino sábio. Mas a Virgem celeste penetra novamente no mundo natural sob a forma da Virgem Maria, e dela nasce em espírito a geração do novo Adão, na qual a virgindade sábia e a maternidade santa devem vencer a feminilidade inferior. A veneração da Sophia, da Virgem celeste, se une à veneração da Mãe de Deus. Dela nasce o Deus-Homem, no qual, pela primeira vez na história do mundo natural, aparece a virgindade absoluta, a absoluta integridade, vale dizer, o estado andrógino da natureza humana.

 

A alma universal é feminina, ela é decaída, mas é nela, assim como é na alma humana, que o restabelecimento da virgindade é possível. A Virgem Maria aparece como o princípio virginal da alma universal. A cosmosofia é o conhecimento desse princípio, vale dizer, de sua beleza eterna. A Sophia é a Beleza. A Beleza é a Virgem Celeste. A iluminação e a transfiguração do mundo natural criado são manifestações da Beleza. E quando a arte, no sentido mais amplo do termo, penetra na beleza do cosmo, ela percebe, para além da pesandez do mundo natural, a virgindade do mundo, a ideia divina que a ele se refere. Mas a sabedoria do mundo está ligada à virgindade do homem. A doutrina sofiológica russa parece negar que o homem seja o centro do mundo, que o cosmo esteja nele, e assim ela não constitui uma doutrina viril, pois ela submete o espírito masculino à alma feminina.

 

Devemos voltar de maneira nova ao sentimento do cosmo. A tarefa da gnose cristã consiste em estabelecer um equilíbrio ideal entre a teo-sofia, a cosmo-sofia e a antropo-sofia. Pois a mística, o ocultismo e a religião coexistem na consciência humana. A mística é a comunhão imediata com Deus, a contemplação de Deus e a união com Ele. o ocultismo é a união com as forças secretas do cosmos, e constitui também um desenvolvimento cósmico. A religião é a atitude organizada da humanidade perante Deus, a via hierárquica e normativa da comunhão com Ele. Boehme, mais do que os outros gnósticos, soube unir em si os momentos místicos, ocultos e religiosos; também a gnose, malgrado alguns desvios, se aproxima mais da gnose cristã autêntica. O esoterismo e o exoterismo não se excluem mutuamente; o exoterismo deve ser compreendido a partir da profundeza do esoterismo.

 

O teosofismo é um sincretismo religioso. Tais movimentos surgem em épocas de pesquisas e de crises espirituais. Fragmentos de conhecimentos antigos e de tradições ocultas nele se misturam à consciência moderna, ao naturalismo e ao racionalismo contemporâneos. O que mais choca no teosofismo e no antroposofismo, é sua presunção, sua pretensão a um conhecimento que eles não possuem, a reivindicação de uma atitude específica em relação aos seus escritos, a certeza com que afirmam que os não-iniciados não são capazes de alcançar as alturas de seus ensinamentos. A atitude espiritual dos teosofistas não é cristã; ela é marcada pela suficiência. O teosofismo seduz pela ideia da fraternidade entre os homens e os povos, que ela jamais será capaz de realizar. Entretanto, correntes desse tipo costumam ser precursores de uma forte luz espiritual.



[1] Empregamos o termo “teosofismo” ao invés de “teosofia”, e “teosofista” em lugar de “teósofo”, para distinguir essa deformação contemporânea da verdadeira teosofia.

[2] Mateus 10: 16.