segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Nikolai Berdiaev - Espírito e Liberdade - Capítulo IX: O desenvolvimento espiritual e o problema escatológico

 

I

 

 

É difícil tratar do princípio mesmo de certas questões, pois existem associações de ideias que nos afastam da situação exata do problema. Os homens são muito pouco livres em seus pensamentos, pois esses são deformados por sua emotividade. Assim é que o pensamento religioso se recusa a colocar e a examinar imparcialmente o problema do desenvolvimento espiritual, porque a própria ideia de um “desenvolvimento” evoca uma associação de ideias da teoria evolucionista e a teoria do progresso, características do século XIX. As teorias de evolução e de progresso esconderam de nós a ideia do desenvolvimento criador do espírito. A introdução do princípio do desenvolvimento na vida religiosa é qualificada de “modernismo”, e é visto como uma adaptação ao evolucionismo irreligioso contemporâneo. Ora, é indispensável estabelecer o seguinte ponto: é possível rejeitar a teoria da evolução, mas é impossível negar o fato cabal do desenvolvimento no mundo. É igualmente necessário estabelecer uma distinção entre o desenvolvimento do espírito e a evolução da natureza. Nós criticamos com justa razão a teoria do progresso, na qual vemos uma pseudo-religião que tende a substituir a religião cristã.

 

Mas é preciso lembrar que a ideia de progresso religioso é de origem cristã, que ela não passa da secularização e da deformação da ideia messiânica, da procura e da espera cristã do Reino de Deus. A ideia de progresso é uma ideia religiosa teleológica, que pressupõe que a história possui um sentido e um objetivo absolutos. Vista do ponto de vista do positivismo, essa ideia é, em verdade, desprovida de qualquer interesse, e apresenta uma notória contradição. O positivismo não tem como falar de uma evolução desprovida de objetivo e de sentido. Pois o progresso implica valores espirituais que, elevando-se acima dele, determinem seu sentido. Essa é uma verdade elementar, estabelecida desde muito tempo. Mas nunca nos damos conta o bastante, a respeito de que a ideia de progresso, vale dizer, de um movimento, de um processo histórico em direção a um objetivo absoluto e supremo, não foi possível senão graças ao Cristianismo, e que ela jamais poderia ter nascido no contexto da consciência helenista.

 

 A história se dirige para um acontecimento central e absoluto por sua importância: a vinda de Cristo. E, a partir de Cristo, ela se dirige além, para o acontecimento final que deverá encerrar a história universal: a segunda vinda do Salvador. É isso que determina a existência de épocas na história universal, e que determina seu progresso espiritual. É assim que se constrói o dinamismo espiritual interior da história. Essa não consiste simplesmente numa evolução exterior desprovida de sentido, vale dizer, numa repartição dos elementos do mundo, na qual nenhum valor absoluto se manifesta; na história universal existe uma dinâmica do sentido, existe o Logos, que determina o movimento interior. O Cristianismo é messiânico e escatológico, ou seja, dinâmico e progressivo no sentido espiritual, no sentido mais profundo da palavra. Existe um movimento em direção a um fim, no qual tudo irá se resolver. Não se trata de uma evolução, no sentido atual do termo, pois ele não está submetido ao desenvolvimento determinado pela necessidade natural. O Cristianismo não surgiu como uma verdade estática e imutável, que teria sido dada sob sua forma definitiva; ele veio ao mundo como uma verdade dinâmica e como um irresistível desdobramento. Não ficou entendido desde o começo, em que consistia o Cristo, e o ensinamento da Igreja não foi imediatamente revelado; a liturgia não foi criada desde logo, e a organização da Igreja não foi instituída desde os começos. A própria Igreja de Cristo é resultado de um desenvolvimento, ela evoluiu a partir da ideia escatológica primitiva do Reino de Deus; ela passou por graus e períodos em seu desenvolvimento e sua eclosão. É preciso considerar essa verdade como definitivamente estabelecida, e não existe razão alguma para temê-la. Ela não abala de forma alguma o absoluto do Cristianismo, nem a possibilidade, para esse, de conhecer um desenvolvimento subsequente no mundo.

 

A revelação cristã encerra inumeráveis riquezas virtuais, que não podem ser disponibilizadas na história, nem se atualizar no mundo. Cada palavra do Evangelho não é mais do que um grão, não passa de um germe latente de um processo infinito de desenvolvimento. Se o Cristianismo foi dinâmico no mais alto grau no passado, ele também pode sê-lo no futuro. A redução do dinamismo não representa um enfraquecimento, um torpor espiritual. Na Igreja, sempre é possível se produzir um desenvolvimento dogmático, como insistiram particularmente o cardeal Newman e Solovieff. Nem todas as questões foram resolvidas; o Cristianismo não está terminado e não terminará antes do fim dos tempos: sua realização final corresponderá ao advento do Reino de Deus. Mas quando buscamos pelo Reino de Deus, quando nos movemos em sua direção, nos encontramos num estado de desenvolvimento, e não num estado estático. A existência de uma ortodoxia ou de um catolicismo estático é uma ficção e uma autossugestão, e não passa de uma objetivação e de uma “absolutização” de correntes e de períodos temporários na Igreja.

 

Quando não se propõe uma missão criativa, logo se manifestam uma decadência espiritual, um silenciamento e uma extinção do espírito. Todos os homens eminentemente ativos do mundo cristão foram “modernistas” em suas épocas. Isso não significa que eles se acomodavam ao espírito do tempo, à razão do século, mas que eles se colocavam e tentavam resolver os problemas criativos de sua época particular do Cristianismo. São Tomás de Aquino foi um modernista em seu tampo, assim como Santo Atanásio o Grande. No Cristianismo, o modernismo – entendido aqui como a possibilidade da inovação em conformidade com uma dada época espiritual – está sempre ligado à profundidade, e não à superficialidade dos tempos; ele sempre liga o futuro ao passado. A própria ideia de desenvolvimento e de progresso está ligada à existência de épocas religiosas, a graus de revelação. A distinção entre o Antigo e o Novo Testamentos, entre o paganismo e o Cristianismo, estabeleceu épocas, demonstrou que existe um desenvolvimento espiritual. A ideia gnóstica dos éons é em si fecunda e torna possível a filosofia da história. A vinda de Cristo divide a história universal em dois períodos fundamentais, em dois éons cósmicos, dos quais cada um pode ser por sua vez submetido a diferentes subdivisões. Esse próprio fato, esse fenômeno original do processo universal, implica a existência de um desenvolvimento espiritual, de um processo dinâmico na história. A interpretação estática do mundo torna incompreensível e impossível o fato da vinda de Cristo, que é um fato cosmogônico; ela própria provém de uma concepção estática da estrutura da consciência.

 

Essa visão estática, ontológica e metafísica, justificada pela teologia, provém do fato de que a consciência de um dado período se acha afirmado como eterno e imutável. Mas a própria natureza da vida espiritual é inacessível a semelhante consciência, porque ela é movimento, dinamismo e desenvolvimento, não no sentido exterior e evolucionista de uma nova repartição de elementos externos, mas n o sentido interior, espiritual e criador. Não existe ordem universal que seja imutável, estabelecida por toda eternidade, tal como o imagina a consciência estática. A existência é vida e espírito. O espírito é fogo, e assim a chama da vida se abrasa e se move eternamente. A concepção estática representa o mundo como um vulcão extinto.

 

Mas a criação do mundo não se encontra terminada, e nela o homem coopera ativamente, e nós percebemos as consequências disso na forma de um desenvolvimento. A consciência bíblica da Antiga Aliança não percebia mais do que uma parte da criação do mundo; mas, em sua limitação, ela a tomava pela totalidade, considerando-a como terminada. Essa cosmogonia se transmitiu ao próprio Cristianismo, que tem dificuldade em se liberar dela. A consciência bíblica cosmogônica é incapaz de conter em si o mistério da liberdade; dessa forma, ela não percebe o desenvolvimento criativo, e representa sempre o mundo como um mistério acabado, como uma ordem imutável.

 

Mas um desenvolvimento criativo no mundo é possível, porque existe uma fonte abissal de liberdade jorrando de uma profundidade inefável, e ele é também inevitável, porque o homem traz em si a imagem do Criador, de Sua liberdade e de Sua força criativa. Produz-se uma eclosão criadora daquilo que está contido em estado de potência nas profundezas da liberdade, nas profundezas do espírito. O desenvolvimento implica a existência em potência. Trata-se de um desenvolvimento de outro tipo daquele professado por Darwin, Spencer ou Haeckel, pois não é consiste numa evolução naturalista, mas constitui um desenvolvimento que procede do espírito. O desenvolvimento que nasce da liberdade não tem nada em comum com aquele que deriva da necessidade, pois ele não é determinado, mas constitui um ato criador. O desenvolvimento não é outra coisa do que a expressão exterior daquilo que se realiza no interior; assim é que se produz um desabrochar e um desenrolar criativo que procede da liberdade. Não existe nenhuma lei universal do desenvolvimento ou do progresso. A teoria otimista relativa à continuidade do desenvolvimento e do progresso universal é forçosamente uma teoria naturalista e não espiritual, que não pode se conciliar com a liberdade do espírito humano, com a liberdade da criação. No mundo age uma liberdade que lhe é anterior, uma força irracional, e é por isso que não somente o bem, como o mal, se desenvolvem. O triunfo do bem, do princípio divino, não conhece movimento gradual no mundo, algo que seja sucessivo e ascendente. O bem é obra da liberdade e não da necessidade. Os elementos, os princípios, os organismos tomados isoladamente, se desenvolvem e progridem, mas o desenvolvimento e o progresso não constituem a lei obrigatória da vida universal.

 

As teorias da evolução e do progresso, que predominaram no século XIX, simplificaram o problema e o interpretaram dentro de um espírito de otimismo naturalista. Esse otimismo desconhecia por completo o laço que une a verdadeira evolução a liberdade e à força criativa, e assim ele rompeu com as fontes autênticas do desenvolvimento espiritual. O evolucionismo ignora o objeto da evolução e, por isso, ele desemboca na negação daquilo que evolui. Ele é estático, ele rejeita ao passado os graus hierárquicos do estado natural contemporâneo, alinhando-os numa ordem cronológica; ele não compreende o mistério da gênese. O selvagem, tanto quanto o animal e a planta, todos são nossos contemporâneos. Na aurora da vida universal, tudo era infinitamente mais misterioso, tudo era diferente.

 

As eras da humanidade, as épocas do espírito humano na história, não necessariamente implicam uma melhoria espiritual regular, a realização progressiva do Reino de Deus no mundo. A própria passagem do mundo pré-cristão para o mundo cristão não constituiu uma melhoria moral; ela não significou que os homens tivessem vencido o mal e que a partir daí ele iriam se aproximar progressivamente do Reino de Deus. Ela anunciou a chegada de uma nova era espiritual do homem, a divulgação de novas forças espirituais, de uma nova luta do bem contra o mal, de um novo bem – mas também de um novo mal. Os homens da antiguidade eram mais pacíficos, mais equilibrados, mais submissos ao destino do que os homens do mundo cristão, que perderam a medida, a harmonia, a beleza das formas clássicas conhecidas dos gregos. Muitas coisas foram descobertas ou progrediram, mas outras, ao contrário, caíram no esquecimento e não mais regressaram. Alguns conhecimentos antigos foram perdidos, e paralelamente desenvolveram-se outros que eram desconhecidos dos antigos. Um grande número de faculdades, das quais os homens da antiguidade desfrutavam, parecem haver desaparecido para sempre. O homem nos tempos novos parece ser menos resistente, menos viril, mais medroso do que o eram os homens das épocas anteriores. Existe nisso um processo extremamente complexo, que não pode ser encarado como um crescimento gradual e positivo, como uma desaparição do negativo.

 

O desenvolvimento espiritual do homem e da humanidade se efetua através de contradições e de oposições. Trata-se de um processo trágico, que nem a teoria da evolução, nem a do progresso, compreendem. Para além do desenvolvimento espiritual está a liberdade, e ela complica infinitamente o processo. Nós não vemos mais do que o lado exterior, superficial, da evolução, mas aquilo que se realiza nas profundezas da vida espiritual é um processo criativo, no qual a liberdade é orientada, seja para o bem, seja para o mal, seja para Deus, seja para Satanás. Não podemos julgar essa complexidade pelo processo de desenvolvimento da história moderna, pelo destino do Cristianismo. Produziram-se mudanças nas profundezas, novas eras começaram, existe um desenvolvimento espiritual, mas não existe progresso no sentido que era afirmado pelos homens do século XIX. O progresso é inelutavelmente acompanhado de regressão, a evolução se une à dissolução. Uma nova espiritualidade mais refinada começa a crescer, e simultaneamente a espiritualidade diminui, e o mundo se materializa. Mas o universo, a criação de Deus é um devir, um absoluto que virá, por distinção com o absoluto que é.

 

 

II

 

Podemos falar de uma lei da evolução? Essa lei não existe, no sentido que é atribuído pelo evolucionismo naturalista. A evolução verdadeira, como dissemos acima, é determinada de dentro e não de fora, ela parte do espírito e não da natureza, da liberdade e não da necessidade. Para além da evolução, que constitui uma espécie de quadro exterior, descobrimos um processo interior; ora, esse processo não está submetido à lei. Podemos adaptar a todo desenvolvimento algo de análogo à lei dialética. É assim que se descobre a via pela qual se efetua todo crescimento, todo enriquecimento na vida universal.

 

A fonte desse desenvolvimento aparece na experiência daquilo que foi vivido e experimentado. A verdade fundamental, referente ao mistério do desenvolvimento, se expressa no aforismo de Léon Bloy, que citamos na introdução desse livro: “Sofrer passa; haver sofrido, não passa jamais”. Podemos superar o sofrimento, mas não podemos apagar o fato de que ele existiu. Toda experiência enriquece, mesmo que o enriquecimento consista numa negação dessa experiência. Assim é que experiência do mal, quando é superada e desmascarada, enriquece e conduz a um bem superior. A experiência do mundo, quando conquistada, desemboca numa qualidade de fé superior. A experiência dos contrários e do desdobramento, quando se triunfa sobre ela, conduz à unidade suprema. Depois da experiência da revolução, é impossível para mim retornar ao estado que a precedeu. Depois de ter passado pela filosofia de Kant, sou incapaz de retornar à filosofia pré-Kantiana. Depois de ter vivido o humanismo, não é possível apagar seus traços. Depois do romantismo, já não cabe o retorno ao velho classicismo. Tendo experimentado a liberdade, daí em diante não posso mais aceitar a necessidade.

 

A unidade é adquirida por meio das contradições. Sem experiência, não existe movimento na vida, pois o movimento não pode se produzir segundo normas estabelecidas a priori. Recusar as lições da experiência e da prova equivale a negar no mundo o desenvolvimento da vida, equivale afirmar a imutabilidade estática. É preciso provar os espíritos. O mundo e o homem devem passar por grandes provas. Esse é seu caminho. O valor essencial do idealismo alemão, enraizado na mística, é o de ter trazido à luz o movimento dialético do espírito. O significado da experiência dos contrários se refere ao problema da consciência cristã; é o problema que consiste em superar a ingenuidade original na vida religiosa, a ligar o conhecimento que foi experimentado, a uma fé inquebrantável.

 

Mas será que o Cristianismo reconhece o caminho da prova, ou será que ele próprio é, a priori, um sistema estático que se desvia desse caminho, ou seja, um desenvolvimento criativo? Sabemos que no Cristianismo predomina o ponto de vista estático, sabemos que ele receia a experiência do movimento, e que esse inspira o temor, profetizando consequências fatais, e sofremos com isso. Esse sofrimento constitui em si uma experiência, da qual necessariamente deve nascer alguma coisa. Na história do Cristianismo abusou-se demasiado do método que consistem em preservar os “pequenos” desse mundo de toda tentação. Recusava-se todo desenvolvimento criativo em nome desses pequenos. Mas era impossível preservá-los, pois não há força no mundo capaz de frear a experiência, de petrificar a vida, mas, na tentativa de fazê-lo, reduziu-se o Cristianismo à rigidez e ao entorpecimento. Ora, atualmente são esses “pequenos” os que mais se escandalizam com o estado estático do Cristianismo, com sua aversão a todo e qualquer movimento na vida. É impossível precaver-se contra uma nova experiência, contra a prova das contradições, estabelecendo barreiras artificiais; é impossível manter o homem e o mundo num estado de sonolência ou de inércia tradicional.

 

O desenvolvimento no mundo é inevitável, ele se produz necessariamente, porque a liberdade criativa do homem desperta, porque a experiência humana se complica, porque as contradições da vida se desenrolam. O mundo não é um sistema isolado em si mesmo, mas o infinito age sobre ele de todos os lados. E esse infinito gera nele uma nova experiência, estabelece continuamente novas contradições que devem ser superadas por meio de provas. O tema insondável do infinito deve ser iluminado. O homem está destinado a experimentar o infinito e a torná-lo inteligível pelo sentido supremo, ele é chamado a introduzir a luz na origem das trevas. O desenvolvimento é determinado pela existência de um nada inicial. O homem não está predestinado a permanecer na ordem estática estabelecida para eternidade; sua missão é a de experimentar todas as forças pelo exercício da liberdade.

 

Qual pode ser o sentido da liberdade, se ela deve permanecer inativa, se a ela não for permitido se manifestar seja de que modo for? A liberdade conduz à experiência, à prova das contradições, vale dizer, ao ato criativo e ao desenvolvimento espiritual. A negação da criação e do desenvolvimento espiritual no Cristianismo implica sempre a negação da liberdade. O sistema de São Tomás de Aquino é, na realidade, obrigado a rejeitar a liberdade como se ela fosse uma imperfeição; ele é obrigado a remeter tudo à necessidade da verdade, e, por conseguinte, a refutar o desenvolvimento criador.

 

Penetramos nas profundezas mesmas do problema do desenvolvimento no Cristianismo, bem como no problema da liberdade, se o encaramos do ponto de vista das relações de Deus com o mundo e com o homem, ou seja, com a criação. Desejará Deus que o homem e o mundo provem de sua liberdade, manifestem suas forças por meio da experiência, ou quererá Ele que o homem e toda a sua criação se limitem a obedecer formalmente à Sua vontade, cumprindo Sua lei? A solução para essa questão depende da libertação de uma concepção e de uma veneração servis a Deus, desse último vestígio da idolatria no mundo. Uma religião idólatra, alimentada pelo terror, desemboca na negação do desenvolvimento criativo, no temor a qualquer experiência nova, no estabelecimento de barreiras que entravam o processo da vida.

 

A metafísica e a moral estáticas sempre foram exotéricas e nunca refletiram mais do que uma experiência passageira, do que um período transitório na história do Cristianismo. Mas a limitação humana erigiu o relativo e o temporal em absoluto e eterno. Essa é uma das formas da afirmação de si, da autossuficiência do homem, que se compraz com sua limitação e teme o infinito do mundo espiritual. O ato criador é precisamente a Transição, a saída do isolamento e da limitação. O infinito espiritual é esotérico; o finito e a limitação são exotéricos. A concepção estática do mundo o é igualmente, assim como a concepção evolucionista, no sentido em que a afirmam o positivismo e a ciência contemporânea. O evolucionismo nega a liberdade, o ato criador, a nova experiência vivida nas profundezas do ser, na medida mesma em que afirma a concepção estática do mundo.

 

Hegel atingiu uma certa verdade em sua teoria da evolução através dos contrários e de sua conciliação numa fase superior de desenvolvimento; mas sua teoria do desenvolvimento natural do espírito apresenta também um isolamento, uma naturalização da vida espiritual em sua misteriosa infinitude abissal. Ora, a naturalização da vida espiritual é sempre exotérica, e jamais alcança a profundidade interior. Não podemos exprimir a verdade relativa ao desenvolvimento senão em termos de experiência espiritual, e não nas categorias da metafísica. É impossível elaborar uma metafisica do desenvolvimento, porque ela encerraria e limitaria sempre a experiência espiritual, que é insondável, infinita e íntima. A única verdade indiscutível é essa: qualquer que tenha sido a experiência, boa ou má, ela jamais é inútil, ela sempre fará parte do estado subsequente do desenvolvimento, a prova humana jamais é estéril e não pode jamais haver retorno aos estados precedentes ela. É preciso ir adiante, e até mesmo a reação na vida espiritual é uma inovação, e não uma repetição.

 

 

III

 

Para a consciência cristã, existe não somente um desenvolvimento espiritual, como também um desenvolvimento histórico, social e universal. O próprio Cristianismo é uma das etapas, e a mais importante, da revelação universal. Nosso mundo é uma das fases da existência, da vida original em si. Somente uma consciência exotérica pode conceber esse “mundo” como um resumo de todo o universo, ou seja, de toda a criação divina. Na consciência medieval, notadamente no mundo de São Tomás de Aquino e de Dante, a ideia de ordem (ordo) dissimulava a ideia do desenvolvimento, do processo criativo. O mundo era concebido como uma ordem eterna estabelecida por Deus.

 

Contemporaneamente, a ideia do desenvolvimento substituiu a ideia de ordem de uma hierarquia cósmica imutável. Para alcançar a verdade integral, é preciso conciliar a ideia da hierarquia cósmica com a do desenvolvimento. O mundo não se reduz ao cosmo, ele também constitui uma cosmogonia; nosso éon universal é um processo cosmogônico, e o próprio mundo conhece alguns éons do processo antropogônico, que não existem apenas na história da consciência religiosa universal, como também na história do Cristianismo. A vinda de Cristo ao mundo é o fato capital da antropogonia, o desabrochar da imagem humana. Mas a consciência que o homem tem de si mesmo não se revelou imediatamente no Cristianismo, mas também passou por épocas. Não há nenhuma razão para afirmar que esse processo esteja terminado. O desenvolvimento no tempo existe, ainda que seja pelo fato de que a plenitude não pode estar contida no tempo – onde ela se revela apenas parcialmente – e que ela só pode se realizar na eternidade. O Cristianismo não se realizou até o final; nele, ainda existe uma imensa energia potencial. A corrente conservadora no Cristianismo não pode suportar a ideia da existência de uma energia criativa potencial, pois para ela tudo já está definitivamente realizado. É assim que se empobrece o Cristianismo: quando se pretende limitá-lo, quando suas possibilidades são temidas. Nossa tarefa certamente não consiste em adaptar o Cristianismo ao evolucionismo naturalista contemporâneo, como o fizeram certos “modernistas”, mas antes descobrir em suas profundezas um princípio independente de desenvolvimento.

 

Se a Igreja cristã é o Deus-humanidade, então as novas experiências que se revelam nas lutas do espírito, nas contradições e nas provas da liberdade humana, devem fazer parte da nova era do Cristianismo. É assim que se revela a humanidade, e ela é chamada por Deus a se revelar livremente. Mas o que torna essa questão particularmente angustiante é não saber se essa experiência vem de Deus e se realiza por Deus, ou se vem de Satanás e se realiza por esse último. Pois todo o mistério da liberdade reside precisamente no fato de que ela pode se orientar para Deus ou contra Ele. e a história moderna a esse respeito é singularmente complexa.

 

O desenvolvimento criativo do espírito, o livre desdobramento das forças humanas, não pode ser encarado de um ponto de vista jurídico, como a realização de uma norma exterior, como a submissão a uma ordem estabelecida por toda eternidade. Devemos concebê-la como a livre cooperação do homem à obra divina. No desenvolvimento espiritual, criativo, existe um novo princípio, que a liberdade humana oferece a Deus, e que Deus espera do homem. A vida do espírito não constitui uma ordem natural de duração eterna, mas sim um processo dinâmico criador. O desenvolvimento espiritual é possível porque existe a liberdade. A fonte do desenvolvimento não é o ser transcendente, enquanto norma imutável, mas o abismo (Ungrund) que deve ser iluminado, e no qual nasce a luz. Uma concepção intelectualista da natureza conduz à negação da possibilidade do desenvolvimento, porque ela tende a reconhecer a ordem estabelecida como definitiva. Ela encara o desenvolvimento apenas como uma transposição quantitativa que se efetua no mundo material, como uma evolução exterior. Mas o desenvolvimento, no sentido autêntico do termo, é o desabrochar do espírito, a eclosão das forças íntimas ocultas que jazem nas profundezas, e não num deslocamento que se dá no mundo exterior. O evolucionismo ignora o sujeito livre e criativo e não reconhece o mistério da criação que procede da liberdade do espírito.

 

NA vida religiosa, é evidente que não existe evolução, no sentido moderno da palavra, pois o Cristianismo não evolui, ele não tem necessidade de progresso, que constituísse um processo necessariamente bom, que realizasse uma norma absoluta e encaminhasse ao objetivo supremo do futuro. O desenvolvimento espiritual constitui um dinamismo que se fundamenta sobre a liberdade, não sobre a necessidade. Para a teoria da evolução, o desenvolvimento constitui uma necessidade natural. Para a teoria do progresso, o desenvolvimento da humanidade representa a necessidade moral da realização progressiva de uma norma, de uma aproximação inevitável do objetivo. Mas aqui existe igualmente uma negação da liberdade de espírito e da criação. O desenvolvimento no Cristianismo não é um processo inelutável, ele é uma eclosão do espírito, que se produz desde o interior, uma penetração do mundo espiritual no mundo natural. Aqui, o desenvolvimento espiritual aparece também como uma penetração do espírito transcendente. O desenvolvimento espiritual não consiste numa revelação imanente da natureza, provocada por ela mesma. No processo imanente da natureza, não existe mais do que uma nova repartição da energia e da matéria. O desenvolvimento espiritual é a vitória do espírito sobre a natureza, uma vitória que é preciso compreender como um ato de liberdade, não de necessidade.

 

A esperança num desenvolvimento do Cristianismo é uma esperança na possibilidade de superar sua sujeição ao mundo natural; é também a esperança de uma divulgação e de uma manifestação ainda maior do espírito, que se efetue pela liberdade. A negação da possibilidade de um desenvolvimento no Cristianismo é o resultado da ligação do espírito às formas naturais; ela testemunha a ignorância da verdadeira natureza do espírito, que é uma natureza de fogo. Heráclito, Jacob Boehme e Dostoievsky compreenderam essa natureza do espírito melhor do q eu muitos outros. Neles, encontramos mais verdade do que em Parmênides, São Tomás de Aquino, Hegel ou Spencer. Mas para a consciência cristã, a ideia primordial não é a do progresso ou do desenvolvimento, mas a da iluminação e da transfiguração.

 

 

IV

 

O mundo espiritual é uma torrente abrasadora, um dinamismo criativo na liberdade. Mas, no mundo natural, o movimento do espirito se torna lento, pesado, e se reveste da forma da evolução. Um movimento criador autêntico se efetua sempre segundo uma vertical, ou seja, em profundidade. Sobre o plano horizontal, periférico, ele apenas se projeta, se objetiva. Assim é que a fonte do desenvolvimento criador reside sempre nas profundezas do espírito. O movimento se produz numa linha horizontal, porque nela são transpostos os pontos para os quais se dirige o movimento vertical, nascido nas profundezas. Um dos mais tristes erros do evolucionismo foi o de situar a fonte do movimento, do desenvolvimento, em fatores externos. O evolucionismo do século XIX jamais pôde alcançar o núcleo da existência, nem pôde ver nele a energia que gera todo o movimento. O método evolucionista consiste em se mover cada vez mais para a superfície, em situar a fonte da vida, não no interior da própria vida, mas fora dela, em um princípio que não possui nenhuma semelhança com ela. Quando situamos a fonte da vida, do movimento, no exterior, nos damos conta de que tampouco ali se encontra a causa interior, e então é preciso ir mais longe, mais para fora, para encontrar pontos exteriores que permitam justificar o desenvolvimento. A teoria evolucionista não atinge senão um domínio secundário, e não o original; ela não atinge mais do que a projeção, jamais a iniciativa criadora.

 

A inserção do princípio do desenvolvimento no Cristianismo não implica sua subordinação a uma evolução que se produz em linha horizontal, determinada por fatores exteriores ao espírito cristão. Nesse sentido, o Cristianismo é anti-evolucionista. Mas o princípio do desenvolvimento no Cristianismo pode existir em função da natureza livre, criativa e dinâmica do espírito. No interior, nas profundezas, sempre se produz uma criação derivada da liberdade, e o que a nós aparece como desenvolvimento não se efetua senão exteriormente, numa linha horizontal, sobre um plano de projeção.

 

O desenvolvimento é uma categoria exotérica. É sobre o plano de nosso mundo que se produz o desenvolvimento, mas é também aí que encontramos o estado estático, a inércia e o entorpecimento. No próprio espírito, no mundo interior, nada existe de inerte, tudo está em movimento, mas não existe aí nem desenvolvimento, nem evolução, no sentido superficial do termo. Aí, nada é determinado por fatores externos, tudo deriva da profundidade. O processo de desenvolvimento no Cristianismo, no sentido em que eu o entendo, não significa senão uma coisa: é que não existe ruptura entre os dois mundos, o eterno e o temporal, que a eternidade pode penetrar no  tempo e que o tempo pode entrar na eternidade. O estado estático denota sempre o isolamento do mundo, seu caráter fechado, o limite estabelecido por toda eternidade. Falamos de um desenvolvimento dogmático da Igreja: isso significa que nas profundezas se forma uma nova experiência religiosa, que a natureza abrasadora do espírito tende a de expressar exteriormente nas formas desse mundo. Exteriormente, esse processo adquire o aspecto de um desenvolvimento. Quando um movimento criador do espírito se realiza segundo uma vertical, ou seja, em profundidade, é inevitável que se desenvolva uma linha horizontal, assim como é impossível detê-la. Um novo vinho do espírito se elabora, e ele necessita de novos odres.

 

Existem épocas em que se produz uma espécie de “reencarnação” no mundo. Nossa época é uma dessas. Todas as formas antigas caíram em desuso, a carne histórica se corrompe; ela já não pode satisfazer as almas. O mundo se desencarna, se podemos nos expressar assim, e é difícil prever de que maneira ele se “reencarnará” novamente. Esse processo de desencarnação é acompanhado da perda da beleza plástica da vida, que se torna informe, e muitas vezes disforme; a perda do estilo arquitetônico é um dos sintomas característicos disso. A Beleza desaparece, não apenas da vida, como também da arte; é o que o futurismo proclama em alta voz. A receptividade estética se intensifica nas épocas de desdobramento e de desencarnação. Mas o objeto dessa receptividade morre.

 

O que se produz na civilização contemporânea, a materialização e a mecanização da vida, constitui precisamente um processo de desencarnação, a morte da carne histórica. Perece a forma concreta do agregado orgânico. A materialização da vida humana não é uma encarnação, mas uma desencarnação. A máquina separa o espírito da carne. Na civilização mecânica desaparece a síntese orgânica entre a alma e o corpo. A máquina destrói as formas plásticas da carne histórica; ela substitui o elemento orgânico por um elemento mecânico. Toda a organização da vida do mundo cristão sofre um terremoto. E muitos homens, amarrados a esse estado – o qual identificam com a existência – imaginam assistir ao fim do Cristianismo, ao fim do mundo. Na realidade, é o Cristianismo gregário que acaba e perece. As próprias bases da ordem social, à qual enxertou-se o Cristianismo histórico, são sacudidas. Mas, para além das convulsões exteriores de uma ordem que se supunha eterna, esconde-se uma experiência espiritual. O Cristianismo de costumes se corrói, porque o espírito o ultrapassou. Mas a verdade eterna do Cristianismo não foi atingida por esse solavanco. O Cristianismo não pode se unir para sempre à carne histórica temporária, a uma estrutura social. Não podemos encarar esse processo de desencarnação e de reencarnação do mundo, da maneira como o faz a teoria do progresso, para a qual toda transição é necessariamente um processo bom. Na realidade, esse processo é duplo: se forças malignas agem nele, o espírito também obtém conquistas positivas.

 

Do ponto de vista da teria da evolução, somos obrigados a reconhecer que a civilização mecânica conduz à regressão da organização humana. Em épocas anteriores, o homem estava muito mais armado, do ponto de vista antropológico, ele era mais forte, seu organismo era mais desenvolvido do que o é hoje, no auge da civilização. Ao progresso social juntou-se uma regressão biológica e antropológica. O aperfeiçoamento foi transposto, do homem para o meio social. Sem os meios técnicos desse meio, o homem se vê impotente e desarmado. Por conseguinte, se encaramos objetivamente a evolução, do ponto de vista antropológico, devemos reconhecer nela um duplo processo, e a questão se torna singularmente complexa se considerarmos isoladamente cada época histórica.

 

Assim é que se apresenta uma profunda dualidade no processo da história moderna. Seu desenvolvimento e seu progresso vêm acompanhados de uma diminuição do espírito, de uma orientação do homem para a vida terrestre e passageira. Os povos se tornam menos religiosos, eles hoje são incapazes da santa loucura religiosa da Idade Média. A razão destruiu o mundo espiritual no homem; o desejo de aproveitar a vida terrestre, a concupiscência dos bens desse mundo domina o homem da nova história. Esse é apenas um dos aspectos desse processo, mas existe ainda outro.

 

A história contemporânea e o desenvolvimento que se realiza nela constituem uma acumulação, um entesouramento de novas experiências da humanidade. A alma humana se complica, desabrocha e se desenvolve. A rudeza e a crueldade dos séculos anteriores diminuíram, despertou uma maior humanidade; uma nova compaixão surgiu no mundo, não apenas entre os homens, mas em relação aos animais. Uma consciência mais sensível e mais refinada se manifesta hoje, que não pode se reconciliar com a crueldade, a violência, a mentira, e ela exige o amor e a liberdade.

 

Por que motivo o Cristianismo – ortodoxo e católico – não buscou modificar, num espírito de amor cristão, as relações sociais, por que, com tanta frequência, ele sustentou uma organização da vida fundada sobre princípios não cristãos de violência e crueldade, por que tantas vezes na história ele defendeu os ricos e os poderosos desse mundo, em detrimento dos pobres e dos fracos? Não é o Cristianismo, mas os cristãos, que são culpados disso. A alma humana, cruel e limitada, animada por instintos ferozes, deformou o Cristianismo e nele deixou sua marca. Essa deformação da verdade cristã muitas vezes se revestiu da forma de um amor e de uma solicitude em relação à salvação eterna da alma. O medo da danação eterna, não apenas para si, mas também para o próximo, determinou violências e crueldades, ao custo das quais se esperava obter a libertação e a salvação;

 

Mas no decurso do processo histórico, a alma humana se transformou, ela se tornou mais pacífica sob a ação misteriosa e imperceptível do Cristianismo, embora exteriormente ela tenha com frequência se distanciado dele. O desenvolvimento positivo da alma humana é obra do Cristianismo. Mas o progresso humanista, ao mesmo tempo em que diminuía a crueldade, suprimindo a violência e afirmando a dignidade da personalidade, desembocou em novas crueldades e novas violências, no nivelamento das individualidades, na civilização impessoal, no ateísmo, na supressão da alma e na negação do homem interior. Uma nova alma efetivamente nasceu, e ela exige mais compaixão e mais doçura em relação a tudo o que vive. Novos sentimentos se desenvolveram.

 

Os cristãos contemporâneos têm dificuldade em se reconciliar com a ideia do inferno e dos suplícios eternos. O apelo constante a esses tormentos fazia sentido para o homem da Idade Média, dada sua baixa educação e disciplina; esse apelo o retinha, de certo modo, dentro da Igreja; mas é impossível educar a alma contemporânea, e menos ainda atraí-la para a Igreja valendo-se de semelhantes procedimentos. Ao contrário, do ponto de vista pedagógico, é melhor hoje em dia falar o mínimo possível a respeito, pois a ideia do inferno se tornou um obstáculo para o ingresso na Igreja. O homem atual prefere adotar o teosofismo e sua doutrina de reencarnações. Mas, quando comparada à alma das épocas anteriores, percebemos que a alma contemporânea se tornou menos íntegra, que ela se desdobrou; ela vive em contrariedades, ele tem menos fé, ela é mais fraca e muitas vezes mais superficial.

 

O Cristianismo se encontra, nesse momento, em presença de almas diferentes, e esse fato exige uma modificação de seus meios de ação. A alma humana, no fim de nosso período moderno, conheceu todas as tentações, todas as dúvidas; ela sofreu todas as provas, passou por todas as contradições da vida, desceu aos subterrâneos onde as trevas a invadiram. Ora, as Igrejas ortodoxa e católica, por tradição ou inércia, se obstinaram, anacronicamente, em preservar seu rebanho, a massa humana, contra as tentações, contra todas as experiências perigosas, contra as complicações da alma, contra o desenvolvimento intelectual.

 

O problema prático fundamental que se coloca atualmente para o Cristianismo, já não consiste em precaver exteriormente os homens contra as tentações, nem em preservá-lo das provas, mas, bem ao contrário, em ajudá-lo a sair daí, ajudá-lo a adquirir resultados espirituais fecundos. Nenhuma força é capaz de deter a evolução com todas as contradições que ela encera. O próprio Deus a quer, ele deseja a eclosão de todas as possibilidades; ele quer que a liberdade humana seja experimentada, que a experiência seja ampliada e aprofundada.

 

A Igreja cristã é eterna, mas ela deve levar em conta a evolução que se efetua no mundo, as modificações que acontecem na alma humana, e o advento de uma nova consciência. Se é possível um renascimento cristão, ele não acontecerá por meio da preservação das almas contra as tentações, mas, antes, por um retorno ao Cristianismo de novas almas que tenham atravessado as tentações e as provas. O renascimento cristão conduzirá o filho pródigo ao Pai. Nós não nos encontramos em presença do perigo de uma deserção do Cristianismo – faz tempo que o mundo se afastou da fé cristã e se deixou seduzir por todo tipo de tentações – mas em presença de um desejo de superar essas coisas e de retornar ao Cristianismo. A proteção contra as provas constitui, nesse momento, o maior dos anacronismos. O mundo já não é cristão, e o Cristianismo, exteriormente, já não predomina. É preciso ver as coisas tais como elas são: é preciso reconhecer o fato consumado. Esse é nosso primeiro dever. Nosso século não é, em absoluto, um século de “preservação”. O medo das ideias sedutoras se mostra pueril, numa época em que essas ideias se tornaram predominantes. Daqui por diante, a dominação, e, por conseguinte, a “preservação”, caberão, não mais ao Cristianismo, mas ao ateísmo que lhe é hostil, ao comunismo, e à civilização mecânica.

 

A consciência predominante da Igreja parece não ter ainda compreendido o que aconteceu no mundo, ela parece estar com um atraso de séculos. A apologética cristã, com seus métodos, parece de tal modo em desuso, que ela não pode ser nada além de algo nocivo, que entrava o retorno ao Cristianismo. O renascimento cristão não poderá se espalhar senão através de um sentimento de juventude e de criação. É difícil assustar a alma atual, com o quer que seja; ela já passou pelas tentações extremas do homodeísmo, pela religião do humanismo, pelo marxismo, por Nietzsche, pelo socialismo, pela anarquia, pelo esteticismo e o ocultismo[1]. Para essa alma, voltar a Deus, retornar ao Cristianismo, não corresponde a uma conservação, mas a uma revolução espiritual. É por meio da liberdade profunda e insondável, que a alma se aproxima de Deus e de Cristo. Esse movimento da alma contemporânea foi genialmente compreendido por Dostoievsky. Toda a literatura russa nos ilustra essa busca de Deus pela alma livre, que foi destroçada pelas tentações e que se esforça por fazê-las conhecidas pelo que elas são. Não se pode deter o desenvolvimento espiritual, é preciso que ele se realize, custe o que custar.

 

A alma humana se modificou depois da experiência trágica do humanismo; ela conheceu novas aspirações e novos tormentos. O Cristianismo, sob sua antiga forma, já não corresponde à estrutura da alma contemporânea; mas essa alma procura nele a verdade eterna. As relações entre Deus e o homem já não são determinadas pela força exterior, por um movimento horizontal, mas pela força interior, por um movimento vertical. A atitude em relação ao mal se modificou; ela se tornou mais espiritual e menos jurídica. Já não se crê que o mal possa ser freado ou vencido por meio de uma imposição exterior; a concepção atual é de que ele só pode sê-lo peça força espiritual positiva, que deve obstruir seu caminho a partir do interior. E nossa vontade deve tender a que essa força espiritual se desenvolva no mais alto grau; pois, se ela não existir, a experiência do mal e de suas consequências será inelutável e terá um significado providencial. É nisso que reside o sentido de todas as revoluções. Não é possível opor a essas um conservadorismo exterior e arbitrário, pois essa atitude em relação à vida está condenada ao fracasso. Não se pode opor à revolução outra coisa do que uma força espiritual positiva e criativa, que reforme e transfigure a vida. O mesmo acontece com o homem: se sua vida não é espiritual e criativa, ela desembocará fatalmente na vitória das tentações e da revolução.

 

É impossível proteger o homem contra o “mundo” e suas tentações, por meios coercitivos e exteriores, pois ele está mergulhado no “mundo” e nas suas seduções, e ele deve superá-los interiormente em liberdade. Doravante não será possível manter seja lá quem for sob uma “redoma”, porque todas as redomas foram destruídas, e todas as barreiras foram arrancadas. Cada um dentre nós partilha do destino do mundo e da humanidade, e devemos todos assumir nossa responsabilidade, e trabalhar aqui em baixo pela sua regeneração. É a graça de Deus que, agindo desde dentro na liberdade do homem, a transfigura interiormente.

 

 

V

 

Ao problema do desenvolvimento espiritual se liga o problema da escatologia, o do destino último da alma humana e do mundo. A nova alma cristã já não pode se conciliar moralmente com a antiga escatologia. É difícil admitir uma metafísica que pendure o destino eterno da alma na vida temporal, que escoa desde o nascimento até a morte. Para semelhante concepção, nossa breve vida terrestre pareceria uma peça, e a dignidade da eternidade estaria determinada por uma experiência cuja duração é insignificante. Em nosso Cristianismo atual, o medo dos tormentos já não pode determinar o conjunto da vida na mesma medida como que agia na consciência religiosa da Idade Média. Esse é um dos resultados do processo espiritual vivido. Para nossa consciência, essa questão é, antes de tudo, moral e espiritual, e não dogmática; ela não consiste em elaborar, como fizeram Orígenes e Gregório de Nissa, uma teoria da apocatástase. Da esfera teológico-metafísica, que resolvia os mistérios últimos do destino humano com o apoio de categorias racionais, tudo se transporta hoje para a esfera de nossa orientação espiritual, de nossa vontade moral. Já não devemos aspirar apenas à nossa salvação pessoal, mas à salvação e à transfiguração universais. A questão de saber se todos os homens se beneficiarão com a salvação, e de como se efetuará a vinda do Reino de Deus, constitui o mistério derradeiro, racionalmente insolúvel; mas devemos, como todas as nossas forças, voltar nosso espirito para que todos os homens participem da salvação. É preciso que nos salvemos todos juntos, com todo o universo, ecumenicamente, e não isoladamente.

 

Essa ideia corresponde ao espírito da ortodoxia, sobretudo ao da ortodoxia russa. Feodoroff, em sua doutrina sobre a ressurreição e sobre o caráter condicional das profecias apocalípticas, se expressou de maneira genial sobre a orientação de nossa vontade para a salvação universal. Existe aqui um grande progresso moral, uma vitória sobre o egoísmo religioso transcendente. O desejo de salvação universal é uma manifestação do amor. Nunca se elaborou uma ontologia na qual a salvação universal fosse necessária. Reconhecemos que as maiores dificuldades provêm aqui do problema da liberdade. Deus não pode salvar o homem contra sua vontade, nem forçá-lo a entrar no paraíso. Deus não deseja violar a liberdade humana. O homem é livre para escolher os tormentos longe de Deus, ao invés da beatitude em Deus; de certa forma, ele tem o direito ao inferno. Ora, o inferno é a impossibilidade de amar a Deus, em razão de uma determinada orientação da liberdade humana, em consequência de um afastamento de Deus e de uma separação em relação a Ele, de um isolamento em si.

 

A noção das penas eternas nasce da experiência em virtude da qual todo sofrimento experimentado, já durante a vida, parece se eternizar para nós. Tormentos que não fossem eternos não seriam as penas do inferno. O inferno consiste precisamente nesse infinito, nessa ignorância do fim, nessa eternidade de um sofrimento contido num único instante – e não na sua perpetuação. Uma ontologia transcendente do paraíso e do inferno não passa de uma objetivação da experiência espiritual nas categorias do mundo natural: ela é uma concepção naturalista. A doutrina das sanções póstumas não passa do produto de uma época bárbara e cruel, que via uma justiça sobre a terra baseada na afirmação dos suplícios, das torturas e dos castigos. A ideia do paraíso e do inferno constitui uma concepção que relaciona a vida espiritual com as esferas naturalistas. O inferno de Dante é ainda impregnado de elementos pré-cristãos e pagãos. Mas a escatologia deve ser liberta de todo naturalismo e deve ser expressa em termos de vida espiritual. Ora, nós encaramos a vida espiritual com um dinamismo criador, o que traz consigo uma concepção diferente da realização do Reino de Deus, da Verdade de Cristo. O Reino de Deus, assim como o inferno, não é uma existência no sentido naturalista. O Reino de Deus é a vida no espírito, e o inferno não é outra coisa do que uma experiência e um caminho espiritual; ele é o impasse, o obstáculo inextricável que parece eterno e infinito; ele representa a tragédia da liberdade humana. Se por um lado a solução do problema escatológico, fornecida pela teologia tradicional, é exotérica e racionalista, por outro a teoria do desenvolvimento e da evolução infinita o é em mesmo teor e grau. Ela torna nossa vida rarefeita, e nos impede de intensifica-la espiritualmente.

 

Nada é mais torturante do que o problema escatológico na vida e no pensamento religiosos. Três pesadelos assaltam o homem: o pesadelo religioso, ou seja, os tormentos eternos do inferno; o pesadelo ocultista e teosofista – a evolução e a reencarnação em infinitos mundos; e o pesadelo místico – a desaparição da personalidade humana em Deus. É difícil estabelecer qual desse três é o menor. Às vezes parece que o homem está pronto para consentir no inferno, a fim de evitar, a esse preço, as evoluções infinitas ou a dissolução definitiva em Deus.

 

Na ideia religiosa do inferno existe uma profunda afirmação do ser pessoal. Tocamos aqui na antinomia, na aporia fundamental, na qual desemboca o problema escatológico. Se afirmamos sistematicamente a personalidade e a liberdade, vemos aí a possibilidade do inferno. É fácil superar a ideia do inferno, mas assim agindo retiramos de nós a personalidade e a liberdade. Por outro lado, nossa personalidade e nossa liberdade não podem se reconciliar com os suplícios eternos; nossa consciência moral protesta contra essas penas. Eu ainda posso admitir a possibilidades desses tormentos para mim, e pode acontecer de que eu venha a prová-los por antecipação. Mas me é difícil concebê-los para os outros. É ainda possível admitir esses suplícios do ponto de vista do homem, mas é impossível admiti-los do ponto de vista de Deus. Já Orígenes acreditava que Cristo não aceitaria a danação, ainda que de um único ser humanos, e que Seus sofrimentos na cruz durariam até a salvação universal.

 

Outra dificuldade reside no seguinte problema: a possibilidade de um desenvolvimento infinito, a manifestação de sua natureza eterna e criativa deve ser concedida à personalidade; mas a infinitude do desenvolvimento, a ausência de um fim e de uma saída é concebida por ela como um pesadelo, como uma impossibilidade de atingir o Reino de Deus. Essa dificuldade nos ensina que o problema escatológico é insolúvel, quando o concebemos sob a perspectiva de um racionalismo naturalista. Ele só pode ser resolvido no Reino de Deus.

 

O problema da origem, do destino e do fim da alma ainda não encontrou no Cristianismo uma solução dogmática definitiva. Não apenas o destino último da alma, como também sua origem e suas fontes, são misteriosos. A opinião teológica tradicional segundo a qual a alma humana seria criada por Deus no momento da concepção física é de tal forma lamentável, que sequer vale a pena nos determos nela seriamente. Ao contrário, existe uma verdade eterna na doutrina órfica da alma, tal como enunciada por Platão. É indispensável admitir a preexistência da alma humana no mundo espiritual; ela não é filha do tempo, ela é filha da eternidade.

 

Mas a doutrina da reencarnação sobre a terra é incompatível com a ideia cristã. Ela fraciona a personalidade e introduz uma concepção naturalista na vida espiritual. Aqui chegamos aos limites da inserção do princípio do desenvolvimento no Cristianismo. Quando consideramos que esse princípio é capaz de resolver o mistério da origem e do destino final da alma humana, ele se transforma num princípio naturalista e se torna necessariamente hostil ao Cristianismo. Porém, a negação do desenvolvimento espiritual equivale à negação da necessidade que o homem tem de se aperfeiçoar, de alcançar uma perfeição semelhante à do Pai Celeste; trata-se de uma negação da busca e da realização do Reino de Deus. O limite do princípio do desenvolvimento é um mistério que protege a vida divina. O problema escatológico desemboca na distinção que é preciso estabelecer entre a infinitude e a eternidade. A infinitude das reencarnações e dos suplícios do inferno permanece no mundo natural; quanto à eternidade, ela pertence ao mundo espiritual e ao ser divino. é impossível admitir que exista paralelamente à eternidade divina, uma eternidade maligna, diabólica e infernal.



[1] N.T.: podemos acrescentar um sem-número de tendências contemporâneas, nascidas no bojo do capitalismo e do neoliberalismo, tão ou mais nocivas do que tudo o que a humanidade já assistiu antes.

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