sábado, 22 de agosto de 2020

Nikolai Berdiaev - Espírito e Liberdade - Capítulo VII: A mística e o caminho espiritual

 

 

I

 

 

Se a palavra místico deriva do termo mistério, então a mística deve ser considerada como a base da religião e como a fonte de seu movimento criador. A experiência religiosa nasce do contato imediato e vivo com o mistério último. Na vida religiosa, o torpor e a paralisia são superados e o renascimento é adquirido por um retorno ao mistério último da existência – vale dizer: pela mística. Nela a vida religiosa ainda está incandescente, ela não está nem extinta, nem fixada. Todos os grandes iniciadores e criadores da vida religiosa conheceram essa experiência inicial, esses encontros místicos, que os colocaram face a face com Deus, com o divino. Foi no fogo da experiência mística que São Paulo teve a revelação sobre a essência do Cristianismo. A mística é o solo nutriz da religião, a qual perece ao se separar dele.

 

Mas, na história, as relações efetivas entre a mística e a religião foram delicadas e confusas. A religião temia a mística e nela via frequentemente a fonte de heresias. A mística entravava, de certo modo, seu trabalho organizador e ameaçava subverter suas normas. Todavia, a religião tinha necessidade da mística, e assim ela sancionava sua própria forma de mística, como sendo a flor e o coroamento de sua vida. Existe uma mística ortodoxa autorizada e recomendada, uma mística cristã, assim como existe uma mística das religiões não-cristãs. A confissão religiosa se esforça sempre por submeter às suas normas o elemento místico, que muitas vezes era voluntário e violento. Dessa forma, existe sempre uma dificuldade nas relações entre a mística e a religião.

 

Essa dificuldade se tornou ainda mais aguda em nossa época, pelo fato de que a mística está na moda, e que essa palavra é frequentemente empregada num sentido obscuro e indeterminado. A introdução da mística na literatura contemporânea teve consequências fatais. Tentou-se dar a ela atributos de uma cultura refinada, mas o que conseguiram com isso foi deformar sua natureza eterna. A mística não constitui um psicologismo refinado, ela não é uma paixão anímica irracional, nem simplesmente uma música da alma. É por isso que a religião cristã, com toda razão, se levanta contra esse sentido que se pretendeu atribuir à mística. O psicologismo do final do século XIX e início do XX está em contradição com o significado da mística, como, de resto, também o está do Logos. Mas se considerarmos, não as obras literárias contemporâneas, mas os modelos clássicos e eternos da mística, seremos obrigados a reconhecer, antes de tudo, que ela não tem uma natureza psíquica, mas uma natureza espiritual, ou seja, ela não é psicológica, mas sim “pneumática”.

 

Na experiência mística, o homem se evade sempre de seu mundo anímico isolado e entra em contato com a origem espiritual da existência, com a realidade divina. Costumamos dizer a certos protestantes, que atribuem à mística um caráter de individualismo religioso, que a mística consiste na evasão de um estado individualista, que ela ultrapassa. A mística é a profundidade e o cume da vida espiritual, ela é uma de suas qualidades. Ela é intima e oculta, mas ela não é individualista. Windelband expressa do seguinte modo a contradição que, segundo ele, existe na mística alemã: ao mesmo tempo em que ela procede do individual, ela considera a individualidade como pecado. Mas existe aí uma contradição no plano psíquico, que cessa de existir no plano espiritual. É preciso afirmar com insistência que a mística não é um estado ou um romantismo subjetivo, que ela está isenta da oposição entre o subjetivo e o objetivo. Ela não é um estado de alma sonhador. Ela é realista, sóbria no discernimento e na descoberta das realidades. Não é um verdadeiro místico senão aquele capaz de ver as realidades e que sabe distingui-las dos fantasmas.

 

Antes de qualquer coisa, é preciso estabelecer uma distinção radical entre a mística e a magia. Essas esferas, conquanto totalmente diferentes, são facilmente confundidas. Enquanto que a natureza da mística é espiritual, a da magia é naturalista. A mística consiste na união com Deus, a magia é a união com os espíritos da natureza, com suas forças elementares. A mística é a esfera da liberdade, a magia é a esfera da necessidade. A mística é desembaraçada e contemplativa, a magia, ao contrário, é ativa e militante; ela revela as forças secretas do homem e do mundo, sem, no entanto, alcançar a profundidade de sua origem divina. A experiência mística constitui precisamente uma libertação espiritual da magia do mundo natural. Nós estamos pregados a essa magia que nem sempre reconhecemos. A técnica científica possui uma natureza e uma origem mágicas, ela é alimentada pelo desejo de conquista das forças naturais. A magia, por essência, é distinta da religião e frequentemente se opõe a ela, embora, apesar de tudo, a religião contenha em si certos elementos de magia.

 

Uma compreensão mais profunda da natureza é sempre mágica. As energias mágicas agem por toda parte no mundo. A mística é comparada à magia em razão da existência de uma pseudomística. Existem dois tipos de falsa mística: a mística naturalista e a mística psicológica, a mística da natureza e a da alma. Mas nenhuma das duas chega a alcançar efetivamente a profundidade da experiência autêntica; nelas sempre subsiste o isolamento do mundo natural e psíquico. A verdadeira mística é a mística espiritual. Nela são ultrapassadas a falsa magia e o falso psicologismo. Somente na profundidade da experiência espiritual o homem pode alcançar a Deus, somente aí ele sai dos limites do mundo natural e psíquico. Mas a mística não pode ser simplesmente identificada à vida espiritual, cuja extensão é infinitamente mais ampla. Não podemos chamar de mística senão a profundeza e o cume da vida espiritual. É nessa profundeza e nessa elevação que o homem toca o mistério final.

 

A mística pressupõe o mistério, vale dizer, a profundidade abissal, inesgotável e inefável. Mas ela pressupõe igualmente a possibilidade de um contato vivo com esse mistério, de uma vida com ele e nele. Reconhecer a existência do mistério e não admitir sua experiência viva equivale a negar a mística. Spencer reconhecia que na origem do ser repousa o incognoscível, vale dizer, um certo mistério. Mas sendo Spencer um positivista e não um místico, o incognoscível era para ele não mais do que um limite negativo. O enigma da mística não é o incognoscível e não implica o agnosticismo. Assim é que o homem não atinge a profundeza mística da vida na gnoseologia, na qual ele só entre em contanto com o incognoscível; a profundidade mística se atinge na própria vida, na experiência, na união.

 

O mistério não é uma categoria negativa, um limite. Ele resume a plenitude positiva e a infinita profundidade da vida. E, quando ele desaparece, tudo se torna superficial, limitado, desprovido de profundidade. O homem é atraído pelo mistério; assim surge uma possibilidade de viver nele e de se unir a ele. É como Mistério que a Face Divina está voltada para o mundo criado, e não a podemos ver senão como Mistério.

 

A mística tem por fundamento um parentesco interior, uma união entre o espírito humano e o espírito divino, entre a criação e o Criador; uma vitória sobre o abismo da transcendência e sobre a exterioridade. Assim é que a mística nos mostra sempre, não a transcendência da divindade, mas sua imanência, alcançada e vivida na experiência. É por isso que a mística emprega sempre uma linguagem diferente daquela da teologia. É essa também a razão pela qual, do ponto de vista teológico, ela sempre pode ser suspeita de variações heréticas. Mas a mística repousa em tal profundidade, que não é possível aplicar a ela dos critérios superficiais da heresia. Os místicos são sempre suspeito de estar orientados para o panteísmo, e quando tentamos compreendê-los racionalmente, traduzi-los em linguagem teológica ou metafísica, chegamos facilmente a esse ponto. O panteísmo constitui na realidade uma doutrina profundamente racionalista. Ora, a mística emprega uma linguagem paradoxal e antinômica; para ela, tanto a identidade como o abismo entre a criatura e o Criador podem existir na mesma medida. A mística não pode ser expressa nem pelo monismo panteísta, nem pelo dualismo teísta.

 

A teologia e a metafísica que predominam oficialmente na consciência da Igreja, em especial na consciência católica, elaboram um dualismo ontológico que separa o Criador da criação, o sobrenatural do natural. Tudo é repartido e dividido, e não se permite nenhuma confusão. É verdade que São Tomás de Aquino admitia a mística paralelamente a filosofia natural e à teologia, e nisso podemos ver nele a influência do pseudo-Dionísio. Mas a metafísica e a teologia do tomismo não favorecem o mistério, pois elas afirmam as contradições que esse último se esforça em superar; elas não o admitem senão como um domínio diferencial, mas para elas o Cristianismo não é místico.

 

No que consiste a essência da mística?  A MÍSTICA É O TRIUNFO SOBRE O ESTADO DE CRIATURA. Ela é a definição mais profunda e mais intrínseca de sua natureza. Na experiência mística, já não existe o dualismo insuperável que opõe o sobrenatural ao natural, o divino à criatura; nela, o natural se torna sobrenatural, e a criatura se deifica. Mas a união perfeita com Deus não implica a desaparição do homem, nem a da distinção entre as duas naturezas. Somente o nada é superado. A mística é o caminho da deificação, da Theosis do homem e do mundo. Sobre esse ponto, os místicos de todas as épocas e de todas as confissões estão de acordo.

 

A religião mantém a oposição transcendente e dualista entre Deus e o homem, entre o Criador e a criação. Nossa devoção religiosa está baseada na distância, num sentimento de nossa insignificância enquanto criatura. A mística nos mostra que a oposição transcendente entre Deus e o homem, a consciência da infinita pequenez desse último, não é a expressão definitiva do mistério da vida, do mistério de existência. O imanentismo é próprio a toda mística, mas trata-se de um imanentismo inteiramente particular, que difere absolutamente daquele que os diversos gnoseólogos imanentistas apresentam. Trata-se da imanência do Espírito Santo no mundo criado.

 

A mística é também supra confessional por natureza, embora existam tipos de mística confessional, com métodos específicos que devem permitir superar a limitação confessional. Existe na mística uma profundidade na qual se unem não apenas os tipos confessionais da mística cristã, como também alguns tipos de místicas pagãs. O Orfismo de Plotino, a mística hindu e sufi, São Simeão o Novo Teólogo e São João da Cruz, Eckart e Jacob Boheme, convergem de certo modo; eles interpelam a partir de mundos diferentes, e muitas vezes falam uma única e mesma língua. Esse é um fato indubitável, por mais desagradável que possa parecer aos fanáticos da mística confessional.

 

Encontramos esse triunfo sobre o estado de criatura nos mais autênticos místicos da Ortodoxia e do Catolicismo. O grande místico do Oriente ortodoxo, São Simeão o Novo Teólogo, disse: “Eu Te agradeço, ó Deus que reina acima de todos, porque Te tornaste, não conjuntamente, infalivelmente, imutavelmente, um só espírito comigo”. E eis como ele descreve a luz que entreviu na sua experiência espiritual: “Essa luz não é do mundo, nem qualquer coisa que seja desse mundo, nem a criatura, pois ela é incriada e permanece fora das criaturas, como algo incriado entre as coisas criadas”. Ele igualmente traduz a união mística e a fusão com Deus nos seguintes termos: “Mas ainda que tivéssemos nos tornado um, eu e Aquele a quem eu me uni, eu, que Ele criou duplo, como poderia eu me chamar de Deus, que é duplo por Sua natureza e único por Sua Hipóstase? Mas tenho me criado duplo, Ele me concedeu, como você pode ver, um nome duplo. Eis a distinção: eu sou homem pela minha natureza, e Deus pela graça”. “Ele subitamente veio até mim e se uniu a mim de maneira inefável, e sem confusão Se confundiu comigo, como o fogo no ferro e a luz no vidro”. “De que outra maneira poderia o fogo divino descer em seu coração, abrasar-se nele, inflamá-lo e uni-lo a Deus, tornando indivisíveis a criação e o criador!”.

 

A via mística conduz à transfiguração e à iluminação da criatura. “Eu me alegro por Teu amor e por Tua beleza, e me sinto cumulado de felicidade e de doçura divinas. Eu comungo da luz e da glória: minha face reluz como a de meu Bem-amado, e todos os meus membros se tornam luminosos. Agora eu sou mais belo do que os belos, mais rico do que os ricos, mais forte do que os mais fortes, maior do que os imperadores e mais honorável do que tudo o que é visível, não apenas na terra e sobre a terra, como no céu e além do céu”. “Pois ao mergulhar em Tua luz, a inteligência se ilumina e se torna uma luz semelhante à Tua glória, e ela se chama agora Tua inteligência, pois aquele que é digno se tornar tal, é digno antão de possuir Tua inteligência e se unir a Ti indivisivelmente”. “Ele (o Criador) tornará incorruptível todo corpo, e te fará Deus pela graça, semelhante ao Princípio Original”. “Minhas mãos são as de um infeliz, e meus pés são os de Cristo. Eu, indigno, sou a mão e o pé de Cristo. Eu movo minha mão e minha mão é Cristo inteiro, pois a divindade de Deus se uniu a mim indivisivelmente, e eu movo meu pé e ele brilha como Ele”.

 

Falando de um certo asceta, São Simeão diz: “Pois ele possuía Cristo inteiro, e ele próprio era como Cristo, ele tinha seus membros e os membros do outro, ele os tinha únicos e múltiplos. Ele meditava todo o tempo como Cristo, sempre imóvel, invulnerável e impassível, Cristo por inteiro, e é assim que ele via a Cristo em todos os que são batizados em Cristo e que de Cristo se revestiram”.

 

Na mística extática de São Simeão são descritos os cumes aos quais a criatura é transportada, nos quais ela é iluminada e deificada. Estados análogos são descritos nos famosos diálogos de Motoviloff com São Serafim de Sarov, ocasião em que ambos estavam no Espírito Santo. Motoviloff viu São Serafim se tornar radiante, luminoso, impregnado de um suave odor. A mística católica se distingue, por seu tipo, da mística ortodoxa. No entanto, o grande místico católico, São João da Cruz, nos fala assim do triunfo sobre o estado de criatura, sobre a união com Deus: “Essa saída me encheu de felicidade; pois num instante eu havia sido elevado da estados divinos e a conversações familiares com Deus; vale dizer: meu entendimento havia passado de um estado humano a um estado divino. Pois, ao me unir a Deus por meio dessa purificação, em já não possuía um conhecimento débil e limitado de como ela era; mas eu conhecia pela sabedoria divina à qual eu havia me unido. Minha vontade havia saído de si mesma e se tornado, de certo modo, divina; pois, estando unida ao amor divino, ela agora amava, não com suas primeiras forças, mas com as forças do espírito divino”.

 

“O estado de união divina consiste em que a vontade da alma se transforma inteiramente em vontade de Deus, de sorte que a vontade de Deus se torna o único princípio e o único motivo que a faz agir em todas as coisas, como se a vontade de Deus e a vontade da alma não fossem senão uma única vontade”.

 

O estado de união divina que São João da Cruz e outros místicos católicos descrevem constitui o triunfo sobre o estado de criatura. Esse triunfo encontra na mística de Eckart sua expressão clássica. O dominicano Denifle mostrou que Eckart era um católico ortodoxo num grau bem mais profundo do que se suspeitava até então, e que em seus tratados de teologia latina recentemente descobertos ele era completamente tomista.

 

Ora, eis o que enuncia Eckart: “Deus não espera senão uma coisa de ti, é que saias de ti mesmo, na medida em que és criatura, e que deixes Deus ser Deus em ti”. “Por amor a Deus, sai de ti mesmo, a fim de que por amor a ti Ele faça a mesma coisa. Quando ambos tiverem saído, o que restar será, de certo modo, único e simples”. A mística de Eckart admitia que a distinção entre o Criador e a criação, entre Deus e o homem, pode ser definitivamente superada na profundidade última da gnose mística. “O não-ser está além de Deus, além da diferenciação. Somente lá eu fui eu mesmo, eu quis a mim mesmo, eu vi a mim mesmo como sendo aquele que criou o homem. Lá eu sou a causa primeira, a de meu ser eterno e temporal. Somente lá eu nasci (...) Pelo princípio eterno de meu nascimento, eu era de todos os séculos, eu sou e continuarei pela eternidade (...) Em meu nascimento, nasceram todas as coisas; eu fui minha causa primeira e a causa de todas as coisas. Eu desejei que nem eu fosse, nem elas. Mas, se eu não existisse, também Deus não existiria”.

 

Encontramos o mesmo espírito no grande místico alemão Angelus Silesius: “Eu devo ser o Verbo no Verbo, Deus em Deus”. “Eu sou tão grande quanto Deus, e Ele é tão pequeno quanto eu”. “Todo cristão deve ser o próprio Cristo”. “Quem quer a Deus deve se tornar Deus”. “Em Deus só os deuses são recebidos”. Todos esses extratos, de diversos místicos, cuja enumeração poderia se estender ao infinito, estão escritos numa linguagem particular, que não pode ser traduzida pela linguagem da metafísica ou da teologia. É a descrição do caminho, da experiência, dos acontecimentos e dos encontros místicos. Nós admitimos que a teologia e a metafísica racionais contêm a verdade, no que se refere ao abismo transcendente ente o Criador e a criação, entre os mundos sobrenatural e natural. A mística suprarracional não é menos verdadeira, quando entrevê a possibilidade de superar esse abismo. Uma verdade não contradiz a outra. Elas não expressam senão momentos diferentes, diferentes estados da experiência. A mística não elimina os dogmas, mas ela alcança uma profundidade maior do que aquela na qual são elaboradas as fórmulas dogmáticas. A mística é mais profunda, mais fundamental do que a teologia, mas ela, evidentemente, comporta muitos perigos.

 

Na mística tudo se torna interior, tudo é absorvido dentro, nada existe que seja exterior, não há nenhuma objetivação. A mística me liberta do mundo natural e histórico que me é exterior e absorve no espírito toda a evolução da natureza material e da história. Viver um acontecimento de modo místico equivale a vivê-lo interiormente, espiritualmente, nas profundezas do espírito. No caminho místico, todo o universo exterior objetivado se extingue, a noite da sensibilidade se aproxima, e somente no interior do mundo espiritual e divino é que tudo se revela. As realidades últimas não se revelam senão na mística: nela, o homem se evade do mundo secundário e reflexo, do mundo dos símbolos. Tudo aquilo que, na religião, na teologia, no culto, era simbólico e prefigurado na carne, se torna realista na mística, se revela como profundeza última da vida original. Somente na contemplação e na união místicas se pode adquirir a vida eterna.

 

A mística pressupõe uma concepção simbólica do mundo, mas vai além do simbolismo, abandonando os símbolos para se voltar para as realidades. Uma consciência superficial estima que a religião é mais realista do que a mística. Mas a religião comporta sempre uma parte de mística, e dela extrai suas origens. Não há religião que não tenha encontros místicos com as realidades. Mas uma religião positiva está sempre orientada para a vida natural e histórica dos povos, ela possui uma natureza social, ela organiza a vida das massas, ela sempre pressupõe o coletivo. A religião estabelece e organiza socialmente uma ligação e um parentesco, uma comunhão com Deus que pressupõe uma divisão e uma oposição transcendente. A religião educa, ela guia, ela estabelece graus hierárquicos de vida espiritual, ela ensina os caminhos, lembrando sempre que a vida espiritual está elaborada, não apenas tendo em vista uma ascensão a Deus, como também uma descida para o mundo pecador. Na religião, os elementos heteronômicos são inevitáveis. A religião se dirige a toda a humanidade, às massas populares, aos pequenos; ela leva a todos a verdade e a luz, ela não existe somente para a aristocracia espiritual, para os eleitos. A própria experiência religiosa que nos parece heteronômica e autoritária está marcada pela piedade e pela devoção. Em cada um de nós se encontram elementos de religiosidade heteronômica.

 

A Igreja é sábia quando condena o orgulho da via mística. Na religião existe não somente uma heteronomia, como também um exoterismo; ela é não somente uma revelação, como também um conjunto de mistérios. Esses mistérios divinos revelam-se por degraus, na medida do conhecimento espiritual dos homens, na medida da receptividade de sua consciência. Mas, para além do exoterismo existe sempre o mistério. A mística constitui o esoterismo da religião, e assim ela só existe para alguns homens, para uma minoria, enquanto que a religião deve existir para todos, e é nisso que reside a dificuldade de sua tarefa. Os elementos heteronômicos e exotéricos da religião podem sempre degenerar e o espírito da vida religiosa pode ser calado. Então, é indispensável que se possa recorrer à mística, ao esotérico, à fonte original. Esse é um dos aspectos das relações entre a mística e a religião.

 

Mas existe outro aspecto. Nem toda mística é necessariamente boa. Ela também pode se deformar e se corromper; uma mística irreligiosa, carente do Logos, degenera facilmente e pode precipitar o homem nas trevas, nos abismos inferiores. Pode haver uma mística na qual o espiritual, o psíquico e mesmo o corporal sejam confundidos, na qual o espírito não seja mais puro, mas perturbado. Existem tipos de místicas orgíacas, nas quais o espiritual é absorvido pelos elementos psíquico ou corporal, e acaba submetido a eles. Exemplos disso são os cultos de Dionísio e dos chlistis[1]. A mística pagã aspirava a uma espiritualidade, sem, no entanto, atingi-la. Mesmo no seio do Cristianismo encontramos o êxtase místico da carne santificada, na qual o espírito infinito é submetido ao finito; existe aí uma teofania pseudomística.

 

A mística traz grandes problemas para o mundo cristão. Onde começa a mística, finda a esfera da precisão dogmática, daquilo que é universalmente válido. As relações entre a mística e a Igreja são muito complexas. A Igreja ortodoxa e a Igreja católica jamais negaram a mística, mas ela a temem e desconfiam de suas tendências. A Igreja exterior e oficial é normalmente hostil à mística, e é difícil encontrar nela o menor reflexo entre os que são cristãos por tradição. A base mística do Cristianismo é negada pela teologia oficial, e o racionalismo se expandiu fortemente entre os dignitários da Igreja. Negamos o misticismo do Cristianismo, esforçando-nos por torná-lo inofensivo e estabelecemos formas de mística que possam ser oficialmente reconhecidas. A Igreja ortodoxa, e a católica, possuem cada qual uma mística oficial. Mas existem diversos tipos de mística cristã das quais se desconfia, e que são definitivamente condenadas. Tais são em especial a mística gnóstica, que sempre se opõe a teologia e que transgride a ordem hierárquica estabelecida, e também a mística profética.

 

Existe uma dupla compreensão da mística. Ela pode ser uma forma particular diferencial da vida e do caminho espiritual, o ápice desse caminho e o ornamento dessa vida. Nesse caso, ela pressupõe uma certa disciplina e etapas específicas. Seu objetivo é a contemplação de Deus e a união com Ele. A mística autorizada pela Igreja está ligada a essa concepção. Ela está de tal forma unida ao ascetismo que as obras místicas e ascéticas são facilmente confundidas. Assim é que os extratos da literatura patrística reunidos na Filocalia possuem um caráter claramente ascético. O ascetismo ensina as maneiras de lutar contra as paixões, de superar a natureza do velho Adão, e ela revela o que provém do homem. A mística, ao contrário, nos fala da contemplação de Deus e da união com o Divino, e ela nos revela o que procede de Deus. No ascetismo oriental, reconhecido pela Igreja, houve grandes místicos. Dentre eles podemos citar acima de tudo São Macário o Egípcio, São Máximo o Confessor e São Simeão o Novo Teólogo. Mas na maior parte da literatura ascética não existe mística; ela não é alcançada aí. Em São João da Cruz, que representa o modelo clássico da mística católica ortodoxa, livros como A subida do Monte Carmelo e A noite escura da alma são acima de tudo ascéticos, e outros, como A chama viva do amor, são puramente místicos. A vida mística sancionada pela Igreja representa um cume espiritual, o coroamento da vida dos grandes santos, cada qual dotado de dons particulares. A Igreja católica, na qual tudo é tão bem organizado, também modelou sua mística e lhe assinalou um lugar específico. Ela não deve se estender a todos os graus hierárquicos, nem fundamentar nossa concepção do mundo, e deve manter-se dentro de seus limites.

 

Mas existe um outro entendimento da mística, que ocupa um lugar muito importante, e que não pode ser eliminado. A mística pode ser considerada como a profundidade da vida, como um sentimento que abarca todo o universo; ela se propaga, ela está em toda parte; de todos os lados somos rodeados por um mistério, e em tudo vemos os seus símbolos. O sentimento que nos toma diante do profundo mistério que cerca a vida, é também uma espécie de mística. Existem homens especialmente dotados, que possuem os carismas de uma sensação e de uma compreensão místicas do mundo, independentemente de qualquer santidade. É possível ser santo sem possuir um dom místico, e pode-se ter um dom místico, sem por isso ser santo. Voltamos sempre ao mesmo torturante problema referente aos dons, que não são méritos, como o gênio, que não se deve nem à perfeição, nem à santidade. Não apenas existem homens favorecidos por dons místicos, como existe também uma mística inerente à natureza humana em geral, pois o homem é um ser espiritual que não pertence unicamente a esse mundo.

 

É por isso que a história da vida e da cultura espirituais da humanidade compreende místicos e uma criação mística que não provêm de nenhuma disciplina, nem de uma via em particular. Dostoievsky era um místico por seu sentimento e sua compreensão da vida, pelo caráter de sua criação, ainda que não tenha praticado nenhuma disciplina em especial. Sua mística pertencia por excelência ao tipo profético. Baader, Joseph de Maistre, Solovieff, Léon BLoy eram místicos, ainda que estivesse longe da santidade.

 

Podemos nos exprimir assim: existe a mística que consiste num aperfeiçoamento da alma, numa ascensão espiritual, numa aproximação de Deus, e existe uma outra mística, que consiste no conhecimento dos mistérios da existência, dos mistérios divinos. A primeira forma predomina oficialmente na Igreja. Esse é o reino do momento moral, ascético e purificador. Essa forma de mística professa antes de tudo a renúncia ao “mundo” e a concentração em Deus. Mas existe uma mística gnóstica, que deu à humanidade grandes gênios criadores. Basta nomear Plotino, a Cabala, Eckart, Boehme. Como os classificaríamos? A mística gnóstica sempre provocou uma certa desconfiança na consciência da Igreja. A teologia sentis, de certa forma, um ciúme em relação à gnose mística, considerando-a como um falso conhecimento. Por isso, um dos maiores dons que o homem jamais recebeu foi condenado. A mística alemã, uma das manifestações do espírito humano, era gnóstica; fora das divisões estabelecidas pela metafísica e a teologia, revelou-se nela um conhecimento espiritual, uma percepção dos mistérios divinos.

 

A história do espírito humano, da cultura humana, testemunha que o dom da gnose mística, da contemplação dos mistérios da existência, é um dom particular, que de modo algum pode ser identificado com a santidade. Jacob Boehme possuía esse dom num grau infinitamente maior do que São Francisco, do q eu São Domingos e mesmo de São Tomás de Aquino, que, todavia, era também filósofo. E, se São Serafim de Sarov possuía o dom da contemplação dos mistérios cósmicos, isso provinha não da aquisição da santidade, mas de um carisma individual. A questão dos dons, das aptidões, do gênio, que são manifestações do espírito humano, jamais foi bem resolvida pela consciência cristã. Temos um exemplo no que diz respeito ao dom místico, o gênio gnóstico. Os dons prodigiosos de um Plotino ou de um Jacob Boehme não podem preceder senão de Deus, e eles são necessários por causa da criação divina. A consciência da Igreja, inspirada por considerações pedagógicas, se esforça por submeter a mística à lei, mas, fazendo isso, seus maiores dons acabam por ser banidos.

 

 

II

 

Heiler estabeleceu uma distinção entre o tipo místico e o tipo profético. Essa distinção é importante, mas a terminologia proposta é convencional. Não se trata de opor dois tipos um ao outro, mas antes de estabelecer uma categoria particular de mística profética, na qual predominam claramente elementos escatológicos e apocalípticos. Essa é a mística que penetra nos mistérios do devir, dos destinos da humanidade e do mundo, a mística que está orientada para o fim das coisas. A mística profética, que por seu próprio espírito é transformadora, é aquela que, no Cristianismo, mais se distingue da mística sacramental, santificadora, que é, por excelência, conservadora. Na história do Cristianismo a mística profética jamais foi extinta em definitivo. Ela representou uma tradição íntima, e se ligou estreitamente ao movimento criador na Igreja.

 

O Cristianismo nasceu, no mundo, da mística escatológica da primeira comunidade cristã. A consciência da insuficiência da revelação e do caráter inacabado da Igreja, faz parte da mística profética, assim como a ideia da possibilidade de uma nova revelação no Cristianismo e de um movimento criador que se opere nele. Essa forma de mística é a que a consciência da Igreja menos reconhece, porque a mais ortodoxa não é nem profética, nem gnóstica. O que existe de profético no Cristianismo constitui precisamente sua problemática. Será a profecia possível na época cristã da Nova Aliança? A opinião que considera a profecia como apanágio da Antiga Aliança, que não podia se referir mais do que à vinda do Messias, do Cristo Salvador, é largamente difundida. Mas parece que nos esquecemos de que o Apocalipse, a revelação de São João, obra profética, faz parte dos livros santos do Novo Testamento. Esquecemo-nos de que existe no Cristianismo a profecia sobre a segunda vinda de Cristo, aquela da transfiguração, da iluminação e do fim do mundo, do novo céu e da nova terra. O sacerdócio sempre teve tendência a negar a profecia, e essa, por seu espírito, não pode se submeter a ele, nem dele depender. A profecia é livre, ela não está ligada a nenhum princípio hierárquico, ela representa uma inspiração e uma aptidão pessoal, individual. O profeta não pertence, como o sacerdote, à ordem angélica, mas à ordem humana. A ideia central de Vladimir Solovieff foi de defender, no Cristianismo, os direitos da consciência e da função proféticas; ele colocou a profecia no mesmo nível do sacerdócio e do reino.

 

No Cristianismo, o espírito profético está em conflito com o espírito da lei. Toda a orientação para a Segunda Vinda de Cristo, para a Ressurreição, é marcada pelo espírito profético. Nesse mistério escatológico, o sentimento que o homem tem de sua infinita pequenez, é superado. A mística profética é a mística do Espírito Santo. É uma mística russa por excelência. Ela é inerente ao povo russo, e nasceu sobre o terreno espiritual da Ortodoxia, ainda que essa religião e sua hierarquia oficial possam ser-lhes hostis. Isso nos conduz à distinção entre a mística ortodoxa e a mística católica.

 

É preciso buscar a diferença entre a ortodoxia e o catolicismo, antes de tudo, na esfera da mística, na diferença entre as experiências espirituais, entre os caminhos seguidos. Todo o universo cristão é único em sua profundidade. A mística ortodoxa e a mística católica são místicas cristãs com igual direito. Mas esses dois mundos caminharam por vias diferentes e elaboraram duas formas diversas de espiritualidade, ainda que se dirigindo a um só e mesmo objetivo. A mística ortodoxa aspira à aquisição da graça do Espírito Santo; nela, a natureza humana se transfigura, se ilumina, se deifica interiormente. É a mística do coração, do coração que é o centro da vida. Para adquirir a integridade espiritual, a inteligência deve se unir ao coração. Cristo penetra no coração, modificando toda a natureza humana, e o home se torna outra criatura. A noção da theosis é a noção fundamental da mística ortodoxa, que está orientada era a transfiguração da criatura. Ela pressupõe uma façanha ascética, uma luta heroica contra o antigo Adão. Mas a mística ortodoxa é luminosa e feliz, e nela se revela o mistério da criação divina. A graça do Espírito Santo é obtida pela humildade, não pelo sofrimento.

 

A mística católica e mais “Cristocêntrica” e mais antropológica. Ela é a mística eucarística por excelência. Existe em geral no catolicismo uma tendência a compreender a natureza do Espírito Santo de maneira subordinada. Costuma-se identificar o Espírito Santo com a graça. A mística católica consiste numa imitação de Cristo, na qual são revividas as paixões do Senhor. Daí provêm os estigmatas, inconcebíveis para a ortodoxia. O sacrifício, a cooperação na obra da redenção pelo sofrimento humano, pelos méritos supererrogativos, são essenciais na mística católica. Nela, o caminho do homem, o da ascensão mais elaborada, é organizada e disciplinada. Na forma clássica da via mística, são estabelecidas três etapas: a vida purgativa, a vida iluminativa e a vida unitiva. É indispensável passar, na vida mística, por aquilo que São João da Cruz chamou de “noite escura”, a noite dos sentimentos e da razão, a morte para o mundo. A mística ortodoxa não conhece essa noite escura considerada isoladamente como um estado particular do caminho místico. O ascetismo ortodoxo, ainda que muito austero, não constitui ainda um mergulho na “noite escura”; essa pressupõe um antropologismo mais intenso da via mística. Permanecer na “noite escura” não quer dizer estar no Espírito Santo. Na mística católica e nas vidas dos santos, existe o êxtase do sofrimento e do sacrifício. Não podemos negar sua grandeza original, sua profundidade e seu caráter essencialmente cristãos, mas seu tipo é diferente do nosso, e é mais antropológico.

 

Podemos encontrar exemplos clássicos da mística ortodoxa russa em São Serafim de Sarov e numa obra, encantadora por sua simplicidade, que devemos a um autor desconhecido: “Relatos de um peregrino a seu Pai espiritual”. A prática da prece santa, da prece de Jesus, situa-se no centro da mística ortodoxa. Através dessa prece, Jesus penetra em nosso coração e toda nossa natureza se ilumina. A prece de Jesus (“Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador”) é o ponto de partida da concentração mística.

 

 A mística católica atinge a união divina, a fusão com Deus, depois de passar por diversas etapas, pela “noite escura”. Na mística ortodoxa, o caminho é outro. Não podemos pretender que, ao passar por diferentes etapas desse caminho místico, o homem se eleve à união com Deus. O homem se ilumina, ele se deifica pela aceitação do Espírito Santo nele. A glorificação do Nome é uma tendência característica da mística ortodoxa. O próprio Jesus está presente nessa oração. O Nome divino encerra a energia divina que se transfere para o homem, que penetra nele e modifica sua natureza. O Nome possui um significado ontológico e, num certo sentido, mágico. A distinção que faz São Gregório Palamas entre a essência e a energia divina, é característica e permite compreender a mística ortodoxa. A glorificação do Nome, como de resto o platonismo, são estranhos ao catolicismo. Mas a energia divina age no homem e no mundo, e se transfere para a criação. O abismo, a oposição entre o natural e o sobrenatural não existe para a mística e a patrística orientais, num grau tão profundo como existe para a consciência católica e para a escolástica, a qual, nesse domínio, deixou sua marca na mística católica.

 

 A patrística oriental, tendo absorvido em si o espírito do platonismo, jamais afirmou a não-divindade do natural como algo absoluto. A humilhação da criatura não pode ser senão a humilhação do pecado que existe nela, e não a da criação divina, do desígnio divino. não é o mundo criado, o cosmo, a natureza, mas unicamente o pecado, o mal, que não são divinos e que se opõem ao divino. nosso mundo natural é um mundo pecador e, em seu estado de pecado, ele é não-divino. Mas o mundo autêntico é o mundo em Deus. O panenteísmo[2] exprime as relações entre Deus e o mundo do modo mais perfeito. O panteísmo é um engano, mas possui em si uma parte de verdade, que encontramos no panenteísmo, o qual se resume a nos descrever o estado do mundo transfigurado. O mundo, a humanidade, a vida cósmica, são coisas divinas por princípio, e neles agem as energias divinas. O “natural[3]” pode ser superado. O não-ser, ao qual ele se liga, pode ser vencido. O mundo criado pode ser deificado, mas essa deificação não pode ser senão a obra da graça e da liberdade. A criação inicial de um mundo deificado ignoraria a liberdade. A vitória sobre o pecado e o mal constitui a deificação do mundo criado. O mundo natural, falso e enganador, deixa então de existir e a natureza se revela em Deus. O tomismo, que de um lado afirma o sobrenatural e de outro afirma o elemento mau e pecador, tende também a afirmar a existência de uma natureza neutra, de caráter fundamentalmente não-divino e oposto ao sobrenatural. Daí provém o temor da intuição que rompe a distância entre o natural e o sobrenatural, a desconfiança em relação ao misticismo, a condenação da ontologia platônica.

 

Com semelhante concepção, a ação da energia divina no mundo, a transfiguração desse mundo, se tornam inexplicáveis. O dualismo radical entre o natural e o sobrenatural não favorece a mística, e ele provém do fato de que a natureza do Espírito Santo, a Terceira Hipóstase da Trindade, não foi suficientemente revelada. No Espírito se manifesta a natureza divina do mundo, do natural, mas de um natural iluminado, transfigurado, deificado. É pelo fato de que a natureza do Espírito está revelada de modo incompleto, que a natureza do mundo aparece também dessa maneira. O dualismo inerente à mística católica fornece uma visão do homem que é intensamente trágica. A mística ortodoxa nada tem de dramático. Ela aceita um dualismo moral e religioso, mas não um dualismo ontológico. Ela está mais aparentada à mística alemã do que à mística católica latina, embora seja menos gnóstica. A mística alemã é em sua maior parte católica. Eckart, Tauler, Suso, Ruysbroeck, Angelus Silesius, são todos católicos. Mas eles estão ligados a uma mística que se diferencia da mística espanhola latina. A mística católica alemã não foi reconhecida e sancionada pelo catolicismo, tal como foi a mística espanhola. Jacob Boehme era luterano, mas ele é na realidade supraconfessional, como aliás o são, num certo sentido, todos os místicos.

 

A grande obra realizada pela mística alemã foi a divulgação da natureza do espírito, de sua profundidade; ela é a mística espiritual por excelência. Mergulhada nas profundezas do espírito, ela se encontra, por isso mesmo, além da oposição entre o natural e o sobrenatural. Para Boehme, a profundidade da oposição não reside na correlação entre o natural e o sobrenatural, mas na que existe entre a luz e as trevas. A mística alemã se coloca fora da distinção clássica entre as místicas ortodoxa e católica. Mas a mística de inspiração profética e apocalíptica nasce de preferência sobre o solo da ortodoxia russa, porque é nela, precisamente, que a natureza do Espírito Santo se encontra mais revelada. Nem a mística católica latina, nem a alemã, favorecem o profetismo e o apocalipse.

 

A mística da Igreja é sempre uma mística organizada e disciplinada, que leva à ascensão a Deus. Mas existe uma mística que não possui uma forma determinada e que não é organizada, uma mística em estado de matéria e de potência. Essa mística constitui a trama fundamental da vida. Essas energias virtuais se atualizam por meio da disciplina, pelo estabelecimento de etapas sobre a via mística. A contemplação pressupõe uma purificação e um desimpedimento da pessoa. O ascetismo é a etapa preparatória indispensável para essa via. Sem ela, a concentração é impossível. Somente nos libertando do poder desse “mundo”, libertando-nos dos laços que nos encadeiam à multiplicidade universal, podemos obter a contemplação do Deus único. A possibilidade de se absorver imediatamente na contemplação de outros mundos não é dada ao homem. mas aqui nos encontramos na presença do paradoxo fundamental da mística, do problema para o qual não existe solução pronta, do eterno problema dos dons humanos.

 

Existe um dom místico que é, como todo dom, concedido gratuitamente ao homem por Deus. A mística não pode ser obtida por um esforço laborioso; somente o ascetismo pode ser obtido assim. Homens que possuem uma vida espiritual intensa, que seguem uma via religiosa disciplinada, bem organizada, podem não possuir nenhum dom místico e se totalmente desprovidos de sensibilidade e de intuição.   O que constitui o paradoxo desse problema é que, de um lado, o dom místico é gratia gratis data, e que, de outro, a mística pressupõe em suas aquisições que se haja seguido um caminho e uma disciplina. O que podemos chamar de “iluminismo”, termo ao qual se atribui às vezes um sentido odioso, é precisamente a um tempo a possibilidade de uma iluminação da inteligência humana, que jorra semelhante à luminosidade de um raio. A inteligência pode permanecer num estado natural e normal, assim como pode também conhecer um estado iluminado, no qual são dadas clarividências intuitivas. Esse é um problema essencial para toda filosofia religiosa, pois uma filosofia religiosa será sempre, no sentido que dissemos, um iluminismo. São Boaventura, contrariamente a São Tomás de Aquino, fazia depender a filosofia autêntica de uma iluminação da inteligência pela fé.

 

Em geral, a consciência da Igreja não reconhece o valor da mística senão para os monges e para os mosteiros. Os livros místicos, ortodoxos e católicos, nasceram no meio monástico e eram destinados aos monges, como manuais de vida espiritual. Será possível uma mística que não seja monástica? De fato, ela existe e inclusive ocupa um lugar preponderante na história. Mas ela inspira desconfiança na Igreja, como mística gnóstica ou profética. A mística coloca problemas particulares à consciência cristã. Se um renascimento místico algum dia se produzir no mundo, ele não será exclusivamente monástico; ele constituirá uma regeneração e um aprofundamento da vida e da compreensão do mundo. Aqui se coloca uma questão que diz respeito não apenas à mística no Cristianismo, mas também ao Cristianismo místico. Existe um perigo nos caminhos da mística. Fantasmas podem ser tomados por realidade. A mística oriental conhece e descreve esse estado de “encantamento”. A mística pode ser ilusória. O homem pode não discernir os espíritos, e aqueles das trevas podem lhe aparecer sob a forma de espíritos de luz. No caminho do misticismo pode haver uma condensação de obscuridade e não de luz.  

 

Mas a vida espiritual e perigosa em geral. A ausência de vida espiritual é, em si, uma forma de segurança. A vida ordinária, a religião feita de costumes e de gestos exteriores oferece o máximo de quietude. Toda iniciativa criativa traz em si oculto um perigo; se não fosse assim, a vida espiritual se atrofiaria. A mística e o novo nascimento, o nascimento no espírito. Isso é o que nos ensinaram todos os místicos. As formas de vida religiosa mais ao abrigo do perigo são as que estão adaptadas à ordem social estabelecida, aos interesses dos seres que não conhecem mais do que o primeiro nascimento. A mística não organiza a vida dos homens e dos povos da terra. É por isso que ela tantas vezes se choca com a religião, à qual cabe esse trabalho organizador.

 

 

III

 

Mas a mística oculta ainda outros perigos. Ela pode tomar a forma de uma extinção, ao invés de uma iluminação da vida anímica do homem, de sua psique, vale dizer, da multiplicidade concreta das personalidades humanas. O problema que se coloca é o das relações entre o um e o múltiplo. A via mística parte sempre do múltiplo para chegar ao único, ela emerge do mundo e do homem para se orientar a Deus. Ela é antes de tudo a via do desprendimento. A multiplicidade desaparece na unicidade; a alma desaparece no espírito. Mas o ser humano é um agregado no qual o espiritual, o psíquico e o corporal estão unificados. No yoga, assim como no jesuitismo (falamos da mística de Inácio de Loyola), a experiência mística é de certo modo “mecanizada”, e o elemento psíquico no homem se extingue. O mesmo acontece no quietismo, no qual a alma individual desaparece. A mística do único em Plotino ou Eckart não resolve o problema do sentido místico da individualidade humana, da personalidade. A teosofia mística da Cabala, de Boehme, de São Martin, de Baader se reveste de um caráter totalmente diferente.

 

O problema mais delicado da mística é o de sua atitude em face do problema do homem e do mundo, do mundo criado múltiplo. Esse problema perturbador se coloca a cada vez que, dentre os místicos – inclusive entre os que estão ligados à Igreja – se aprofunda a doutrina do amor. Eles preconizam o desprendimento em relação ao mundo criado. A impassibilidade, a indiferença diante de todas as criaturas é a exigência fundamental da disciplina místico-ascética. Santo Isaac o Sírio ensina que é preciso endurecer, tornar-se insensível em relação a todas as criaturas, a fim de amar a Deus de todo coração. A mesma ideia é expressa em São João da Cruz. Eckart coloca o desprendimento acima do amor, e nele falta o espírito do amor. São Basílio o Grande, nos seus preceitos de vida monacal, alerta dos monges contra todo amor individual, contra toda amizade. A impassibilidade, a indiferença perante todos os homens e para com tudo o que é humano parece ser a condição indispensável do ascetismo. O homem é uma criatura e, como tal, não podemos amá-lo, pois não devemos nos ligar a nada do que é criado.

 

Existe uma imensa diferença entre a moral evangélica e a moral ascética dos Padres. Pouco numerosos são os que, como São Francisco de Assis e São Serafim de Sarov, souberam conciliar o desprendimento ascético e a contemplação mística, com o amor a toda a criação, a toda criatura divina. A natureza humana parece ser incapaz de conter em si a plenitude da revelação evangélica, do amor a Deus e do amor ao homem. na literatura ascética e mística, encontramos com frequência um apelo em favor do amor impessoal e impassível, do amor que seria o mesmo para todos, que não conheceria pessoa humana. São Máximo o Confessor declara: “Feliz o homem que pode amar cada ser com um amor igual”. Essas palavras parecem ser a negação de toda eleição, de toda individualização no amor, de toda amizade. O amor aí não é nada senão impessoal; ele não é afirmado como via, mas como coroamento; a via é a humildade.

 

Esse é um dos mais torturantes problemas da mística e do ascetismo cristãos, que parecem trair o Evangelho e as epístolas ao recusar seguir o caminho indicado por João, o discípulo favorito de Jesus. O Cristianismo de João, cujo espírito é o amor, é o oposto desse endurecimento do coração preconizado pela patrística e a mística ascética. Nós devemos amar toda criatura, toda criação divina e toda figura humana, e é precisamente a personalidade que devemos amar em Deus e através de Deus. Não se trata do amor humanista que é sempre impessoal e abstrato, mas do amor de Cristo. Nós o encontramos em São Serafim. Ele é a revelação do Espírito Santo na vida do homem e do mundo. Assim poderemos acreditar na possibilidade de uma nova mística, cuja atitude para com o mundo humano será diferente, pois ela será capaz de unir em si o desprendimento e a contemplação, ao amor iluminado por toda a criação divina, por toda personalidade humana. Nisso reside um grande problema da consciência cristã colocado pela mística. Existe uma mística do amor; seu apóstolo foi João, e é ela que também nos ensinou São Paulo. O Cristianismo é a revelação da personalidade, do valor absoluto de toda alma humana individual; ele é a religião do amor pelo próximo, nascido do amor a Deus. Assim é que um ascetismo que resseca o coração e o torna insensível à criatura, à alma individual, que é incapaz de assimilar a luz e a verdade cristã, se aproxima do ascetismo hindu.

 

Dostoievsky foi, entre nós, o profeta de um espírito novo e diferente, de uma nova e outra mística. Ele se liga, assim como Solovieff, à tradição do Cristianismo russo, à maneira como os russos entenderam a obra de Cristo. Existe uma tradição de erotismo místico. Nós a encontramos na criação mitológica de Platão, na Cabala, em Dante, em São Francisco de Assis, na teosofia de Jacob Boehme, em Baader e em Solovieff. Ela provém da doutrina relativa à imagem andrógina do homem. Ela muitas vezes se apresenta misturada com elementos confusos, mas ela está profundamente enraizada na simbólica cristã. O Cristianismo nos ensina o amor espiritual, mas esse amor tem por missão espiritualizar o psiquismo, e não destruí-lo.

 

 

IV

 

É possível que se produza, no caminho da mística e do ascetismo, uma acumulação de trevas, devido à concentração do espírito sobre o mal, sobre o pecado, sobre a antiga natureza. A verdadeira mística sobrepuja o medo que Satanás inspira. Quando sentimos esse medo, quando nos sentimos vencidos, arrasados pelo mal, isso significa que ainda estamos sob o império da natureza criada, da natureza pecadora abandonada por Deus. Sobrepujá-la implica sobrepujar o medo a Satanás, a obsessão do mal. Dominar a natureza criada significa iluminá-la, significa banir dela o espírito do mal que isola o mundo criado de Deus. O caminho que conduz a essa vitória é antes de tudo o do ascetismo, do sacrifício e da santidade. Mas isso não é tudo, e ele é igualmente o caminho da criação, da iluminação, do voo extático da natureza humana. Existirá uma mística da criação, e a via mística poderá conduzir a criação?

 

Essa questão pertence igualmente à problemática da consciência cristã. Existe uma mística eterna e o Cristianismo deve retornar às suas origens, a fim de não se petrificar definitivamente. Mas, em nossa época, o renascimento místico do Cristianismo encara uma tarefa particular. Habituamo-nos a ver na mística um desligamento absoluto em relação ao mundo e ao homem, uma orientação exclusiva para Deus. A mística deve vencer o “mundo”, no sentido pejorativo do termo, no sentido em que ele é empregado na Santa Escritura e nos Padres ascéticos. Somente a mística pagã, orgíaca, está voltada para o mundo, para a natureza, para a terra, mas a mística cristã sempre a combate. Nós nos encontramos diante do seguinte problema: como poderá a mística cristã se orientar para a vida do cosmos, para a vida da humanidade? Será isso possível? Superar o estado de criatura não significa extinguir e negar a vida do cosmos, da humanidade, mas antes iluminá-la e transfigurá-la. A mística pré-cristã, que alcançou seu auge em Plotino, se afastou do mundo para se dirigir para o Único. Plotino, o último grande helenista, lutava contra o dualismo dos gnósticos, que renegavam a beleza do mundo. Talvez ele também pressentisse o Cristianismo. Toda sua grandeza provém precisamente de que ele abandonou o mundo pagão, agonizante e corrompido, para se dirigir a um novo mundo espiritual, levando consigo a noção helênica da beleza do cosmo. Mas ele não chegou a encontrar a solução para esse dilema.

 

O problema que me inquieta poderia se expressar, na terminologia que adotei, da seguinte maneira: de que forma, no mundo espiritual, poderá o mundo natural ser restabelecido e transfigurado naquilo que ele possui em si de autêntico, de não ilusório? Como poderá o psíquico se agregar ao espiritual? Para a mística, a questão se coloca assim: como poderão o homem e o cosmo espiritualmente transfigurados se afirmarem na experiência e na via místicas? Deus não deseja ser simplesmente Ele próprio, Ele quer que o homem, o cosmo, a criação divina existam, não somente nos tempos, mas por toda a eternidade. A deificação da criação não é nem seu rebaixamento, nem sua extinção. O homem e o mundo não se extinguem em Deus, mas se iluminam, se transfiguram, se transformam definitivamente em ser, libertando-se do não-ser.

 

Não se deve amar o “mundo”, tomado no sentido evangélico, pois é preciso libertar-se de seu jugo, mas é preciso amar a criação divina, o cosmos, é preciso amar o homem. A atitude monástica e ascética, que maldiz e despreza o mundo e o homem, deve ser superada; ela é incapaz de conter a plenitude da verdade crista; ela constitui uma inaptidão em seguir o próprio Cristo. Com efeito, essa atitude não é conciliável com a moral evangélica. O homem, de um lado, deve viver com os outros homens e como o mundo, ele deve tomar sobre si o fardo de seu destino trágico comum, e, de outro lado, ele deve se libertar do mundo, desligar-se de suas paixões, ele deve ser monge no mundo. Existe uma inimizade monástica e ascética em relação a humanidade, uma incompreensão, uma profunda falta de interesse em relação aos movimentos que se realizam no mundo. Mas há aí uma autossuficiência, um enfraquecimento do amor, que se “vitrifica”, como dizia Rosanov. Semelhante mística monástica ou ascética é abstrata e negativa por excelência. E aí ainda, na maior parte dos casos, não se chega a atingir a mística. Pois em Deus, na união com Ele, é impossível que o homem e o mundo não ressuscitem, que a plenitude do ser não seja alcançada. São Serafim superou o que havia nele de sombrio no estado monástico, em benefício de uma mística mais luminosa. Dostoievsky profetizou esse estado de coisas através da pessoa do staretz Zossima.

 

Sobre os caminhos da mística, como de resto por toda parte, os meios costumam se afirmar com vistas aos finas. Esse ascetismo hostil ao homem e ao mundo pode dissimular o objetivo da transfiguração mística em Deus. Ele pode impor ao homem fardos insuperáveis, pesos enormes, e exigir grandes tensões da alma. A dificuldade de nossa vida espiritual consiste precisamente na necessidade de unir o desligamento em relação ao múltiplo, a concentração sobre o único, à libertação e à transfiguração do Espírito da diversidade inerente ao mundo e à humanidade. Duas vias se abrem diante do homem, difíceis para ele conciliar. Uma delas é aquela que, a partir do mundo e do homem, se dirige para Deus, aquela que deixa o múltiplo e o movimento, em favor da Unidade e da Eternidade imutáveis. A outra é a que está orientada para o mundo e para o homem, para a multiplicidade e o movimento. A filosofia grega foi incapaz de resolver o problema gerado por esse dualismo de dois mundos. Platão não o superou, embora tenha pressentido a possibilidade de consegui-lo através do Eros. O pensamento grego estava sob o peso da concepção que Parmênides e os Eleatas tinham do ser único e imóvel, e nisso ele exerceu uma influência inconteste sobre a teologia cristã. Mas o Cristianismo admite, ao menos em princípio, uma solução para esse problema perturbador, e chegou a vencer o dualismo. A plenitude da verdade cristã não pôde ser assimilada pela humanidade, nem mesmo pelos místicos e os santos. Nós nos encontramos mais uma vez diante do problema que se colocara para os gregos, para Platão e Plotino.

 

A solução não é possível senão no amor de Cristo, na plenitude do amor. A energia criativa do homem é igualmente uma manifestação do amor, do Eros, que une e ilumina. A tarefa da vida espiritual é particularmente difícil, ela é insuperável para o homem natural, pois ela consiste em unir, por uma prece incessante, o livre desapego espiritual, a concentração sobre o Único e o Eterno, ao amor pelo mundo e pelo homem, amor que ilumina e transfigura. O auge da via mística não consiste apenas na união com Deus; ele é, na verdade, por meio dessa união, a orientação para toda criatura, ele é a realização do amor e da força criativa. O amor é precisamente a criação, é assim que se realiza o mandamento de Cristo: amor a Deus, amor ao homem.

 

 No amor cristão devem se manifestar todos os dons, todos os carismas conferidos ao homem por Deus. “Existem uma diversidade de dons, mas um só e mesmo Espírito (...) a um é dado, por meio do Espírito Santo, a palavra de sabedoria; a outro, a palavra do conhecimento, segundo o mesmo Espírito; a outro, o dom da cura, por esse mesmo Espírito; a um outro, o poder de operar milagres; a outro, a profecia; a outro, o discernimento dos espíritos; a esse, o dom de falar em línguas; àquele, a interpretação dessas línguas[4]”. E o mesmo apóstolo Paulo nos diz: Não extingais o Espírito; não desprezeis as profecias; experimentai todas as coisas e retende o que é bom[5]”. O Cristianismo monástico e ascético às vezes conduzia à extinção do espírito e à negação dos dons, vale dizer, a um dualismo intenso, no qual a vida, a força criativa e toda nossa atitude para com o mundo e o homem não eram justificados. Eis como se coloca o grande problema da mística. Sua missão consiste em libertar o espírito humano desse estado de abatimento e de não justificação de sua via criativa. A própria mística foi muitas vezes responsável por esse rebaixamento da natureza humana e por essa condenação da vida criativa. A experiência mística da via conhece esse “estado de criatura”, e o considera como um estado de pecado que isola de Deus. Mas, em Deus, o ser natural é superado, e então é uma outra natureza humana que se vê restabelecida em sua força criativa.

 

Na experiência mística, o mundo natural e humano é absorvido no espírito, e já nada se opõe como sendo algo extrínseco. A mística autêntica nos liberta dessa opressão provocada por tudo o que é “estranho” e “extraposto”. Nela, tudo é vivido como fazendo parte de mim, como sendo profundamente interior a mim. A mística constitui uma penetração nas profundezas do mundo espiritual, onde tudo se passa de modo diferente do que no mundo natural, pois aí não se encontram mais divisões, e nenhuma coisa é exterior a outra. Nada existe que esteja fora de mim, tudo está em mim e comigo, tudo se encontra nas minhas profundezas. Mas essa verdade mística é radicalmente oposta a todo subjetivismo, a todo psicologismo, a todo solipsismo; ela não significa que não exista nada exterior a mim, que as coisas não passem de meu estado pessoal. Essa verdade implica a eclosão do mundo espiritual, no qual tudo está oculto numa profundidade íntima; ela implica a revelação interior, e não exterior, de toda realidade. Eu estou em tudo e tudo está em mim, toda orientação da vida se transforma, produz-se uma transmutação. Viver, do ponto de vista místico, já não consiste em experimentar o estado de opressão causado por uma realidade que me é oposta e exterior, como é o caso do mundo natural, mas é ter a convicção de que tudo faz parte de meu próprio destino íntimo, e de que tudo se realiza numa profundidade que me é mais próxima do que eu próprio. A mística é o oposto do realismo histórico. Mas existe uma mística da história. Toda a história do mundo é a história de meu espírito; no espírito, essas duas histórias não estão “extrapostas” uma em relação à outra. Isso não significa que eu me anulo enquanto realidade, que eu me confundo com tudo e me transformo em tudo. Isso significa que eu não recebo a existência, a realidade e a personalidade senão dali, de onde nada me é mais exterior, estranho, impenetrável e morto, de lá onde se realiza o reino do amor.

 

Nós entramos na era de uma nova espiritualidade, que será a contrapartida da materialização desse nosso mundo. A essa época do Cristianismo corresponderá uma nova forma de mística. Daí por diante será impossível se opor a uma vida superior, invocando o pecado da natureza humana, que devemos superar. Já não há mais lugar, no mundo, para um Cristianismo exterior e feito de costumes. A via espiritual e mística constitui precisamente o caminho que conduz à vitória sobre o pecado. O mundo penetra numa época catastrófica de eleição e de divisão, na qual serão exigidas de todos os cristãos uma grande elevação e intensidade de vida interior. O Cristianismo exterior, da zona mediana, se corrompe; mas aquele que é eterno, interior e místico se fortifica e se intensifica. Assim é que a própria Igreja deverá determinar de outra maneira sua atitude em relação à mística e à vida espiritual interior. Não é senão nos períodos em que os costumes e as tradições exteriores se impõem com obstinação, que a religião pode se ver desprovida de mística. Mas ela a reencontra inevitavelmente quando esses costumes e essas tradições sofrem comoções e catástrofes. Então, na própria mística, o tipo paraclítico começa a dominar. A época de uma nova espiritualidade no Cristianismo não pode ser outra coisa do que a época de uma manifestação sem precedentes do Espírito Santo.



[1] Adeptos de uma seita russa orgíaca, cujos ritos lembravam os mistérios de Dionísio, e na qual os elementos pagãos e cristãos estavam confundidos.

[2] Termo criado pelo pensador alemão Christian Krause 1781-1832para designar sua doutrina, caracterizada como uma síntese entre o teísmo e o panteísmo, pois calcada na suposição de que a totalidade do universo está situada no interior de uma única divindade primordial.

[3] Naturlichkeit.

[4] I Coríntios 12: 8-10.

[5] I Tessalonicenses 5: 19-21.


quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Nikolai Berdiaev - Espírito e Liberdade - Capítulo VI: Deus, o Homem e o Deus-Homem


 

I

 

 

Tanto na filosofia como na teologia, seria preciso começar, nem por Deus, nem pelo homem, pois nesses dois princípios a divisibilidade permanece insuperável, mas antes pelo Deus-homem. o fenômeno original da vida religiosa é o encontra e a ação recíproca entre Deus e o homem, o movimento que vai de Deus ao homem e do homem para Deus. É no Cristianismo que esse fato encontra sua expressão mais intensa, a mais concreta, sua expressão integral. O Cristianismo revela a humanidade de Deus. A humanização de Deus constitui o processo fundamental da consciência íntima da humanidade. Nos primeiros estágios dessa evolução, Deus pôde ser confundido com as forças da natureza, com os animais, as plantas. O totemismo foi a revelação do deus-animal. A consciência que representa a Deus como imagem do homem foi a contrapartida daquela que representa o homem como a imagem de Deus. Deus, sem o homem, o Deus “inumano”, seria Satanás, mas não seria o Deus Trindade.

 

O mito fundamental do Cristianismo é o drama do amor e da liberdade que se desenrola entre Deus e o homem, o nascimento de Deus no homem e o nascimento do homem em Deus. O advento de Cristo, Deus-homem, constitui a união perfeita dos dois movimentos, a realização da unidade na dualidade, o mistério teândrico. O mistério da vida religiosa permanece inacessível sem a coexistência da unidade na dualidade, sem o encontro das duas naturezas e sua fusão, que não exclui sua distinção.

 

O fenômeno religioso inicial, a saber, esse drama religioso, essa nostalgia e esse encontro religioso, esse mistério da transfiguração e da união, é ininteligível para a consciência monista ou monofisita. Ele também o é para a consciência dualista. Para a primeira, tudo reside na unidade abstrata inicial; para a segunda, tudo está desesperadamente dividido, incapaz de se unir, tudo está “extraposto”. A impotência do monismo e do dualismo em conceber o mistério teândrico é precisamente a mesma impotência da consciência e do pensamento racionais. Segundo a concepção racional da divindade, não existe senão o Absoluto abstrato, privado de vida interior concreta, provado da tragédia das relações entre Deus e Seu Outro Si-mesmo, relações que alcançam sua perfeição na Terceira Hipóstase. O Deus vivo e o drama da vida divina não existem senão para um pensamento ou uma consciência mitológica e simbólica. Somente para essa consciência Deus e o homem aparecem como face a face, como personalidades vivas, cujas relações constituem a vida concreta, com a tragédia inerente a toda vida.

 

O teísmo abstrato, que foi a forma do monoteísmo abstrato, concebe a vida como uma monarquia ou um imperialismo celeste, atribuindo a Deus a autocracia, a suficiência e uma espécie de fechamento sobre si mesmo. Mas semelhante monarquia está claramente em desacordo com a doutrina cristã relativa à Trindade e ao amor que preenche sua vida interior. A organização da vida terrestre à imagem dessa monarquia é a afirmação do poder arbitrário e do despotismo, e não a afirmação da Trindade e da Unidade no amor. A teologia catafática tradicional foi aprisionada nos conceitos racionais  e é por isso que para ela permanece fechada essa vida interior da divindade, na qual – e somente nela – a criação do mundo e do homem, vale dizer a atitude de Deus em relação ao Seu Outro Si-mesmo, pode ser captada. A criação do mundo e do homem sempre foi compreendida exotericamente, desde o exterior. A consciência teológica exotérica e racionalista se acha na obrigação de admitir uma concepção cruel, na qual Deus teria criado o mundo por capricho, sem nenhuma necessidade, sem que nenhum movimento interior tenha se produzido Nele. Segundo essa concepção, a criação seria insignificante, não divina e, na sua maior parte, condenada a desaparecer. O ensinamento teológico cai no dualismo racionalista, polo oposto ao monismo racionalista. Somente a teologia mística e simbólica é capaz de se elevar até a noção esotérica do mistério da criação, como vida interior da Divindade; esse mistério é a necessidade que Deus tem de Seu Outro Si-mesmo, do amigo amante e amado, do amor realizável na Unidade-Trindade, que existe no alto e embaixo, no céu como na terra.

 

A doutrina teológica e metafísica que fala da imobilidade da divindade, do repouso absoluto de Deus, é exotérica e racionalista, e mostra os limites de todo conceito lógico da Divindade. A noção de Deus como coincidentia oppositorium é mais profunda, fosse a dos místicos, fosse a de Santo Agostinho. O repouso absoluto está ligado em Deus ao movimento absoluto. Somente em nossa consciência racional, em nosso mundo natural, que o repouso exclui o movimento e que o movimento e incompatível com o repouso. A perfeição absoluta da divindade concilia em si o repouso absoluto e o absoluto movimento. Para a consciência racionalista, o movimento em Deus parece se opor à perfeição de Deus, parece ser como que uma imperfeição ou uma insuficiência Dele. Mas a ideia que fazemos de Deus não pode ser mais do que antinômica, pois os contrários estão identificados entre si Nele. O fato de que Deus é amoroso em relação ao Seu Outro-que-Si-mesmo, em relação ao amado, e que a libre reciprocidade de seu amor demonstra, não possui a insuficiência ou a ausência de plenitude no Ser divino, mas, ao contrário, a superabundância de sua plenitude e de sua perfeição. Não podemos considerar a absoluta plenitude e a perfeição de uma maneira estática e abstrata, mas só podemos vê-las como um dinamismo concreto, como vida e não como substância.

 

A teologia mística apofática favorece essa concepção de Deus, ela de certo modo prepara o terreno para sua fundamentação. É verdade que essa teologia pode parecer nos levar, em nosso conhecimento de Deus, às formas supremas da abstração e da separação em relação a todo conteúdo concreto; é o que encontramos, por exemplo, na doutrina de Deus em Plotino. Mas para a consciência cristã esse conhecimento de Deus não pode ser senão uma purificação e uma preparação para a compreensão positiva, simbólica e mitológica da vida concreta de Deus. A doutrina teológica e metafísica referente à absoluta imobilidade da divindade, doutrina tradicional e oficialmente reconhecida, acaba por estar em flagrante contradição com o princípio do mistério cristão. O Cristianismo, em sua profundidade, não dispõe as relações que existem entre Deus e o homem, entre Deus e a criação, em categorias estáticas. Para ele, essas relações são um mistério; ora, o mistério é inacessível ao pensamento abstrato, e não pode ser encaixado em categorias fixadas.

 

No centro do mistério cristão se ergue a Cruz do Gólgota, com os sofrimentos e a morte do Filho de Deus, Salvador do Mundo. A teoria da absoluta imobilidade da divindade está em oposição com o fato místico dos sofrimentos do Senhor. O Cristianismo é a religião do Deus sofredor. Não é Deus Pai quem sofre, como acreditavam os patripassianos[1], mas o sofrimento do Filho constitui um sofrimento dentro da vida interior da Trindade. A doutrina que professa a absoluta imobilidade da Divindade consiste num monoteísmo abstrato que contradiz o ensinamento cristão relativo ao caráter trinitário da divindade e de sua vida interior. Essa doutrina está sob a influencia de Parmênides e dos Eleatas. A percepção de Deus como Trindade é a percepção do movimento interior esotérico em Deus, que evidentemente não possui nenhuma analogia com o movimento que se realiza em nosso mundo natural. As relações interiores entre as Hipóstases da Trindade são dinâmicas e não estáticas, e se revelam como vida concreta. Da mesma forma, o mistério da criação do mundo não pode ser compreendido intimamente, esotericamente, senão através da vida interior da Trindade Divina, do movimento interior da divindade, do dinamismo divino. quando nos aproximamos desse mistério, nos encontramos como que sobre uma crista, de onde é muito fácil cair num ou noutro abismo. É essa queda que a consciência da Igreja chama de heresia. O ensinamento teológico oficial, que de certa forma proíbe os caminhos do conhecimento nos quais é fácil se perder, constitui uma medida preventiva e pedagógica. Mas todo desvio herético indica uma concepção racionalista dos mistérios divinos, uma impotência em conceber a antinomia que está ligada a toda reflexão sobre Deus. As doutrinas heréticas racionalizam sempre a experiência espiritual, porque elas consideram como sendo uma verdade integral aquilo que não passa de uma verdade parcial. Os místicos cristãos não cometem esse erro. Eles emitem as ideias mais audaciosas, ideias que aterrorizam a consciência mediana e que parecem às vezes mais extravagantes e contrárias à fé habitual do que o são as doutrinas heréticas. Mas os verdadeiros místicos descrevem as profundezas da experiência espiritual, o mistério inicial da vida; eles não elaboram conceitos, eles não eliminam a antinomia da vida espiritual. Aí reside toda a importância da mística e toda a dificuldade que nossa consciência tem de a assimilar.

 

São Simeão o Novo Teólogo disse: “Vem, ó Tu que permaneces imóvel, mas que, entretanto, te moves todo o tempo e te diriges a nós”. Por meio dessas palavras sutis, que a doutrina teológica oficial tem dificuldade em reconhecer, ele exprime a verdade da experiência espiritual, a coincidência, em Deus, do repouso e do movimento. Não encontramos nela nenhuma metafísica fundamentada em conceitos; aqui a experiência original da vida espiritual se expressa sem intermediários. O tomismo nega a potência em Deus e, ao fazê-lo, nega a possibilidade do movimento, e elabora uma doutrina racionalista de Deus como ato puro, baseado na filosofia aristotélica. Mas, se Deus é ato puro, então a criação do mundo, a ação criativa de Deus se torna ininteligível. O caráter limitado das doutrinas teológicas se deve ao fato de que a visão catafática se sobrepôs à apofática.

 

Quando o Cristianismo professa a doutrina trinitária da Divindade e o sacrifício expiatório do Filho, ele admite, por isso mesmo, um processo em Deus, uma tragédia divina. O processo divino não pode ser assimilado àquele que se realiza em nosso tempo dividido. Esse processo na eternidade divina não se opõe ao repouso divino. a vida divina é um mistério que se realiza na eternidade. Ela se revela a nós pela experiência espiritual. Tudo o que acontece no alto se reflete embaixo. Da mesma forma, em nós, no mais profundo de nós mesmos, se realiza o processo que é elaborado no céu, o do nascimento divino.

 

Os grandes místicos alemães fazem uma distinção entre Deus (Gott) e Divindade (Gottheit). É o que Eckhardt ensinava. Boehme professava a doutrina do Ungrund, que estaria numa profundeza ainda maior do que o próprio Deus. O significado da distinção entre Deus e Divindade não pode ser expresso por uma metafísica ou uma ontologia. Essa verdade não pode se exprimir senão em termos de experiência e de vida espiritual, e não pode categorias fixas de ontologia. Como ontologia fixa, essa verdade pode facilmente degenerar em heresia. Eckhardt descreve as relações recíprocas entre Deus e o homem, que se revelam na experiência mística. Deus existe se o homem existe. Quando o homem desaparecer, Deus também desaparecerá. “Antes que a criatura existisse, Deus não era Deus”. Deus só se torna Deus em relação à criação. No abismo original do Nada divino, tanto Deus e a criação, como Deus e o homem, desaparecem e essa própria oposição se esvanece. “O ser inexistente está para além de Deus, para além da diferenciação”. A própria distinção entre o Criador e a criação não constitui ainda a profundeza última, ela se extingue no Nada divino, que já não é Deus. A teologia mística apofática penetra além do Criador em suas relações com a criação, além de Deus em sua reciprocidade com o homem. O Criador se manifesta ao mesmo tempo que a criação, Deus e o homem aparecem simultaneamente. Trata-se de um processo teogônico da Insondabilidade divina, que é a contrapartida do processo antropogênico.

 

Angelus Silesius disse: “Eu sei que sem mim Deus não pode existir um só instante. Se eu sumisse, ele entregaria o Espírito”. E também: “Eu sou tão grande quanto Deus, e Ele é tão pequeno como eu”.  Essas palavras temerárias, vindas de um homem que era a um tempo místico, poeta e católico ortodoxo, são susceptíveis de nos perturbar e espantar. Mas é preciso captar seu sentido. Não é fácil entender os místicos, eles falam numa linguagem particular, e essa língua é universal. É impossível traduzi-la em termos de metafísica e de teologia. Angelus Silesius não constrói nem uma ontologia, nem uma teologia, mas se contenta com desenhar uma experiência mística. Ele fala do amor infinito que existe entre Deus e o homem. O sujeito que ama não pode existir sem o ser amado. Ele morre quando morre o objeto de seu amor. As prodigiosas palavras de Angelus Silesius nos expõem o drama místico do amor, a intensidade infinita das relações entre Deus e o homem. A mística não se exprime senão em termos de experiência. Da mesma forma, é sempre um erro e uma incompreensão interpretar os místicos do ponto de vista da metafísica e da teologia, e situá-los em relação a tais ou quais tendências doutrinais.

 

Todos os grandes místicos cristãos sem distinção de confissão, ensinaram que na eternidade, nas profundezas do mundo espiritual, se realiza um processo divino, no qual aparecem as relações entre Deus e o homem, o nascimento de Deus no homem e o nascimento do homem em Deus, onde se encontram o amante e o amado. Essas são verdades da experiência espiritual, verdades vivas e não categorias metafísicas, nem substâncias ontológicas. O movimento em Deus, tal como se revela na experiência espiritual, não consistem num processo no tempo, do tipo que se desenrola numa ordem de sucessão. É a conclusão ideal, o mistério divino da vida que se realiza na eternidade. Somente uma compreensão simbolicamente mitológica das relações entre Deus e o homem pode nos aproximar desse mistério divino; uma concepção metafísica nos esconde sua vida interior. O personalismo é, por assim dizer, inacessível à metafísica abstrata. Deus e o homem são personalidades vivas, cujas relações são íntimas no mais alto grau, constituindo o drama concreto do amor e da liberdade. Um personalismo tão vivo assim é sempre mitológico. O encontro de Deus com o homem é uma representação mitológica e não uma proposição filosófica. Esse encontro encontrou sua expressão mais intensa nos profetas bíblicos, e não entre os filósofos gregos. Nosso pensamento está irresistivelmente atraído para o monismo abstrato, para o qual a personalidade viva de Deus e do homem, a tragédia da vida religiosa, não existem.

 

Os profetas e os místicos, os apóstolos e os santos revelaram ao mundo mistérios da vida original. Eles nos confiaram suas experiências espirituais, seus encontros com Deus. Essas são as verdades da vida religiosa. As elaborações teológica e metafísica dessa experiência original são já secundárias, pois nas doutrinas teológicas penetram categorias e conceitos que racionalizam a experiência religiosa viva. Nelas aparece assim um desvio para o abstrato, seja no monismo, no dualismo. O teísmo teológico, submetido ao conceito, que considera o extrinsecismo e a não-divindade da criação como absolutos, constitui uma racionalização dos mistérios divinos na mesma medida em que o panteísmo identifica o Criador à criação. A separação em relação ao mundo sensível e concreto, em relação a tudo o que está em estado múltiplo e móvel na natureza, a orientação para o mundo permanente das ideias, não constituem o grau último da experiência e da contemplação espirituais. Platão e Plotino não se elevaram até o mistério divino da vida. A vida original se situa além e acima. Na história da consciência cristã e da teologia cristã esses dois momentos estão ligados: o da separação do pensamento que se orienta para o mundo das ideias e para o sentido espiritual do concreto, do mistério da vida. A herança deixada pelo espírito helênico oprime demasiadamente a consciência cristã por seu pensamento separado e purificado de toda vida concreta: ele dá preeminência à metafísica sobre a mitologia. Mas, não obstante, na base do Cristianismo repousa o pensamento mitológico.

 

 

 

II

 

Na experiência espiritual se revela a nostalgia que o homem tem de Deus. A alma humana busca a existência superior, o retorno à fonte da vida, à pátria espiritual. A vida humana se torna realmente terrível quando nada existe acima do homem, quando não existe mistério divino nem infinitude divina. Assim aparece o desgosto do não-ser. A imagem do homem se corrompe quando a imagem de Deus se apaga na alma humana. O homem, na busca de Deus, busca a si mesmo, busca sua humanidade, a alma humana sofre as dores do parto, e Deus nasce nela. Esse nascimento de Deus na alma humana constitui o nascimento autêntico do homem. ele representa o movimento do homem para ele, a resposta à nostalgia que ele tem por Deus. Esse é um dos aspectos desse fenômeno religioso original. Mas ele é a um tempo único e duplo, ele possui uma outra face, um outro movimento.

 

A experiência espiritual revela igualmente que Deus sofre por amor ao homem, que Ele aspira a que o homem nasça e reflita Sua imagem. Os grandes místicos, descrevendo a vida espiritual, evocaram essa nostalgia divina. É na mística, e não na teologia, que se exprime esse mistério. A ideia primordial no homem é a ideia de Deus, que constitui o tema humano; o homem, ao contrário, é o tema divino. o amor infinito não pode existir sem o sujeito amante e o objeto amado. O nascimento do homem em Deus é a resposta à aspiração divina, é o movimento que vai do homem para Deus.

 

Toda a complexidade da vida religiosa, do encontro e das relações entre Deus e o Homem, provêm da existência desses dois movimentos. Se a vida religiosa não procedesse senão de um só movimento, aquele que vai de Deus para o homem, da exclusiva vontade de Deus, somente da revelação de Deus, ela seria simples e as finalidades da vida seriam acessíveis, o Reino de Deus seria facilmente realizável. E a tragédia do mundo não existiria. Mas o nascimento do homem em Deus, sua resposta, não pode ser obra apenas de Deus, mas igualmente obra do homem, de sua liberdade. Pela própria natureza de Deus, que é Amor infinito, pelo desígnio divino para a criação, o Reino de Deus não pode ser realizado sem o homem, sem a participação da própria criação. O despotismo é um engano para o céu, tanto quanto para a terra. O Reino de Deus é o do Deus-humanidade, onde Deus nasce definitivamente no homem e onde o homem nasce em Deus, e esse Reino se realiza no Espírito. A esse processo está ligado o mito fundamental do Cristianismo, mito realista no mais alto grau, que exprime o princípio inicial da existência, o fenômeno original, o mistério da vida. É o mito relativo à natureza e ao movimento teândrico, ao Deus-homem.

 

É o Filho, nascendo por toda eternidade, igual em dignidade ao Pai, que responde à aspiração divina do sujeito amante e do objeto amado. É ele o Homem divino absoluto, o Deus-homem, e isso não somente sobre a terra, em nosso mundo natural e histórico, como igualmente no céu, na realidade divina da Trindade. É assim que a natureza – não a nossa, pecadora e decaída – a natureza humana espiritual, celeste e pura, chega a se elevar até o sei da Trindade Divina. No Filho, no Homem divino, no Deus-homem, está compreendido todo o gênero humano, toda a multiplicidade humana, toda a imagem do homem. nele se concilia misteriosamente a oposição entre o um e o múltiplo. A espécie humana não pertence senão por um aspecto da geração do antigo Adão, à geração pecadora e decaída de nosso mundo natural. Sob seu outro aspecto, ela e celeste, e pertence à geração do Adão espiritual, à de Cristo. Pelo nascimento do Filho na eternidade, todo o gênero humano espiritual e todo o universo compreendido no homem, todo o cosmo, responde ao chamado do amor divino. a criação do mundo não pôde se produzir no nosso tempo, pois esse é o tempo decaído, filho do pecado. A criação aconteceu na eternidade, como ato interior do mistério divino da vida. A concepção bíblica da criação não passa do reflexo desse ato interior na consciência da humanidade antiga. O homem, atirado na natureza inferior, foi rejeitado para fora da realidade divina. A revelação cristã restabeleceu o homem no seio dessa realidade. Por intermédio do Filho, voltamos ao seio do Pai. Com Ele começa um novo gênero humano espiritual, o de Cristo, nascido e regenerado no Espírito. Cristo está no homem e o homem est´=a em Cristo. Ele é a Videira e eu sou o ramo. Todo o gênero humano regenerado habita em Cristo, o Deus-homem. No homem espiritual está incluído o cosmos, a totalidade da criação. O cosmos se separou violentamente do homem decaído e se tornou para ele a natureza exterior que o escraviza. Mas o cosmo retorna para o homem regenerado. No mundo espiritual o cosmo habita no homem, como o homem habita em Deus.

 

O homem é, por sua própria natureza, um microcosmo; nele estão compreendidas todas as esferas da realidade cósmica, todas as forças do cosmo. Por causa do pecado e da queda, o homem perdeu a noção de seu estado microcósmico, e sua consciência se tornou individualista. O cosmo não se revela ao homem natural senão como natureza exterior, cuja vida interior permanece inacessível. Somente ao homem interior a vida interior do cosmo se revela como realidade espiritual. Assim é que a via que conduz o homem ao conhecimento de si mesmo é a via que conduz ao conhecimento do cosmo. Por intermédio de Cristo, pelo Logos, não apenas o gênero humano, como todo o universo, se orienta para Deus e responde ao chamado divino, à necessidade divina de amor. No homem se revela o mistério da Bíblia, o mistério do Gênesis.

 

O mistério divino não se completa na Dualidade, mas pressupõe a existência de três Pessoas. As relações de Deus com o Outro se realizam num Terceiro. O sujeito amante e o amado encontram a plenitude da vida no reino do amor, que é o Terceiro. O Reino de Deus, reino do homem e do cosmo iluminados, não se realiza senão pelo Espírito Santo, no qual se completa o drama, se fecha o círculo. Somente nessa “Trinalidade” nos é dada a vida divina perfeita, somente nela o sujeito amante e o objeto amado encontram o conteúdo definitivo e a plenitude de suas vidas. A Trindade é um número sagrado, divino, um número que significa a plenitude, a vitória sobre a luta e a divisão, o ecumenismo e a sociedade perfeita na qual não existe oposição entre as personalidades, as hipóstases e o ser único. O mistério do Cristianismo é o mistério da unidade na dualidade, que encontra sua solução na unidade-trindade. É por isso que o Cristianismo tem como base o dogma cristológico da natureza teândrica do Filho e o dogma trinitário. A afirmação da existência é a vida do Espírito Santo e a vida no Espirito Santo. No Espírito, o homem e o mundo são transfigurados e deificados. O Espírito constitui a própria Vida, a Vida Original. O mistério Divino da Vida e precisamente o mistério das três Pessoas. Ele se realiza no alto, no céu, e se realiza igualmente em baixo, sobre a terra. Onde quer que haja vida, existe o mistério das três Pessoas, a distinção das três Hipóstases e sua unidade absoluta. Esse mistério se reflete e se simboliza por toda parte na vida do homem e do mundo.

 

A vida em seu princípio é a um tempo a diferenciação e a unidade das personalidades. A plenitude da vida e o ecumenismo no qual a personalidade encontra sua realização definitiva, sua integralidade. O encontro de um e de outro sempre encontra seu desenlace no terceiro. Um e outro chegam à unidade, não pela dualidade, mas pela trinalidade, pois é nela que eles adquirem sua entidade comum, sua finalidade. Se o ser fosse um, ele permaneceria em estado embrionário, num estado de indiferença. Se ele fosse uma dualidade, ele estaria desunido e dividido irremediavelmente. Mas ele revela seu conteúdo e manifesta sua diferença, mesmo permanecendo na unidade, porque ele é uma trinalidade. Essa é a natureza do ser, o fato original de sua vida. A vida do homem e do mundo é um momento interior do mistério da Trindade.

 

 

III

 

A vida interior de Deus se realiza por meio do homem e do mundo. A vida interior do homem e do mundo se realiza por meio de Deus. O homem, situado no centro da existência, chamado a desempenhar um papel preponderante na vida universal, não pode ter um conteúdo de vida positivo sem Deus e sem o mundo, vale dizer, sem o que lhe é superior e o que lhe é inferior. Ele não pode permanecer solitário, ele não pode extrair sua fonte de vida unicamente de si próprio. Quando o homem se coloca sozinho diante do abismo do não-ser ele é atraído por essa garganta, ele a sente em si. Se só existisse o homem e seus próprios estados solitários, não existiria nem homem, nem nada. Um psicologismo exclusivo equivale à afirmação do não-ser, à destruição do núcleo ontológico do homem. O ser humano não pode construir sozinho o edifício da vida. A criação da vida pressupõe sempre, para o homem, a existência de um outro. Se esse Outro, superior e divino, não existir para ele, ele determinará sua vida por outro, mas inferior e natural. Ao se afastar de Deus, do mundo superior, o homem se submete ao mundo inferior, e se torna escravo de seus elementos.

 

A submissão do homem ao mundo natural e a seus elementos constitui uma deformação da hierarquia do universo. Tudo é deslocado, o inferior toma o lugar do superior, o que estava no alto é precipitado abaixo. O homem, o rei do universo, se torna escravo da natureza, se vê submetido à necessidade natural. O homem se separa de Deus, o mundo se separa do homem, e se torna para ele a natureza exterior, que o constrange com violência e o submete às suas leis. O homem perde sua independência espiritual. Ele começa a se determinar a partir do exterior, e não do interior. O sol deixa de brilhar nele, e ele cessa de ser a luz do mundo. Ele se transporta para a natureza exterior ao homem e a vida deste passa a depender somente dessa luz que lhe vem de fora. Todo o universo, separando-se de Deus, deixa de brilhar interiormente; ele necessita de uma fonte exterior de luz. O principal sintoma da queda é precisamente essa perda da luz interior, é essa subordinação a uma fonte exterior. Quando o homem habita em Deus, o cosmo está no homem, o sol está nele. Quando o homem se separa de Deus, o cosmo se separa do homem e se torna para ele uma necessidade que deixa de obedecê-lo.

 

São Simeão, o Novo Teólogo, diz: “Todas as criaturas, quando viram que Adão era expulso do Paraíso, não quiseram mais se submeter a ele; nem a lua, nem os outros astros, queriam mais se mostrar; as fontes se recusaram a jorrar sua água e os rios negavam-se a seguir seus cursos; o ar cogitava deixar de soprar para não dar a Adão, o pecador, a possibilidade de respirar; quando as feras e todos os animais terrestres viram que ele havia perdido a vestimenta de sua glória primeira, eles começaram a desprezá-lo e todos ficaram prontos para assaltá-lo; o céu se preparou para cair sobre ele e a terra já não queria suportá-lo. Mas que fez Deus, o criador de todas as coisas, o criador do homem? Por sua força criadora Ele os deteve, e em Sua misericórdia e bondade, não deixou que os elementos se desencadeassem sobre o homem. Ele ordenou à criação que permanecesse submissa a Adão, e que, tornando-se perecível, ela servisse ao homem perecível, para o qual Ele a havia criado. Porém, quando o homem se regenerar e se tornar espiritual, incorruptível e imortal, a criação, submetida ao homem por Deus, se libertará desse trabalho, se regenerará também e se tornará igualmente incorruptível e, de certa forma, espiritual”. É assim que um grande místico descreveu a ligação que encadeia o homem ao cosmo, a posição central que ele aí ocupa e o modo como ele a perdeu.

 

Ao se afastar de Deus e do mundo espiritual, o homem perde a independência de sua individualidade espiritual; ele se submete às leis do mundo animal, se transforma em instrumento do elemento racial[2] e se condena a viver nos costumes, nas famílias e nos Estados nos quais esse elemento predomina. O homem nasce e perpetua sua raça, a raça do Adão decaído, que se encontra submetida à alternância indefinida do nascimento e da morte, ao mau infinito representado pela multiplicidade das gerações nascentes e condenadas a morrer. No elemento racial as esperanças da personalidade na vida eterna são exterminadas. Em lugar da vida eterna e da plenitude exigidas pela pessoa, o que se tem é um fracionamento infinito de gerações que surgem e desaparecem. O laço que une o nascimento à morte é indissolúvel no elemento racial. O nascimento traz consigo a semente da morte, o despedaçamento da individualidade, a perda de suas esperanças. Aquele que gera está ele próprio condenado a morrer e, por sua vez, condena aqueles que nascem. No elemento racial, sobre o qual está fundamentada a vida pecadora da humanidade natural, não existe vitória sobre a morte, nem a aquisição de uma vida incorruptível.

 

O sexo, com sua capacidade de geração, que submete o homem à lei natural e o une ao mundo animal, é o resultado do pecado e da separação em relação a Deus. Pelo nascimento, o homem traz em si as consequências do pecado; ele pode resgatá-lo, mas ele jamais chega a vencer a natureza corruptível, ele não alcança a vida eterna e imortal. A nova raça espiritual, a de Cristo, não é uma raça que nasce da terra segundo as leis do mundo animal, uma raça eternamente seduzida pelo elemento inferior. A separação em relação a Deus implicou para o homem a perda da integridade, da castidade, da virgindade, a perda da imagem andrógina que constitui a imagem do ser divino.

 

Segundo o ensinamento genial de Boehme, o homem perdeu a Virgem eterna (Sophia), e essa o deixou e se refugiou no céu. A natureza feminina se separou do homem-andrógino, e se tornou para ele uma natureza exterior, o objeto de uma atração torturante, e fonte de escravidão. O homem integral e casto, que habita em Deus, compreende em si a natureza feminina. Aqui nós encontramos tudo o quer concerne ao homem e ao cosmo. O pecado é, antes de tudo, a perda da integridade e da castidade, ele corresponde à divisão e à dissensão. A sábia integridade sintetiza precisamente a castidade, a virgindade, vale dizer, a união, no homem, da natureza masculina e da natureza feminina. A atração da volúpia, a sensualidade, a depravação apareceram no mundo como resultado da perda dessa integridade, como consequência inevitável do desdobramento que aconteceu no interior. Todas as coisas se tornaram exteriores, umas em relação às outras. Foi esse o caso das naturezas masculina e feminina. O elemento feminino é um elemento exterior, atraente e sedutor, sem o qual a natureza masculina não pode existir. O homem não pode permanecer fracionado, dividido, ele não pode ser uma metade, um ser incompleto. Assim o gênero humano sofre: ele tem sede dessa “re-união”, ele persegue sempre sua própria reintegração, ele aspira à realização de seu próprio ser total e andrógino. Mas no elemento racial, que traz a marca dessa cisão, não se pode adquirir essa integridade, a imagem andrógina não tem como ser restabelecida, e a sede de eternidade que o homem sente, seu desejo de alcançar sua Virgem permanece irresolvido. Cada indivíduo, homem ou mulher, e em proporções diferentes, é bissexual, e é isso que determina toda a complexidade de sua vida.

 

O ensinamento de Boehme referente à Sophia é precisamente o da Virgem e da imagem do andrógino, imagem integral e virginal do homem. “Por sua luxúria Adão perdeu a Virgem, e em sua luxúria ele adquiriu a mulher; mas a Virgem espera sempre e se ele quiser nascer de novo ela o receberá, pronta para coroá-lo com uma coroa de glória”. “A Sabedoria Divina é a Virgem eterna, e não a mulher, ela é a pureza imaculada e a castidade, e assim aparece como imagem de Deus e imagem da Trindade”. “A Virgem existe de toda eternidade, ela é incriada, não-gerada; ela é a sabedoria divina e a imagem da Divindade”. “A imagem de Deus é a Virgem masculina, e não a mulher ou o homem”. “Cristo libertou pela cruz nossa imagem virginal da masculinidade e da feminilidade, e em Seu amor divino, Ele a tingiu de vermelho com Seu sangue celeste”. “Cristo nasceu da Virgem, a fim de santificar de novo a Tinctur[3] feminina e uni-la ao princípio masculino, a fim de que o homem e a mulher se tornem andróginos, como o próprio Cristo o foi[4]”.

 

A Sabedoria é a eterna virgindade e não a eterna feminilidade; o culto que lhe é dedicado é o da Virgem, e não o do princípio feminino, o qual já resulta da queda e da divisão. É por isso que o culto à Sabedoria quase se confunde com o culto à Virgem Maria, mãe de Deus. Nela, a natureza feminina se tornou virginal e gerou pelo Espírito. Assim nasceu a nova geração humana, a geração de Cristo, imortal, triunfante sobre o mau infinito dos nascimentos e das mortes. A via que conduz ao restabelecimento da imagem integral do homem se abre por intermédio da Virgem Maria e por sua concepção do Filho de Deus e Filho do Homem. É a via da castidade, da pureza, da virgindade, a via do amor místico.

 

A doutrina e o culto da virgindade sempre foram aprofundados no Cristianismo, enquanto que a doutrina do casamento e da santificação da procriação o foram insuficientemente. A revelação do sentido místico e positivo do amor entre o homem e a mulher (eros e não ágape) pertence à problemática da consciência cristã. O sentido místico do amor não foi revelado dogmaticamente e o que encontramos a respeito, nos doutores da Igreja, é pobre e insuficiente. O Cristianismo dos Padres nos ensina a adquirir a virgindade pelo ascetismo, mas não nos revela absolutamente o sentido místico do amor, como caminho que leva à virgindade, ao restabelecimento da imagem integral do homem e à vida eterna. O Cristianismo tem razão em justificar e santificar o casamento e a família da humanidade pecadora; assim, ele preserva e espiritualiza a vida do sexo decaído. Mas ele nada diz sobre a sua transfiguração, sobre o advento de um novo sexo. Essa transfiguração não é esclarecida pelo Cristianismo, vem como muitas outras coisas. A santidade da maternidade possui um sentido cósmico, mas ela não é a resposta para a questão. O abismo que existe entre o amor racial que gera e o amor místico orientado para a eternidade cria uma antinomia para a consciência cristã. A Igreja ensina que o sexo decaído e dividido se transforma, na Virgem Maria, em virgindade e maternidade iluminadas, recebendo em si o Logos do mundo que nasce do Espírito. Mas parece que não se extrai nenhuma dedução disso no que diz respeito aos caminhos positivos de iluminação e da transfiguração do antigo elemento racial, do elemento sexual. O sentido religioso e positivo do amor, o laço que o une à própria ideia de homem, enquanto ser integral, não foi revelado. Isso resulta de um insuficiente desenvolvimento, no Cristianismo, da consciência antropológica. O amor, como tantas outras coisas na vida criativa do homem, permanece inexplicado e não santificado, fora da lei, de certa forma, entregue a um destino trágico no mundo. A doutrina cristã do casamento e da família, tanto quanto a do poder e do Estado, possui um sentido profundo para o mundo natural e pecador, para o elemento racial no qual o homem sofre as consequências do pecado. Mas o problema do sentido do amor, cuja natureza não provém nem da atração fisiológica, nem da gravidez, nem da organização social do gênero humano, não é abordado nela. O amor, por sua natureza, ocupa o mesmo ligar que a mística. Ele é igualmente aristocrático e espiritual, e não pode ser assimilado à organização democrática, psíquica e corporal da vida humana. O amor está ligado à ideia inicial do homem. nós não possuímos uma visão do sentido religioso do amor, a não ser no simbolismo das relações entre Cristo e Sua Igreja.

 

 

IV

 

O Cristianismo é a religião da Trindade Divina e a religião do Deus-humanidade. Ele pressupõe não somente a fé em Deus, como também a fé no homem. A humanidade é uma parte do Deus-humanidade. Um Deus “inumano” não seria o Deus cristão. O Cristianismo é essencialmente antropológico e antropocêntrico, ele eleva o homem a uma altura sublime, sem precedente. A segunda Face da Divindade é manifestada como sendo uma face humana. Por isso mesmo, o homem é colocado no centro do ser: nele vemos o sentido e a finalidade da criação. O homem é chamado a participar da obre Divina, da obra de criação e organização do mundo. Os místicos cristãos tinham uma concepção audaciosa da posição central e suprema ocupada pelo homem no universo.

 

Nos cumes mais elevados da consciência cristã, descobrimos que o homem não é unicamente uma criatura, mas que ele é infinitamente mais, que, por meio de Cristo, a Segunda Hipóstase da Trindade, ele se incorpora à vida divina. Somente a consciência cristã reconhece a eternidade do homem, eternidade que ele herda com a vida divina; ele não pode, por um processo qualquer, evoluir de uma ordem para outra, se tornar anjo ou demônio. A face eterna do homem repousa no seio da própria Trindade Divina. A Segunda Hipóstase da Divindade é a humanidade divina. O Cristianismo sobrepuja a heterogeneidade, ele estabelece um parentesco absoluto entre o homem e Deus. O transcendente se torna imanente. Em Cristo, o Deus-Homem, se revela a livre atividade, não somente de Deus, como também do homem. É por isso que todo monofisismo, ao diminuir e renegar a natureza humana, constitui uma negação do mistério de Cristo, do mistério teândrico da unidade na dualidade. Todas as fraquezas, os desvios, os insucessos do Cristianismo na história, nasceram da dificuldade que teve a humanidade cristã em assimilar o mistério teândrico, mistério da natureza a um tempo única e dupla; eles nasceram também de sua inclinação para um monofisismo prático. No período cristão da vida universal, a consciência humana permanece igualmente oprimida pelo monismo, e o pensamento se encontra naturalmente voltado para ele. Assim, o idealismo alemão do início do século XIX, uma das mais poderosas manifestações do gênio filosófico da humanidade, foi oprimido pela heresia monofisista e orientada para o monismo, que nega a existência independente da natureza humana e que a limita consideravelmente.

 

Fichte e Hegel não reconheciam senão a natureza divina e negavam a natureza humana, que para eles não passava de uma função da divindade. Não seria o homem, mas somente a divindade que poderia conhecer. No “Eu” de Fichte e no “Espírito” de Hegel o homem concreto desaparece. Mas um monismo idealista consequente é obrigado a negar tanto o homem como Deus; ele não pode reconhecer outra coisa do que um divino impessoal e abstrato. O monismo recusa admitir o mistério nupcial da vida religiosa, ele contradiz o fenômeno original da experiência espiritual. Esse monofisismo do idealismo alemão já se encontrava em estado latente em Lutero, que rejeitava a liberdade do espírito humano, a atividade do homem na vida religiosa e finalmente toda existência independente da natureza humana. Já em Santo Agostinho existiam desvios e argumentos que seriam depois invocados para diminuir a natureza humana. Ao estabelecer uma distinção entre o Criador e a criação, segundo se considere o que é imutável e o que não é, ele considerava todo modificação como uma imperfeição, e via nisso uma regressão. O ser divino seria imutável e, por conseguinte, perfeito. O ser humano está sujeito à mudança, mas suas mudanças são regressivas e não progressivas. A queda é um exemplo disso. O homem não pode se aperfeiçoar, a não ser pela ação da graça. Assim Santo Agostinho rejeita no homem a natureza e a liberdade criativa. Por essa doutrina, elaborada sob a influência da luta contra o pelagianismo, o homem acaba por ser singularmente diminuído.

 

A antropologia católica diminui também o homem, mas procedendo de outra forma. O homem é criado como ser natural, e somente mais tarde, pela ação da graça, foram-lhe outorgados os dons espirituais, sobrenaturais. Depois da queda, o homem perdeu seus dons e se tornou um ser natural, para quem tudo o que é espiritual é exterior. Podemos deduzir que o homem não foi criado como ser espiritual, feito à imagem de Deus e segundo a semelhança divina. E, no entanto, o homem é um ser espiritual.

 

 

V

 

Podemos conceber as relações entre Deus e o homem sob três diferentes aspectos: primeiro, o dualismo transcendente que submete a vontade humana à vontade divina, no qual as duas naturezas permanecem divididas, “extrapostas”; segundo, o monismo imanente que identifica metafisicamente a vontade humana com a vontade divina, que rejeita toda existência independente  da natureza humana e que não vê no homem mais do que uma manifestação da vida divina, um momento transitório no desenvolvimento da divindade; terceiro, o antropologismo teândrico criador e cristão que reconhece a existência independente das duas naturezas, a ação recíproca da graça divina e a liberdade humana. O homem, que é o “outro” divino, oferece uma livre resposta ao chamado de Deus, revelando com isso sua natureza criativa. No próprio Cristianismo, podemos encontrar, em maior ou menor grau, essas três diferentes concepções. A terceira é a mais antinômica para a consciência racional; e essa noção também complica singularmente a doutrina cristã da Redenção, a compreensão da obra da salvação universal e da libertação.

 

Aqui poderíamos distinguir duas maneiras de ver, que de resto são raras de se encontrar em sua forma pura. Deus, pela ação organizada da graça, ajuda o homem, que perdeu sua liberdade na queda, a se salvar, a vencer o pecado. Essa concepção, em suas formas mais extremas, desemboca na justificação da violência e da imposição na obra da salvação. Mas existe outro modo de compreender o sentido da vida. DEUS ESPERA DO HOMEM UMA LIVRE RESPOSTA AO SEU CHAMADO, A RECIPROCIDADE DE SEU AMOR E SUA COOPERAÇÃO CRIATIVA NA VITÓRIA SOBRE AS TREVA DO NÃO-SER. O homem deve manifestar toda a atividade de seu espírito, toda a intensidade de sua liberdade, a fim de realizar o que Deus espera dele. Essa concepção fornece uma justificação religiosa ao poder criativo do homem. No Cristianismo essas duas concepções estão ligadas e não podem ser separadas. Através de Cristo, Deus-homem, Redentor e Salvador do mundo, se unem os dois movimentos que procedem de Deus e do homem, da graça e da liberdade. Deus, pela energia de Sua graça, ajuda o homem a vencer o pecado, restabelecendo a força abalada da liberdade humana. O homem, desde as profundezas dessa liberdade, responde então a Deus, se entreabre para Ele e continua assim a obra da criação. O homem não é um escravo, ele não é uma nulidade, ele coopera com a obra divina da vitória criativa sobre o nada. O homem é necessário a Deus, e Deus sofre quando ele não é consciente dessa utilidade. Deus assiste o homem, mas o homem deve assistir Deus, e esse é precisamente o lado esotérico do Cristianismo.

 

Quando professamos a deificação do homem e sua fusão com Deus, é o panteísmo, a desaparição da independência do homem, que tememos; quando professamos a liberdade e a independência do home, distinto de Deus é o dualismo e o orgulho que receamos para ele.

 

Na experiência espiritual, em sua profundidade, se revela não apenas a necessidade que o homem tem de Deus, como também a necessidade que Deus tem do homem. Evidentemente, “necessidade” é um termo inexato, como o são todos os termos humanos quando se trata de Deus. Falamos numa linguagem simbólica, traduzimos o mistério inefável na língua de nossa experiência. Podemos nós descobrir a psicologia de Deus, Sua vida interior, ou devemos nós, de uma vez por todas, nos limitarmos à compreensão das relações exteriores de Deus para com o mundo e o homem?

 

A sagrada Escritura, que nisso se distingue da doutrina teológica, nos oferece uma psicologia divina, nos fala da vida afetiva e emocional de Deus. Na Bíblia, as relações entre Deus e o homem se apresentam como um drama passional, um drama que se desenrola entre o sujeito amante e o objeto amado, no qual não apenas o homem, como o próprio Deus, experimentam paixões, sentem cólera, tristeza, alegria. O Deus de Abrahão, de Isaac e de Jacó se distingue do Absoluto dos filósofos e do Deus dos teólogos. Ele é um Deus que se parece com o homem, um Deus que se agita, não um Deus inerte. O Cântico dos Cânticos, fonte de inspiração para os místicos, é bem um retrato da vida emocional divina. Essa vida interior de Deus se revelou aos místicos cristãos e eles encontraram palavras para expressar as emoções sentidas por Deus. Entre os grandes místicos católicos, em São João da Cruz, por exemplo, encontramos uma visão mais íntima das relações entre Deus e o homem. Para ele, Deus não é o Absoluto, inerte e impassível. Na filosofia grega, Heráclito, professando sua doutrina do movimento inflamado, se aproximou mais do Deus cristão do que Parmênides, Platão, Aristóteles ou Plotino, cuja influência sufocou todos os sistemas da teologia cristã.

 

Léon Bloy nos diz que Deus é sofredor, solitário e incompreendido; ele admite a tragédia em Deus. O amor por Deus ditou-lhe palavras audaciosas: Deus sofre e verte sangue quando não encontra no homem a reciprocidade de Seu amor, quando a liberdade humana não participa de Sua obra, quando o homem não cede a Ele suas forças criativas. A que ponto a responsabilidade humana se vê engrandecida e enobrecida por essa concepção! O homem não deve sonhar unicamente consigo mesmo, com sua salvação, com seu bem-estar; ele deve também pensar em Deus, em Sua vida interior, ele deve dar a Ele o dom desinteressado de seu amor, ele deve estancar a sede divina. Existe nisso uma dívida de honra. Os místicos puderam se elevar até esse desinteresse, eles consentiram em não mais se preocupar com sua salvação, eles estavam prontos a renunciar a ela e a aceitar os tormentos do inferno, caso o exigisse o amor por Deus.

 

Encontramos aqui uma estranha contradição: de um lado, a teologia teme reconhecer o movimento, a nostalgia, a tragédia em Deus, porque ela ensina a imutabilidade e a imobilidade de Deus; por outro lado, essa mesma teologia elabora uma teoria jurídica da redenção, segundo a qual o sacrifício de Cristo constituiu uma propiciação para a cólera divina, uma satisfação concedida ao Deus ofendido. A cólera de um Deus que sente uma ofensa, não constituirá ela desde já a vida efetiva em Deus, o movimento do coração divino? Por que haveria de ser menos humilhante admitir a ofensa divina do que admitir o langor divino?

 

Existe nas doutrinas teológicas uma contradição manifesta, que se explica não pelo desejo de elevar a Deus, mas pelo desejo de rebaixar o homem, de mantê-lo em inquietude. Deus espera do homem infinitamente mais do que nos ensinam as doutrinas habituais relativas à redenção e à realização da vontade divina. Não espera Deus que o homem, em sua liberdade, revele sua natureza criadora? Não terá Deus escondido de Si mesmo aquilo que o homem manifestará em sua resposta ao chamado Divino? Deus jamais constrange o homem, jamais estabelece limites à sua liberdade. O desígnio que Deus concebeu é que o homem Lhe entregue livremente suas forças no amor, realizando assim, em Seu nome, uma obra criadora. Deus espera do homem sua participação na obra da criação, na vitória do ser sobre o não-ser. Ele espera dele o ato heroico e criador. Os que se levantam contra esse pensamento, sustentando que a tarefa do home consiste unicamente na sua submissão à vontade de Deus e ao cumprimento dessa vontade, penetram num círculo formalista sem saída. É evidente que o homem deve se submeter sua vontade à de Deus, que ele deve superar o egocentrismo em nome do teocentrismo, que ele deve cumprir a vontade divina até o fim; mas não exige a vontade de Deus que o homem, dotado dessa liberdade criativa que traz o selo da imagem e da semelhança divinas, participe da obra da criação em seu oitavo dia? Não espera Deus do homem o ato criador livre, o florescimento de todas as forças que ele traz em si? A vontade de Deus parece ser essa; e o homem deve se submeter a ela.

 

No Evangelho se fala dos talentos que não devemos enterrar, mas que devemos fazer frutificar. O apóstolo Paulo nos ensina a diversidade dos dons do homem, que deve ser livre de espírito, que deve ser criativo, não em seu próprio nome, mas em nome de Deus, em nome da vontade divina. Mas o mistério mesmo do gênio criador, da natureza criativa, permanece desconhecido, e ele não foi divulgado nas santas Escrituras. Se elas nos revelassem esse mistério, a liberdade do ato criador, tudo aquilo que ele comporta de heroísmo já não existiria, e aquilo que Deus espera do homem se tornaria impossível. A missão criativa do homem no mundo exige que ele tome consciência de si mesmo livremente, e desse ato deve resultar um benefício absoluto para o ser.

 

O ato criador do homem, a continuação da criação do universo, não constitui na arbitrariedade, nem na revolta, mas na submissão e no abandono a Deus de todas as forças de seu espírito. Em seu amor criador por Deus, o homem não faz apenas invocá-lo por causa de suas necessidades humanas, esperando Dele sua salvação, mas Lhe oferece também, com total desinteresse, toda a superabundância de suas forças, toda sua liberdade insondável. Se o homem não entrega a Deus seu dom criador, se ele não participa ativamente da edificação do Reino de Deus, se ele se mostra escravo, se ele enterra seus talentos na terra, então a criação sofrerá um revés, e a plenitude da vida teândrica concebida por Deus não se realizará; Deus languidescerá e sofrerá, insatisfeito em Suas relações dom Seu Outro que Si-mesmo. O homem deve ser absolutamente desinteressado, na sua vida religiosa, deve ser liberto do eudemonismo do céu. Quando ele só pensa em si mesmo, nas suas necessidades, no seu bem-estar, na salvação humana, ele diminui a ideia divina relativa ao homem, ele nega sua natureza criadora. Quando ele sonha com Deus, com a divina nostalgia do amor, com aquilo que Deus espera dele, ele supera o homem, ele realiza sua ideia, ele afirma sua natureza criativa.

 

É assim que aparece para nós o paradoxo existente nas relações entre Deus e o homem. a personalidade constitui precisamente a ideia divina, a imagem e a semelhança divinas no homem, para distinguir-se da individualidade, que é um conceito naturalista e biológico. Por isso, para compreender a si próprio, o homem deve se dirigir a Deus, ele deve adivinhar a ideia divina a seu respeito e orientar todas as suas forças para a realização dessa ideia. Deus deseja que o homem exista, Deus não quer ser solitário. O sentido de existir reside na vitória sobre a solidão, na obtenção de um parentesco. Essa é a essência mesma da experiência religiosa. O homem é chamado não apenas a buscar a ajuda divina, a salvação, como também a ajudar a Deus na realização de Seu desígnio referente ao mundo. O homem natural é demasiado fraco pra cumprir sua missão criadora; sua força é abalada pelo pecado e sua liberdade se encontra enfraquecida. Na geração do Novo Adão, no homem espiritual, a força e a liberdade criativas do homem são restabelecidas pela redenção. Essa força criativa, capaz de satisfazer à exigência divina, não pode ser adquirida integral e definitivamente senão no novo nascimento espiritual; ela só pode ser obtida em Cristo. A energia criativa do homem não se eleva jamais à altura da ideia divina. Somente é capaz de descobri-la e orientá-la para Deus o homem que restabeleceu sua integridade, sua virgindade, sua imagem andrógina. Somente então a dissensão entre o homem e o cosmo, entre o elemento masculino e o elemento feminino, pode ser superada. No homem natural decaído, as possibilidades criadoras se encontram enfraquecidas; não obstante, em todo ato criativo, ele realiza a vontade divina, ele revela a ideia divina relativa ao homem.

 

Existe, porém, uma criação que deforma progressivamente a imagem do homem. pois o ato criador autêntico pressupõe o ascetismo, a purificação e o sacrifício; ora, o homem decaído, satisfeito consigo mesmo, cria frequentemente, não em nome de Deus, mas em seu próprio nome; ele assim gera um ser ilusório e falso, o não-ser. Mas a criação em nome de si mesmo não é capaz de se manter na esfera intermediária da humanidade; cedo ou tarde, ela se transforma inevitavelmente em criação em nome de um outro, em nome de Satanás. É por isso que a justificação religiosa do ato criador não é necessariamente a justificação de toda criação, porque existem algumas que são funestas.

 

Somos assim conduzidos ao problema da justificação religiosa da criação na cultura, nas ações humanas e na história. O que se realiza nos cumes do mundo espiritual se realiza igualmente na nossa realidade histórica.

 

 

VI

 

A antropologia patrística não revela inteiramente a verdade cristã referente ao homem; ela não extrai do dogma cristão todas as conclusões possíveis relativas à natureza humana. A compreensão jurídica do Cristianismo prejudicou sua compreensão ontológica e antropológica; de fato, a antropologia autêntica está contida na cristologia. A ciência cristológica e a ciência antropológica são semelhantes entre si em muitos pontos. A ideia que se tem de Cristo depende da ideia que se tem do homem. a personalidade humana, no sentido autêntico da palavra, não existe senão em Cristo e por Cristo; ela só existe porque Cristo, o Deus-homem, existe. A profundidade ontológica do homem está ligada ao fato de que Cristo não é unicamente Deus, mas também homem. É por isso que a natureza humana participa da vida da Divina Trindade. A doutrina positiva referente ao homem não pode ser deduzida senão do dogma do estado teândrico de Cristo e da consubstancialidade do Filho com o Pai. Uma antropologia cristológica profunda será também uma cristologia do homem.

 

A geração de Cristo, raça espiritual da humanidade, deve ter também uma ciência antropológica enraizada na ciência cristológica. Os pais e doutores da Igreja, orientados para os altos cumes, para Deus, rejeitaram a natureza pecadora do  homem e foram absorvidos numa luta heroica conduzida contra essa natureza; a eles foi possível, com seu temperamento espiritual, formular a doutrina da Santa Trindade e de Cristo, mas eles não conseguiram desenvolver uma teoria do homem que lhe correspondesse. Eles elaboraram, de preferência, uma antropologia negativa, aquela que diz respeito à natureza pecadora do antigo Adão, e buscaram os meios que lhes permitissem lutar contra as paixões.

 

Dessa forma, na história da gnose mística, não encontramos nenhum ensinamento esotérico referente ao homem, a não ser na Cabala, em Boehme e Franz Baader, e na mística que recebeu alguma inoculação semítica. Esse ensinamento quase não se encontra na mística de Plotino, de Eckhardt e dos quietistas. A doutrina patrística positiva do homem alcançara já a suprema perfeição: ela ensinou a obtenção da graça do Espírito Santo, a iluminação da criatura, a deificação do homem. mas a natureza criativa do homem, situada entre esses dois antípodas, não foi religiosamente santificada, e acabou relegada a uma esfera secular. Ela se afirmou e se expressou fora da santificação e da interpretação religiosa, e seguiu seu caminho, manifestando-se como reação a opressão medieval da liberdade humana.

 

Na Idade Média, a natureza espiritual do homem era mais elevada e mais forte do que o é na época moderna. Nessa ocasião ela acumulou sua força criativa. Mas a liberdade humana ainda não estava suficientemente provada, e ela não era capaz de realizar o Reino de Deus. As forças criativas do homem não haviam ainda encontrado sua expressão definitiva. O humanismo surgiu no seio do mundo cristão, porque o Cristianismo havia deixado na sombra a verdade referente ao homem, porque nessa subsistia um mistério, que não havia sido expressado, nem santificado. A chegada do humanismo no mundo cristão é um paradoxo, e nem poderia ser outra coisa. O humanismo da nova história se distingue claramente do antigo humanismo, e não poderia eclodir em outro que não o período cristão da história. Ele é ligado, de certa forma, a um problema cristão que é ao mesmo tempo torturante e insolúvel. A humanidade cristã não podia renunciar à revelação da imagem humana, que se realizara na Grécia, na cultura, na tragédia e na filosofia. O humanismo consiste numa falsa consciência do homem, gerada pela separação com Deus, e que traz em seu seio venenos capazes de extinguir o homem. Não obstante, o humanismo é a via de liberdade do homem, a via na qual ele experimenta suas forças criadoras, e na qual a natureza humana se revela a si mesma.

 

O homem não pôde se contentar com a doutrina antropológica da patrística ou da escolástica; ele começou a descobrir e a santificar em si mesmo da natureza criativa. A sociedade já não podia continuar vivendo dentro de uma teocracia imposta. A natureza humana permanecia pagã, não-iluminada e não-transfigurada; e a teocracia, o Reino de Deus não podia ser realmente adquirido, e com isso contentava-se com certas marcas e signos convencionais. Era inevitável que as realidades autênticas da humanidade se manifestassem cedo ou tarde. A humanização que caracteriza o período humanista da história não é em si mesma fonte de mal; não é ela que separou de Deus todas as formas da cultura e da sociedade, pois ela não fez mais do que apontar as coisas, denunciando sua verdadeira situação. A teocracia medieval, cujo tipo espiritual era muito elevado, não chegou a revelar a verdade relativa ao homem. Assim, era necessário que ela ruísse. A nova humanidade seguiu uma linha que deveria fazê-la experimentar a fundo as funestas consequências de seu egocentrismo e de seu isolamento. O homem deveria descobrir todas as possibilidades de sua vida terrestre, a fim de tudo conhecer e de tudo denunciar, por sua experiencia pessoal. O humanismo traz em seu bolo uma dialética fatal, que deve conduzi-lo ao seu destino final. O homem, em sua solidão e em sua separação, em seu egocentrismo, não pode encontrar as fontes infinitas da vida, ele não é capaz de descobrir as forças necessárias para salvaguardar e afirmar sua imagem.

 

O humanismo vê no homem exclusivamente o filho do mundo natural. Assim, a antropologia humanista é uma antropologia naturalista. A consciência humanista já não enxerga o homem como um ser pertencente a dois mundos, a duas ordens, como o p0onto de intersecção do mundo espiritual com o mundo natural. Para ela, o homem deixa de ser um enigma e um mistério, ele não é m ais a refutação experimental da pretensão desse mundo de bastar a si mesmo. Ela nega o pecado original e, por conseguinte, não chega a explicar o próprio nascimento do mundo natural. A consciência humanista estabelece definitivamente o homem sobre o território desse mundo, sobre a superfície da terra. Se a antropologia patrística sofre um desvio – não em princípio, mas de fato – para um certo monofisismo, a antropologia humanista, por sua vez, constitui também um monofisismo, mas situado no antípoda.

 

A plenitude e a integridade teândrica da verdade cristã não haviam sido assimiladas pela humanidade. Essa verdade havia se cindido: ou bem se obedecia ao mandamento de amor a Deus, negligenciando o homem, e então esse amor a Deus resultava deformado; ou bem só existia o amor ao homem, e caía-se assim na mesma alteração. Do ponto de vista monofisita, monista, é impossível decifrar a natureza do homem, que é ao mesmo tempo dupla e única, terrestre e celeste, e que traz em si a imagem da besta e a imagem de Deus. Quando o homem renega e apaga em sua a imagem divina, ele não mais consegue conservar a imagem humana, e dá preeminência à imagem animal. Ao perder seu ponto de apoio em Deus, ele se submete aos elementos inconstantes desse mundo, que cedo ou tarde o farão submergir e ser engolido.

 

A própria ideia de homem não pode ser constituída senão pela ideia de Deus. O homem é precisamente essa ideia e só por meio dela ele existe ontologicamente. O homem não pode ser unicamente uma ideia humana, ou uma ideia do mundo natura, pois nesse caso ele perderia seu ponto de apoio ontológico e pereceria. É por isso que o orgulho espiritual do homem constitui a fonte original do pecado e do mal, que conduz à destruição de sua entidade. O homem natural não é capaz de conservar sua originalidade qualitativa, seu lugar único na hierarquia do ser, quando ele nega definitivamente o homem espiritual, quando ele perde o ponto de apoio que ele possuía no outro mundo.

 

O humanismo conheceu uma época de florescimento do reino puramente humano. Foi seu período mais criativo, no qual se manifestaram as forças do homem reunidas no decurso da Idade Média. O humanismo francês dos séculos XVI e XVII era cristão, e dentre os humanistas podemos contar São Francisco de Sales. Na época do Renascimento, o homem ainda não havia rompido definitivamente com o mundo superior; ele ainda trazia em si a imagem divina. Num período de transição, vivido pela consciência, período de florescimento para o humanismo, seus lados positivos se revelaram: o voo do gênio criador do homem, a vitória sobre a crueldade herdada da época bárbara, uma recrudescência do “humano”, que não seria possível em outro mundo que não o cristão. Existe no humanismo uma inconsciente verdade positiva, a verdade da compaixão, mas ela se apresenta aqui marcada por enganos e erros. Entretanto, o humanismo é superior ao animalismo, e seu engano não pode ser dissipado por um retorno a esse último.

 

Superar o humanismo equivale a alcançar a plenitude da verdade cristã, a verdade teândrica, é passar de um estado superior e não retornar a um Cristianismo deformado por sua refração no elemento bárbaro. O humanismo é duplo, por sua natureza e seus resultados. Nele se revelaram, de um lado, forças humanas positivas que fazem parte do Cristianismo sem que se tenha consciência delas e, de outro, princípios negativos que conduziram a uma ruptura com o mundo divino e que ameaçam extinguir o homem. Foi graças ao humanismo que a ciência livre pôde se desenvolver. Mas, tendo alcançado apogeu de seu desenvolvimento negativo nos séculos XIX e XX, o humanismo degenerou em seu contrário, desembocando na negação do homem, na destruição de tudo o que era considerado como humanitário. Assistimos a essa transformação do humanismo, levada ao extremo, no comunismo, mas podemos constatá-lo também em todas as correntes características de nossa época: na ciência contemporânea, na moral, no conjunto de usos e costumes, na técnica. No final da época humanista, na civilização técnica, a personalidade do homem foi abalada. Um perigo a ameaça, e somente o Cristianismo, graças à verdade teândrica, somente um renascimento cristão, pode salvar o homem e preservar sua imagem.

 

A nova história não criou nenhuma heresia cristã; podemos mesmo nos perguntar se a indiferença religiosa dessa época não torna impossível o nascimento de heresias. Mas esse é um ponto de vista superficial. Depois da vinda de Cristo, toda a vida universal se encontra sob o signo do Cristianismo, e ninguém mais pode ficar indiferente a seu respeito. O que a nova história criou foi a grande heresia do humanismo, que não poderia ter nascido senão numa atmosfera cristã, por responder a uma questão religiosa referente ao homem. Trata-se de uma heresia antropológica que penetra o mundo com pretensões religiosas.

 

De resto, em todos os tempos as heresias colocaram uma questão vital, para a qual a consciência da Igreja não havia dado uma resposta suficientemente clara e explícita. Elas tiveram uma importância considerável, pois estimularam na Igreja uma criação dogmática, um desenvolvimento positivo. Sempre houve nelas alguma parte de verdade, mas à qual acabavam por se juntar, eventualmente, o exagero e a mentira. A heresia rompe o equilíbrio, ela é incapaz de conter a plenitude, ela toma pelo todo aquilo que não passa de uma parte, ela racionaliza do tema colocado pela experiência espiritual. A consciência da Igreja responde às heresias, redige fórmulas contendo uma plenitude suprarracional, e indica a via espiritual justa e sã. Mas ela ainda não deu uma resposta definitiva à heresia do humanismo, ela ainda não desenvolveu todas as possibilidades contidas no Cristianismo e capazes de resolver o problema religioso do homem. Todavia, não existe razão alguma para crer que essa consciência não responderá a essa questão, cedo ou tarde, por meio de um esclarecimento dogmático da autêntica antropologia cristã.

 

Toda a agudeza da questão reside no seguinte: teria o humanismo realmente colocado tal problema, a um tempo profundo e grave? Pouquíssimos homens, dentre os que estiveram ligados às tradições da Igreja, puderam captar toda sua profundidade e gravidade. O mundo está dividido em dois: de um lado, o mundo e a consciência da Igreja, de outro o mundo e a consciência humanistas. Esses dois mundos ainda não se encontraram face a face, a fim de situar e resolver o problema religioso do homem. Somente entre alguns gênios isolados esse problema alcançou certa intensidade extrema, que coloca em cena o Cristianismo e o humanismo. Tais foram, por exemplo, Dostoievsky e Nietzsche. Ainda que fossem muito diferentes um do outro, ambos prestaram um serviço ao conhecimento religioso do homem; todos os dois nos fizeram sair da esfera neutra, aquela que está igualmente distante do céu e do inferno, de Deus e de Satanás.

 

É superando o antagonismo entre o Deus-homem e o homem-deus, que a questão religiosa relativa ao homem poderá ser colocada clara e integralmente. Mas a resposta que a consciência da Igreja dará à humanidade deverá se distinguir essencialmente, por seu próprio caráter, de todas as respostas dadas pelas heresias precedentes; a verdade referente à natureza criadora do homem deverá nela ser revelada. Nessa revelação caberá ao próprio homem uma atividade excepcional. Ora, é natural supor que o homem, por sua energia criativa, preparou desde cedo a resposta a esse problema religioso, mas que a Igreja, exteriormente, ainda não reconheceu esse trabalho como algo seu, não o tendo admitido como uma parte orgânica de sua obre teândrica. A Igreja é o Deus-humanidade, e é por isso que em seu encaminhamento para a plenitude, a atividade criativa do homem deve desempenhar um papel preponderante. A Igreja não pode se realizar sem o “humano”, Deus não pode passar sem ele. Mas o homem pode colocar sua livre atividade criadora a serviço de Deus, assim como pode colocá-la a serviço de Satanás, do espírito do não-ser. Essa atividade do homem se reveste de um caráter duplo no período humanista, estando dirigida aos dois reinos opostos. Tal é o trágico processo da história.

 

Existe no humanismo uma verdade cristã, uma verdade da própria Igreja, mas dele nasce também uma religião que é antagônica ao Cristianismo, a do anti-Cristo, nos confins da qual o homem e Deus são extintos. Todo o tormento do homem reside na necessidade de estabelecer uma distinção entre esses dois princípios, que se opõem um ao outro. Para a resolução desse problema angustiante, muitos elementos dependem do próprio homem, de sua liberdade e de sua escolha. Os dons do conhecimento religioso, os dons da gnose não pertencem à hierarquia eclesiástica, à hierarquia angélica, mas à ordem humana, ao gênio criador do homem. E esses dons não são em absoluto proporcionais ao grau de santidade, como de resto nos ensina a história espiritual da humanidade.

 

 

VII

 

A consciência do homem e o desenvolvimento de suas forças espirituais não são determinados apenas por suas relações com Deus, mas também pelas suas relações com a natureza; e o homem, no decurso de sua história, adotou diferente atitudes em relação à natureza. Podemos distinguir três períodos correspondentes a diferentes relações: primeiro se da a absorção primitiva do homem na natureza, a consciência cósmica primitiva da vida geral ligada à vida da natureza; depois vem a separação em relação à natureza, a oposição do homem à natureza e a luta espiritual contra ela; finalmente, se dá a orientação para a natureza com o objetivo de domá-la, e a luta material contra ela.

 

A esses três períodos correspondem diferentes concepções da natureza. No primeiro, ela é animada, povoada de espíritos bons e maus, e o Grande Pã ainda existe. A magia primitiva é ao mesmo tempo a ciência e a técnica dessa época. O homem, a fim de viver, luta com as forças naturais, mas luta em correlação com os espíritos da natureza. No totemismo, forma primitiva da vida religiosa, o homem adora o animal, que considera como sendo o protetor de um grupo social, de um clã. Nas representações escultóricas, a imagem humana ainda não se distingue da imagem animal, essas imagens estão confundidas. É a esse período, precisamente, que corresponde o paganismo, o politeísmo, o fracionamento da imagem divina na multiplicidade natural. Os deuses da natureza se revelam e a vida do homem lhes é subordinada.

 

Mas já no mundo pagão se manifesta a aspiração do homem a se elevar acima da natureza e se libertar de seus demônios. É o início do segundo período que encontra sua expressão definitiva no Cristianismo. O homem, no processo de sua libertação e de sua ascensão, se separa da alma da natureza e tenta adquirir a independência espiritual, buscando um ponto de apoio, um fundamento para sua vida, não mais no mundo natural exterior, mas no mundo espiritual interior.

 

A Redenção operada por Cristo nos revela uma atitude inteiramente nova: é somente por meio dela que o homem pode adquirir essa independência espiritual, que ele pode dominar o poder dos elementos naturais. Os deuses morrem, o Grande Pã desaparece nas profundezas da natureza e ali jaz em cativeiro. Era preciso se desembaraçar da natureza, vencer em si o paganismo. Era preciso se libertar da demonolatria, do poder dos demônios que perturbavam o mundo antigo e lhe inspiravam terror. Não havia, no paganismo, apenas uma vida feliz no seio da natureza primitiva, mas também uma angústia e um terror, provocados pelas forças misteriosas. Os magos se esforçavam por dominar essas forças demoníacas, e os cultos mágicos tentavam apaziguar os deuses. Mas no mundo pagão a autêntica libertação espiritual não podia ser alcançada. A fim de fortalecer o homem espiritual, e de fornecer uma outra base à sua vida, a Igreja cristã opôs o homem ao demonismo da natureza e o proibiu de ter qualquer relação com seus espíritos. Era preciso, a todo custo, proteger no homem do poder esmagador da infinitude cósmica.

 

Um segundo resultado dessa atitude diante da natureza se traduziu por sua mecanização. O fato de depender dela, de ter uma atitude pagã a seu respeito, não permitia conhecê-la nem dominá-la, científica e tecnicamente. Isso só se tornou possível no mundo cristão. Por paradoxal que isso possa parecer, foi precisamente o Cristianismo que favoreceu o desenvolvimento das ciências da natureza e da técnica; pois elas nasceram da libertação do espírito humano em relação ao poder da natureza e da demonolatria. Era impossível conhecer, pela ciência, os demônios da natureza, ou dominá-los pela técnica. Só se podia amarrá-los por meio da magia ou apaziguá-los com sacrifícios cruentos. O animismo não autorizava a ciência e a técnica, a não ser sob a forma de magia. A ordem cósmica ainda era admitida na Idade Média, mas a consciência medieval estava impregnada de um dualismo religioso e moral. O homem sustentava, em si a ao redor de si, uma luta espiritual contra a natureza. Ele passava por um ascetismo austero, por meio do qual ele desenvolvia e concentrava suas forças espirituais interiores. A personalidade humana estava se forjando. Mas, tanto na primeira época como na segunda, o cosmos subsiste para o homem.

 

O terceiro período começa com o Renascimento. O homem mais uma vez se orienta para a natureza, sedento de conhecer seus mistérios. Com o humanismo, ele sente que se torna outra vez um ser natural, mas que aspira a se tornar mestre dessa natureza. Assim se prepara o poder técnico, que será fruto do impulso dado pela Renascença às ciências da natureza. A natureza se torna exterior e claramente estranha ao homem; ele já não sente sua alma, ela deixa de ser o cosmos e se torna um objeto submetido às ciências da natureza e às matemáticas. E o homem moderno já não teme seu demonismo, nem seus espíritos, mas sim seu mecanismo inanimado. A concepção mecânica do mundo, devida à vitória espiritual obtida pelo Cristianismo sobre a natureza, se torna uma força hostil a essa fé.

 

Mas o Cristianismo alimenta a esperança num quarto período na atitude do homem perante a natureza: ele começará quando o homem novamente se orientar para sua vida interior, quando ele reencontrar o cosmo divino, mas dessa ver unido ao poder espiritual sobre os elementos, e afirmando assim sua soberania no mundo.

 

Nessa nossa nova época, a cultura, cuja base é sempre religiosa, cuja natureza é sempre simbólica, cuja existência pressupõe uma meditação e uma criação desinteressadas, começa a se transformar numa civilização, mas secularizada, interessada no poder e no bem-estar da vida, e na qual predomina um ingênuo realismo. A civilização constitui o limite extremo da mecanização da vida humana e da natureza. Nela, tudo o que é orgânico morre. A mecânica, criada pelo poder da ciência humana, submete não só a natureza, como também o homem. esse último já não é escravo da natureza; ele se libertou de seu poder orgânico, mas se tornou escravo da máquina, prisioneiro do meio social que ela criou. Na civilização, último resultado do humanismo, a imagem humana começa a perecer. A cultura é impotente para lutar contra crescente da civilização. Manifesta-se uma vontade que aspira a modificar e transfigurar a vida; mas a cultura não transfigura a vida, ela não faz mais do que lhe trazer os grandes valores criativos: as filosofias, as artes, as instituições do Estado e do direito. Produz-se um desdobramento nessa aspiração à vida real, à sua transfiguração: de um lado, a vontade é dirigida para a transfiguração social e técnica dentro de uma civilização ateia; de outro, a vontade aspira a uma transformação religiosa, à iluminação espiritual do universo e do homem. Essas duas vontades se enfrentam no mundo. Esse é o esquema das relações entre o homem e a natureza.

 

O homem é a criação de Deus e ele precede, metafisicamente falando, o mundo natural e seu destino histórico. Não podemos deduzir o fenômeno humano a partir do desenvolvimento natural do mundo. Bem ao contrário, o homem possui. No mundo natural, sua própria evolução. O homem decaído não se ergue, nem adquire sua imagem, senão por meio de um processo de desenvolvimento progressivo. Nisso reside a verdade do evolucionismo. O homem se confundiu com a natureza inferior e perdeu sua imagem. É nos degraus mais baixos da vida animal que ele começou sua vida animal. A personalidade humana não despertará do estado de inconsciência e de evanescência no qual foi lançado por sua separação em relação a Deus, senão por meio de um longo e torturante processo de luta e de crescimento.

 

Na antiga Hélade, onde, por um instante, a visão do Éden perdido foi recuperada, o homem se elevou pela primeira vez sobre o mundo pagão, e sua imagem modelou-se em magníficas formas plásticas. Durante muito tempo, os limites da natureza humana permaneceram indistintamente marcados. A imagem do homem era ainda confusa, ela ainda não havia se liberado da imagem dos deuses e da natureza animal. Ainda não havia uma distinção cara entre o herói, o deus e o homem. O herói não era simplesmente um homem, ele era um semideus. Realizava-se na Grécia antiga um processo antropogônico, por meio da criação de deuses e heróis. A fim de se elevar acima do estado no qual as imagens humana e animal se encontravam confundidas, o homem deveria acolher em si a imagem do deus ou do semideus, princípios considerados sobre-humanos.

 

Se, nos últimos dias da história humanista europeia Nietzsche aspirava a se elevar do homem ao super-homem, se ele buscava outra vez confundir a imagem do homem com a do deus, do herói, ao contrário, na aurora do humanismo grego, o homem nascia do super-homem. na escultura grega, a revelação da imagem humana nos foi dada pela beleza, e o homem se desembaraçou do estado de confusão com o animal, que era inerente ao Oriente.

 

A cultura do Ocidente nasceu na Grécia, e na sua origem repousa o mito ariano, tão diferente do mito bíblico: o mito de Prometeu. O mito da queda do primeiro homem é mais profundo e mais fundamental do que o de Prometeu. A queda de Adão determinou a própria existência do mundo natural e de todo o seu destino. O mito de Prometeu nos revela um determinado fenômeno espiritual já realizado dentro do mundo natural decaído, como sendo um momento importante e determinante no destino da humanidade. Esse mito não é metafísico, ele se refere ao nascimento da cultura humana. Ele nos ensina que o super-homem, o herói, luta, em nome do homem e de sua cultura, contra os deuses e os demônios, contra os espíritos da natureza e os elementos. O homem e a cultura não começam a existir, nesse mundo natural, senão a partir do momento em que o fogo do céu, que só pertencia aos deuses, foi roubado; somente a partir do momento em que o homem se apropria do princípio supremo, que somente os violentos são capazes de conquistar. Prometeu liberta os homens, não de Deus, que permanece oculto para ele, mas dos deuses da natureza, do poder dos elementos: ele é o pai da cultura humana. A luta titânica contra os deuses não é uma luta com Deus. Assim, o mito prometeico não pode, de forma alguma, se opor ao mito bíblico, sobre o qual se apoia o Cristianismo, porque eles pertencem a planos diferentes.

 

O princípio prometeico é o princípio eterno; sem ele não haveria homem. separado de Deus, o homem era obrigado a se erguer pela afirmação do princípio prometeico. Sem esse princípio, o home permaneceria na confusão, ele não seria revelado. O homem tinha que se libertar dessa submissão aos deuses da natureza. Esse era o caminho pelo qual ele se encaminharia para o Cristianismo, para o advento do novo Adão. A imagem do homem não poderia se manifestar senão por meio desse princípio heroico e titânico, rebelando-se contra os deuses. É a luta cósmica em meio a sofrimentos, da qual nascerá o homem. O mito prometeico é um grande mito antropológico e antropogônico. Sem Prometeu, não existiria cultura no mundo, o gênio criativo do homem não se manifestaria. Por isso esse mito deveria receber sua santificação cristã.

 

O mito da queda nos fala da atitude do homem para com Deus. O mito de Prometeu nos fala da atitude do homem para com a natureza. O homem separado de Deus deveria necessariamente se ver colocado diante da natureza e de seus dominadores, numa situação análoga à de Prometeu. E é assim que o destino do homem foi revelado na criação mitológica da Grécia.

 

A tragédia grega revela ao mundo o grande drama da vida e do destino do homem. Ela foi, para o mundo antigo, uma revelação que o resgatou de seus limites e o direcionou a um outro mundo. Foi por vias diversas que o mundo humano se revelou na cultura grega: o humanismo antigo se afirmava, o homem se preparava para receber a verdade do Cristianismo, a verdade do Deus-homem. O titanismo antigo e o heroísmo antigos não chegaram a resolver o problema do destino humano – eles apenas o colocaram. A solução só foi obtida na religião do Deus-homem. O asceta cristão, o santo, alcançam essa vitória final sobre o “mundo”, sobre os elementos da natureza, sobre o destino, que era tragicamente inacessível ao herói e ao titã. O herói trágico se dirige para a morte. O cristão se dirige para a Ressurreição.

 

A imagem do homem, na cultura antiga, se manifestava pela ação recíproca e a luta entre os princípios dionisíaco e apolíneo. O princípio dionisíaco é o elemento original sem o qual o homem não possui fonte alguma de vida. A superabundância da força dionisíaca gera a tragédia, ela rompe os limites de toda individualidade. O culto dionisíaco é um culto orgíaco. O homem busca nele a libertação do mal e dos tormentos da vida, pelo deslocamento da individualidade, pela perda da personalidade, pela imersão no elemento natural original. A religião de Dionísio é a religião da salvação impessoal. O princípio dionisíaco em si não e capaz de moldar o homem, ele não tem como afirmar e conservar a imagem humana. Assim, a predominância de elementos e de cultos dionisíacos constituiu, de certa forma, um retorno para o homem do Oriente à “não-diferenciação” oriental.

 

A personalidade era forjada pela religião de Apolo, deus da forma e da medida, ela era gerada dentro da religião apolínea. O princípio apolíneo é, por excelência, o princípio individual. Ele é igualmente o princípio aristocrático. O gênio helênico da forma pertence ao culto de Apolo. Mas uma predominância exclusiva de seu princípio ameaça por a perder toda ligação com o princípio dionisíaco. O gênio helênico recusava a submissão à influência do Oriente, e não se deixou despedaçar pelo elemento dionisíaco, mas o submetei à forma apolínea, impondo-lhe seus limites. A beleza está ligada ao princípio apolíneo. O princípio dionisíaco em si é desarmônico. O cosmo é belo porque nele se unificam o elemento dionisíaco e a forma apolínea. O homem possui a beleza, a imagem e a semelhança divinas, porque também nele esses dois elementos se conciliam. O equilíbrio entre esses dois princípios é o objetivo ideal, que o mundo helênico soube atingir. Mas esse equilíbrio podia ser rompido por um ou por outros desses princípios.

 

Se, de um lado, o triunfo exclusivo do elemento dionisíaco ameaça destruir a personalidade do homem, por outro lado, o triunfo excessivo do elemento apolíneo ameaça o homem com um formalismo exterior, uma cultura puramente formal, um alexandrinismo, uma espécie de positivismo à antiga. O princípio apolíneo é o princípio da medida. O infinito está fechado para ele. ele se entreabre para o princípio dionisíaco, mas nele os abismos superior e inferior são indiscerníveis. O mundo antigo jamais consegui se liberar do antagonismo desses dois princípios e não chegou a salvar o homem do perigo que o afligia.

 

 

VIII

 

A revelação definitiva e a afirmação da personalidade humana não é possível senão no Cristianismo, pois é ele que reconhece a importância e o valor eterno do homem, da alma humana individual e de seu destino.  A alma humana tem mais valor do que todos os reinos do mundo, pois ela encerra o infinito. O Cristianismo apareceu no mundo, antes de tudo, como a religião da salvação do homem, e ele manifestou, por isso mesmo, sua solicitude em relação à personalidade e à alma humana; ele jamais viu o homem como um meio ou um instrumento para servir a objetivos quaisquer, como um momento passageiro do processo cósmico ou social. Essa atitude em relação ao homem é inerente a ele. A consciência cristã tem como fundamento o reconhecimento do valor eterno daquilo que é único, daquilo que é irrepetível. Somente no Cristianismo encontramos o individual em seu valor eterno. A face única e inimitável de todo homem não existe senão porque existe a Face única e inimitável de Cristo, o Deus-homem. Em Cristo e por Cristo se revela a face eterna de todo ser humano. No mundo natural ela está dividida e se torna sempre um simples meio a serviço da raça natural. O antropologismo autêntico não é próprio senão à consciência cristã, e o objetivo para o qual pendia o mundo só se vê realizado no Cristianismo.

 

Mas o caminho da Redenção que liberta a alma humana da servidão ao pecado e ao poder dos elementos inferiores, dissimulou durante algum tempo a missão criadora do homem. A consciência patrística se preocupava com a salvação da alma, e não com a criação. A Igreja dava uma sanção religiosa a esse estado de alma a que chamamos de santidade, mas a recusava ao estado da natureza humana que denominamos gênio. A santidade é antropológica, ela consiste na aquisição suprema da natureza humana, na sua iluminação e deificação. Nisso ele se distingue do sacerdócio, que não é um princípio humano, mas angélico. No entanto, será o caminho da santidade e sua obtenção a única via, a única aquisição religiosa do homem? Será possível afirmar que todo caminho criativo do homem, que não esteja fundamentado na santidade, não seja autorizado senão em razão do pecado da natureza humana, e não possa receber uma justificação religiosa positiva?

 

Existe nisso, para a consciência cristã, uma questão profundamente perturbadora, e a impossibilidade de responder a ela faz com que a vida humana permaneça desunida e, na sua maior parte, não santificada. O caminho da inspiração criativa permanece terrestre, secular, não sagrado. O sentido religioso do gênio, como manifestação suprema da criação humana, permanece oculto. Paralelamente à existência dos santos, dos ascetas, daqueles que buscam a salvação de suas almas, que sentido atribui a consciência cristã à vida dos gênios, dos poetas, dos artistas, dos filósofos, dos sábios, dos reformadores, dos inventores, desses homens que se ocuparam acima de tudo em criar? Não podemos eludir a essa questão sugerindo que o Cristianismo não renega de modo algum as manifestações do gênio criador do homem. Ela é infinitamente mais complexa, ela atinge a profundeza mesma da metafísica do Cristianismo e de sua consciência dogmática. Não é a inspiração criativa em si uma experiência espiritual, a manifestação da missão positiva do homem? Não espera Deus do homem o heroísmo criador?

 

A criação não pode ser unicamente autorizada, escusada: ela deve poder se justificar de maneira positiva do ponto de vista religioso. Se o homem se torna poeta ou filósofo, unicamente porque seu estado de pecado e fraqueza o impendem de seguir o único caminho autêntico, o caminho do ascetismo e da santidade, então o poeta e o filósofo estão condenados pela consciência cristã, e assim sua obra criativa deve ser rejeitada como sujeira e inanidade.

 

É evidente que o homem deve seguir o caminho da purificação, o do ascetismo e do sacrifício, e que ele deve lutar contra sua natureza inferior. Toda obra criativa, todo conhecimento, toda arte, toda inovação, nada disso é possível sem uma limitação de si mesmo, sem uma elevação acima da natureza inferior. Quem coloca o objeto de sua criação acima de si mesmo e que prefere a verdade acima de si mesmo também, somente esse é capaz de criar seja o que for na vida. Esse é um axioma espiritual. O poeta por ser um grande pecador e cair até muito baixo, mas no momento da inspiração poética, no abrasamento criativo, ele se ergue acima de sua decadência, ele ultrapassa a si mesmo. Esse pensamento está expresso no famoso verso de Pushkin: “Quando não é chamado por Apolo para realizar o sacrifício sagrado, o poeta é talvez o mais miserável das crianças miseráveis desse mundo”.

 

A vida criativa possui sua santidade, sem a qual toda criação se corrompe, e nela existe também uma piedade, sem a qual o criador perde sua força. Mas toda a acuidade do problema religioso da criação reside na seguinte questão: será a humildade o único fundamento autêntico da vida espiritual, ou existirá algum outro, do qual nasce a energia criativa? Quando damos uma descrição fenomenológica e psicológica da criação, somos obrigados a reconhecer que essa, em qualquer esfera da vida que seja, não depende exclusivamente do fenômeno espiritual da humildade. A humildade se encontra na origem da vida espiritual do cristão. Graças a ela, a natureza pecadora do homem se transfigura, o egocentrismo é vencido. Esse processo espiritual se produz igualmente em todo criador, que deve, por humildade, por desembaraço, pelo sacrifício de seu egocentrismo, transfigurar sua natureza, se libertar do fardo do pecado. É preciso, para que nasça a necessidade de criar, escapar ao contentamento de si. Mas a própria criação, o impulso criador, indica um momento diferente na vida e na experiência espirituais.

 

No momento em que cria, o homem não sonha com a vitória sobre o pecado, pois ele se sente já liberto de seu peso. A própria criação já não é nem humildade, nem ascetismo, mas inspiração e êxtase, a comoção benfazeja de todo ser humano, na qual se manifesta e se descarrega a energia espiritual positiva. O problema da justificação da criação é o da inspiração criadora, enquanto experiência espiritual. A criação pode adquirir um sentido e uma justificação religiosa se, na inspiração, o homem responde à exigência, ao apelo divino, cooperando com a criação Divina. Se, quando falamos de criação, nos é respondido com um apelo à humildade, o problema permanece incompreendido e a discussão não vai além disso.

 

Jamais o sábio faz descobertas, jamais o filósofo penetra os mistérios e o sentido do mundo, jamais o poeta nos dá seus poemas, nem o pintor seus quadros, jamais o inventor trará suas invenções, nem o reformador social novas formas de vida, partindo de um estado de  humildade, deplorando sua fraqueza e seu pecado, sua impotência e sua aparente nulidade. O ato criador pressupõe um estado espiritual bem diferente: uma superabundância de força criativa, seu impulso imediato, o sentimento de uma integridade nesse estado espiritual.

 

O criador pode, num mesmo período de sua vida, orar com humildade, confessar seus pecados, submeter sua vontade à de Deus, e ao mesmo tempo sentir a inspiração, ter a consciência de sua força criativa.  Existe, na inspiração criadora, no êxtase, um desembaraço inédito, uma vitória sobre a “necessidade” do pecado, uma integridade interior e um esquecimento de si. Talvez nessas coisas exista mais desprendimento do que na humildade; sonha-se mais com Deus do que consigo próprio. Na salvação da alma, na redenção, o homem pensa ainda em si mesmo. A criação, no sentido profundo, é uma contemplação de Deus, da verdade, da beleza e da vida suprema do espírito, Deus não se contenta com a busca da salvação. Ele precisa que o homem, na revelação positiva de sua natureza, manifeste seu amor criativo em relação a Ele. Mas Deus não pode amar o rebaixamento do homem. a criação autêntica não pode, em caso algum, ser uma criação em nome do homem; ela não pode ser outra coisa que uma criação em nome daquele que lhe é superior, em nome de Deus, mesmo que esse nome não represente para a consciência humana senão a verdade, a beleza ou a justiça.

 

A criação, por sua natureza, constitui um sacrifício, e o destino do gênio criador é um destino trágico. A criação do homem, como tudo o que se encarna no mundo, como até a própria organização da Igreja cristã, pode facilmente se contaminar, se desnaturar e degenerar. Desde o momento em que o homem começa a criar em seu próprio nome, a se autoafirmar na sua criação, a recusar o ascetismo e o sacrifício, o abismo do nada se abre diante de sua obra. A vaidade agarra o criador e desfigura sua natureza criativa.

 

No mundo contemporâneo espiritualmente decaído, é temível, na verdade, o vazio, o “não-ser”, da literatura, da arte, do pensamento, da filosofia, das inovações da vida, da edificação social; temível é, na criação, a ausência de verdadeiras realidades objetivas. O esteticismo atual, do modo como se manifesta no pensamento científico, na arte, no direito, na vida politica e na técnica, é a expressão de uma separação desesperada do processo criador em relação à existência, em relação a Deus, ele é a expressão de uma indiferença para com tudo o que existe ontologicamente, ou que não existe. Existe aí uma decadência que esconde à consciência moderna o sentido religioso da criação. A criação contemporânea está, na maior parte das vezes, desprovida de sentido religioso e de realidade objetiva, ele não passa de uma tentação para os homens de consciência cristã. É assim que ela provoca contra si, na civilização moderna, uma reação religiosa.

 

 

IX

 

No mundo cristão existem duas correntes que sempre se enfrentaram: a manifestação do espírito criativo do homem e a reação monofisita contra esse espírito. Essa corrente monofisita ainda existe em nossos dias.  Ela não percebe o problema religioso do homem e se vê incapaz de superar o humanismo. Somente poderá vencer o humanismo a descoberta positiva da verdade referente ao homem e à sua missão criativa. A negação monofisita provoca sempre uma reação humanista.

 

O Cristianismo monacal e ascético fundado sobre a antropologia patrística, ou mais exatamente sobre uma pequena parte de sua doutrina, que considera o ascetismo como a única vida espiritual, reprovando todas as que conduzem à criação humana, não pode desembaraçar o  humanismo da crise universal, que não passa da contrapartida da crise que o Cristianismo sofre. A concepção místico-ascética do mundo frequentemente não passa de um maniqueísmo velado.

 

Hoje em dia, nenhuma consciência cristã compenetrada de sua responsabilidade pode pretender que nada de especial se produziu no mundo e no homem desde a época dos concílios ecumênicos e das polêmicas dos doutores da Igreja, que não se colocaram problemas novos ao pensamento religioso, que nada mudou e que somente o pecado humano persiste em deformar tudo, como no passado. O homem percorreu um longo e complexo caminho, ele viveu uma tragédia que as épocas anteriores, mais simples, ignoraram, e a extensão de sua experiência se desenvolveu infinitamente, de modo que sua psique se modificou e que problemas inteiramente novos se apresentam a ele na atualidade.

 

Não é possível satisfazer as novas exigências da alma por meio de procedimentos que então eram empregados pelos Padres da Igreja, numa época inteiramente diferente da nossa. O elemento humano na Igreja se modifica e se desenvolve. É preciso atualmente dar continuidade e renovar a obra criativa dos antigos doutores da Igreja, e não retomar suas respostas a questões que hoje em dia estão desatualizadas. O Cristianismo não poderá continuar a existir se continuar num estado de epigonismo, de plágio e de decadência, se ele insistir em viver às custas de seu antigo capital, em procurar acumular novas riquezas. As portas do inferno não prevalecerão contra ele porque ele contem uma fonte inesgotável e eterna de forças criadoras. Mas a humanidade cristã pode sofrer uma decadência. A reação monofisista constituiu uma dessas decadências. Nietzsche foi uma vítima desse monofisismo decadente que surgiu no seio do Cristianismo, dessa negação do homem. ele vivia torturado por uma sede criativa, que ele jamais chegou a justificar religiosamente. Ele se levantou contra Deus que, segundo ele, proibia toda criação.

 

A Igreja, cuja consciência era superficial, não observou, se podemos nos exprimir assim, a extensão do caminho que o homem percorreu; ela não esteve suficientemente atento às mudanças ocorridas na alma humana. A Igreja, no sentido diferencial e não integral do termo, não reconheceu como seu o trabalho criativo positivo do homem, como se ela houvesse esquecido sua própria natureza teândrica. O homem se transformou profundamente, ele foi contaminado por novos pecados, ele sofreu novos tormentos e tenta hoje amar a Deus com um novo amor criador. Mas os representantes da antiga consciência da Igreja acreditam ter diante de si sempre a mesma alma imutável com os mesmos pecados e as mesmas questões. O homem passou sucessivamente pela experiência de Hamlet e de Fausto, pela de Nietzsche e de Dostoievski, pelo humanismo, o romantismo e o gosto pelas revoluções, pela filosofia e a ciência contemporânea; é impossível rasurar esse passado.

 

Quando a experiência vivida é superada por um estado superior, ela faz desse estado uma parte integrante. Essa é uma lei da vida. A alma se transforma em outra coisa, infinitamente mais sensível; paralelamente aos novos pecados e às novas tentações, surgiu nela uma compaixão em relação a tudo o que vive, compaixão que a alma mais rude das épocas anteriores ignorava. Essa nova sensibilidade se estendeu ao homem em relação a si mesmo. Produziu-se no mundo um processo duplo, a um tempo de “democratização” e de “aristocratização” da alma.

 

Uma resposta cristã positiva deverá, cedo ou tarde, ser fornecida à nostalgia criativa do homem, pois o destino do Cristianismo no mundo depende disso. O próprio Cristianismo tornou infinitamente mais complexa a psique do homem, mas não foi capaz de iluminá-la com um brilho suficiente. É preciso sempre distinguir a ação profunda, subterrânea, do Cristianismo ao longo da história, de sua ação exterior, terrestre, que faz parte da consciência da Igreja. A vinda de Cristo ao mundo trouxe consigo a cristianização de todo o cosmo, e não só o estabelecimento de Igrejas visíveis. Por toda parte vemos essa dupla ação das forças de Cristo. Assim é que o Cristianismo introduziu no mundo o amor entre o homem e a mulher, esse amor romântico desconhecido do mundo pré-Cristão. Mas a consciência da Igreja não conseguiu resolver a questão do sentido religioso do amor. O Cristianismo forjou a personalidade humana e tornou possível o nascimento de uma individualidade específica que se refinou progressivamente na nova história. Mas a consciência da Igreja insistiu em ignorar o desenvolvimento da individualidade, seu destino trágico no mundo. Por outro lado, nossa nova época desenvolve e intensifica o sentimento de individualidade ao mesmo tempo em que oprime o indivíduo, impondo-lhe um nível e subordinando-o às massas.

 

Vivemos e sofremos essas contradições. O homem, num processo de desenvolvimento que parece ser inteiramente natural, se evade de seus costumes e da consciência coletiva e chega à consciência pessoal e às formas individuais de criação na vida. Daí decorrem grandes modificações no estilo do Cristianismo. Ele se encontra num estado transitório, tendo perdido sua austeridade anterior e sua integridade. Ele á não pode ser um Cristianismo de costumes. A antiga ordem, a antiga consciência racial se desagrega.

 

A nova raça comunista acolhe em si a imagem do anti-Cristo. A individualidade humana é esmagada entre os vestígios da antiga geração e os embriões da nova. Não pode haver aí um retorno ao antigo agregado, no qual estavam unificados o Cristianismo e a organização tradicional da vida. Uma tentativa desse gênero nunca passou de uma reação impotente. A esse novo estado no destino da sociedade humana deve corresponder também um novo estilo de Cristianismo, que, em seu estado transitório, histórico e psicológico, não pode ser considerado como absoluto e eterno. O finito jamais pode submeter o infinito; não é possível submeter o espiritual às formas naturais efêmeras. O falso conservadorismo amarra sempre o espirito infinito à forma finita e substitui por essa última a própria essência do divino. Contra esse falso estilo clássico o romantismo se levanta, com toda justiça, com sua nostalgia do infinito, com sua recusa em se reconciliar com o finito.

 

Vivemos numa época na qual o estilo estático clássico do Cristianismo já não é mais possível, na qual a submissão aos costumes constitui um obstáculo à expressão infinita do ser. Nosso Cristianismo é outro, a um tempo eterno e novo. Ele não é nem clássico, nem estático, porque ele designa um movimento espiritual, um dinamismo intenso, que ainda não encontrou seu adequado simbolismo.

 

O Cristianismo que domina nossa nova época é inevitavelmente um Cristianismo que viveu a decadência e a queda do humanismo, as tempestades da revolução, a inédita intensidade do desdobramento do pensamento, as buscas pela liberdade e a criação humanas. A antiga forma de cultura já não responde à nossa época catastrófica. Não podemos ver o ser eterno nos costumes efêmeros. Cristo veio para todo o universo, para todos os homens e para todas as épocas. O Cristianismo não existe somente para as almas simples, mas também para as almas complexas, é preciso lembrar. O estilo predominante da Ortodoxia foi, por muito tempo, adaptado a um estado de alma ingênuo e rude.  Mas a alma humana se tornou mais complicada e refinada. O que deve ser feito? Será possível que Cristo não tenha vindo para ela, e que a verdade do Cristianismo não exista para essa alma?

 

A verdade cristã existe para todos e para tudo, mas a forma estática do Cristianismo de tal ou qual época pode não estar orientado senão para uma categoria determinada de almas. Assim é que o starchestvo[5] russo havia elaborado uma forma de Cristianismo que possuía suas almas “tipo”. Constatamos que uma manifestação tão importante quanto essa foi impotente para responder à nostalgia criadora do homem. Ela jamais conseguiu, por exemplo, obter um domínio real sobre a alma de Dostoievsky.  

 

Jamais o princípio hierárquico da Igreja, o principio sacerdotal, será capaz de resolver o problema religioso da criação. Esse é a manifestação do princípio humano, da natureza humana. Somente o homem pode encontrar sua resolução; nenhuma autoridade, qualquer que seja, nenhuma hierarquia que não seja humana, poderá fornecê-la. A solução do problema religioso da criação será uma solução humana. O PROBLEMA CONSISTE PRECISAMENTE EM QUE SUA SOLUÇÃO SEJA HUMANA, QUE ELA VÁ DO HOMEM PARA DEUS E NÃO DE DEUS PARA O HOMEM.

 

A humanidade, no período cristão da história, se dilacerou na contradição entre um Cristianismo sem criação humana e uma criação humana sem Cristianismo, entre um Deus sem homem e um homem sem Deus. O amor a Deus se transformou, muitas vezes, em ódio ao homem. O movimento do Cristianismo para a plenitude deve assegurar a vitória sobre essa divisão, a revelação positiva do Deus-humanidade, a união dos dois movimentos, a aliança entre o Cristianismo e a criação.

 

Aproxima-se a hora em que se torna cada vez mais claro que somente no Cristianismo, e por intermédio dele, a imagem do homem poderá ser salva, pois os elementos desse mundo tendem a destruí-la. A criação do homem é possível e justificada, desde que a serviço de Deus e não de si mesmo, desde que ela se associe à criação divina. Esse problema está ligado ao problema da consciência divina, à vitória sobre os vestígios do dualismo metafísico maniqueísta, que opõe radicalmente Deus à criação e a Igreja ao mundo. Todo ser autêntico está enraizado em Deus. Fora de Deus não há outra coisa que o não-ser, o mal e o pecado, jamais a natureza.



[1] Doutrina condenada pelo Concílio de Antioquia (435) que sustentava que foi Deus Pai, e não o Filho, que sofreu na cruz.

[2] Berdiaev não se refere à questão de cor, como hoje em dia se costuma entender o termo “racial”, mas à raça, na qualidade de “raça humana”, por exemplo.

[3] Boehme chama a substância “tinctur”, a qualidade vivificadora individual, da qual tudo brota.

[4] Citações extraídas de obras de Jacob Boehme, Die drei Principien göttlichen Wesens, Vom dreifachen Leben des Menschen, Lysterium Magnum.

[5] O starchestvo, uma prática religiosa informal da Igreja Ortodoxa Russa, constitui um fenômeno que, paralelamente às doutrinas teológicas oficiais, se reveste de um sistema de práticas e crenças chamadas de “Ortodoxia popular”.