quarta-feira, 21 de outubro de 2015

São João Clímaco - A Escada Santa - Capítulos de 21 a 30 - Final

SÃO JOÃO CLÍMACO

A ESCADA SANTA


VIGÉSIMO PRIMEIRO DEGRAU

Da vanglória, tão variada em suas formas


1. Alguns separam, em seus tratados sobre o assunto, a vanglória do orgulho; isto é porque, em lugar dos sete pecados capitais, fontes originais de todos os outros, eles contam oito[1]. Mas são Gregório, com justiça denominado O Teólogo, e alguns outros doutores, não marcaram senão sete; eu partilho desta opinião. Com efeito, quem é aquele que, tendo com felicidade triunfado sobre a vanglória, permanece ainda sob o jugo do orgulho? É preciso confessar, no entanto, que entre esses dois vícios existe a diferença que notamos entre uma criança e um homem feito, entre o fermento e o pão; pois a vanglória pode ser vista como o princípio do orgulho, e o orgulho como a temível perfeição da vanglória. Ora, como aqui se apresenta a ocasião para falar deste vício, diremos algumas coisas sobre esta paixão ímpia que de tal modo infla o coração de que é possuído por ela. Trataremos em poucas palavras do seu início e dos seus últimos graus; pois quem quisesse esgotar a matéria a este respeito se assemelharia a um homem que pretendesse conhecer exatamente o peso do vento.

2. A vanglória, considerada em sua espécie e sua forma, é uma paixão da alma que busca mudar a natureza das coisas, a corromper a virtude e afastar as censuras e as reprimendas; e, considerada nas suas propriedades e em seus efeitos, é um vício que não tende senão a dissipar os frutos de nossos trabalhos, suores e penas, a nos lançar armadilhas para nos arrebatar o tesouro de nossas boas obras, a nos fazer cair na infidelidade e no orgulho, a nos fazer experimentar um triste naufrágio no porto mesmo da salvação, a morder e consumir nosso coração e, semelhantemente à formiga, que não passa de um mísero inseto, a devastar a colheita preciosa de nossas virtudes. A formiga espera que a colheita seja ajuntada, e a vanglória, que as virtudes sejam adquiridas; a formiga ataca os grãos, e a vanglória as boas obras.

3. O demônio mal consegue conter sua alegria quando percebe que os homens multiplicaram suas iniquidades; mas – creiam-me! – o demônio da vanglória triunfa quando vê um tesouro de virtudes em alguém: pois ele não ignora que, se um grande número de feridas espirituais é capaz de precipitar uma alma nos horrores do desespero, um grande número de boas obras é igualmente capaz de atirar outra alma à servidão da vanglória.

4. Prestem atenção, e descobrirão que, mesmo no túmulo e sob as cinzas, esta miserável dominadora ainda quer se ornar com a magnificência dos hábitos e das vestes, com o bom odor das essências e dos perfumes, com a pompa das honras, dos louvores e de outras coisas do gênero.

5. Se o sol distribui seus raios benfazejos sobre todas as criaturas, a vanglória derrama seu veneno sobre todas as boas obras. Jejuo? Encho-me de vaidade; rompo meu jejum para subtraí-lo ao conhecimento dos irmãos? Gabo-me interiormente por minha rara prudência. Apareço em público com trajes apropriados e belos? Sou vão e orgulhoso; troco-os por outros, vis e miseráveis? Glorifico a mim mesmo. Tanto minhas palavras como meu silêncio me fazem igualmente cair nas armadilhas do amor próprio. É assim que podemos comparar a vanglória a um “pé de corvo[2]” que, de qualquer lado que caia ao ser jogado, apresenta sempre uma ponta para perfurar o pé dos inimigos.

6. O vaidoso é um crente idólatra; pois, de um lado, ele parece adorar a Deus, mas, de outro, é à criatura que ele dirige suas homenagens.

7. Todo amigo que persegue a vaidade, não busca senão divulgar a si próprio vantajosamente perante o exterior. Se observa o jejum, se se dedica aos exercícios da santa prece, é sempre para atrair os elogios dos homens; e é por isso que seus jejuns não merecem nenhuma recompensa.

8. O homem escravo da vaidade é duplamente infeliz: pois ele aflige seu corpo com austeridades rigorosas, e não extrai daí nenhum benefício.

9. Ora, quem poderia não se rir daquele que busca a vanglória? Não o vemos durante a oração se atirar à alegria, de maneira a fazer crer que seu coração está inundado de prazeres celestes? Ou em prantos, para dar a entender que ele está vivamente tocado pelos sentimentos de uma grande dor e por afetos de uma ardente compunção?

10. Por uma bondade todas especial, Deus tem o cuidado de nos esconder a visão de nossas boas obras; mas um adulador que nos engana, nos abre os olhos para que as vejamos; e infelizmente elas desaparecem assim que as vemos.

11. Um adulador é assim um ministro dos demônios, um mestre do orgulho, um exterminador da compunção, um assassino de virtudes, um guia no caminho do erro, conforme a palavra do Profeta: “Meu povo, diz o Senhor, aqueles que o chama de feliz não fazem mais do que enganá-lo[3]”.

12.[4]

13. Não é necessário nada menos do que uma virtude perfeita, uma grande generosidade e uma coragem heroica para ser capaz de suportar e digerir com paciência as injúrias e os ultrajes com que nos oprimem; mas é preciso uma santidade extraordinária para não se deixar prender pelas doçuras envenenadas dos elogios. Eu vi pessoas que choravam seus pecados, e que, vendo-se elogiadas por alguns irmãos, se enfureciam contra eles; mas assim eles caíam de uma falta que tentavam evitar, numa outra na qual não haviam pensado.

14. “Ninguém, disse o Espírito Santo, conhece o que existe dentro do homem, se não for o espírito do homem[5]”. Esta sentença deveria cobrir de vergonha e calar todos os que são imprudentes o bastante e ousados para nos elogiar na nossa cara dizendo-nos como somos felizes.

15. Dentre seus próximos e seus amigos, algum levantou alguma calúnia contra você, na sua presença ou na sua ausência? Não deixe de desculpá-lo com uma afeição sincera.

16. Certamente não é de pouca coragem que se necessita para rejeitar para longe de si o veneno encantador dos elogios que às vezes os homens prodigalizam, mas é preciso muito mais para detestar e maldizer as que nos fazem os demônios; pois estas são muito mais sutis.

17. Dificilmente eu acredito na humildade de quem se rebaixa e despreza a si próprio na presença dos outros. Com efeito, será penoso ou difícil suportar por algum tempo uma situação em que nos colocamos por nossa própria vontade? Mas creio que pratica realmente a virtude alguém que, oprimido por ultrajes e injúrias, conserva pelo ofensor a mesma afeição que tinha antes deste péssimo tratamento.

18. Observei um dia que o demônio da vanglória inspirara certos pensamentos a um irmão, os quais foram revelados a outro irmão, e que o mesmo demônio levou este último a descobrir o primeiro segredo de seu coração, a fim de se glorificar e se mostrar como um homem extraordinário, por um profeta, numa palavra. Mas não é apenas nosso coração que o cruel demônio da vanglória ataca diretamente: ele se serve dos próprios membros de nosso corpo para envenenar nossa alma. É por isso que ele lhe comunica movimentos leves e fáceis.

19. Expulsem para bem longe de vocês e não se deixem tentar pelo desejo que o demônio lhes inspira, de se tornarem bispos, higoumenos, doutores, ou qualquer outra coisa semelhante. Lembrem-se de que é difícil expulsar um cão faminto da casa de um açougueiro.

20. Vê o demônio um monge penetrar na alegre paz da alma por causa de sua vitória sobre as paixões? Logo ele tenta acabar com sua feliz solidão para lançá-lo ao mundo. “Saia daqui, ele lhe diz interiormente; o que faz você? Vá trabalhar pela salvação das almas que perecem”.

21. Um é o aspecto do Etíope e outro o de uma estátua; é assim que a vanglória que tenta os cenobitas não se parece nem um pouco com aquela que trabalha contra os eremitas.

22. Os primeiros, quando o demônio percebe que chegam estrangeiros à sua casa, os leva a correr a eles para recebê-los, atirando-se aos seus pés para os honrar e para humilhar a si mesmos; mas interiormente eles estão cheios de orgulho, e sua humildade é meramente exterior; seus modos são hipócritas, suas palavras falsas e enganadoras e sua modéstia é cheia de artifícios e traições. Com efeito, se eles chamam a estes estrangeiros de seus senhores, seus protetores e salvadores depois de Deus, é apenas porque observaram quem eles são e o que carregam, e pensam que podem esperar deles alguma coisa. Depois dessa primeira cerimônia, você os verá exortando os irmãos que estão à mesa ao lado dos estrangeiros para que mantenham a mais estrita temperança, enquanto tratam os inferiores com rigor impiedoso. Então, embora em outros tempos eles sejam frouxos e negligentes na oração, você os verá fervorosos e cheios de ardor durante este santo exercício; eles, que antes estavam sem voz para salmodiar, agora se fazem ouvir com sons harmoniosos e bem articulados; quem se deixava cair em letargia durante o ofício, agora está longe de se entregar ao sono. Se nestes dias um deles preside o coro, cuidará para que seu canto seja melodioso e agradável; ele escolherá os trechos principais da salmodia, e quer ser chamado de pai ou superior pelos irmãos, até que os estrangeiros se retirem do mosteiro.

23. É também a vanglória que incha de modo exagerado o coração dos religiosos que se veem elevados acima dos outros, e que arranha com a inveja e consome em cólera o coração dos que são inferiores e que estão obrigados a obedecer.

24. Muitas vezes a vanglória, em lugar das honrarias que se deseja e se busca, não dá senão objetos de ignomínia e confusão, pois ela costuma também cobrir com uma tola vergonha aqueles que levou à cólera e às discussões.

25. Às vezes ela torna doces e pacientes diante dos demais aqueles que normalmente são irascíveis e irritadiços.

26. Ela enche de alegria as pessoas que desfrutam dos dons e dos favores da natureza, e se serve destes mesmos dons para torná-las infelizes.

27. Já me aconteceu de ver este cruel demônio da vaidade vexar e atormentar extraordinariamente um infeliz que era seu escravo, e eis como: um pobre religioso tinha uma disputa com outros religiosos; veio um estranho, e tentou caridosamente restabelecer a paz e a união fraternal entre eles. Mas este miserável religioso passou de um golpe das cadeias da ira para as da vanglória, não podendo servir dois mestres ao mesmo tempo, ou seja, a cólera e a vaidade.

28. Assim, que é escravo deste demônio cruel, e vive num mosteiro, leva duas formas de vida; pois exteriormente ele deve seguir os exercícios da comunidade, enquanto seu espírito e seus pensamentos, seu coração e seus afetos pertencem inteiramente aos costumes do século.

29. Dediquemo-nos unicamente a agradar a Deus, e provaremos as doçuras puras e plenas da glória celeste, e não sentiremos senão desgosto pelas falsas delícias da glória mundana; pois eu não posso crer que seja capaz sequer de pressentir as doces fruições que traz a glória do céu, alguém que não tenha pisoteado a glória do mundo.

30. Mas acontece às vezes que, tendo permitido que nos despojassem por causa da vanglória de todas as riquezas espirituais que havíamos adquirido, por meio das boas obras, caindo em nós e sinceramente retornados a Deus, sejamos capazes, por nosso lado, de nos livrarmos e destroçarmos por completo a vanglória. Assim é que vi muitos que, tendo começado os exercícios da vida religiosa apenas por um movimento de vaidade, mas que, tendo renunciado a este mau começo, mudaram de inclinação e, por sua própria vontade, tornaram o fim de suas vidas tão boas e santas quanto o início fora mau e repreensível.

31. Jamais adquirirá ou possuirá os bens sobrenaturais e celestes, quem só se glorifica nos bens naturais, tais como a vivacidade, a agilidade, a ligeireza do espírito, uma pronúncia fácil e agradável, um caráter excelente e outras boas qualidades que nasceram consigo, sem que a pessoa as tenha buscado com suas obras, industriosamente; pois “quem é infiel nas pequenas coisas, será infiel também nas grandes[6]”.

32. Mas o que nos deve causar espanto é que encontramos orgulhosos como esses que chegam a crer que mortificando sua carne com jejuns e austeridades extraordinárias eles obterão o resultado de encontrar a calma perfeita da alma, um tesouro de bens celestes, a virtude de fazer milagres e o favor especial de conhecer as coisas futuras. Mas, não sabem os insensatos? Ignoram eles que tudo isto não se obtém nem com trabalhos nem com suores, mas que é tudo fruto e recompensa de uma profunda humildade?

33. Aquele que conta com os esforços que fez e os trabalhos que suportou, para obter dons e favores, se apoia sobre um fundamento bem fraco e ruim. Ao contrário, quem se considera um devedor perpétuo junto a Deus logo se verá, mesmo contra sua expectativa, enriquecido pelos dons celestes mais raros e preciosos.

34. Cuidem, portanto, de acrescentar não dar fé às insinuações pérfidas do demônio; pois ele é um enganador ardiloso, e um insigne prestidigitador. Ele não deixará de persuadi-los de que vocês devem dar a conhecer aos outros as excelentes qualidades e as boas disposições de seus corações para a virtude, e alardeá-las a fim de edificar e buscar por este meio a salvação de muitos. Nesta tentação tão sutil, não percam de vista as palavras do Evangelho: “De que servirá a um homem ganhar o universo inteiro, se vier a perder sua alma?[7]”. Nada traz a piedade mais depressa e eficazmente do que a humildade e a simplicidade de nossas ações; pois estas próprias virtudes consistem numa lição sólida e contundente, suficiente para fazer os demais compreenderem o quão funesto é se deixar levar pelo orgulho; não sei se seria possível encontrar algo tão vantajoso e salutar.

35. Um homem, dos mais esclarecidos e mais capazes de penetrar na obscuridade dos mistérios, confiou-me aquilo que ele próprio uma vez observou: “Um dia, disse-me ele, quando estava no meio dos meus irmãos, dois demônios terríveis, um da vanglória e outro do orgulho, vieram se colocar entre nós. O primeiro me tocou com o dedo e me incitou a contar aos que estavam ali certas visões extraordinárias que eu tinha presenciado, e algumas coisas que eu fizera no deserto; mas ei afastei vigorosamente este espírito maligno, dirigindo-lhe estas palavras: ‘Que aqueles que desejam me oprimir com o mal sejam obrigados a recuar e fiquem cobertos de confusão[8]’. O outro, que estava sentado à minha direita, me disse em seguida ao ouvido: ‘Coragem! Coragem! Que bela ação você acabou de fazer! Que demonstração de prudência e coragem, que vitória você obteve contra minha mãe, que ousou ataca-lo!’. Mas eu respondi a este com as palavras que se seguem àquelas que eu dissera ao primeiro: ‘Aqueles que dizem: Coragem! Coragem! Cubram-se da confusão que merecem![9]’”. Eu tomei a liberdade de perguntar a este padre como era possível que o orgulho tivesse origem na vanglória. Eis o que ele me respondeu: “Os elogios que nos fazem inflam e elevam nossa alma, e, quando ela se vê assim elevada, o orgulho se apodera dela e a faz, por assim dizer, subir até o céu, para em seguida precipitá-la no abismo”.

36. Existe uma glória que vem de Deus, segundo estas palavras: “Eu próprio glorificarei, diz o Senhor, a todos os que ,me glorificam[10]”. Mas também existe outra espécie de glória que não chega senão por meio dos artifícios do demônio, conforme aprendemos por esta sentença do santo Evangelho: “Infelizes de vocês, quando os homens os louvarem e disserem belas coisas a seu respeito[11]”. E observem que mesmo a glória que vem de Deus pode se transformar em vanglória, por causa das más disposições do coração. Vocês conhecerão que é Deus quem os glorifica quando se convencerem de que toda glorificação lhes será prejudicial, quando tomarem todas as precauções razoáveis e prudentes para não se entregar, e, em qualquer lugar em que estiverem, cuidarem para ocultar suas boas obras e suas virtudes.

37. Vocês compreenderão que a glória que lhes fazem provém do demônio do orgulho quando fizerem todas as suas ações com a intenção e o desejo de serem vistos e admirados pelos homens; pois esta paixão enganadora e impura nos sugere aparecer ornados das virtudes que estamos longe de praticar, de modo a representarmos falsamente aquilo que Jesus Cristo falou: “Que sua luz brilhe diante dos homens, a fim de que eles conheçam as boas obras que fizeram[12]”.

38. Muitas vezes Deus permite que tombem na ignomínia aqueles que buscam com ardente desejo as honrarias e louvores, a fim de lhes ensinar a renunciar à vanglória.

39. Se nós conseguirmos obter alguma vantagem sobre esta paixão, será por termos castigado nossa língua, e porque começamos a gostar das humilhações; e se banirmos do espírito todos os pensamentos capazes de nos expor aos laços envenenados deste vício, nossa vitória será bem mais completa; enfim, se tivermos abnegação bastante para fazermos na presença de todo mundo, e sem experimentar o menor sentimento de vergonha ou pena, coisas capazes de nos humilhar e nos cobrir de confusão aos olhos dos homens, teremos chegado a triunfar perfeitamente sobre nosso inimigo. Mas será este triunfo possível, considerando os inúmeros e difíceis combates que teremos que sustentar?

40. Quando, por infelicidade, nos acontece de perseguirmos a vanglória, ou de recebê-la sem a termos buscado, ou que, para merecê-la, somos tentados a fazer certas exibições e certas coisas, recordemos prontamente ao espírito o pensamento da penitência que teremos que fazer e, no secreto de nossa prece, representemo-nos fortemente o temor e o medo que sentiremos se estivermos diante do temível tribunal do Senhor: esta arma será de grande valia para resistirmos à tentação. Nessas circunstâncias, seja nossa prece sincera e poderosa! Mas se estes meios não forem suficientes, devemos recorrer ao pensamento da morte e de nosso fim último. Enfim, se todos estes meios sucessivamente empregados ainda forem insuficientes, representemo-nos vivamente a ignomínia eterna e imensa que será o justo castigo da vanglória, e tracemos sobre nosso coração em caracteres inapagáveis estas palavras de eterna Verdade: “Aquele que se exaltar será humilhado[13]”. Estejamos convencidos de que esta humilhação que nos ameaça nos punirá por nossa vaidade, não apenas na vida futura, mas também na presente.

42. Se as pessoas começarem a nos elogiar, ou melhor, a nos enganar com sua adulação, lembremo-nos logo da multitude de nossos pecado, e esta lembrança salutar fará com que nos consideremos indignos de tudo o que está sendo dito e feito para nos glorificar.

43. Acontece às vezes que, por uma bondade toda especial de Deus, tendo resolvido conceder alguns favores a pessoas ávidas de vanglória, ele as previne e lhes concede antes mesmo que peçam. Ora, este terno e bom Pai agem assim para que, não crendo haver recebido essas coisas em virtude de suas orações, elas não fiquem vaidosas e não se tornem orgulhosas.

44. Aqueles que possuem maior simplicidade no espírito e no coração estão bem menos expostos do que os outros a este vício pestilento; pois a vanglória é o inimigo mortal da nobre simplicidade, e a mestra da hipocrisia.

45. Como uma lagarta, a vanglória engorda, toma asas e se eleva nos ares; quando chega enfim ao último grau ela gera o orgulho, que é o autor e o consumador de todos os vícios. Quem sabe se preservar dessas coisas e se livrar da vanglória está bem próximo da salvação; mas está longe da glória e da sociedade dos santos, aquele que ainda permanece escravo desta maldita paixão. Assim, aquele que subiu mais este degrau, renunciando a todo sentimento de vanglória, já não cairá no orgulho, vício abominável aos olhos do Senhor.



VIGÉSIMO SEGUNDO DEGRAU

Do tolo orgulho


1. O orgulho constitui uma renúncia a Deus, a descoberta por excelência dos demônios, o desprezo pelos homens, a causa e o princípio dos juízos temerários e das condenações injustas, o filho impuro dos elogios, a marca de uma funesta esterilidade das almas, o obstáculos à efusão dos dons celestes, o abre-alas do endurecimento do coração, a causa fecunda das maiores faltas, o forno ou a matéria da epilepsia espiritual, a fonte inesgotável das cóleras, a porta da dissimulação e da hipocrisia, a maior trincheira dos demônios, o fiel guardião e o conservador irredutível de nossos pecados; a causa funesta da desumanidade e da inflexibilidade do coração, a extinção de todo sentimento de piedade e de compaixão e o autor das leis duras e severas. O orgulho é um juiz impiedoso, um inimigo mortal de Deus, e a raiz infame de todas as blasfêmias.

2. O último degrau que atinge a vanglória dá existência ao orgulho; o desprezo pelos outros, a insolente ostentação dos trabalhos executados, o amor aos elogios e a aversão às reprimendas, são estes os alimentos que o faz crescer; enfim, a renúncia às graças e ao socorro de Deus, uma presunçosa confiança em suas próprias forças, estas inclinações diabólicas formam a temível perfeição do orgulho.

3. Queremos evitar cair no abismo cavado pelo demônio do orgulho? Primeiramente, estejamos atentos para o fato de que é por meio das ações de graças que damos a Deus que ele costuma deslizar e estabelecer sua morada em nossos corações; pois ele é bastante ardiloso e sabido pra tentar nos fazer renunciar a Deus de um só golpe. Já vi muitas pessoas que, enquanto rendem graças a Deus com a boca, erguem-se interiormente contra ele com pensamentos de vaidade. Temos um exemplo claro deste tipo de gente no fariseu do Evangelho. Pois não era apenas com a boca, e não do fundo do seu coração, que ele dizia a Deus: “Senhor, eu lhe dou graças[14].”?

4. Ao vermos uma alma cometer qualquer falta que seja, podemos dizer ousadamente que o orgulho morava em seu coração, e que esta falta é a triste consequência deste vício.

5. Costumamos contar doze vícios que cobre nossa alma de vergonha e de ignomínia. Ora, um grande homem me disse que o orgulho, que é o décimo segundo, poderia sozinho ocupar o lugar dos outros onze.

6. Um monge orgulhoso está sempre em oposição e em contradição com os irmãos; mas que pratica a humildade permanece na disposição contrária.

7. Os ciprestes fazem crescer seus galhos para o alto, e jamais os abaixam para a terra; assim são as pessoas dominadas pelo orgulho: elas ignoram o que é dobrar-se sob o jugo da obediência.

8. O homem soberbo pretende dominar absolutamente seus semelhantes; e ainda que saiba que esta dominação o conduzirá à perda certa, ele prefere morrer a não dominar.

9. Uma vez que está escrito que “Deus resiste aos soberbos[15]”, quem poderá sentir piedade e compaixão por esses miseráveis? Se são abomináveis aos olhos do Senhor aqueles a quem o orgulho mancha e profana, quem ousaria pretender poder purificá-los?

10. As reprimendas e correções que lhes são feitas não passam para eles de ocasiões para novas quedas, pois as tentações do demônio os empurram sem cessar em novos pecados, e o abandono de Deus acaba por endurecer seu coração. Os homens muitas vezes conseguem a cura para os dois primeiros desses males espirituais, ou seja, para a resistência ante as correções e as tentações do demônio; mas não podemos dizer o mesmo do endurecimento do coração, que é humanamente incurável.

11. Quem sente aversão por reprimendas e não as suporta, prova que o orgulho lhe arranhou o coração. Ao contrário, quem as busca por amor, mostra que está alegremente isento desse vício.

12. Se o orgulho sozinho foi capaz de derrubar Lúcifer dos mais altos céus para o abismo do inferno, não poderá a humildade, sozinha também, nos elevar até os esplendores celestes?

13. O orgulho nos mergulha na mais terrível miséria; pois ele nos despoja vergonhosamente do mérito e dos frutos de nossos trabalhos e de nossa penitência. “Eles gritaram pedindo ajuda; mas ninguém se apresentou para salvá-los[16]”. E também: “Eles se dirigiram diretamente ao Senhor, mas o Senhor não os atendeu[17]”. Ora, esta infelicidade sem dúvida não lhes aconteceu senão porque não trabalharam com humildade para afastar de si a causa funesta dos males cuja libertação pediam.

14. Um ancião muito versado na ciência das coisas espirituais exortava um dia, cheio de caridade, a um irmão dominado pelo orgulho a combater corajosamente este vício e a praticar a santa humildade. Mas eis a resposta que o insensato lhe deu: “Você se engana, meu pai; eu não sou aquilo que você crê: eu lhe asseguro, eu não sou orgulhoso”. E o sábio ancião lhe replicou: “Meu filho, você não poderia me dar uma prova mais evidente de que você o é, do que afirmando que não o é”.

15. Assim sendo, é de grande importância para os que estão sujeitos ao orgulho, que tenham um sábio e prudente diretor, que escolham o modo de vida mais comum e mais desprezível, que leiam assiduamente e meditem sempre sobre os belos exemplos dos santos, e que tenham sem cessar sob os olhos as ações que estes fizeram, ainda que lhes pareça estarem acima das forças da natureza humana; estes meios consistem no mínimo que os infelizes escravos do orgulho necessitam para ter qualquer esperança de se verem livres desse vício.

16. É uma vergonha para todos nos glorificarmos de coisas que não são nossas; e haverá menor vergonha em nos orgulharmos dos dons que recebemos de Deus? Não é esta uma ação que denuncia o último grau da loucura? Se você quiser se glorificar, faça-o; mas que seja das ações que você fez antes de nascer; porque tudo o que você fez depois de nascer são dons de Deus, tanto quanto sua própria existência. Se você quiser considerar como obra sua as virtudes que você praticou, que sejam aquelas anteriores à união de sua alma com seu corpo; as que você praticou depois são favores da bondade do Senhor, tanto quanto a sua alma; e se você sustentou alguns combates e fez alguns esforços, sem que seu corpo tenha minimamente participado destes esforços e destes combates, ainda consinto que você possa atribuir exclusivamente a si próprio o mérito e a glória; mas não foi seu corpo o instrumento por meio do qual você praticou tal ou tal virtude, ou fez tal ou tal obra? Ora, certamente seu corpo não lhe pertence; ele é de Deus, e foi ele que o deu a você. Seus trabalhos, seus esforços e os efeitos que eles produzem, tudo em você deve ser atribuído a Deus, como coisas que a ele pertencem essencialmente.

17. Não cessem de desconfiar de vocês mesmos e de suas próprias forças até que o soberano Juiz tenha pronunciado a sua sentença; pois vocês viram no Evangelho que mesmo aquele que já estava sentado à mesa da festa de bodas, foi expulso da sala, e foi dada a ordem para que, atado de pés e mãos, ele fosse atirado às trevas exteriores[18].

18. Não se elevem em seus corações, vocês que não passam de barro e corrupção; lembrem-se de que uma infinidade de espíritos celestes, criados em santidade, foram impiedosamente expulsos do céu por causa do orgulho.

19. Uma vez que o demônio conseguiu se estabelecer no coração de quem se submeteu à sua vontade, ele começa a lhe aparecer durante o sono, e mesmo quando acorda, seja sob o aspecto de um anjo, seja na figura de um mártir, e revela a ele algum segredo misterioso, fingindo lhe conceder algumas graças preciosas. É assim que, enganando esses miseráveis e lhes roubando o resto da fé e da razão, ele acaba por pô-los a perder.

20. Não esqueçamos jamais que ainda que morramos mil mortes por amor a Cristo, estaríamos ainda longe de quitar o que lhe devemos, pois existe uma diferença infinita entre o sangue de um Deus e aquele dos servidores deste Deus; é a dignidade, não a substância desse sangue, que é preciso considerar.

21. De resto, se nos dermos ao trabalho de examinar atentamente, e se compararmos somente a vida que levamos com a vida de nossos pais que viveram antes de nós, os quais nos apresentaram, em suas pessoas, modelos tão excelentes das mais raras virtudes, e que brilharam, em seu século, como astros radiosos, seremos forçados a confessar que realmente não demos sequer um passo para caminhar sobre suas pegadas; que somos bem pouco fieis no engajamento à nossa santa vocação, e que continuamos a levar uma vida mundana e profana. Um bem e verdadeiro monge é aquele cujo espírito e cujo coração não se levantam na presença de objetos sensíveis. Olhem-nos com o mesmo olhar que alguém que, ao ver seus inimigos, os provoca para o combate e, quando os vê em fuga, persegue-os como a animais selvagens. Assim é quem está continuamente arrebatado por Deus e sente o desejo de se unir intimamente a ele; este vê seus dias se prolongarem. Assim é aquele para quem a prática da virtude se tornou tão natural e familiar, quanto são para os mundanos a fruição corruptora dos prazeres do sentidos. Assim é aquele que não cessa de ter o olho de sua alma aberto para os movimentos de seu coração e sobre toda a sua conduta. Assim é, enfim, aquele que desceu ao abismo da humildade, e que sufocou e exterminou todos os maus pensamentos que o demônio lhe inspirou um dia.

22. O orgulho nos faz esquecer os pecados que cometemos, enquanto que a lembrança dos pecados produz em nós a humildade.

23. O orgulho precipita uma alma na extrema miséria; pois nas perdições dessa paixão insensata, ela imagina possuir grandes riquezas, mas sua parte consiste apenas nas trevas; de modo que esse vício execrável não apenas se opõe ao progresso que a alma faria nas virtudes, como ainda, caso ela se eleve, pouco ou muito, nos degraus da perfeição, ele a derruba com espantosa rapidez.

24. O orgulho se parece com um pêssego cujo interior está estragado e apodrecido, mas cuja pele é bela e agradável.

25. Um monge orgulhoso não necessita de outro demônio para pô-lo a perder; pois ele mesmo é seu próprio demônio, seu tentador e inimigo.

26. Assim como as trevas são diretamente contrárias à luz, também o orgulho se opõe diretamente às virtudes.

27. Não é raro que um coração orgulhoso chegue a inventar palavras blasfemas contra Deus, na mesma medida em que o coração humilde é iluminado pela luz do céu.

28. Um ladrão detesta a luz; um orgulhoso despreza os mansos.

29. A maior parte dos orgulhosos, não sei como, por não conhecerem a si próprios durante suas vidas, acreditam haver obtido a paz perfeita da alma, e só chegam a perceber a temível indigência em que se encontram na sua derradeira hora.

30. Quem é escravo do orgulho precisa tanto do socorro de Deus para se libertar desta escravidão, que nem todos os homens juntos seriam capazes de romper suas cadeias e lhe conceder a liberdade.

31. Tendo um dia descoberto que este sedutor penetrara no meu coração por meio da vanglória, e que aí se encontrava aninhado, eu amarrei a ambos com as correntes da obediência e lhes bati com o açoite da humildade, para que confessassem como e por quais vias haviam penetrado em minha alma. Muito contra a sua vontade, eles o disseram nestes termos: “Nós não sabemos qual a causa que nos faz nascer, porque estamos à frente de todos os vícios; somos nós que produzimos todos eles, e que estamos em primeiro lugar. O quebrantamento do coração, que nasce da obediência, nos contraria muito e se opõe fortemente aos nossos projetos, de modo que não costumamos obedecer a ninguém. É por este motivo que um dia nos revoltamos contra o próprio Deus: porque queríamos reinar sobre os céus. Para dizê-lo em uma palavra, somos as mães de todas as paixões e de todos os vícios que fazem a guerra contra a humildade, e os inimigos irreconciliáveis de tudo o que pode favorecer esta virtude; se, como vocês sabem, chegamos a ter tanto poder no céu, como serão vocês capazes de se subtrair ao nosso domínio sobre a terra? Jamais deixamos de tentar os homens, quer tenham sofrido com paciência e resignação as afrontas e os ultrajes, quer jamais tenham transgredido as regras e os deveres da obediência, quer tenham reprimido os movimentos da cólera e da impaciência, quer tenham esquecido por completo as injúrias recebidas, quer, enfim, que, tenham cumprido todas as suas obrigações com uma ardente caridade, e prestado todos os serviços possíveis aos seus irmãos. Nossos filhos são a cólera, a inveja, a maledicência, o azedume, a animosidade, as disputas, as injúrias, a hipocrisia, a aversão, o amor pela própria conduta e a resistência aos conselhos e às ordens dos superiores. Não existe senão uma única coisa capaz de paralisar nossas forças e tornar nossos esforços inúteis, e esta coisa só lhe diremos o que é porque não temos alternativa: consiste em se acusarem perante o Senhor, reconhecendo-se continuamente culpados e criminosos a seus olhos. Este recurso nos tornará tão míseros e frágeis como um teia de aranha. Não percebem vocês, disse o orgulho, que a vanglória é como que um cavalo sobre o qual venho montado? Mas a santa humildade e a confissão sincera dos pecados rir-se-ão do cavalo e do cavaleiro, e cantarão um maravilhoso cântico de ação de graças, dizendo com Moisés: ‘Cantemos um hino em louvor ao Senhor; pois ele fez ver a magnificência e o brilho de sua glória, precipitando no mar o cavalo e aquele que o montava[19]’”. O homem que logrou subir a este vigésimo segundo degrau é cheio de força; mas quantos existem, capazes de chegar até aqui?



VIGÉSIMO TERCEIRO DEGRAU

Dos inexplicáveis pensamentos de blasfêmia


1. Observamos no degrau precedente que a blasfêmia é a filha criminosa de um pai criminoso, o execrável orgulho; por esta razão, julgamos ser cabível falar dela aqui; pois a blasfêmia não é um dos nossos menores inimigos, mas um dos mais perigosos e mais funestos, pela dificuldade e o trabalho que temos em expô-lo ao nosso médico espiritual numa confissão sincera e verdadeira. Semelhante ao verme que rói a madeira, este vício rói e destrói a esperança, que acaba por precipitar a alma no desespero.

2. Assim é que ao mesmo tempo em que estamos celebrando os divinos mistérios, no momento em que se realiza o mais santo e temível de todos os nossos mistérios sagrados, que o mostro do orgulho, este demônio abominável, chega para nos inspirar pensamentos de blasfêmia para insultar nosso Senhor e nos fazer profanar o augusto sacrifício; por causa das circunstâncias do momento sabemos que esses pensamentos blasfemos não provêm de nossa alma, mas do demônio, este inimigo irreconciliável de Deus, que mereceu ser expulso do céu por ter pretendido, com suas blasfêmias, profanar a terrível majestade do Senhor: pois se esses pensamentos de blasfêmia que nos fazem tremer de horror viessem de nós, como poderíamos adorar este dom celeste que recebemos? Poderíamos nós bendizê-lo e amaldiçoá-lo ao mesmo tempo?

3. E no entanto o demônio, este insigne enganador, este cruel assassino de almas, levou muitos à loucura e à extravagância por meio desta temível tentação. Com efeito, e lembrem-se bem disto, não há pensamento que possamos descobrir com mais dor e repugnância do que esses pensamentos blasfemos. É assim que um grande número de pessoas se deixa degradar no coração. E no entanto não existe nada que possa dar ao demônio maior domínio e força a esses maus pensamentos para prejudicar nossa alma, do que sofrê-los e mantê-los guardados em nós.

4. Mas que ninguém pense que somos sempre culpados por ter estes assustadores pensamentos! Deus enxerga o fundo dos corações. Ele sabe quando eles não são obra nossa, mas dos nossos inimigos. Mas devemos observar que, assim como a embriaguez é a causa dos embriagados sofrerem quedas, também o orgulho é frequentemente a causa funesta desses pensamentos ímpios; e que, se caímos de bêbados, isto não é um pecado em si, mas algo que cometemos por nos termos embriagado; e o mesmo pode ser dito do orgulho e dos pensamentos de blasfêmia, dos quais ele costuma ser a causa e o princípio.

5.[20]

6. Estes pensamentos vêm nos atacar principalmente durante nossas orações; e logo se vão e desaparecem, depois destes santos exercícios. Se não quisermos nos cansar, não percamos tempo tentando combatê-los; o melhor meio de se livrar deles é ignorando-os.

7. Este inimigo não se contenta com apenas produzir em nós pensamentos de blasfêmia contra Deus e as coisas santas. Ele nos inspira ainda os pensamentos mais vergonhosos e mais obscenos, a fim de abandonarmos a oração e nos entregarmos ao desespero. É assim que ele conseguiu desviar muitas pessoas da participação na divina Eucaristia, em diversas ocasiões.

8. Este cruel tirano conseguir fazer sucumbir a muitos, fazendo-os praticar excessivos jejuns e não lhes dando trégua nem repouso. E o demônio da blasfêmia se conduz assim não apenas em relação às pessoas do mundo, mas também para com os religiosos e os solitários. Ele os faz acreditar que não existe mais esperança de salvação para eles, e que são mais infelizes do que os infiéis e os pagãos.

9. Quem se sente perturbado e fatigado pelo demônio da blasfêmia e que deseja se livrar dele, comece por se convencer de que não é de seu coração que nascem e se levantam esses pensamentos tenebrosos, mas do próprio demônio que, ao mostrar um dia a Jesus Cristo todos os reinos do mundo, teve a insolência de dizer ao divino Salvador: “Eu lhe darei todas essas coisas, se você, prosternando-se, me adorar[21]”. Assim, devemos desprezar seus ataques, pisoteá-lo, não lhe dar nenhuma atenção e nos contentar com a resposta que lhe nosso Senhor: “Retire-se, Satanás! Porque está escrito: Você adorará apenas ao Senhor seu Deus, e só a ele servirá[22]”. E complete, dizendo: “E quanto às palavras e aos esforços que você faz para me desequilibrar, tudo recairá sobre você mesmo; sim, infame, é sobre sua cabeça que cairão, no tempo presente e por toda a eternidade, as blasfêmias que você pretende me inspirar”.

10. Quem quiser empregar outras palavras se parecerá a alguém que pretende capturar um raio com suas mãos. Com efeito, como agarrar, combater e expulsar um inimigo que atravessa nosso coração num piscar de olhos, que corre como o vento e que desaparece mal acaba de nos falar. Os outros inimigos permanecem firmes diante de nós, resistem aos nossos esforços, defendem-se longamente e nos deixam reconhecer o campo de batalha; mas este tem outra conduta e segue outro perfil: ele se retira assim que se apresenta e desaparece quase no mesmo momento em que nos ataca.

11. Eles têm inclusive o costume de fazer esta guerra aos corações mais cheios de simplicidade e os mais ornados da virtude da inocência, porque sabem que estes são, mais do que os outros, capazes de se perturbar e se desconcertar com esses pensamentos detestáveis. Eu devo dizer a este tipo de pessoas que os pensamentos de blasfêmia não lhes ocorrem por causa do orgulho que poderia reinar em seus corações, mas por causa do ciúme e da inveja dos demônios, que tentam prejudicá-las.

12. Para nós, a quem o espírito do orgulho leva a julgar e a condenar nossos irmãos, deixemos de concluir de acordo com este espírito, e logo não precisaremos mais temer as tentações e os pensamentos de blasfêmia; pois, não duvidemos, sua verdadeira causa se encontra nos julgamentos temerários que o orgulho nos leva a fazer sobre os demais.

13. Assim como uma pessoa fechada em sua casa ouve as palavras daqueles que passam, mas não as pronuncia, também uma alma fechada em si mesma escuta as blasfêmias do demônio, mas não as articula; ao contrário, fica espantada.

14. Para se libertar disso e não mais ser perturbada, a alma não tem mais do que as desprezar; pois, como dissemos, quem buscar outra conduta tentará combater com força este demônio e acabará por sucumbir e se tornar seu escravo. Pretender vencê-lo e triunfar sobre ele por meio da razão e de raciocínios equivale a querer deter o vento.

15. Um monge virtuoso, tendo sido atormentado por este demônio pelo espaço de vinte e cinco anos, não deixara jamais de mortificar seu corpo com vigílias longas e contínuas e com jejuns muito rigorosos; mas, vendo que todas essas austeridades não tinham efeito contra essa cruel tentação, ele escreveu num papel todas as perturbações que lhe eram causadas, e o confiou a um santo religioso que ele conhecia. Chegando até ele, prosternou-se com o rosto no chão, sem ousar erguer os olhos. Depois que este santo religioso leu o que ele havia escrito, sorriu docemente, e levantando seu caro irmão, lhe disse: “Filho meu, coloque sua mão no meu pescoço”, coisa que o outro fez prontamente. Depois ele acrescentou: “Meu irmão, tomo sobre mim seu pecado, tanto no passado como no futuro; a única coisa que eu exijo de você, é de não mais pensar nem se penalizar por isso”. Ora, foi este mesmo bom religioso que me contou o que lhe acontecera, e ele me assegurou que mal havia saído da cela do ancião e toda a tentação desparecera, e que todos os pensamentos de blasfêmia que por tanto tempo e tão cruelmente o fatigaram haviam desaparecido como fumaça. Assim eu o repito, para a instrução dos que se encontram no mesmo estado: e foi ele próprio, a quem sucedeu este fato, que me contou o ocorrido, com grandes sentimentos de reconhecimento a Deus. Quem tiver conseguido triunfar sobre esta tentação, conseguiu também vencer o orgulho e expulsá-lo para bem longe do seu coração.




VIGÉSIMO QUARTO DEGRAU

Da mansidão, da simplicidade e da inocência, virtudes que não provêm da natureza,
mas que são adquiridas com obras; e da maldade, que é a inimiga irreconciliável das virtudes


1. A aurora precede o sol; o mesmo se pode dizer da mansidão em relação à humildade. Escutemos a luz que nos ensina com as palavras: “Aprendam comigo que sou manso e humilde de coração[23]”. Convém assim, antes de falarmos de humildade, que é um sol verdadeiro, dizermos alguma coisa sobre a mansidão, que é como a aurora desta virtude, a fim de que, esclarecidos por esta luz que possui menos brilho, possamos pouco a pouco nos acostumar a fixar os olhos sobre o belo sol da humildade; pois uma pessoa não é capaz de fixar este sol, se não puder primeiro sustentar os raios da aurora. Tal é a ordem que devemos estabelecer entre essas duas virtudes.

2. A mansidão consiste numa constante imobilidade de nossa alma, que faz com que não sejamos agitados nem por honrarias, nem perturbados com humilhações.

3. Ela consiste em orar sinceramente e sem perturbação, por todos os que buscam fazê-lo por seus procedimentos injustos.

4. Ela é semelhante a um rochedo majestoso no meio do mar agitado; as ondas espumantes se quebram e expiram contra seus flancos inquebrantáveis.

5. Ela é a guardiã da paciência, a porta do amor, ou antes sua mãe, o princípio da prudência e do discernimento, segundo as palavras do Profeta: “Sobre quem reterei meu olhar, diz o Senhor, senão sobre aqueles que são doces e amáveis, sobre os que possuem um coração contrito e aflito?[24]”.

6. A mansidão forma e aperfeiçoa a obediência, conduz e dirige as comunidades religiosas, detém e corrige a cólera, expulsa e faz morrer a impaciência, nos faz caminhar sob os estandartes de Cristo, nos concede a semelhança com os habitantes dos céus, acorrenta os demônios, faz recuar os traços de aversão e animosidade.

7. O Senhor estabelece sua morada numa alma que pratica a mansidão, enquanto que o demônio fixa a sua naquela que é agitada.

8. “Os mansos possuirão a terra[25]”, vale dizer, eles serão os mestres e dominadores, enquanto que as pessoas coléricas e furiosas serão exterminadas.

9. Uma alma cheia de doçura é o leito nupcial da simplicidade; mas um espírito de cólera e violento engendra toda sorte de maldades.

10. Uma alma amiga da mansidão compreende e saboreia as palavras de sabedoria; pois “o Senhor, que é cheio de mansidão, dirigirá os corações doces e benevolentes na ciência do julgamento, e lhes ensinará seus caminhos[26]”. Ora, estes são os caminhos da prudência e da discrição.

11. Uma alma reta é companheira da humildade; mas uma alma falsa e enganadora é a triste escrava do orgulho.

12. Uma alma que pratica a mansidão, possui a verdadeira ciência; mas um coração impaciente desfalece nas trevas da ignorância.

13. Dois homens se encontraram um dia: um era escravo da cólera, e o outro, da mentira. Ora, estes dois não puderam estabelecer uma conversa conjunta: pois no colérico só havia loucura e demência, e só malícia no dissimulado.

14. A simplicidade é um costume feliz que torna a alma incapaz de duplicidade e de todo pensamento mau e pernicioso. A malícia é a ciência, ou melhor, a parte dos demônios, que torna a pessoa inimiga de toda verdade, a ponto de que ela poderia não apenas mascarar a si mesma, como ocultá-la dos demais.

15. A inocência é o estado de uma alma tranquila e distante de todo pensamento artificioso e malfeitor.

16. A retidão é uma intenção sincera e isenta de inutilidades e de curiosidade; é uma inclinação franca e sem mistura; é uma linguagem natural, ingênua e inimiga de toda fraude e de toda simulação.

17. Não pode ser um enganador, o homem que sincera, francamente e sem desvios vive, age e fala com todo mundo.

18. A malícia é uma ausência de verdade e de retidão; é uma inclinação à perversidade, aos pensamentos enganadores, às palavras mentirosas, às ações dissimuladas, aos juramentos falsos, aos equívocos e às ambiguidades.

19. um coração mentiroso é escondido e cheio de cavidades profundas e impenetráveis; ele está dedicado ao hábito de mentir, de se elevar acima dos outros, de fazer a guerra contra a humildade, de imitar a penitência, de expulsar o pranto de arrependimento, de ter horror a sentir-se confuso pelas faltas cometidas, de defender obstinadamente seu sentimento,  de produzir a ruína e a perda das almas, de impedir que elas saiam do abismo da infelicidade por meio da penitência, de ironizar aqueles que, por amor a Deus, sofrem com paciência e mansidão as injúrias e os ultrajes.

20. Um coração desonesto não possui senão uma modéstia afetada e extravagante, uma piedade falsa e enganadora; resumindo, a vida do coração desonesto é a vida de um demônio; pois o demônio e o homem desonesto não são apenas unidos pela conformidade de suas vontades, eles o são ainda pela identidade de um mesmo nome.

21. Com efeito, não é verdade o que nos ensinou Cristo na admirável oração que nos legou? Não nos ordena ele pedirmos a Deus que nos livre dos desonestos, ao pedir que nos livre do mal?

22. Fujamos com horror do precipício da hipocrisia e do abismo da dissimulação e da duplicidade, e prestemos especial atenção a estas palavras de Davi: “Os maus serão exterminados, eles secarão como a relva[27]”. Pois eles se tornarão pasto dos demônios.

23. Mas Deus, que, nas divinas Escrituras, é chamado de amor, é também denominado de equidade. É assim que diz o sábio à alma pura, no Cântico dos Cânticos: “O Deus de equidade a amou[28]”; e Davi, pai de Salomão, havia dito: “O Senhor é doce e direito[29]”; e para nos fazer compreender que serão salvos os que trazem o mesmo nome por causa da mansidão, está escrito: “Eu esperei o socorro do Senhor que salva os que possuem o coração reto[30]”; e também: “Seus olhos estão atentos para olhar o pobre cujo coração é reto, e seu rosto se volta para aquele em quem reina a equidade[31]”.

24. A primeira virtude, ou melhor, a primeira qualidade que observamos numa criança, é a simplicidade. Enquanto Adão se manteve na prática desta preciosa virtude, ele não viu sua alma despojada dos dons que Deus lhe concedera, nem enrubesceu por causa da nudez de seu corpo. Boa e vantajosa, sem dúvida, é a simplicidade que algumas pessoas receberam da natureza; mas ela ainda é inferior àquela que adquirimos com nossos cuidados e com um trabalho obstinado, trinfando sobre nossa própria malícia: pois, se a primeira nos preserva de toda dissimulação, de toda fraude e de toda afetação, a outra nos traz uma profunda humildade, uma doçura perfeita e todas as virtudes. É por isso mesmo que a simplicidade que nos vem da natureza não receberá senão uma pequena recompensa, e aquela que nos vem da graça e de nossos esforços receberá um prêmio que não se pode conceber nem expressar.

25. Assim, quem quer que sejamos, se quisermos nos unir fortemente a nosso Senhor, devemos nos apresentar diante dele como de um mestre excelente de quem iremos receber as instruções de que necessitamos. Aproximemo-nos dele com simplicidade e candura, sem artifício nem dissimulação, sem curiosidade nem malícia; pois, como sua natureza é toda santa, toda pura e perfeitamente simples, ele pede que as almas que dele se aproximam que sejam puras, santas e cheias de simplicidade. Vocês alguma vez já viram a simplicidade separada da humildade?

26. O homem em cujo coração reina a malícia, se ocupa indevidamente em fazer conjecturas sobre os outros, e em pretender poder descobrir em suas palavras os pensamentos de seu espírito, e na posição e movimentos de seu corpo os segredos do seu coração.

27. Vi muitas pessoas cheias de inocência e de simplicidade que, pelas relações funestas com pessoas maliciosas, se tornaram semelhantes a estas; e sempre me espantei que estas pudessem por a perder em tão pouco tempo pessoas tão virtuosas, esta bela qualidade que haviam recebido da natureza, e que era uma prerrogativa de sua inocência, vale dizer, sua simplicidade feliz.

28. É tão fácil às pessoas de bem se perverter e se perder, quanto é difícil aos maus se converter e se corrigir; entretanto, a fuga real do mundo, uma retirada salutar, o amor e a prática do silêncio e da obediência, puderam muitas vezes, mesmo contra toda esperança, curar, e curar perfeitamente, as almas de certas enfermidades que pareciam incuráveis.

29. Se é verdade que a ciência infla o coração da maior parte dos homens, é igualmente verdadeiro que uma alegre ignorância e a inexperiência servem para torná-los doces, tímidos e humildes. São Paulo, denominado o Simples, pode nos servir de exemplo e nos dar uma ideia exata e um modelo perfeito da santa e bem-aventurada simplicidade; pois alguém já viu, ou ouviu falar que se tenha visto, ou mesmo que seja possível ver um homem se tornar em tão pouco tempo perfeito na simplicidade do coração?

30. Podemos comparar um monge que vive na simplicidade a um animal de carga que, possuindo a razão e partilhando da obediência, mas que, por obediência, se confiasse ao seu condutor. Ora, assim como este animal não resiste ao seu mestre a partir do momento em que se liga a ele, também o religioso que possui um coração reto não resiste às ordens de seu superior: ele o segue por onde este quiser conduzi-lo; ela sequer é capaz de raciocinar nem repugnar-se: ele obedece até a morte.

31. Se “dificilmente os ricos entrarão no Reino dos céus[32]”, podemos dizer o mesmo dos homens sábios dessa sabedoria mundana, que não é outra coisa que uma verdadeira loucura; também eles dificilmente entrarão no sagrado palácio da simplicidade.

32. Muitas vezes uma grande queda corrigiu homens maus, os fez observar as regras da modéstia, de sorte que, mesmo contra sua vontade, ela lhes trouxe a salvação, fazendo-os adquirir a inocência e a simplicidade.

33. Portanto, combatam corajosamente, e tomem todos os cuidados para se despojarem da falsa sabedoria do século; assim se conduzindo, vocês encontrarão em nosso Senhor Jesus Cristo a salvação e a retidão do coração. Quem tiver a força para subir este degrau, que se encha de coragem; com efeito, tendo imitado a Cristo, ele obteve a salvação.



VIGÉSIMO QUINTO DEGRAU

Da Humildade, que traz a morte a todas as paixões


1. Quem pretender explicar os sentimentos que dá a caridade, e os efeitos que ela produz, segundo toda a intensidade e o ardor que lhe são próprios – a saber, os da humildade, segundo seus profundos rebaixamentos; os da castidade, segundo sua excelência celeste; os da iluminação divina, segundo todo o brilho de seus raios e de sua luz; os do temor a Deus, segundo os movimento que ele traz; os de uma firme confiança em Deus, segundo a ternura e a imobilidade de seus olhares – e fazer compreender por meio de palavras claras e precisas, a quem jamais teve nem o sentimento nem o gosto das doçuras inexprimíveis desses dons e dessas virtudes, no que consistem uns e outros: esta pessoa se parecerá sem dúvida a alguém que, apenas por meio de palavras e de comparações, tentasse fazer conceber a doçura do mel a quem jamais tenha provado dele. Não é evidente que todo esse trabalho e todas essas palavras terão sido em vão? Não diremos outra coisa do segundo, mas acrescentaremos que o primeiro, ou ignora o que deve dizer e é um insensato, ou sabe do que está falando, e então é um temerário e um orgulhoso.

2. É por isso que aqui não quero mais do que mostrar este tesouro oculto e encerrado em vasos frágeis, ou antes na fragilidade dos homens, a fim de reconhecer as demais virtudes que ele contém, pois não tenho a temerária pretensão de fazê-los compreender do que se trata; nenhuma palavra seria capaz de lhes dar uma verdadeira ideia do que é, nem sua excelência e suas qualidades. Já seu título e sua inscrição são incompreensíveis ao espírito humano, pois são inteiramente celestes; e aqueles que tentaram compreendê-los se meteram em penas e pesquisas infinitas e vãs. Pois “santa humildade” são as duas palavras que resumem a expressão deste tesouro espantoso.

3. Que todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus venham conosco e entre na prática desta virtude, como um conselho espiritual e cheio de sabedoria; que tragam não apenas as mãos do corpo, mas também as do intelecto, as tábuas dos conhecimentos que o próprio Deus gravou em seus corações; e, assim reunidos, examinaremos juntos qual é o sentido e a virtude desta inscrição tão venerável. Um dirá, sem dúvida, que a humildade é o esquecimento constante e perfeito das boas obras; outro, que ela consiste em se ver como o último dos homens e o maior dos pecadores; outro afirmará que ela é o conhecimento exato que temos de nossa fraqueza e de nossa fragilidade; outro ainda, que ela nos conduz a que nos antecipemos aos nossos irmãos, a fim de nos reconciliarmos perfeitamente com eles e resistirmos vitoriosamente a uma cólera nascente, por meio da paciência e da submissão; este sustentará que a humildade é uma confissão sincera e um reconhecimento público que fazemos das graças que recebemos de Deus, e das misericórdias infinitas que ele demonstra a nosso respeito; aquele, que ela consiste no sentimento de um coração arrependido e contrito e na recusa inteira da própria vontade. Quanto a mim, sou forçado a confessar que depois de ter ouvido todas essas definições da humildade e de ter meditado atentamente a respeito delas, ainda me é impossível entender toda a extensão desta virtude. Assim, tudo o que posso fazer aqui é, sendo o último e o menor de todos, juntar como um cachorrinho as migalhas da mesa, vale dizer, da boca desses homens sábios e esclarecidos, e dizer que a humildade é uma graça preciosa que Deus concede a uma alma, e que não pode ser expressa em palavras, e que só é conhecida daqueles que dela tiveram uma feliz experiência; que se trata de um tesouro incompreensível, que extrai seu nome do próprio Deus; que ela é um dom divino, pois foi dito: “Aprendam, não de um anjo, não dos homens, não de um livro, mas de mim, ou seja, da presença, das luzes e da operação de meu Espírito em vocês, eu que sou manso e humilde de coração, de espírito e de vontade; e vocês encontrarão o repouso de suas almas[33]”, pela cessação e pelo fim de todos os seus combates.

4. A humildade é uma vinha toda santa e toda espiritual; mas ela se apresenta sob formas diferentes, segundo as circunstâncias e as estações. Assim é que ela não aparece no inverno, vale dizer, no tempo em que as paixões agitam e atormentam o coração, da mesma forma como na primavera, quando a alma está mergulhada no perfume das virtudes; e não na primavera como no verão, quando as virtudes alcançam uma bem sucedida e perfeita maturidade. Estes diferentes pontos de vista que podemos considerar na humildade tendem todos a nos fazer ver e compreender que, nesta admirável virtude, tudo é próprio para trazer à nossa alma as marcas e as provas dos frutos preciosos e salutares que ela produz em nós. Com efeito, quando as uvas desta vinha espiritual começam a florescer em nosso coração, nós mesmos começamos, não sem alguma pena, a detestar os elogios e a glória que nos vem das criaturas, a rejeitar e expulsar para longe todo movimento de cólera e de agressividade; mas quando esta rainha das virtudes lança fortes e profundas raízes em nossa alma e aí cresce e se fortifica, fazendo aí progressos estimáveis, não apenas já não sentimos senão desdém por nossas próprias boas obras, como ainda elas nos parecem tão vis e desprezíveis que tomamos horror a elas; estamos persuadidos de que pela dissipação dos dons de Deus aumentamos em nós a cada dia o peso e o número de nossas prevaricações, e que esta superabundância de graças, da qual nos sentimos indignos, talvez só nos sirva, pelo mau uso que dela fazemos, para nos condenar a castigos ainda mais severos. É por isso que nossa alma permanece invulnerável sob os golpes dos inimigos, e que, retirada na trincheira inexpugnável da fraqueza, ela permanece tranquila e em paz, e escuta, sem se perturbar, os gritos furiosos e ameaçadores dos ladrões, vê seus esforços e suas tentações como jogos impotentes, e sabe que eles não a podem atingir nem destruir; pois esse humilde sentimento de nós mesmos é um cofre-forte onde estão encerradas todas as virtudes, e que é defendido por cidadelas inexpugnáveis.

5. Essas são as coisas que eu ouso dizer sobre as primeiras flores da humildade e dos primeiros frutos que ela produz prontamente nomeio de suas flores perenes. Mas, quanto à abundância e à qualidade dos seus frutos, não é possível expressar em palavras, principalmente sua qualidade. Tentarei apenas, e na medida em que puder, dizer-lhes alguma coisa das propriedades admiráveis da humildade.

6. A penitência exata e verdadeira, as lágrimas derramadas que lavam a consciência de toda mancha e a humildade daqueles que começam a servir a Deus, são três coisas diferentes entre si, como a farinha, a massa e o pão. Com efeito, a penitência mói e reduz a pó uma alma contrita e arrependida; a água salutar das lágrimas da unidade à massa e, se podemos dizer assim, a modela com Deus; então, abrasada pelos ardores da caridade, ela forma o pão sólido da humildade, e atira para longe de si tudo o que é vão e todo inchaço do orgulho: o que faz esta cadeia, composta por três anéis, é dar à alma uma força sobrenatural e invencível, ou , para falarmos mais claramente, esta íris celeste em três cores tem suas próprias maneiras de agir e proceder, e propriedades que lhes são essenciais e que lhe pertencem propriamente; de sorte que tudo o que dissermos de uma destas cores ou de um desses anéis valerá para todos. É por isso que aquilo que até agora eu apenas indiquei, vou tentar explicar a seguir.

7. A primeira e excelente qualidade desta admirável trindade consiste em suportar com um coração tranquilo, com alegria e entusiasmo os desprezos e as humilhações, recebendo-as e amando-as como um remédio adequado para curar nossa alma de todas as suas enfermidades espirituais, e como um meio eficaz para apagar e fazer desaparecer por completo todos os nossos pecados. A segunda propriedade da humildade consiste em triunfar perfeitamente sobre a cólera, e em não se servir senão da moderação e da modéstia para derrubar e sufocar essa paixão. A terceira propriedade, que é a mais perfeita, consiste em crer interiormente e em estar convencido e persuadido de que nada temos de bom, e em desejar com ardor receber as instruções e as reprimendas capazes de nos fazer adquirir algum bem.

8. Cristo, como sabemos, é a perfeição da lei e dos profetas para a justificação daqueles que nele creem, enquanto que a vanglória e o orgulho são a perfeição de todas as paixões impuras para a perda dos que negligenciam combatê-las corrigindo-se; assim como o cervo é inimigo mortal das serpentes, a humildade é inimiga mortal das paixões e dos vícios. É ela que preserva ou liberta de seu veneno funesto todos os que a tomam como companheira fiel e constante. Com efeito, quem jamais viu em sua companhia a hipocrisia e a mentira? Poderia a serpente infernal habitar um coração no qual reina a humildade? Não é justamente esta virtude admirável que a arranca de nosso coração, a mata e destrói? Os que a possuem não demonstram nenhum sinal de aversão, de contradição, de arrogância nem de tergiversação; e, se os vemos se exaltar eventualmente, será apenas porque perceberam que a fé está em perigo.

9. Assim é que vemos aquele que se uniu à humildade pelos laços de um casamento espiritual, manso e pacífico, levado à compunção e à misericórdia, sobretudo calmo e tranquilo, alegre e contente, pleno de condescendência e benevolência para com os demais, cheio de fervor e de vigilância; numa palavra, ele é vitorioso sobre todas as suas paixões, conforme as palavras de Davi: “O Senhor lembrou-se de nós em nossa humilhação e nos libertou das mãos dos inimigos[34]”, ou seja, das nossas paixões e das sujeiras feitas à nossa alma.

10. Um monge humilde está longe de pretender penetrar como um curioso nos segredos de Deus; mas aquele cujo coração está inflado de orgulho deseja até sondar a profundeza de seus julgamentos incompreensíveis.

11. Um dia em que os demônios observavam de modo especial a um dos mais sábios religiosos, e que lhe ofereciam interiormente grandes louvores pela bondade de sua alma, ele lhes respondeu com uma sabedoria admirável: “Se vocês cessarem de me louvar a respeito do feliz estado de minha alma, talvez eu possa crer que sou qualquer coisa de grande e de bom; mas, fazendo-o do modo como fazem, os elogios que me dirigem não servem senão para me fazer conhecer e sentir a sujeira e a corrupção de meu coração; pois eu sei que é imundo aos olhos do Senhor, o coração que se infla e se eleva por sentimentos de vaidade. Assim, se vocês desejam que eu me torne orgulhoso, calem-se e se retirem; e se quiserem que eu me encha de humildade, continuem a me elogiar”. Batidos e consternados com esta apóstrofe contraditória, os demônios rapidamente fugiram e desapareceram.

12. Que suas almas, semelhantes a uma cisterna, não seja ora cheia das águas vivificantes da santa humildade, ora dessecada pelos ardores da vanglória e do orgulho, mas que ela seja uma fonte inesgotável da qual a humildade produza a calma das paixões e faça correr um riacho de pobreza voluntária.

13. Saibam então, meus amigos, que é nos santos vales da humildade que colhemos em abundância o trigo e os outros frutos espirituais. Sim, as almas humildes são como vales que, localizados no meio das montanhas dos trabalhos, das penas e das virtudes, permanecem sempre baixos pelos sentimentos que neles são alimentados pela visão de sua baixeza e sua insignificância.

14. Observem que o salmista não diz: eu jejuei, eu passei as noites em vigílias, eu repousei sobre a terra nua; mas ele diz: “Eu me humilhei, e o Senhor me libertou e me salvou[35]”.

15. Se a penitência e as lágrimas que ela nos faz derramar têm o poder de nos elevar até o céu, é a humildade que nos abre as portas desta morada feliz. É por isso que a penitência, as lágrimas e a humildade formam uma respeitável trindade na unidade da humildade que contém a todas elas, e uma admirável unidade nesta espantosa trindade.

16. Assim como o sol ilumina todas as criaturas visíveis, também a humildade afirma e aperfeiçoa tudo o que a piedade nos inspira, e do mesmo modo como tudo está mergulhado em trevas na ausência do sol, também sem a humildade nossas boas obras fenecem e morrem.

17. Não existe lugar sobre a terra que jamais tenha visto o sol, e muitas vezes um único bom pensamento basta para produzir a humildade num coração. Assim como só haverá um dia em toda a duração dos séculos no qual todo o gênero humano será entregue à felicidade, também apenas a humildade será sempre uma virtude inimitável pelos demônios.

18. Elevar-se, não se elevar e se humilhar são três coisas bem diferentes. Com efeito, aquele que se eleva, imagina julgar a tudo; quem não se eleva, não julga ninguém e condena a si próprio; e quem se humilha, ainda que seja inocente, considera a si mesmo culpado de tudo.

19. Existe ainda um diferença entre ser humilde, trabalhar para se tornar humilde e louvar aqueles que se dedicam à prática dessa virtude. A primeira dessas três coisas diz respeito aos que atingiram a perfeição; a segunda, aos que se submeteram sinceramente ao jugo da obediência; e a terceira é característica de todos os cristãos.

20. Quando praticamos a humildade de todo coração, temos que ter o cuidado de não perdê-la por causa da indiscrição das palavras; pois a humildade não tem língua nem porta.

21. Quando um cavalo está sozinho num campo, ele parece correr bem depressa; mas quando ele corre com outros cavalos ele não parece o mesmo.

22. Pensem numa alma da seguinte maneira. Quando ela começa a não se gabar dos dons e não se glorificar dos ornamentos que recebeu da natureza, quando ela cessa de se comprazer com essas coisas, isso é um sintoma feliz de cura e de humildade; mas se ela ama respirar o vapor infecto do orgulho, então ela não será de sentir os doces e suaves perfumes da humildade.

23. Aquele que me ama, diz a santa humildade, não deve fazer reprimendas a ninguém, nem julgar a ninguém, nem dominar pessoa alguma; e jamais ser fútil. Quem se une intimamente a mim não terá outras leis senão aquelas que eu lhe ordenar.

24. Havia um religioso que fazia todos os esforços para adquirir a humildade; um dia os demônios lhe inspiraram um violento pensamento de vanglória; mas este santo e generoso atleta repeliu violentamente essa tentação, servindo-se de um piedoso estratagema que Deus lhe sugeriu. Ele se levantou de repente e se pôs a escrever nas paredes de sua cela os nomes das principais e mais eminentes virtudes, tais como a perfeita caridade, a humildade angélica, a oração pura e fervorosa, a castidade íntegra e sem mácula e outras semelhantes. Toda vez que os pensamentos de orgulho voltavam à carga para levá-lo ao vício, ele lhe dizia: “Vejamos nossos juízes”. E, colocando-se diante dos nomes que havia, falava alto para si mesmo: “Enquanto você não receber a sua parte de cada uma dessas virtudes, você deve reconhecer que ainda está bem longe de Deus”.

25. Ninguém jamais conseguiu conhecer nem explicar a natureza e as qualidades constitutivas do sol, e nós só o conhecemos pelos efeitos que ele produz.

26. Não devemos dizer o mesmo da humildade? Pois esta virtude é um socorro divino; é um véu admirável que esconde de nós a visão e o conhecimento de nossas boas obras; é uma inteligência profunda e perfeita de nossa baixeza, que impede que os ladrões se acerquem de nossa alma; é uma torre forte e poderosa, da qual Davi falou, e que nos defende dos esforços dos inimigos; enfim, é uma muralha que faz com que os filhos da iniquidade não sejam capazes de nos prejudicar, e que dissipa e coloca em fuga todos os que nos odeiam.

27. Mas, além dessas propriedades, ela possui outras que não são menos admiráveis, e que a alma que tem a felicidade de possuir essa virtude sabe distinguir muito bem. Ora, todas essas qualidades, com uma única exceção, são sinais de sua presença num coração. Assim, vocês poderão saber com uma espécie de certeza que possuem a humildade, quando se virem interiormente cheios de uma luz inexprimível, de uma amor inenarrável pela oração e, sobretudo, quando esta virtude purificar seus corações, ela os tornará incapazes de julgar e de condenar seus irmãos, mesmo assistindo suas quedas e suas faltas. O precursor de tudo isto é a aversão à vanglória.

28. O conhecimento de nós mesmos e das afeições mais secretas de nosso coração semeiam e produzem em nós a santa humildade; de tal maneira que, se não for por meio deste conhecimento que a semeia em nossa alma, será impossível que ela aí cresça e chegue a dar flor.

29. Com efeito, este conhecimento salutar nos traz o temor ao Senhor, e este temor salutar nos conduzirá depressa à porta da caridade.

30. Por isso podemos dizer aqui que a humildade é a porta do Reino dos céus, que nele ela nos introduz e que é aos que praticam esta virtude que o Senhor se referiu quando disse: “Eles entrarão no céu e sairão da vida presente sem nenhum temor, e encontrarão amplas pastagens e lugares cheios de frescor[36]”. Os que pretendem entrar nos céus por outra porta renunciam à sua salvação e se tornam assassinos de suas almas.

31. Mas, para chegarmos a nos conhecer, tenhamos sem cessar os olhos fixos em nós. E se, quando nos conhecermos, estivermos bem convencidos de que os outros são melhores do que nós, teremos algo em que pensar e crer que estamos bem distantes ainda das misericórdias.

32. É impossível extrair fogo da neve; mas, será menos difícil encontrar a humildade no coração de um heterodoxo, de um obstinado filho do erro? Com efeito, não é a humildade um bem próprio às pessoas piedosas e que levam uma vida pura e irrepreensível?

33. Com facilidade dizemos que somos grandes pecadores, e talvez até acreditemos nisso sinceramente; mas não será esta confissão que nos fará saber e experimentar se nosso coração é verdadeiramente humilde ou soberbo. São as humilhações e o desprezo que nos darão uma ideia real de nossas disposições.

34. Quem desejar com santo ardor chegar com sucesso ao porto tranquilo e seguro da humildade, deve procurar e empregar todos os meios de se conduzir para aí e de aí chegar: as firmes resoluções, os raciocínios salutares, os pensamentos racionais, as preces fervorosas, as meditações profundas, as súplicas assíduas, numa palavra, tudo o que puder imaginar ser útil para o objetivo a que se propõe, até que, enfim, ajudado pela graça de Deus, ele esteja experimentado nas ações mais vis e humilhantes, e que tenha retirado o vaso que encerra sua alma do mar bravio do orgulho e que o  tenha introduzido no porto da humildade; pois devemos observar que quem se liberta do orgulho imediatamente satisfaz a justiça de Deus em relação aos pecados. O publicano do Evangelho nos demonstra esta verdade consoladora.

35. Sabemos nós por que certas pessoas conservaram até a última hora a lembrança de suas faltas, que no entanto já haviam sido perdoadas? Foi a fim de nutrir e aumentar nelas o espírito de humildade e destruir cada vez mais o orgulho e a vanglória. Outros, vemos meditar continuamente sobre a Paixão de Cristo, a fim de se reconhecer sempre como um dos infortunados devedores da Justiça de Deus; outros não perdem de vista as faltas cotidianas nas quais caem, a fim de se humilharem sem cessar, vendo-se como os mais desprezíveis dos homens; outros ainda vemos servirem-se das tentações que lhes acontecem, das suas quedas e pecados, a fim de buscar a humildade, esta admirável mãe das virtudes; outros enfim, vemos considerar e crer que, se ainda existem, só pode ser por que se humilham primeiro diante de Deus, e este pensamento não os abandona jamais: eles repetem para si continuamente que, tendo recebido de Deus dons os mais abundantes, devem se considerar indignos de tamanha liberalidade, e por não ver nos novos favores com que Deus os beneficia senão novas dívidas acrescentadas às primeiras. Ora, é em condutas semelhantes que consiste a verdadeira felicidade, e é aí que se encontra a verdadeira recompensa dos esforços e das violências que nos fazemos.

36. Então, se nos acontece de ver ou de ouvir falar de pessoas que em pouco tempo alcançaram a paz soberana da alma, saibam que elas não chegaram a esta perfeição senão seguindo essa conduta, que é a via mais segura, mais feliz e mais curta.

37. A caridade e a humildade são duas companheiras fiéis: a primeira nos eleva ao céu e a segunda nos sustém nele e nos impede de cair.

38. A contrição, o autoconhecimento e a humildade são três coisas diferentes. O conhecimento e o pensamento de nossos pecados e de nossas quedas nos incitam ao arrependimento, e derramam uma santa tristeza em nossa alma. Com efeito, aquele que tem a infelicidade de cair, se machuca e se quebra; então aprende a desconfiar de si mesmo e a recorrer à oração, a depositar uma humilde confiança em Deus, a se apoiar, para se sustentar, no bastão da esperança, e a servir-se dele para expulsar o desespero que, como um cachorro raivoso, tenta devorá-lo. O conhecimento de nós mesmos é a inteligência que adquirimos a respeito de nossa capacidade real e de nossos meios; é ainda um sentimento vivo e profundo de nossas fraquezas e de nossos pecados. A humildade é uma santa doutrina que Cristo ensina aos que dela se tornam dignos pela graça, que ele coloca no interior da alma como se fosse sobre um leito nupcial, a respeito da qual toda a eloquência dos homens é incapaz de expressar nem dar a compreender o poder e a virtude.

39. Dizer que temos a felicidade de sentir em nós mesmos os doces perfumes da humildade, e não obstante ainda nos comovermos com os elogios dos homens, ainda que por um mero instante, equivale a enganar a si próprio grosseiramente e ainda desconhecer este fato sobre si próprio.

40. Ouvi um dia um homem santo dizer, no fervor que lhe inspirava sua profunda humildade: “Não nos conceda, Senhor, de modo algum nos conceda a glória, mas remeta-a inteira ao seu santo Nome[37]”. Ele sabia por sua própria experiência que nossa natureza é fraca a tal ponto, e incapaz de se preservar, por suas próprias forças, das feridas que os inimigos da salvação querem fazer-lhe. “Só você será, meu Deus, o objeto de meus louvores numa grande assembleia[38]”, ou seja, nos séculos infinitos da eternidade; pois quanto a nós, devemos acrescentar, não podemos receber a glória antes da vida futura, sem que estejamos miseravelmente expostos a nos perder pela vaidade que isto nos inspiraria.

41. Se o fim, a horrível perfeição e o último grau do orgulho consistem, para atrair elogios, louvores e glória, em fingir ser ornado de virtudes que na realidade não possuímos, o cúmulo e a perfeição da humildade consistem em fazer crer, a fim de parecer mais vil e desprezível, que somos culpados de certas faltas nas quais não caímos. Foi sem dúvida com esta finalidade que um santo religioso tomou, em presença dos seus irmãos, pão e queijo e comeu de ambos, para que eles pensassem que ele não se mortificava tanto quanto se acreditava. Foi  também com este mesmo fim e para ser visto como um insensato, que um outro deixou seus hábitos para entrar numa cidade; mas ele estava longe de se conduzir assim por causa de maus pensamentos, pois a modéstia e a castidade faziam parte dele. Os que são humildes não temem as ofensas dos outros, pois eles receberam de Deus, por meio da prece, todas as graças e todos os dotes necessários para satisfazer todo mundo. De resto, como toda a sua inclinação está voltada para a prática da humildade, eles pouco se importam com os gracejos ou a condenação que lhes fazem os homens. Somos todo-poderosos em Deus, quando ele atende os votos que lhe dirigimos.

42. Tenham assim o desejo sincero de desagradarem antes aos homens do que a Deus; pois este tem prazer em nos ver buscar o desprezo e a humilhação, a fim de atormentarmos, perseguirmos e exterminarmos em nós a verdadeira estima que temos por nós mesmos, e a vanglória que recebemos dos aplausos dos homens.

43. É certo que a fuga do mundo e o retiro nos trazem um grande benefício para entrarmos nos exercícios da humildade, e que não é possível senão às almas fortes se expor assim à zombaria e ao desprezo de seus próximos e de seus amigos. Não se surpreendam com o que eu disse, pois ninguém jamais pode com um único passo subir a escada divina.

44. Lembrem-se de que saberemos ao final que somos discípulos de Cristo, não porque nos obedecem os demônios, mas porque, conforme ele próprio nos ensina, nossos nomes estarão inscritos no céu da humildade[39].

45. A natureza dos limoeiros é tal que se seus galhos se voltam para o alto isto mostra uma esterilidade absoluta, mas se eles se deixam cair é um sinal de frutos em abundância. Quem souber refletir compreenderá o que queremos dizer aqui.

46. A humildade é uma escada pela qual subimos até Deus; mas alguns sobem até o trigésimo degraus, outros até o sexagésimo, outros até o centésimo. Aqueles que, por uma vitória total sobre as más inclinações de seus coração, conseguiram desfrutar da paz perfeita, sobem até o mais elevado, que é o centésimo; o segundo convém aos que caminham corajosamente pelos caminhos da salvação; quanto ao primeiro, que é o mais baixo, todos podem esperar chegar até aí.

47. Quem se conhece, evitará empreender coisas que estão acima de suas forças, e caminhará com constância pelos caminhos da humildade.

48. Os pequenos pássaros tremem à vista de um gavião, e as almas que são solidamente humildes temem e se assustam com o barulho das discussões.

49. Muitas pessoas alcançaram a salvação sem ter sido nem profetas nem taumaturgos, e sem ter recebido revelações extraordinárias; mas jamais alguém chegou até aí, nem chegará jamais, sem a humildade. Não é esta a virtude guardiã dos dons extraordinários? E não foram estes bens celestes que se tornaram a infeliz causa ou a ocasião para que corações que não eram sinceramente virtuosos tenham expulsado vergonhosamente a humildade para longe de si?

50. Devemos aqui admirar o modo como Deus, a fim de nos fazer praticar, ainda que contra a nossa vontade, a santa virtude da humildade, faz, por uma providência especial, com que outros vejam e conheçam nossas faltas melhor do que nós mesmos. Assim ele nos coloca na necessidade de reconhecer e confessar que não é a nós que podemos atribuir a salvação e a cura de nossa alma, mas à assistência de nossos irmãos e ao socorro de Deus.

51. Quem é verdadeiramente humilde detesta sua própria vontade, e só a vê como enganadora; e, pela confiança que coloca em Deus nas suas preces, aprende o que deve saber e fazer. Para cumprir com os deveres de obediência, ele não considera nem a vida nem os costumes das pessoas que o dirigem, mas se abandona inteiramente aos cuidados paternais de Deus, e se lembra de que um dia o Senhor se serviu da voz de um asno para dar instruções a Balaam. E ainda que este humilde e fiel servidor de Deus não agisse, pensasse ou falasse em todas as coisas senão de um modo conforme à sua santa vontade, ele evitaria ainda de confiar em seu próprio julgamento; pois, é preciso dizê-lo, uma alma verdadeiramente  humilde não tem menos incômodo nem sofre menos tormento em confiar no próprio discernimento, do que um coração soberbo em se submeter ao julgamento dos outros.

52. Parece-me que somente os anjos são incapazes de cair em certas fraquezas; pois um dia eu ouvi um anjo terrestre me dizer: “É verdade que não me sinto culpado por nada, mas nem por isso me sinto justificado; pois não cabe a mim julgar-me, mas ao Senhor[40]”. É por isso que devemos nos repreender e nos condenar severamente, a fim de que, por meio desse desprezo e dessa humilhação voluntários, possamos apagar as faltas nas quais caímos sem nos darmos conta. Devemos agir assim, por que de outro modo teremos uma conta terrível para prestar na hora da morte.

53. Quem pede ao Senhor graças das quais se considera indigno por causa do pouco mérito de suas boas obras, receberá, em virtude do sentimento de sua indignidade, dons e favores que superarão infalivelmente o valor real das virtudes que praticou. É o que nos ensina o exemplo do publicano que, mesmo só ousando pedir a remissão de seus pecados, recebeu uma plena e inteira justificação. É também o que nos ensina o bom ladrão: ele se contentou, por humildade, em pedir ao Senhor que se lembrasse dele em seu Reino, e recebeu o Paraíso inteiro em herança[41].

54. Assim como, de acordo com a ordem que Deus dispôs, não vemos neste mundo nenhuma criatura do fogo, nem grande nem pequena, também na ordem da graça não encontramos a presença do fogo da concupiscência num coração sólida e sinceramente humilde; ora, esta concupiscência é a matéria e a causa de todos os vícios nos quais temos a infelicidade de cair. Com efeito, na medida em que caímos voluntariamente no pecado, não somos ainda verdadeiramente humildes, e continuamos sentindo a presença da concupiscência.

55. O Senhor, sabendo que hábitos corporais contribuem decisivamente para conduzir a alma ao caminho da humildade, e querendo servir ele próprio de exemplo, cingiu-se de uma toalha para lavar os pés de seus apóstolos e para nos ensinar o caminho que nos conduz à humildade. Com efeito as afeições de nossa alma se formam frequentemente pelas ações do corpo, e ela se acostuma facilmente ao que este corpo faz exteriormente.

56. A autoridade que Deus concedeu a um dos anjos, não para ele abusasse dela para se orgulhar, acabou sendo a causa e a ocasião de seu orgulho.

57. Quem se senta sobre um trono tem uma conduta diferente daquele que se senta sobre o estrume. É por essa razão que Jó, este homem santo e justo, permanecendo sobre a estrumeira e fora da aldeia, pode adquirir uma humildade perfeita, e dizer a Deus do fundo de seu coração: “Eu me humilho e me rebaixo diante de você, meu Deus, e reconheço minha baixeza, e me penitencio com pó e cinzas[42]”.

58. Vejo ainda Ramassés, rei de Judá, que era um dos maiores pecadores do mundo; pois, além da infinidade de crimes de que era culpado, havia profanado o templo de Deus e substituído o culto que se deveria prestar à sua Majestade soberana pelo culto ímpio e sacrílego que ele prestava e obrigava a que se prestasse aos ídolos; de sorte que, ainda que todo o universo fizesse jejuns rigorosos em intenção desse rei criminoso, essa penitência não seria bastante para obter-lhe o perdão por suas execráveis
Impiedades. E no entanto a humildade teve a virtude de curar as chagas desesperadas e incuráveis desse indigno monarca.

59. Também Davi, falando com Deus, não hesitou em dizer: “Se lhe agradasse um sacrifício, meu Deus, eu não deixaria de lhe oferecer; mas você não se agradaria dos holocaustos que eu lhe posso oferecer – os jejuns que afligem o corpo – mas o sacrifício que devo oferecer é o de um coração quebrantado de dor; pois você não desprezará um coração contrito e humilhado[43]”. Da mesma forma, quando o profeta, em nome do Senhor, lhe reprovou o homicídio e o adultério que ele havia cometido, a humildade fez com este príncipe pronunciasse estas palavras: “Eu pequei contra o Senhor[44]”; e, no mesmo momento, Deus lhe enviou esta resposta pelo mesmo profeta: “O Senhor perdoou o seu pecado[45]”.

61. Nossos pais, estes homens tão respeitáveis, nos ensinaram que os trabalhos e os penosos exercícios do corpo são como que o caminho que nos conduz à prática da humildade, e que eles são o fundamento sobre o qual repousa esta virtude. Quanto a mim, não penso o mesmo: pois eu creio que é a obediência que nos conduz à humildade, e que são a retidão e a sinceridade do coração que lhe servem de base e fundamento. De fato, a retidão do coração detesta a vanglória.

62. Se o orgulho foi capaz de transformar anjos em demônios, a humildade, se pudesse ser partilhada por eles, seria capaz de transformar os demônios em anjos. Que os homens que tiveram a infelicidade de pecar reergam sua vontade abatida!

63. Apressemo-nos em trabalhar com todas as forças para chegar à posse da humildade. E se não pudermos atingir a perfeição dessa virtude, esforcemo-nos por nos apoiarmos em suas espáduas; e se por infelicidade nos acontecer alguma queda ou se sucumbirmos à tentação, guardemo-nos de nos separarmos da humildade, mantendo-nos fortemente abraçados a ela; pois eu ficaria espantado de ver que alguém que se separou da humildade seja capaz de receber qualquer graça que possa conduzi-lo à salvação eterna.

64. Os nervos que fortalecem a humildade e os meios para adquiri-la são as seguintes virtudes: a pobreza, a fuga do mundo, o cuidado em não parecer sábio, a simplicidade nas palavras, a sinceridade, o pedido de esmola, o silêncio sobre a nobreza do nascimento, a renúncia à liberdade de palavra e de movimentos, o afastamento do falatório. Todas essas coisas são marcas simples que anunciam a felicidade de se possuir esta virtude incomparável.

65. Nada contribui mais e mais eficazmente para nos humilhar do que uma extrema pobreza e um estado no qual não podemos viver senão das esmolas que pedimos e recebemos. Quando somos capazes de nos elevar, e, não obstante, fazemos todos os esforços para nos abaixar e para afastar de nós todo inchaço do coração, é então que, sim, é então que mostramos e damos as provas de que possuímos a verdadeira sabedoria, e que somos verdadeiramente os servidores e os amigos de Deus.

66. Assim, quando vocês se armarem para combater qualquer vício, não deixem de chamar a humildade em seu auxílio; com ela vocês marcharão ousadamente sobre a áspide e o basilisco, e pisotearão o leão e o dragão[46], sem que nenhum deles possa lhes prejudicar, ou seja, nem o pecado, nem o desespero, nem o dragão do corpo.

67. A humildade é um canal celeste que possui a virtude de retirar de nossa alma o abismo do pecado e de elevá-la até os céus.

68. Alguém que tenha um dia percebido no fundo de sua alma a beleza arrebatadora dessa virtude, independente de si mesmo se permitirá perguntar de quem terá ela vindo à luz e recebido a existência. E ela lhe responderá com um sorriso: “Como você quer saber o nome do meu pai? Ele não tem nome, assim como eu; eu não lhe explicarei essa maravilha a menos que você esteja sob a posse de Deus, a quem seja dada toda honra e toda glória pelos séculos dos séculos. Amém”. Terminarei este degrau dizendo que, assim como o mar é a causa e quem alimenta todas as fontes, também a humildade é a fonte de discrição.



VIGÉSIMO SEXTO DEGRAU

Do Discernimento dos pensamentos, vícios e virtudes


1. O discernimento, nas pessoas que começam a servir a Deus, consiste num conhecimento exato que elas possuem do estado de suas almas; em relação às que já fizeram algum progresso no serviço do Senhor, é um sentimento interior que as faz distinguir com certeza o bem propriamente dito daquele que é apenas natural e que, muitas vezes, combate o bem sobrenatural; nos que atingiram com sucesso a perfeição, é um conhecimento de que receberam as luzes que Deus derramou abundantemente em suas almas, por maio da qual, não apenas eles sondam os recantos mais fundos de seus corações, mas ainda podem penetrar até no interior dos seus irmãos. Mas se quisermos definir o discernimento de uma maneira geral e que possa abarcar e convir a tudo, diremos que é e deve ser uma luz interior que nos permite conhecer com certeza, a todo tempo, em todo lugar e em todas as nossas ações, que ela é santa e agradável à vontade de Deus, e que só a recebem os que são puros nas suas afeições, em suas ações e em suas palavras.

2. Aquele que por meio do espírito de Deus venceu três inimigos de sua salvação, consegue facilmente derrubar os outros cinco; mas quem negligencia atacar e vencer esses três inimigos não pode contar com mais nenhuma vitória. O discernimento é assim uma consciência sem mácula, e não habita senão naqueles cujos sentidos são puros e castos.

3. Ninguém, quer tenha visto por si mesmo, quer tenha escutado de outros que no estado religioso acontecem coisas extraordinárias e sobrenaturais, pode, porque não conhece a natureza disso, negar sua existência e pô-las em dúvida; pois onde Deus habita, que é acima da natureza, podem acontecer coisas que estão acima da natureza e das leis naturais.

4. A preguiça, o orgulho, a inveja dos demônios, são as três principais armas das quais se servem os espíritos infernais para nos combater. A primeira dessas armas deve nos cobrir de confusão, a segunda nos precipita na miséria derradeira; quanto à terceira, é uma verdadeira felicidade e uma felicidade perfeita.

5. Depois de Deus, é à nossa consciência que devemos recorrer, como a uma regra a ser seguida: é ela que está encarregada de nos fazer conhecer de que lado se erguem os ventos impetuosos das tentações, de nos advertir quando convém recolher as velas, e de nos dirigir de modo a que possamos evitar um triste naufrágio.

6. Os demônios, em nossos exercícios de piedade, nos estendem armadilhas para nos fazer cair nas três fossas que eles mesmos cavaram. Primeiro eles se esforçam para nos desviar de fazer bem feito; depois, se são vencidos nesse primeiro combate, procuram corromper nosso coração por meio das más intenções que nos insiram, para nos impedir de colocarmos nosso objetivo na Glória de Deus; enfim, se seus esforços nesse segundo ataque não resultam em nada, eles se escondem no interior de nossa alma, que está tranquila, a fim de lhe inspirar que somos felizes por não fazermos nada que não seja pela Vontade de Deus e para sua maior glória. Resistiremos à primeira tentação por meio de uma grande diligência e uma exatidão escrupulosa quanto aos nossos deveres, bem como por meio do pensamento e da lembrança da morte; ao segundo, por meio da obediência e do desprezo por nós mesmos; e à terceira, pelo conhecimento de nossa imperfeição e da inutilidade de nossas obras. Este é um grande trabalho que temos que fazer continuamente até que o fogo do amor de Deus nos faça entrar em seu santuário. Porque então já não estaremos inquietos, nem seremos levados ao pecados por causa de nossos antigos hábitos. Deus, que é um fogo purificador, consumirá todos os ardores da concupiscência, deterá nossos movimentos desregrados, nos preservará da presunção e nos impedirá de cair, seja na cegueira interior, seja na cegueira exterior.

7. Mas os demônios fazem exatamente o contrário: logo que conseguem tornar escrava nossa alma, eles extinguem toda a espécie de luzes e nos reduzem a uma tal pobreza que já não nos resta nem prudência, nem discernimento, nem conhecimento, nem respeito por nada, e só recebemos em troca a indolência, o estupor, o enrijecimento, a indiscrição e a cegueira.

8. Conhecem por sua própria experiência tudo o que dissemos, aqueles que tiveram a felicidade de sair do abismo da impureza por meio de jejuns e de outras austeridades da penitência, renunciando a uma confiança insensata em suas próprias forças, para seguir as regras da modéstia, e abandonar uma imprudência vergonhosa para observar as leis do pudor. Eles sabem que tão logo suas almas foram libertas e curadas dessas doenças mortais, que seu espírito se encontrou fora dessas trevas espessas nas quais havia sido enterrado, e que seu coração foi purificado da corrupção do pecado, eles sentiram vergonha de si mesmos, das ações que praticaram e das palavras que disseram durante seu deplorável cativeiro.

9. Com efeito, a menos que a luz divina se obscureça na alma, e que esta caia nas trevas de uma noite funesta, os demônios permanecerão impotentes para roubar-lhe a santidade e a inocência, para imolá-la em seu furor e pô-la a perder. Sim, eu repito, enquanto uma alma nesta vida for iluminada pelos raios do sol de justiça, os demônios estarão privados de poder lhe fazer mal. Ora, os demônios arrebatam o tesouro precioso da inocência a uma alma, submetendo-a, sem que ela perceba, à sua escravidão: eles a imolam ao seu furor, quando apagam nela todas as luzes da consciência, de modo a precipitarem-na em crimes vergonhosos e detestáveis; enfim, eles acabam de pô-la a perder quando conseguem fazê-la cair em pecado, e então a atiram aos horrores do desespero.

10. Que ninguém aqui tente alegar sua fraqueza como desculpa, e não diga que os mandamentos de Deus são impossíveis; pois existe gente que, em muitas coisas, vai mesmo além do que ordena o Evangelho; para estarem certos disso, observem a quem ama ao próximo mais do que a si mesmo.

11. Que os humildes se armem de coragem, ainda que seja perturbados por suas paixões! Pois ainda que por um tempo tenham a infelicidade de cair em toda espécie de pecados, de se deixar prender nas armadilhas dos demônios e de experimentar as enfermidades espirituais, se Deus lhes conceder enfim a cura, eles poderão ainda servir aos demais médicos como faróis, lâmpadas e pilotos, dando-lhes a conhecer os diferentes sintomas das doenças da alma, e, pela experiência vivida, preservá-los dos perigos aos quais estariam eles expostos.

12. Se existem pessoas que, mesmo tiranizadas por suas paixões, são capazes de dar ao seus irmãos lições úteis e simples, eu estou bem longe de proibi-las – que o façam; pois pode muito bem acontecer que, por causa das exortações que fazem, cheguem a se envergonhar e comecem a dar o melhor de si e a levar uma vida melhor. Mas essas pessoas não podem se ocupar no governo e na condução dos irmãos. Já vi homens que, tendo caído no pântano do vícios, e nele afundando cada vez mais, não deixavam de contar aos que viam expostos ao mesmo perigo, como e porque eles próprios haviam sido vítimas de sua temeridade. Assim talvez eles pudessem preservar os demais da queda que lhes ocorrera, impedindo-os de cair no abismo em que encontravam. Mas o que aconteceu? Deus, que é infinito em misericórdia como o é em potência, voltou os olhos para as intenções caridosas dessas pessoas e as libertou das odiosas cadeias de seus pecados. Quantos aos que, com sangue frio, se submetem voluntariamente ao jugo tirânico das paixões, tudo o que têm a fazer é manter o silêncio, como único meio de dar alguma lição aos outros. E eles devem se lembrar dessas palavras: primeiro Jesus começou a fazer, para depois ensinar[47].

13. O mar que temos para a travessar, ó humildes religiosos, é terrível e furioso: ele está constantemente agitado por ventos impetuosos, e revolto por tempestades assustadoras; ele é cheio de rochedos ameaçadores, de abismos profundos, de piratas impiedosos, de golfos perigosos, de bancos de areia; ele é povoado por monstros assustadores, coberto de ondas e de vagas espumantes. Os rochedos desse mar são a cólera, que causa subitamente um abrasamento terrível na alma; os abismos são essas vertigens que tomam conta de nós e nos lançam no desespero, que é um abismo sem fundo; os baixios e bancos de areia são as trevas de nosso espírito, que nos fazem tantas vezes tomar o mal pelo bem; os monstros representam nosso próprio corpo pesado, grosseiro e perigoso por causa das paixões cruéis que ele alimenta e fomenta; os piratas devastadores são os ministros e os autores da vanglória, que nos roubam impiedosamente toda a bagagem e o tesouro de nossas boas obras, frutos de nossos trabalhos e de nossos suores; entendemos as ondas como os excessos e os desregramentos da intemperança, que nos precipita bruscamente na goela e nos dentes dos monstros do inferno; como turbilhões entendemos o orgulho que, expulso do céu onde o demônio o fez nascer, quer agora nos elevar até o céu apenas para nos atirar no abismo mais profundo.

14. Os homens escolados nas ciências conhecem muito bem três coisas que são convenientes para quem começa seus estudos; as que convêm aos que já fizeram algum progresso; e enfim as que são próprias aos que se tornaram capazes de ministrar lições aos outros. Tomemos cuidado para que, depois de muito tempo de estudos, não nos encontremos nos primeiros elementos da ciência espiritual e religiosa. Nada é mais vergonhoso para um ancião do que se ver numa escola para crianças. Ora, eis aqui o verdadeiro alfabeto dos que pretendem aprender a ciência religiosa[48]. A) obediência; B) jejum; C) cilício; D) cinzas; E) lágrimas; F) confissão; G) silêncio; H) humildade; I) vigílias; K) generosidade; L) frio; M) trabalho; N) aflições; O) desprezo; P) contrição; Q) esquecimento das injúrias; R) caridade fraternal; S) mansidão; T) fé santa e isenta de curiosidade; V) indiferença pelo mundo; X) santa aversão pelos parentes; Y) desligamento perfeito de todas as coisas; Z) simplicidade unida a uma grande inocência e uma abdicação voluntária. Quanto aos que já fizeram algum progresso na ciência religiosa, seu estudo e sua aplicação específicos devem consistir em se esforçar para obter uma vitória completa sobre a vanglória e sobre a cólera, em nutrir e aumentar e si a esperança nos bens futuros, em tornar mais perfeita a paz de sua alma e maior a circunspecção de seu espírito, em gravar cada vez mais na memória a lembrança e o pensamento dos juízos de Deus, em aperfeiçoar seus sentimentos de ternura e comiseração pelos irmãos, em exercer para com eles os deveres de hospitalidade com afeição e prudência, em ser mais doces e moderados nas correções, mais fervorosos e recolhidos na oração e, enfim, em desdenhar inteiramente as riquezas. No que diz respeito aos perfeitos, que, por meio de uma prece fervorosa, consagraram a Deus todos os pensamentos de seu espírito, todos os sentimentos de seu coração e todas as ações de seu corpo, eis o alfabeto que lhes convém, segundo devem: A) conservar seu coração livre de toda paixão; B) nutrir em si uma caridade perfeita; C) praticar uma humildade profunda; D) manter um distanciamento absoluto de todas as vaidades do século; E) ser devorados por um zelo ardente no sentido de conservar a presença de Jesus Cristo; F) cuidar em especial para defender o tesouro de suas orações e das luzes recebidas, dos embustes e armadilhas dos demônios que os querem roubar; G) enriquecer-se cada vez mais com os dons e as iluminações celestes; H) desejar ardentemente o fim de suas vidas; I) não sentir senão aversão pela vida presente; K) evitar tudo o que possa agradar à carne; L) merecer se tornar junto a Deus os advogados e intercessores para todo o mundo; M) fazer o possível para obter de Deus a misericórdia para os homens; N) participar do ministério dos anjos; O) tornar-se um tesouro das ciências; P) tornar-se dignos de ser os intérpretes das verdades sobrenaturais e dos mistérios; Q) merecer ser os depositários dos segredos dos céus; R) salvar os homens; S) submeter os demônios; T) triunfar sobre as paixões e os vícios; V) vencer a carne; X) governar a natureza inteira; Y) guerrear obstinadamente contra o pecado; Z) ser os templos vivos da paz soberana do coração, e, por meio da graça, os imitadores perfeitos de nosso Senhor Jesus Cristo.

15. Quando nos sentimos atingidos por uma enfermidade grave, devemos redobrar os cuidados e a vigilância. De fato, é nesses momentos que os demônios, vendo-nos abatidos pela doença e incapacitados, pela fraqueza do corpo, de nos servir de nossos santos exercícios – as lágrimas com que os púnhamos em fuga – costumam fazer os últimos esforços para nos vencer. Durante as enfermidades as pessoas do mundo ficam expostas a explosões de cólera, e algumas vezes à impiedade das blasfêmias, mas os monges e os que vivem longe do século, se têm em abundância as coisas que lhes são necessárias, ficam expostos às tentações da intemperança, e mesmo da luxúria. Quanto aos que se veem privados de socorro quando doentes, como os solitários, estes são terrivelmente tentados a se entregar à negligência, ao desânimo e à tristeza.

16. Cheguei a ver algumas vezes o demônio da incontinência aumentar as dores de certos doentes, a ponto de lhes causar movimentos por meio dos quais sua consciência pudesse ser perturbada. Nunca pude compreender como, em meio a tão grandes sofrimentos, a carne ainda fosse capaz de se revoltar contra o espírito; mas, tendo retornado depois para visitá-los, eu os encontrei sobre seu leito de dor tão consolados pelos socorros espirituais que Deus lhes concedera e pelos sentimentos de compunção que ele lhes inspirara, que o consolo assim recebido lhes retirou o sentimento de seus sofrimentos, e os fez desejar que não fossem curados; então observei que suas dores e sofrimentos haviam sido os remédios salutares e eficazes para curá-los de suas enfermidades espirituais. Eu adorei a Deus e agradeci pela graça que fizera aos homens, servindo-se de seus corpos de barro para purificá-los e santificá-los.

17. Existe no fundo de nossas almas um sentimento totalmente espiritual que nos leva incessantemente a buscá-lo em nós, ainda que ele aí não se encontre; mas assim que temos a felicidade de encontrá-lo, não tardamos a ver as trevas produzidas pelas paixões desregradas se dissiparem e desaparecerem de nosso espírito. É o que fez com que um homem sábio dissesse estas palavras: “Vocês encontrarão em si um sentimento totalmente divino”.

18. A vida monástica deve preencher todos os sentimentos do coração, regrar todas as nossas ações, vigiar nossas palavras, formar nossos pensamentos e presidir a todos os nossos movimentos; de outro modo, não seria a vida monástica, e, menos ainda, uma vida angélica.

19. Entendam a diferença que existe entre a providência de Deus, o socorro da graça, a proteção que ela concede, a misericórdia que utiliza a nosso respeito e as consolações que nos permite desfrutar. Sua providência brilha de modo evidente em todas as obras do universo, mas não vemos o socorro de sua graça senão entre os fieis; sua proteção, apenas nos que são verdadeiramente fieis; observamos sua misericórdia nos servidores mais devotados, e suas consolações dentre os que o amam sinceramente.

20. Às vezes, aquilo que costuma ser um bom remédio para certas pessoas se torna um verdadeiro veneno para outras; e este mesmo remédio ministrado à mesma pessoa, em circunstâncias diferentes, é salutar num momento e funesto em outro.

21. Vi uma vez um médico espiritual, tão ignorante quanto indiscreto, que tanto oprimiu com suas reprimendas a um pobre enfermo que desfalecia sob o peso de seus pecados, que o empurrou aos horrores do desespero. E vi um outro, cheio de ciência e sabedoria, que, por meio de reprimendas humilhantes, fez como que uma incisão num coração inchado de orgulho,  e conseguiu com sucesso arrancar toda a corrupção infecta que o sujava e deteriorava.

22. Vi também um mesmo enfermo espiritual que, tanto para se curar das paixões que corrompiam seu coração, aceitava como uma bebida salutar todo o amargor da obediência, quanto para devolver a visão ao olho de sua alma, se mantinha numa imobilidade e num silêncio perfeitos, não vendo a ninguém e não falando com ninguém. Quem tiver ouvidos para ouvir, escute e compreenda o que quero dizer aqui.

23. Existem alguns – e eu confesso que não sei como, porque não procurei saber por mim mesmo e por meu próprio julgamento como acontecem esses dons e esses favores preciosos – mas enfim, existem pessoas que são naturalmente levadas à continência, ao repouso da alma, à modéstia, à mansidão e à compunção do coração. E existem outras que possuem inclinações opostas a essas virtudes, e que têm que combater com todas as forças esta natureza má. Ora, ainda que nem sempre estes últimos triunfem sobre suas tendências, eu os considero preferíveis aos primeiros, pois eles triunfam sobre a própria natureza.

24. Então, não venham glorificar-se diante de mim, vocês que, sem trabalho e sem penas, desfrutam desses dons e desses favores da natureza; ao contrário, confessem com humildade que o soberano Dispensador dos dons só os favoreceu assim por conhecer sua extrema fraqueza, prevendo que, sem essas graças inteiramente gratuitas, vocês estariam perdidos, e ainda porque, em sua infinita bondade, ele os quis salvar. Devemos ainda observar que uma boa educação, as instruções salutares recebidas em nossa infância, os exercícios espirituais a que nos dedicamos na adolescência, podem mais adiante em nossa vida nos levar a praticar a virtude e a fazer nossa profissão de vida monástica; mas que todas essas coisas podem também nos desviar, se não forem boas e cristãs.

25. Os anos são uma luz para os monges, e os monges devem ser uma luz para os outros homens. É por isso que eles são particularmente obrigados a fazer todos os esforços para se tornar homens exemplares, e para jamais, seja por palavras, seja por ações, dar lugar a que alguém se escandalize; pois se a luz se transmuta em trevas, o que acontecerá com as próprias trevas, ou seja, com aqueles que vivem nomeio do mundo[49]?

26. Assim, se vocês me escutarem e quiserem seguir meu conselho, não se esqueçam de que é importante não sermos fúteis nem inconstantes, e não dividirmos as forças de nossas almas, já tão pobres e fracas, se quisermos combater com vantagem os milhares de inimigos que nos atacam; pois de outro modo nos seria impossível conhecer e evitar as armadilhas infinitas das quais eles se servem para nos capturar.

27. Armemo-nos assim do socorro que nos oferece a Santíssima Trindade, e empreguemos três virtudes para fazer a guerra a três vícios diferentes. Se não o fizermos, estaremos expostos a males e inquietudes inumeráveis.

28. Com efeito, se Deus, que um dia transformou o mar em terra firme, está conosco, não seremos nós semelhantes aos israelitas? Iluminados e protegidos por sua Presença, passaremos sem perigo pelas ondas bramantes, e veremos os egípcios engolidos pelas águas; mas, ao contrário, se Deus não nos assiste, quem poderá sequer escutar sem tremer o ruído confuso das vagas e das ondas? Quem será capaz de se sustentar diante dos esforços furiosos de sua própria carne?

29. Se Deus, por causa das boas obras que sua graça nos faz praticar, se mostra em nosso coração, logo os nossos inimigos, que são seus também, se dissipam e fogem; e se, pela santidade e o fervor de nossas preces, O chamamos em nosso socorro, todos os que, segundo a expressão de Davi, odeiam o Senhor, fugirão de sua presença[50] – e, podemos acrescentar, da nossa.

30. Não nos esqueçamos de que não será com palavras vãs e estéreis que aprenderemos as coisas celestes, mas por meio de nossos trabalhos, nossos esforços e suores. Não se trata, ao fim de nossa vida presente, de apresentar diante do soberano Juiz palavras, mas sim obras.

31. Quando alguém descobre um tesouro escondido em algum lugar, apressa-se em cavar para encontrá-lo; se o encontrar, guardá-lo-á com grande cuidado. Os que são ricos sem ter trabalhado para o ser, normalmente dissipam sua fortuna.

32. Os hábitos viciosos e inveterados não são corrigidos sem grandes dificuldades e grandes esforços; os monges que ainda os fortalecem com más ações continuamente repetidas, ou caem miseravelmente no desespero, ou, por sua cegueira, não extraem nenhum benefício de sua profissão religiosas nem de sua consagração à obediência. Mas devemos desesperar inteiramente dessas pessoas? Não, porque eu sei que Deus é todo-poderoso e pode facilmente retirá-las do abismo.

33. Algumas pessoas me propuseram um dia uma questão muito difícil de resolver, a qual, em minha opinião, ultrapasse o alcance dos espíritos daqueles que são como eu, e que não se encontra em nenhuma obra conhecida: quais são, indagaram-me, os vícios que geram os oito pecados capitais, e quais são os três pecados destes oito que produzem os outros cinco? Ora, como eu não pude responder a esta questão tão ousada, fui obrigado a lhes confessar minha incapacidade. Mas eis o que esses padres me disseram. A intemperança é a mãe da luxúria; a vanglória, da preguiça; a tristeza e a cólera são mães do orgulho, da inveja e da avareza, e a vanglória é também mãe do orgulho. Quando eles me explicaram este primeiro ponto, eu me permiti perguntar a esses homens veneráveis para que satisfizessem meu desejo, ensinando-me quais seriam os pecados produzidos pelos pecados capitais, e de qual pecado cada um extrairia sua origem; e eis aqui a resposta que me deram com uma bondade e um afeto admiráveis. Não se deve buscar ordem e razão entre paixões tolas e impetuosas, pois aí só existe desordem e confusão. E isto eles me demonstraram com exemplos justos e adequados e por meio de numerosas razões, muito convincentes; direi aqui alguma coisa a respeito para facilitar julgar o resto. Assim, segundo esses padres, o riso dissoluto e inconveniente provém, seja da incontinência, seja da intemperança, seja da vanglória, principalmente quando nos glorificamos sem vergonha nem pudor; o excesso de sono é produzido às vezes pelo excesso de boa mesa, outras vezes pelos jejuns executados sob um espírito de orgulho, aqui pela preguiça, ali pelas necessidades reais da natureza; as palavras inúteis procedem frequentemente tanto da intemperança como da vanglória; somos escravos da preguiça ou porque nos tratamos com mimos ou porque nos falta o temor a Deus; as blasfêmias são normalmente filhas do orgulho; mas elas podem ser também ocasionadas por nossa tendência a crer que nossos irmãos são culpa dos delas; outras vezes seu autor é um demônio, por causa da inveja que sente por nós. O endurecimento do coração nasce, seja da boa mesa, seja de uma certa indiferença pelas coisas santas, e pelo afeto que temos pelas criaturas; essa afeição mundana e sensual pode ainda se tornar o espírito de impureza, de avareza, de intemperança, de vanglória e de muitas outras coisas. A cólera e a malícia extraem comumente sua origem do inchaço do coração e da estima que temos por nós mesmos; a hipocrisia é fruto da complacência que temos por nós, da confiança que depositamos em nossa conduta, que nos incita a pensar e crer que somos capazes de nos bastar, de que podemos ser os mestres e os árbitros de nossas ações. As virtudes opostas a esses vícios nascem também das causas contrárias. Mas como me falta o tempo, não poderei tratar de cada uma em particular, e por isso me contentarei em dizer que é a humildade que expulsa todos os vícios de nosso coração, e os mata, e que aqueles que tem a felicidade de possuir essa virtude triunfam sobre todos os vícios e todas as paixões. A volúpia e a maldade são as mães fecundas de toda espécie de males; e os que são escravos desses dois vícios temíveis, jamais verão o Senhor. Derrubar a primeira sem abater a segunda dessas duas paixões, é o mesmo que não fazer nada.

34. Aprendamos a temer ao Senhor pelo temor que nos inspiram a autoridade e o poder dos príncipes e dos magistrados, e a presença de animais ferozes; aprendamos a amá-lo e a desejar possuí-lo a partir do exemplo dos mundanos: vejam como eles se atiram ao amor pelas criaturas e pelas belezas que veem nelas. Saibamos aqui que nada nos proíbe de aproveitar os exemplos das paixões que tentam estabelecer os vícios nos corações, para nos formar nas virtudes que lhes são contrárias.

35. O século em que vivemos é terrivelmente corrompido. Por toda parte não vemos senão orgulho e dissimulação. Às vezes observamos a prática de algumas virtudes contrárias; mas são elas reais e verdadeiras? Onde vemos hoje aqueles dons e aqueles favores extraordinários com os quais um dia Deus quis recompensar o fervor e a sinceridade da devoção? E no entanto o mundo nunca teve tanta necessidade dessas graças. Mas não nos espantemos com essa ausência e essa privação: pois não são exatamente os trabalhos exteriores que nos fazem encontrar e possuir a Deus, mas sim a simplicidade e a humildade do coração, conforme estas palavras de são Paulo: “O poder do Senhor se faz notar sobretudo na fraqueza do homem[51]”; e é certo que Deus jamais rejeitará um coração humilde e dócil.

36. Quando virmos algum de nossos irmãos que servem a Deus cair nalguma enfermidade corporal, não sejamos maus a ponto de crer que este incidente desagradável lhe tenha acontecido por um julgamento secreto de Deus, que com isso está punido qualquer falta que ele tenha cometido; na simplicidade de nosso coração, e sem maus pensamentos, cuidemos dele: pois cada irmão é um membro do corpo ao qual pertencemos todos; são os companheiros de armas com os quais guerreamos o inimigo comum.

37. Algumas vezes Deus envia enfermidades para purificar nossa alma das manchas dos pecados cometidos, e outras vezes para expulsar a vaidade de nosso espírito.

38. Também não é raro que Deus, cuja bondade e misericórdia são infinitas, ao nos ver negligentes e preguiçosos nos santos exercícios da piedade, se sirva da doença como de uma salutar e fácil mortificação para humilhar e enfraquecer nosso corpo rebelde, para purificar nosso espírito dos maus pensamentos e para libertar nosso coração das paixões desregradas.

39. Mas observemos aqui que todas as coisas que nos acontecem, sejam visíveis ou invisíveis, são recebidas por nós de três maneiras diferentes: uma, com um espírito de doçura e humildade; outra, com sentimentos de cólera e repugnância; enfim, com uma fria indiferença. É o que eu mesmo presenciei em três irmãos que haviam sido corrigidos e punidos ao mesmo tempo. O primeiro não sofreu a correção e não aceitou a penitência senão com cólera e indignação; o segundo suportou uma e outra sem perturbação nem tristeza; e o terceiro, recebeu a ambas com alegria e contentamento.

40. Eu vi cultivadores semear os mesmos grãos com propósitos diferentes: pois alguns se propunham a pagar seus credores com a colheita, enquanto outros pretendiam aumentar suas riquezas; estes tinham intenção de presentear seus senhores, aqueles queriam merecer de parte dos passantes elogios sobre a excelente maneira de cultivar seus campos; outros só desejavam ter uma colheita abundante para contentar a inveja que lhes roía o coração e vexar a seus rivais; outros queiram uma boa colheita para afastar a vergonha de serem vistos como negligentes e preguiçosos. Mas eis aqui a semente de que se serviam estes trabalhadores: trata-se dos jejuns, das vigílias, das esmolas, dos serviços prestados aos irmãos, da obediência e outras coisas semelhantes. Quanto aos objetivos e às intenções a que se propunham, sugiro que sejam examinados e observados cuidadosa e seriamente.

41. Seja diante do Senhor e com as mesmas precauções que tomam os que vão buscar água numa fonte; pois pode acontecer de que, junto com a água venham também rãs. Da mesma forma nós, querendo praticar a virtude, misturamos a ela os defeitos: por exemplo, a intemperança se mistura facilmente à hospitalidade, o amor sensual à caridade, a dissimulação à discrição, a malícia à prudência; a perfídia, a preguiça, a lentidão, a contradição, a má vontade em viver a seu modo e segundo seus gostos, a desobediência, todas essas se misturam com a mansidão; a arrogância, a satisfação do amor próprio, com o silêncio; a vaidade com a alegria espiritual, a preguiça com a esperança, o julgamento temerário com a caridade; o torpor, a paralisia, com a solidão e o retiro; o azedume com a castidade; o excesso de confiança em si mesmo com a humildade; quanto à vanglória, podemos vê-la como um pó embelezador, uma maquilagem, um colírio, ou melhor, como um veneno sutil que busca se insinuar em todas as virtudes.

42. Não fiquemos aflitos se Deus não atender às nossas preces e súplicas tão depressa como gostaríamos; pois ele próprio deseja ardentemente que todos os homens sejam logo libertos das paixões que os perturbam e tiranizam.

43. Nem todos os que pedem a Deus alguma graça são escutados, creio eu, por alguma das seguintes razões: porque, ou não solicitam esse favor no tempo conveniente, ou não o pedem com a disposição requerida, ou estão possuídos de algum sentimento de vanglória ou de orgulho; enfim, porque, se fossem atendidos, cairiam na indiferença ou na negligência.

44. Ninguém, penso eu, duvida que os demônios e as paixões se retirem de nossa alma, seja por um tempo, seja para sempre; mas pouquíssimas pessoas abem porque uns e outros nos abandonam dessa maneira.

45. Pode acontecer de as paixões deixarem não apenas as pessoas que têm fé, mas as que não têm; existe apenas uma exceção, e que permanece nas pessoas, para ocupar, sozinha, o lugar de todos as outras: esta paixão tão funesta e terrível a ponto de ter expulsado os anjos do céu, é o orgulho.

46. O fogo celeste e divino da caridade consome inteiramente a matéria de nossos pecados. Então os demônios, resignados, se retiram de nós e já não nos tentam por meio das paixões.

47. Normalmente os demônios se afastam apenas para nos enganar com a falsa segurança inspirada por essa calma e essa segurança, para depois se apossar de nosso coração mais facilmente e de um só golpe, envenenando-o com tantos vícios que ele quase cai nas suas próprias armadilhas como se guerreasse contra si mesmo.

48. Conheço outro artifício dos demônios, quando eles cessam de nos fatigar e nos atacar quando chegamos a nos habituar com os vícios, pois então eles já não precisam nos tentar, pois se o fizessem poderiam despertar nossa consciência que está adormecida por eles. Podemos dizer que a imagem dos pecadores que os demônios acostumaram ao vício é a das crianças em idade de mamar: quando a mãe lhes retira o seio, elas começam a chupar os dedos.

49. Saibamos que são a simplicidade, a inocência e a integridade da vida que são, mais do que tudo, capazes de libertar nossa alma das perturbações e da agitação das paixões, e de lhe trazer uma paz deliciosa, segundo as palavras de Davi: “É com justiça que eu espero minha salvação no Senhor, pois é ele quem salva os que têm um coração reto[52]”, e assim ele nos livra de nossos males, de maneira que já quase não sentimos a nós mesmos e nos tornamos semelhantes às criancinhas a quem tiramos a roupa sem que elas tenham o sentimento de sua nudez.

50. Os vícios e a maldade não estão originalmente na natureza do homem, pois Deus não é o autor das paixões. Mas o homem possui dentro de si muitas boas inclinações naturais que Deus lhe concedeu: tais são, por exemplo, a ternura e a compaixão pelos infelizes; pois não vemos nós mesmo os pagãos sentirem comiseração pelos que sofrem? Tais são ainda a afeição e a benevolência: os próprios animais dão testemunho da tristeza, quando são separados uns dos outros; a fé, porque sentimos em nós uma forte inclinação para crermos no que nos é contado; a esperança, porque não emprestamos nem pedimos emprestado, nem fazemos viagens por terra ou mar, sem a esperança de algum benefício ou proveito; e se o amor que sentimos pelos irmãos está fundamentado na natureza, e se a caridade é o que liga e mostra a perfeição da lei, segue-se que essa virtude, assim como as demais, não está fora de nossa natureza, e que quem alega fraqueza para não praticar o bem deve se cobrir de vergonha e confusão.

51. Quanto à castidade, à mansidão, à humildade, à oração, às vigílias, aos jejuns e à compunção, diremos que não são virtudes que podem ser praticadas apenas com as forças da natureza. Ora, algumas dessas virtudes nos foram ensinadas pelos homens; outras, pelos anjos; e outras, pelo Verbo eterno de Deus, que com sua graça nos facilita praticá-las.

52. Nós nos achamos numa condição em que é indispensável sofrer alguns males. A prudência manda que devemos, sempre que possível, escolher o menor e o mais leve. Assim, por exemplo, quando nos dedicamos à oração, se chegarem alguns irmãos, devemos interromper nosso santo exercício, ou, sem os saudar nem dirigir-lhes a palavra, deixa-los partir aflitos por não terem podido conversar conosco por um momento? Eu respondo aqui que a caridade é mais excelente do que a oração; pois esta é uma virtude específica, enquanto a primeira encerra todas as virtudes.

53. Na minha juventude aconteceu-me estar numa cidade, bastante grande, e não tendo ido à mesa cedo, me senti furiosamente tentado pela intemperança e a vanglória; mas como eu temi os efeitos desonrosos da gula, preferi sucumbir à tentação da vaidade; pois eu sabia que nos jovens o demônio da vanglória cede facilmente o passo ao demônio da intemperança, o que não é de espantar. Mas se para as pessoas do mundo a avareza consiste na fonte funesta e principal de toda espécie de males, o mesmo podemos dizer da intemperança em relação aos monges.

54. Não podemos deixar de observar que Deus permite algumas vezes que pessoas espirituais permaneçam sujeitas a pequenos defeitos, que não chegam a ser capazes de manchá-las nem de ofender o Senhor, a fim de que, forçadas a fazer a si mesmas reprimendas contínuas, elas possam adquirir um grande tesouro de humildade sólida que se torna impossível de ser roubada pelos inimigos.

55. Os que não viveram sob o jugo salutar da obediência não são capazes de alcançar uma humildade sincera e verdadeira. Podemos avaliar o quanto, por aqueles que aprendem alguma arte ou algum ofício: se só tiverem a si próprios como mestres, farão algo além de seguir os jogos de sua imaginação? Conhecerão eles as regras de sua arte?

56. Não é sem razão que nossos pais identificam a santidade da vida com a prática constante da humildade e da temperança, virtudes que, aos olhos dos homens, parecem ser bem ordinárias e bem comuns. Com efeito, a temperança nos priva dos prazeres dos sentidos, e a humildade nos conserva nesta privação e impede as volúpias carnais de fazer brotar em nós novos botões de vícios. É com a mesma finalidade que a penitência tem dois efeitos salutares: ela apaga nossos pecados e nos faz adquirir a humildade.

57. Em geral, os homens piedosos se sentem levados a dar a quem lhes pedem e lhes expõe suas necessidades; mas as pessoas quem possuem essa preciosa qualidade num grau mais perfeito não perguntam pelas necessidades de seus irmãos e, para fazer benemerência, não aguardam que se lhes peça. Não retomar nem exigir a restituição do que nos tomaram, é próprio dos homens que renunciaram a toda afeição pelos bens perecíveis.

58. Jamais deixemos de nos lembrar dos vícios e das virtudes, a fim de que possamos saber onde estamos em relação à piedade. Estamos no começo? Avançamos? Aperfeiçoamo-nos?

59. Os combates que nos fazem os demônios provêm de três causas diferentes: nosso amor aos prazeres, nosso orgulho e a inveja que sentem por nós. Felizes são os que são objeto da inveja dos demônios; mas são infelizes, e bastante, os que se entregam ao orgulho; e inúteis e vãos , os que são escravos dos sentidos e ligados aos prazeres da carne.

60. Existe um sentimento, ou antes um hábito, ao qual podemos chamar de força e paciência, por meio do qual não tememos nem recusamos nenhum trabalho ou pena: é este espírito de força, de generosidade e de paciência que inflamava de tal modo o coração dos mártires, que estes chegavam a desdenhar dos tormentos mais temíveis.

61. Devemos estabelecer uma grande diferença entre vigiar os pensamentos de nosso espírito e vigiar as afeições de nosso coração; pois assim como o oriente está distante do ocidente, está a vigilância sobre as afeições de nosso coração, em termos de dignidade e excelência, acima da vigilância que exercemos sobre os pensamentos de nosso espírito, ainda que um dê mais trabalho e penas do que o outro.

62. Servir-se da oração para combater os maus pensamentos, afastá-los com horror, desprezá-los e triunfar inteiramente, não são coisas indistintas entre si. Aquele que disse a Deus: “Venha em meu auxílio, meu Deus, apresse-se em me socorrer[53]”, e outras coisas semelhantes, nos dá um exemplo dessas três coisas; o mesmo, nos ensinou sobre a segunda, dizendo: “Eu responderei às injustas acusações dos que me carregam de reprovações[54]”, e também: “Você nos colocou em disputa com todos os nossos vizinhos[55]”; enfim, ele nos ensinou a terceira, quando proferiu estas palavras: “Eu coloquei uma guarda na minha boca; quando o pecador se levantou contra mim, eu me calei e mantive o silêncio[56]”. E ainda: “Os orgulhosos agiram com enorme injustiça a meu respeito, mas eu não me desviei de sua santa lei[57]”. Ora, quem possui a segunda dessas disposições, muitas vezes deve recorrer à oração, pois ainda não está suficientemente preparado nem forte para resistir aos demônios; quem se utiliza da prece sem querer incitar em si o horror aos maus pensamentos não poderá jamais os expulsar nem afastar de seu espírito; enfim, que possui a terceira, rejeita com desdém e desencoraja inteiramente os demônios.

63. Não podemos, falando naturalmente, captar nem limitar o que é simples e espiritual. Somente Deus, que criou a tudo, é capaz disso.

64. Como quem tem um excelente olfato sente facilmente o perfume de uma pessoa que se aproxima, ainda que esta o oculte, também uma alma pura sente facilmente, por um dom especial de Deus, o bom odor da virtude recebida. Eu vou mais longe ainda, e não temo dizer que algumas vezes ela o sente nos outros, sem que eles se apercebam disso, o mau odor dos vícios dos quais conseguiu se libertar com sucesso.

65. Se é verdade que nem todos poderão desfrutar da impassibilidade, que liberta de todas as paixões, é igualmente verdade que todos podem se reconciliar com Deus e obter a salvação eterna.

66. Evitem estimar e querer imitar certas pessoas que devem ser estranhas a vocês, ou seja, pessoas curiosas que pretendem temerariamente penetrar nos segredos da divina Providência, aprofundar as iluminações que Deus distribui para algumas almas privilegiadas e pronunciar para si próprias que Deus faz acepção de pessoas. Todo esse tipo de gente nos fazem ver realmente o quanto são os tristes filhos e infelizes escravos do orgulho.

67. A avareza, para se ocultar, se cobre às vezes com o manto da humildade; a vanglória, ao contrário, bem como a incontinência, fazem grandes esmolas. Quanto a nós, façamos todos os esforços para nos libertar dessas duas paixões detestáveis, e não cessemos de ter sentimentos de benevolência para com os pobres, e de fazer-lhes o bem.

68. Alguns já disseram que existem demônios inimigos de outros demônios, e que eles guerreiam uns contra os outros. Quanto a mim, tudo o que eu sei é que todos desejam a perda de nossas almas.

69. Nossos exercícios espirituais, sejam exteriores e visíveis ou interiores e invisíveis, são normalmente precedidos de uma boa resolução e de um bom propósito, de uma santa afeição e de um piedoso desejo; mas todas essas disposições felizes, nós as devemos à graça de Deus, que age em nós e conosco.

70. Sem um bom propósito, nós não faríamos boas obras; pois se, como nos ensina o Eclesiastes, “tudo o que se passa sob o céu deve ser feito em um tempo conveniente”, nós estamos essencialmente obrigados em nosso santo estado, que é uma república celeste, a considerar com a maior atenção quais são as coisas que convêm às circunstâncias nas quais nos encontramos, e de que maneira elas convêm; pois é certo que, para os que combatem na carreira da vida religiosa, existe um tempo em que se desfruta de uma grande tranquilidade de alma e no qual se está livre de toda perturbação e de toda agitação. Falo aqui aos que acabam de ingressar dessa santa carreira. Também é certo que existe um tempo de lágrimas e um tempo de aridez e de dureza do coração, um tempo para obedecer e um tempo para comandar, um tempo para jejuar e um tempo para comer, um tempo de guerra no qual nosso corpo é o inimigo a combater, e um tempo de paz em que triunfamos com sucesso sobre os ardores da concupiscência, um tempo de tempestade e um de serenidade, um tempo de tristeza e um de alegria, um para ensinar e um para aprender, um tempo em que o inchaço do coração mancha a consciência e um tempo em que a humildade a purifica; um tempo de combate e um tempo de repouso, um tempo de tranquilidade e um de trabalho, um tempo para orar longamente e com assiduidade e um tempo para exercer as funções de estado dou de seu emprego. É por isso que, longe de nos deixarmos arrastar por um ardor cheio de orgulho, não façamos cada coisa senão no tempo assinalado e conveniente. Evitemos buscar no inverno os frutos que só encontraremos no verão, e tentar colher quando se trata de semear; pois existe um tempo destinado a semear os grãos preciosos do trabalho, dos suores e das austeridades, e um outro tempo para recolher seus frutos inestimáveis e incompreensíveis.

71. Existem pessoas que, por uma disposição secreta e impenetrável da divina providência, recebem a recompensa do trabalho antes mesmo de iniciá-lo; outros, enquanto o fazem; outros, depois de havê-los terminado; outros ainda só a recebem após a morte. Devemos tentar entender aqui quais são as mais humildes dentre esses diferentes tipos de pessoas.

72. Lembraremos aqui que existe uma espécie de desespero que provém da multitude de pecados que cometemos, das censuras que nos sacodem a consciência e da tristeza cruel e insuportável que a visão de sua enormidade inspira à alma. Esse desespero acontece normalmente aos que são oprimidos pela quantidade impressionante de feridas que suas paixões lhes causaram, e que sucumbem sob o peso imenso de suas iniquidades. Observaremos também que existe outro tipo de desespero que nasce do orgulho e da tola estima que sentimos por nós mesmos. Esta nova espécie de desespero é típico das pessoas que, depois de haverem tombado em algumas faltas consideráveis, não querem reconhecer serem culpadas por elas. Mas se refletirmos um pouco, veremos que quem tem a infelicidade de se entregar ao primeiro tipo de desespero está exposto a cair em toda espécie de crimes, e que quem se entrega ao segundo tipo poderá ainda continuar a ser fiel exteriormente aos santos exercícios da vida religiosa, ainda que seus sentimentos sejam contrários à sua conduta. No entanto, estes dois tipos de pecadores podem encontrar a cura: o primeiro, corrigindo-se em colocando-se em fiel confiança; o segundo, praticando a humildade e deixando de fazer julgamentos temerários.

73. Existe uma coisa extraordinária e surpreendente, mas que não deveria espantar ninguém, que é escutar as pessoas que fazem os discursos mais edificantes e em seguida vê-las cair nas faltas mais temíveis. De fato, o orgulho nos céus desnaturou e pôs a perder os anjos.

74. Que em todas as suas ações e em todos os seus exercícios sua regra consista em examinar suas poses e suas operações corporais, bem como as que são puramente espirituais, e ver se estão em conformidade com a lei de Deus; e esta regra diz respeito tanto aos que estão submetidos ao jugo da obediência como os que não reconhecem superior. Assim, por exemplo, se desde o começo de nossa carreira religiosa nos dedicamos a algum exercícios, pouco ou muito importante, e se depois de nos havermos dedicado a eles, não nos tornamos mais humildes, devemos temer que esses exercícios não foram feitos de modo a agradar a Deus e segundo sua santa Vontade. Com efeito, sendo tão noviços nos caminhos da vida religiosa, será certamente a humildade que nos fará conhecer se nossas ações estão conformes a Deus; nos que estão bastante avançados na perfeição, são o repouso da alma e a libertação das paixões que lhes dão este saber; e nos que alcançaram essa perfeição, é a superabundância da luz celestial.

75. Algumas vezes as almas elevadas avaliam mal as coisas que de fato têm bem pouca importância; mas frequentemente os espíritos superficiais e inconsequentes veem como sendo de grande importância algo que não é nem bom nem perfeito de modo algum.

76. Quando o ar é puro, vemos brilhar os raios do sol; do mesmo modo uma alma que Deus purificou com sua graça vê brilhar nela mesma os raios da luz celeste.

77. Diremos aqui que cometer uma falta, levar uma vida ociosa, se entregar à negligência, sentir inclinações desregradas e contentá-las, são coisas distintas umas das outras. Que aquele que recebeu as luzes necessárias para encontrar esta diferença a procure com sinceridade.

78. Muitos elevam até o céu e veem como a felicidade da vida, a graça e o poder de fazer milagres e de ser grande perante os homens pelos favores e as graças extraordinárias e sobrenaturais; mas estes se enganam, eles ignoram que os dons do céu que menos nos expõem a quedas são na verdade os mais preciosos favores que podemos receber de Deus.

79. Um homem perfeitamente purificado de seus pecados conhece o estado e as disposições interiores de seu próximo, ao menos de uma maneira imperfeita. Progredindo, ele julga o estado de alma a partir do corpo.

80. Um fogo insignificante pode incendiar uma floresta inteira, e uma pequena falta é capaz de nos fazer perder todo o fruto de nossos trabalhos espirituais.

81. Existe um pequeno alívio que podemos conceder a carne rebelde e inimiga, que dá forças à alma sem excitar os ardores da concupiscência; mas existem também grandes fadigas que a fazem se revoltar contra o espírito. Deus permite que seja assim a fim de que, não depositando nossa confiança em nós mesmos, a depositemos somente em Deus, o qual, por meios ocultos, pode mortificar em nós os fogos mais ardentes da concupiscência.

82. Quando vemos pessoas que nos amam segundo Deus e por Deus, conservemos em relação a elas uma reserva conveniente e evitemos abusar de certas familiaridades; pois nada é tão capaz de prejudicar a amizade e transformar as afeições ternas em sentimentos de raiva e aversão, do que uma liberdade exagerada.

83. O olho de nossa alma é sutil e penetrante; pois, à exceção dos anjos, ele ultrapassa em luz e sutileza a todas as outras criaturas. É assim que vemos que mesmo as pessoas ainda agitadas por suas paixões – desde que ainda não tenham sido enterradas na lama de seus pecados – em virtude do grande afeto que sentem por seus irmãos, conhecem os pensamentos e os sentimentos que existem em suas almas.

84. Nada é mais oposto a um ser simples e espiritual do que a matéria e o corpo; quem ler estas palavras, compreenda-as.

85. As observações que as pessoas do mundo com seu espírito mundano e carnal fazem sobre o curso da divina Providência, não podem produzir neles, e entre os monges, são trevas espessas e funestas.

86. As pessoas pouco firmes e pouco constantes na prática da virtude não devem ignorar que é, pelo fato de Deus tomar um cuidado especial com sua salvação que ele permite que elas fiquem expostas a indisposições corporais, a perigos e acidentes lamentáveis; quanto aos perfeitos, devem ver nas calamidades sensíveis uma prova consoladora da presença do Espírito Santo e uma marca segura do aumento dos dons celestes em suas almas.

87. Devemos nos precaver contra o demônio que, quando estamos a ponto de dormir, procura encher nosso espírito com maus pensamentos. Ele espera que, com nossa negligência em expulsá-los e em nos armarmos com a oração, nos entreguemos ao sono junto com esses pensamentos, os quais nos causarão sonhos maus durante a noite.

88. Existe um espírito que podemos chamar de precursor, que se apresenta a nós em nosso despertar, a fim de nos tentar e corromper a pureza de nossa alma com os pensamentos infames que ele tenta nos inspirar. É por isso que devemos tomar o maior cuidado em consagrarmos a Deus as primícias de cada dia; pois o dia pertencerá àquele que dele tomar posse primeiro. Um grande servidor de Deus me disse um dia estas palavras memoráveis: “Eu prevejo e conheço o que serei durante o dia pelo estado em que me encontro quando ele começa”.

89. Existem muitos caminhos que levam as almas à piedade, mas também muitos que as podem conduzir à infelicidade eterna. Dentre as vias que levam à salvação, existem algumas que convêm a certas pessoas, mas não a outras, mesmo que a conduta de umas e outras seja agradável e Deus.

90. Em todas as tentações às quais estamos expostos, os demônios fazem todos os esforços para nos fazer dizer e cometer coisas inconvenientes. Se eles não conseguem obter o que desejam, eles tentam habilmente nos fazer dar graças a Deus pela vitória que obtivemos, com espírito e sentimento de orgulho.

91. Aqueles que sentem gosto pelas coisas celestes, seja por terem renunciado voluntariamente às coisas da terra, seja por terem sido libertos pela morte, sobem gloriosamente ao céu, enquanto que, ao contrário, os que não amam senão as coisas da terra, descem para o fundo após a morte. Não existe meio-termo.

92. Mas não é uma coisa surpreendente que a alma, que foi criada em nosso corpo e que nele recebeu sua natureza e sua existência, e não em si mesma, possa, não obstante existir fora de nosso corpo, quando a morte a separa dele?

93. As mães piedosas fazem nascer filhos piedosos, e foi o Senhor que criou suas mães. Ora. Seria absurdo aplicar esta regra em sentido contrário.

94. Quem não sente em si a coragem necessária, não deve ir à guerra; é o que Moisés, ou antes o Senhor, proibiu aos israelitas; pois devemos temer que a última perdição de uma alma seja ainda pior do que sua primeira queda.


Do discernimento judicioso

95. Assim como são os olhos que iluminam todos os membros de nosso corpo, podemos assegurar que é a discrição que é a luz de todas as virtudes que devemos praticar. É por isso que um cervo pressionado pela sede busca com mais ardor as águas refrescantes de uma fonte, e é por isso que as almas verdadeiramente religiosas não buscam conhecer nem compreender qual é a vontade do Senhor a seu respeito, e menos ainda discernir, não apenas as coisas que lhes seriam diretamente contrárias ou diretamente conformes, mas ainda aquelas que lhes seriam contrárias sob um aspecto e conformes segundo outro. Teríamos muito que dizer a respeito, mas a matéria não é fácil. Com efeito, seria preciso examinar aquilo que devemos fazer sem delongas e prontamente, segundo as palavras da Escritura: “Não esperem de um dia para outro, nem de um momento para outro[58]”, e aquilo que devemos fazer com vagar, sabedoria e reflexão, como nos advertiu Salomão: “Não devemos fazer a guerra senão depois de tomar todas as precauções necessárias e depois que tudo esteja pronto[59]”, e também são Paulo, dizendo-nos que tudo deve ser feito com decência e segundo a ordem[60]. Mas isto não serve para todos; não, não é a todos que é possível discernir de imediato e com clareza coisas cujo discernimento é bastante difícil; pois Davi, que estava cheio do Espírito de Deus, e que, com sua inspiração, nos legou tantas e tão belas coisas, não cessava de lhe pedir o dom precioso do discernimento em suas orações fervorosas: “Ensine-me, Senhor, a fazer sua santa vontade, pois você é o meu Deus”; e: “Conduza-me, meu Deus, pelo caminho de sua verdade, e instrua-me, porque você é meu Deus e meu Salvador[61]”; e também: “Faça-me conhecer a via pela qual devo marchar, porque elevei minha alma até você[62]”.

96. Todos os que são animados pelo desejo sincero de conhecer a vontade de Deus a seu respeito devem, em primeiro lugar, imolar sua própria vontade, renunciar generosamente a si próprios e orar com uma fé viva e ardente e uma grande simplicidade; em seguida, devem consultar com humildade e confiança seu superior e mesmo seus irmãos, receber suas opiniões e seus conselhos, como se viessem da boca do próprio Deus, mesmo que sejam contrários ao objetivo desejado, e mesmo que os autores desses conselhos e opiniões não sejam tão versados nas coisas espirituais; pois Deus é bastante justo e bom para jamais permitir que almas que, com um espírito de fé, humildade e simplicidade, sejam enganadas e se percam por se submeterem aos conselhos e à direção de outros. Com efeito, por desprovidas de luz e de prudência que possam ser as pessoas consultadas com tão boas disposições e com uma visão tão pura e santa, será Deus a falar por suas bocas. Confesso que, para seguir essa regra, é preciso estar cheio de humildade; mas depois de tudo, se Davi com sua harpa pode descobrir e conhecer as coisas que desejava, quanto mais uma alma dotada de razão e inteligência deve superar as cordas de um instrumento!

97. Existem muitos que se recusam a utilizar esse meio tão seguro e fácil, porque têm uma complacência secreta e uma confiança presunçosa em suas próprias luzes. E assim os vemos, para conhecer a vontade de Deus, empregar mil meios diferentes que não passam de puras invenções e de vãs opiniões.

98. Mas existem outros que, desejando sinceramente saber qual a vontade de Deus a seu respeito, renunciam a toda afeição por si próprios, voltam-se humildemente para o Senhor por meio de preces ardentes, lhe oferecem e sacrificam seus pensamentos e seus projetos, submetem a ele inteiramente seu espírito e suas luzes, se despojam perfeitamente da própria vontade, a qual tanto os poderia levar a tomar um partido, como os engajaria em outro; tendo assim perseverado por algum tempo nestas felizes disposições, eles conseguem enfim saber o que Deus lhes pede e exige, seja porque aprenderam pelo ministério de um espírito enviado de parte de Deus, seja por conhecerem por si mesmos, porque o próprio Deus apagou de seu espírito as razões que apoiariam ou destruiriam o partido que pensavam tomar.

99. Existem outros ainda que, a partir das perturbações e das agitações às quais estavam expostos, tomaram sua decisão e julgaram em seguida que ela seriam conforme a vontade de Deus, fundados sobre as palavras do Apóstolo: “Muitas vezes quisemos visitá-lo, mas Satanás nos impediu[63]”.

100. Outros, ao contrário, concluíram que o que haviam resolvido fazer seria agradável a Deus, por terem sido socorridos por sua graça para executá-lo; e, para se tranquilizar, eles pensaram nesta sentença: “Deus vem em auxílio daquele que se propõe a fazer o bem[64]”.

101. Assim, quem tem a felicidade de possuir a Deus em seu coração, recebe dele e sem demora as luzes abundantes que ele lhe comunica e a certeza de que o que faz está de acordo com a Sua vontade, seja por colocar sua determinação sobre coisas que era urgentes, seja sobre coisas que podiam ser adiadas.

102. Permanecer um longo tempo indeciso e irresoluto sobre o partido a tomar, normalmente não é um sinal de que nos falta o esclarecimento de Deus, mas sim de que somos escravos da vanglória.

103. Deus não é injusto, e os que batem com humildade à porta de suas misericórdias não são despedidos nem rejeitados.

104. É essência para nós considerar essas coisas diante de Deus a fim de nos propormos a fazer o que deve ser feito logo e fazê-lo, e o que pode ser adiado, adiá-lo; pois tudo o q1ue fazemos com uma intenção reta e pura, desde que seja algo bom em si mesmo, se o fizermos verdadeira e unicamente por Deus, e jamais com outra finalidade, mesmo que não seja de uma santidade perfeita, Deus o levará em conta, não tenhamos dúvida. Mas estaremos correndo riscos, se tivermos a imprudência de tentarmos fazer o que está acima de nossas forças;

105. Os julgamentos de Deus a nosso respeito são inexplicáveis e incompreensíveis; e muitas vezes, por uma disposição especial de sua Providência, ele não nos deixa conhecer aquilo que ele gostaria que fizéssemos, porque ele prevê com certeza que, se o soubéssemos, não o faríamos, e que este conhecimento seria para nós um funesto motivo para castigos mais severos.

106. Um coração reto na diversidade das coisas que deve fazer se preserva de toda curiosidade e caminha com segurança pelas vias da inocência.

107. Existem almas generosas que, pelo amor ardente com que queimam por Deus, vivem sempre na prática de uma humildade profunda e fazem esforços extraordinários para praticar coisas que estão acima de suas forças; mas também existem almas orgulhosas que fazem o mesmo. Reparem que o objetivo e a finalidade a que os demônios se propõem nessas circunstância, estes cruéis e impiedosos inimigos nossos, é o de nos engajar a fazer aquilo que não podemos, a fim de omitir o que podemos, de nos fazer perder o mérito e a recompensa e de nos expor à sua própria irrisão.

108. Já vi gente que, por causa da fraqueza de sua alma e de seu corpo, haviam tentado praticar austeridades acima de suas forças, com o fito de expiar as numerosas faltas que reprovavam em si; mas fui obrigado a lhes fazer compreender que Deus não julga tanto o valor de nossos trabalhos e de nossa penitência pela grandeza de nossas austeridades, mas pela medida e a sinceridade de nossa humildade.

109. Às vezes é a má educação recebida, às vezes a frequentação com pecadores, que nos precipita no abismo; mas o mais comum é ser apenas a perversidade do coração a nos fazer perder. Quem vive na solidão normalmente está ao abrigo das duas primeiras causas que fazem cair no pecado, e talvez até da terceira; mas quem é perverso em si mesmo e cujo coração é como um fruto estragado, será sempre e em toda parte vicioso; o próprio céu não conseguiria pô-lo a salvo.

110. Depois de havermos respondido uma ou duas vezes com doçura e caridade aos que nos atacam, abandonemo-los, sejam essas pessoas heréticas ou pagãs. Mas se percebermos que não existem neles más intenções, mas um desejo sincero de instrução, não deixemos de lhes dar as instruções santas e salutares que nos pedem; não entremos em disputa com eles e não os instruamos senão para fortalecermos a nós mesmos na fé e na piedade.

111. Aquele que, ao ouvir contar as belas ações que os Santos praticaram, e, vendo que elas ultrapassavam as forças da natureza, se deixa abater e desesperar, é um homem sem juízo nem razão; pois essas ações nos são úteis, e muito, sob dois aspectos: elas nos incitam a fazer todos os esforços para caminhar sobre as pegadas dessas almas santas e generosas, e nos conduzem por meio da humildade a conhecermos a nós mesmos e a sentirmos nossa miserável fraqueza.

112. Dentre os demônios, alguns são piores do que os outros; mas os piores de todos são os que nos encorajam não apenas a pecar, mas a buscarmos cúmplices para nossas prevaricações, a fim de atrairmos castigos ainda mais temíveis. Eu encontrei em minha vida um homem que, por seus exemplos e lições funestos havia arrastado outro para um mau hábito. Ora, o primeiro, que causou a ruína espiritual de seu irmão, caiu em si, deixou de pecar e começou uma severa penitência; mas esta penitência foi inútil e não frutificou, por causa dos pecados que continuou a cometer o outro, a quem ele havia seduzido.

113. A malícia do demônio varia quase até o infinito; ela é grande e muito difícil de conhecer, e poucas pessoas são capazes de penetrá-la; ouso dizer que ela jamais foi inteiramente conhecida. Com efeito, como poderíamos, vivendo em meio às delícias e nos entregando aos excessos da intemperança, observarmos ainda as necessárias vigílias, como se seguíssemos as leis da mais estrita sobriedade e da mais rigorosa abstinência? Donde nos vem que, enquanto jejuamos e praticamos as maiores austeridades, nos vemos oprimidos pelo sono? Como acontece que, enquanto guardamos o silêncio perfeito da solidão, sentimos nosso coração duro e insensível, e que, quando nos entregamos à dissipação na companhia de alguns irmãos, experimentamos sentimentos da mais ardente compunção? É possível compreender porque sonhos inoportunos nos fadigam à noite, mesmo quando sofremos fome e sede, ou que dormimos livres dessas sonhos, quando estamos plenamente saciados? Como é possível explicar que, em pleno seio da pobreza e da temperança, seja nosso espírito envolto em trevas e nosso coração ferido pela insensibilidade, enquanto que no meio da abundância e mesmo dos excessos do vício, nos sintamos espirituais e sejamos levados às lágrimas e à penitência? Ora, de todas essas coisas tão diferentes, se alguém recebeu do Senhor as luzes capazes de conhecer suas razões secretas, que partilhe conosco; pois eu confesso francamente minha ignorância. Mas devo dizer no entanto que essas vicissitudes e essas mudanças tão extraordinárias nem sempre provêm da malícia dos demônios, mas às vezes vêm de uma mistura e de uma aliança entre a carne e o sangue, que formam ao nosso redor um bem estar perigoso e enganador que, não sei de que maneira, atira nosso espírito nas mais espessas trevas.

114. Para saber através de quais princípios acontecem esses efeitos contrários, coisa que é dificílima de saber, não temos outro meio senão nos dirigirmos a Deus com preces sinceras e feitas com grande humildade; e se, depois de nossas humildes súplicas, ainda experimentarmos as mesmas perturbações e a mesma agitação, deixemos de atribuir essas coisas aos demônios e consideremo-las como simples efeitos da natureza. Mas não deixemos de observar que muitas vezes a divina Providência arranja as coisas de tal modo a que aquilo que nos parece contrário aos nossos interesses eternos seja na verdade favorável, e que o que Deus quer é abater nosso orgulho e nossa vaidade por todos os meios.

115. Os julgamentos de Deus são um abismo impenetrável. Quem tentou sondá-los só o fez por causa de uma curiosidade e orgulho insuportáveis.

116. Alguém um dia indagou a um homem experiente nos caminhos de Deus, por que o Senhor, que prevê com uma ciência infalível as faltas de certas pessoas, nem por isso deixa de favorecer essas pessoas com os dons mais raros e preciosos, e mesmo com a virtude de fazer milagres; “É, respondeu ele, para tornar os outros homens mais sábios e mais vigilantes, para nos fazer conhecer a liberdade de que desfruta nossa vontade, e para tornar indesculpáveis perante o Juízo final aqueles que tenham caído em pecado depois de haver recebido favores tão extraordinários”.

117. Por causa de suas imperfeições, a Lei se contentava em dizer aos homens: “Vigie e a si mesmo[65]”; mas nosso Senhor, o autor e consumador da Lei, não nos encarregou simplesmente de vigiar a nós mesmos, mas ainda de corrigir os irmãos, segundo estas palavras: “Se seu irmão cair em falta, vá e mostre o erro dele, etc.[66]”. Ora, se sua corrigenda for temperada com sinceridade e modéstia, se seu conselho for caridoso, mais do que uma amarga reprimenda, vocês estarão cumprindo com precisão a vontade do Senhor, ao realizar este dever de caridade, sobretudo diante dos que recebam positivamente suas advertências e admoestações; e se você não se considerar perfeito – coisa que de fato não é – para dar lições aos outros, faça ao menos o que a lei manda.

118. Se você vir seus melhores amigos se tornarem seus mais cruéis inimigos, não se espantem, mas lembrem-se de que os demônios se servem da perfídia e da inconstância desse tipo de gente, como instrumentos necessários para fazer guerra aos homens, em especial contra aqueles a quem eles odeiam de modo particular.

119. A coisa que deve tocá-los com extraordinária estupefação, é ver a Deus, que tudo pode, nos ajudar com sua graça, os anjos e os santos nos socorrerem com sua proteção na prática da virtude, enquanto que o demônio, que nada pode, ser o único a nos levar ao vício e nos arrastar com mais facilidade ao mal do que todo o resto ao bem; mas não posso e nem quero aprofundar este tema aqui.

120. Assim, se todas as criaturas estão dispostas e arranjadas conforme às suas naturezas, como é possível, perguntava-se o santo Gregório, que eu, que sou a imagem de Deus, não passe de uma mistura de barro, e seja formado, de certa forma, desta ignóbil matéria? Se é certo que um ser que não se encontre num estado que convenha à sua natureza faça todos os esforços para chegar a ela, quais cuidados devemos tomar e que violências nos fazer para nos elevarmos até Deus, que é o nosso centro, de modo a merecer nos sentarmos no trono eterno que sua Ternura nos preparou? Que ninguém use a dificuldade como desculpa para subir ao alto! Pois o caminho que nos leva até lá e a porta pela qual nos introduziremos são iguais para todo o mundo.

121. O exemplo e os relatos das ações admiráveis que nos pais fizeram para chegar até lá devem nos tocar e nos animar com generosa emulação.

122. A doutrina celeste com a qual alimentamos nossas almas é uma luz capaz de dissipar as trevas que poderiam nos tirar a vista do caminho que leva para lá, de nos conduzir de volta, quando temos a infelicidade de abandoná-lo, e de nos iluminar constantemente mesmo em meio à maior escuridão. Quem possui o dom do discernimento saberá encontrar a saúde necessária, e curar sua alma de todas as enfermidades.

123. Costumamos admirar as pequenas coisas nos outros, por duas razões principais: ou por uma grande ignorância, ou por uma profunda humildade que nos faz buscar conhecer e salientar suas belas ações.

124. Empreguemos todas as nossas forças, não digo para simplesmente nos defendermos de nossos inimigos espirituais, mas para atacá-los e lhes fazer uma guerra declarada; pois quem se contenta em resistir aos demônios tanto os fere como é por eles ferido; mas o que lhes faz uma guerra aberta os persegue até o final.

125. Não esqueçamos de que quanto mais ferimentos causamos aos demônios, mais vitórias obtemos sobre nossos maus pendores, e que, agindo sempre como se estivéssemos expostos à sua violência, usamos de um piedoso artifício que desconcerta nosso inimigo e nos torna invencíveis. Um dia um irmão temente a Deus havia sido tratado de forma ignominiosa; porém ele não sentiu nem perturbação nem emoção, e se ofereceu inteiro ao Senhor no secreto de seu coração. Não obstante, ele se pôs a chorar e a se lamentar os ultrajes recebidos, e com essa demonstração ocultou a perfeita tranquilidade que sentia no fundo de sua alma. Outro monge, que se considerava realmente indigno de ter um dos primeiros lugares na comunidade, fingia desejá-lo ardentemente. Ousarei ainda acrescentar outro, cuja castidade e pureza estavam acima de qualquer suspeita, e que entrou num lugar mal afamado, como se tivesse a intenção de ofender a Deus, e de lá retirou uma miserável criatura, a quem fez abraçar a vida religiosa. Um solitário, a quem outro solitário trouxera pela manhã deliciosas uvas, comeu com grande avidez, embora não sentisse gosto nem apetite; ele agiu assim para fazer crer aos demônios que era um homem empedernido. Outro, que perdera algumas tâmaras, passou o dia com cara de quem sofrera uma grande perda. Mas os que quiserem empregar esses meios para fazer a guerra ao demônio devem usar de uma grande prudência e circunspecção: pois correm o perigo de se tornarem seus próprios joguetes ao agir assim, e essas pessoas certamente devem se contar entre aquelas de quem o Apóstolo falou: “São considerados como sedutores e enganadores, mas são amigos sinceros da verdade[67]”.

126. Se alguém pensa e deseja oferecer a Deus um corpo casto e lhe apresentar um coração puro, que se dedique a praticar a paciência e a doçura, a temperança e a mortificação; pois sem essas virtudes, suas penas e trabalhos não lhe serão de grande valia.

127. O sol da inteligência derrama em nossa alma luz que são mais ou menos abundantes e mais ou menos vivas, a fim de que ela distinga os objetos espirituais, do mesmo modo como os olhos distinguem os objetos materiais. De fato, tanto ele nos ilumina por meio das lágrimas da penitência que ele derrama pelos olhos do corpo, quanto por meio dos gemidos interiores que ele faz pulsar em nosso coração; aqui é por meio de uma santa alegria que a palavra de Deus incita em nossa alma, ali é pelo repouso e a obediência que ele derrama sua luz benfazeja. Mas além dessas maneiras, existe uma outra em especial, secreta e inexplicável: é quando a alma, por um celeste arrebatamento, é colocada na presença de Cristo.

128. Devemos considerar as virtudes sob dois aspectos, seja como filhas, seja como mães. Todos os que são dotados de sabedoria e prudência fazem seus esforços para adquirir e conservar as virtudes-mãe, e é o próprio Deus, pela onipotência de seu Espírito, quem nos faz conhecer essas virtudes. Quanto às virtudes-filhas, não faltam mestres para no-las ensinar.

129. Devemos ainda cuidar para não substituir pelas doçuras do sono as delícias das quais nos privamos jejuando e nos mortificando. Agindo assim, estaremos sendo insensatos; a conduta oposta sim é prova de sabedoria.

130. Encontrei alguns servidores de Deus que, por certas razões, haviam relaxado um pouco sua mortificação às refeições; mas eles haviam tomado a generosa resolução de passar as noites em vigílias, sem sequer sentar-se para repousar. Por este meio eles se puniram tão bem de sua intemperança, que em seguida puderam se abster de todo excesso no comer, não apenas com facilidade mas ainda com uma alegria e contentamento deliciosos.

131. O demônio da avareza muitas vezes faz a guerra contra pessoas que nada possuem. Ele não cessa de persegui-las. Se ele não consegue fazê-las abandonar a pobreza por si mesmas, ele procura desviá-las, inspirando-lhes sentimentos de comiseração em favor dos indigentes. É por meio dessa tentação sutil e por esse pretexto especial que muitas pessoas que haviam se libertado com sucesso da afeição pelas coisas da terra às quais haviam renunciado, retornam miseravelmente aos negócios tumultuosos do século.

132. Se a visão de nossas faltas nos inspira o pensamento do desespero, apressemo-nos a considerar a ordem que um dia o Senhor deu Pedro, quando o ordenou perdoar setenta e sete vezes a quem o houvesse ofendido[68]. Ora, aquele que indicou este preceito a seu apóstolo, nos perdoou e nos perdoará certamente muitas vezes. Se, ao contrário, é a lembrança e o pensamento de nossas boas obras que incham nosso coração e nos sugerem sentimentos de orgulho, devemos opor a esta tentação as palavras: “Aquele que tiver cumprido com toda a lei espiritual, mas que faltar em um único ponto, como por exemplo se deixando levar pela vaidade, será punido como se houvesse faltado com toda a lei[69]”.

133. Pode acontecer de os demônios, tão maus como invejosos, não se retire de perto das almas santas senão para que, deixando estes de lhes fazer guerra, fiquem privados de obter sobre eles novas vitórias e de aumentar seus méritos e seus tesouros.

134. Ninguém duvida que as pessoas pacíficas mereçam ser chamadas de felizes; e no entanto já vi pessoas consideradas felizes, embora só levassem a discórdia e a desunião aos seus irmãos! Com efeito, havia dois homens que se amavam com um amor criminoso; um padre, dos mais virtuosos e mais esclarecidos, tentou separá-los, inspirando neles uma aversão mútua. Ele o conseguiu, dizendo a um que seu amigo havia falado mal dele, e fez o mesmo ao outro. Foi assim que a sabedoria e a prudência deste bom padre desmanchou a malícia e os triques do demônio, e que, por uma espécie de aversão que ele lhes sugeriu, acabou por expulsar o amor impuro do coração daqueles infelizes.

135. Existem pessoas que, para serem fiéis a determinados pontos da lei, parecem violar outros; assim é que já observei jovens que se amavam muito, mas com uma afeição pura e casta, os quais, para não causar escândalo entre os irmãos e não ferir sua consciência, interromperam as relações de sua santa amizade.

136. Assim como um casamento difere de um funeral, o orgulho é contrário ao desespero, embora esses dois vícios, pela malícia dos demônios, se achem algumas vezes reunidos numa mesma pessoa.

137. Existem espíritos impuros que, quando nos iniciamos na religião, se apressam em interpretar por si mesmos as santas Escrituras; eles o fazem sobretudo aos que são escravos da vanglória, e mais ainda, aos que, no mundo, estudavam as ciências humanas e viviam segundo a prudência do século. O objetivo desses demônios em se conduzir assim perante essas pessoas consiste em fazê-las cair em alguma heresia, ou fazê-las proferir blasfêmias. Nessas circunstâncias, a perturbação interior da alma, uma alegria indiscreta e imoderada do coração nos farão saber que essas interpretações provêm do demônio, e que elas não poderão nos explicar as palavras sagradas, mas obscurecê-las e profaná-las.

138. Existem criaturas a quem Deus determinou a ordem e o princípio; outras, a quem Deus igualmente ordenou e determinou o termo e o fim; mas a virtude possui um fim que é sem fim, segundo o salmista: “Eu vi as coisas mais perfeitas; mas seu mandamento, ó Deus, é de uma extensão infinita[70]”. Ora, se existem pessoas capazes de passar dos exercícios da vida ativa às virtudes e ao santo repouso da vida contemplativa, se existem corações nos quais age a caridade, e dos quais o Senhor, segundo o pensamento do rei dos profetas, guarda a entrada – que é o temor de seus julgamentos – e a saída – que é o amor por sua bondade – não fica evidente que esse amor de Deus é sem limites e sem fim, porque sempre é possível progredir mais e mais nele, seja neste mundo, seja no outro, onde nossas luzes receberão sem cessar novos esplendores? E ainda que aquilo que vou dizer possa parecer um paradoxo a muitos, não hesitarei, bem-aventurado pai, em extrair esta consequência de tudo o que eu disse, e direi então que os espírito celestes não permanecem no mesmo estado e que sua glória e seus conhecimentos aumentam sempre.

139. Não se espantem se os demônios nos inspiram primeiramente alguns bons pensamentos, e a seguir os combatem em nós de certa maneira: pois com isso eles pretendem nos fazer crer que conhecem perfeitamente o que existe de mais oculto em nosso coração.

140. Sejam prudentes e discretos nas censuras e nos julgamentos que fizerem sobre as pessoas que dão aos outros numerosas, belas e sublimes lições, mas que pouco as colocam em prática para si mesmas; pois pode acontecer que os benefícios que elas trazem aos seus irmãos substituam as boas obras que elas deixam de fazer. Com efeito, não é no mesmo grau nem da mesma maneira que iremos adquirir e possuir os bens da alma, pois existem os que são melhores nas palavras do que nas ações, enquanto que com outros acontece o contrário

141. Deus não é nem o autor nem o criador do mal; enganam-se os que pretendem que certas paixões sejam naturais da alma, ignorando que nós é que transformamos em paixões as qualidades constitutivas de nossa natureza. Por exemplo, a natureza nos fornece o esperma para nossa procriação; mas nós o pervertemos, utilizando-o para a luxúria. A natureza nos deu a cólera contra a serpente, mas nós nos servimos dela contra o nosso próximo. A natureza nos anima de zelo para a emulação da virtude, mas nós o usamos para o mal. Existe na alma, por causa da natureza, o desejo de glória, mas da glória do alto. É natural sermos arrogantes, mas contra o demônio. A alegria também é natural, mas por causa do Senhor e do bem que chega ao nosso próximo. A natureza também nos deu o ressentimento, mas contra os inimigos da alma. Nós recebemos o desejo de uma alimentação agradável, mas não pelos excessos da mesa.

142. Uma alma generosa excita os demônios contra si. Mas quando os combates aumentam, as coroas se multiplicam. Quem jamais foi ferido pelo inimigo, também jamais será coroado. Ao contrário, quem não se deixa abater apesar das quedas, será glorificado pelos anjos como um bom combatente.

143. Aquele que permaneceu por três dias no túmulo e ressuscitou para não mais morrer; pelo mesmo motivo, aquele que, em três ocasiões diferentes, venceu as tentações, já não estará exposto a morrer.

144. Se Deus, a fim de nos instruir e nos corrigir, permite que o Sol de Justiça, segundo a expressão de Davi, depois de se ter elevado em nossa alma, alcance o momento de se por e desaparecer, causando à alma com sua ausência trevas profundas e uma noite escura, e se, durante esta noite desoladora, os leões furiosos e outros animais ferozes, vale dizer: nossas paixões, se retornam sobre nós, ainda que os tivéssemos antes derrubado e vencido, e fazem novos esforços para nos roubar a bela esperança que tínhamos na vitória, e também para nos sujar fazendo-nos consentir em maus pensamentos e assim cometer ações criminosas; se, enfim, nossa humildade profunda faz com que mais uma vez nasça sobre nós o sol de luz, e que todas as bestas selvagens se reúnam para se retirar para seus covis, ou para os corações desses miseráveis que se deliciam com as volúpias sensuais, para não mais nos inquietarem, então os demônios são obrigados a confessar que, para sua vergonha, o Senhor fez grandes coisas em nosso favor[71], e que ele nos deu uma prova sensível de sua bondade e de sua benevolência; quanto a nós, podemos lhes responder: “Certamente o Senhor fez grandes coisas, e estamos inundados de alegria[72]”. Quanto a vocês, que sofreram essa terrível provação da parte dos demônios, poderão dizer: “Eis que o Senhor subirá numa nuvem rápida, ou seja, sobre suas almas acima de todas as afeições terrestres, e entrará no Egito, vale dizer no coração que antes se achava repleto de trevas espessas, cumulado com os ventos impetuosos das paixões, e todos os ídolos do Egito tombaram diante de sua Face, ou seja, todos os maus pensamentos foram dissipados[73]”.

145. Se Cristo não hesitou em fugir da presença de Herodes, não foi para nos ensinar que os temerários e os imprudentes não devem se atirar no meio dos perigos? Com efeito, ao se expor temerariamente, eles se tornam indignos de que o Senhor vele por eles para impedir que seus pés sejam embaraçados pelos esforços de seus inimigos, e mereçam que aquele que está encarregado de cuidar deles cochile e adormeça[74].

146. O orgulho se mistura à magnanimidade, mais ou menos como a trepadeira, que se parece com a hera, se entrelaça no cipreste. Vigiemo-nos com grande cuidado, e não negligenciemos nada para não deixar entrar em nosso espírito pensamento algum, por mais inocente que nos pareça, e que seja capaz de nos fazer crer que possuímos a menor virtude, e que tenhamos feito sequer uma boa obra de qualquer valor. Quando sentirmos essa tentação, examinemos séria e atentamente as propriedades e as marcas do bem e da boa obra que acreditamos ter feito: este exame não deixará, sem dúvida, de nos convencer que somos inteiramente desprovidos de todo bem e de toda virtude. Procurem exatamente e descubram quais são as paixões que mais tiranizam seus corações; pois esta descoberta os fará conhecer um grande número de outras que vocês ignoram.

147. Nós os ignoramos precisamente porque estamos debaixo de seu funesto domínio, porque eles já nos reduziram a uma deplorável fraqueza e porque já lançaram em nosso coração raízes muito profundas.

148. Nas coisas que ultrapassam absolutamente nossas forças Deus se contenta com a boa vontade com a qual as realizamos; mas o mesmo não acontece com aquelas que nos são possíveis: sua bondade exige imperiosamente que as façamos. Verdadeiramente grande diante de Deus é que faz todo o bem que pode; mas é ainda maior aos seus olhos quem, com sentimentos de uma humildade sincera, se esforça por fazer mais do que pode.

149. Mas ainda aqui devemos desconfiar dos demônios, pois muitas vezes eles nos desviam das coisas fáceis que somos obrigados a fazer, para nos levar a tentar coisa maiores e mais difíceis.

150. Vi na santa Escritura que Deus louvou o santo patriarca José, não por ter ele preservado seu coração de toda afeição desregrada, mas por ter fugido da oportunidade de pecar. Ora, cabe a nós ver em quais circunstância e quanto fé possuímos para que mereçamos a recompensa reservada àqueles que fogem da ocasião do pecado. Existe uma grande diferença entre evitar, mesmo a sombra do pecado, e correr para junto do Sol de Justiça.

151. Quem vive no meio das trevas de suas paixões, está terrivelmente exposto a tropeçar. E estes tropeços e quedas que elas lhe proporcionam acabarão por lhe trazer a morte. Normalmente é bebendo muita água que as pessoas que tomaram vinho em excesso recobram o uso da razão que haviam perdido por causa da bebida; e é por meio das lágrimas sinceras da penitência que aqueles a quem os vapores envenenados das paixões fizeram perder as luzes preciosas da graça, podem recuperá-las e sair desses estado deplorável.

152. Se deixar levar às faltas contra a continência, se atirar à dissipação e se deliciar nas trevas são três coisas muito diferentes entre si. A abstinência, a mortificação e os jejuns podem nos purificar dos pecados que cometemos contra a castidade; a solidão e o retiro são capazes de nos curar da dissipação; uma estrita obediência e uma humilde submissão são próprias para nos fazer sentir aversão às trevas e para nos tirar delas; mas acima de tudo, será a graça daquele que se tornou obediente por nossa causa, que poderá nos libertar de todos esses males.

153. Podemos ainda aqui nos servir do exemplo de dois tipos de operários que trabalham para limpar e preparar os tecidos necessários para fazer roupas, para compreendermos que existem duas maneiras das quais devem se servir os que desejam ardentemente se preparar para merecer e receber os dons celestes. É por isso que chamaremos os mosteiros de prensas, porque é nessas casas que as almas são de certo modo prensadas e purificadas de suas manchas, se desembaraçam da ferrugem das paixões e abandonam suas deformações; chamaremos de lugares onde são tingidas as lãs lavadas e purificadas a solidão dos anacoretas e as celas dos religiosos, porque é lá que as pessoas que foram lavadas das nódoas que a incontinência, a lembrança das injúrias e os movimentos de cólera haviam imprimido em suas almas, levam à perfeição última sua santificação.

154. Existem os que dizem que as recaídas no pecado costumam acontecer porque não fizemos uma penitência adequada dos pecados, proporcional à grandeza e ao número de faltas cometidas. Mas poderemos afirmar que fizeram uma penitência verdadeira, todos os que não tiveram mais recaídas?

155. Ouso dizer aqui: as pessoas que recaíram no pecado, foi porque, de um lado, esqueceram cedo demais das faltas cometidas; de outro, porque sua preguiça e negligência as levaram a crer que Deus é demasiado bom e misericordioso; enfim, é porque elas desesperaram de vencer suas paixões e de resistir aos seus maus pendores; e não sei se não me condenarão por acrescentar que alguns que recaem no pecado o fazem porque não conseguem mais vencer seus inimigos, porque estão submetidos ao jugo de sua tirania e se veem acorrentados por ligações com os maus hábitos que contraíram.

156. Podemos examinar aqui o porquê de nossa alma, que é um puro espírito, não ser capaz de ver os espíritos que possuem a mesma natureza que ela, nem conhecer de que maneira eles recebem as impressões dos objetos. Mas não podemos imaginar que ela não vê os outros espíritos por causa de sua união com o corpo, que lhe serve de véu? De resto, o único que conhece este mistério é Aquele que criou a alma e o corpo e que uniu um ao outro.

157. Um homem dos mais esclarecidos me fez um dia esta questão: “Diga-me, pois desejo ardentemente aprender, quais são os demônios que, fazendo-nos cair em pecado, abatem a coragem das pessoas seduzidas por eles; e quais são os demônios que, depois de levar a cometer faltas, inflam o coração dos que corromperam”. Mas como ele me viu embaraçado com essa questão difícil de responder, e que de resto eu lhe confessei sob juramento que não seria capaz de lhe responder, ele próprio respondeu ao que perguntara, e me disse com bondade: “Vou lhe dar alguns exemplos que o farão conhecer alguns desses espíritos malignos, e que reunidos às suas próprias luzes servirão para fazê-lo discernir os demais. Os demônios que levam à luxúria, à cólera, à intemperança, à preguiça e ao desânimo não costumam levar orgulho às pessoas que se entregam a esses vícios desonrosos; mas os demônios que conduzem à avareza, à dominação, às honrarias, à loquacidade, costumam acrescentar pecado sobre pecado, enchendo o coração de orgulho e de vaidade: é por essa razão que o demônio que nos incita a fazer julgamentos temerários se reúne a esses últimos”.

158. Um monge que visita estrangeiros ou que os recebe em sua cela, e que, depois de estar entretido por horas inteiras ou talvez por todo o dia com eles, sente tristeza porque deve se separar, ao invés de experimentar um sentimento interior de alegria por se ter livrado de uma companhia que o impedia de cumprir seus deveres, demonstra ser um triste joguete do demônio da vaidade ou do demônio da incontinência.

159. Devemos antes que todas as coisas prestar atenção de que lado vem o vento da tentação, a fim de não inflar as velas do barco espiritual de nossa alma de um modo prejudicial e contrário.

160. Não há dúvida de que a caridade deve nos levar a buscar algum consolo e suavidade aos anciãos verdadeiros que passaram longos anos nos exercícios da vida religiosa e que desgastaram seus corpos com jejuns e austeridades; mas essa mesma caridade deve nos engajar fortemente a conduzir à prática da continência por todos os meios possíveis, e acima de tudo por meio do pensamento dos juízos de Deus, da eternidade e dos suplícios do infernos, aos jovens que, por causa dos inúmeros pecados de sua jovem vida, têm a infelicidade de tanto maltratar suas pobres almas.

161. É impossível, conforme já dissemos, que logo depois de nossa conversão e de nossa entrada na religião nos vejamos perfeitamente liberados dos movimentos da intemperança e dos sentimentos de vanglória. Evitemos querer combater a vaidade com o luxo e as delícias; pois a própria vitória que as pessoas recém convertidas obtêm sobre a gula lhes inspira sentimentos de vanglória. Antes sirvamo-nos da abstinência para combater e vencer a vaidade; pois chegará a hora, para os que têm boa vontade, em que o Senhor nos concederá enfim a graça de submeter essa funesta paixão.

162. Mas observemos aqui que não são as mesmas paixões que fazem a guerra aos jovens e aos velhos que acabam de se converter e se consagrar ao Senhor na religião. Com efeito, são muitas vezes paixões contrárias que atacam a uns e outros. É por isso que chamamos feliz e duplamente feliz a santa humildade por meio da qual os velhos e os jovens encontram sua salvação e a vitória sobre suas tentações, e que eles podem facilmente encontrar e praticar, tanto uns como outros.

163. Não se perturbem com o que vou dizer: encontramos dificilmente e raramente almas direitas e puras que sejma isentas de toda malícia, de toda dissimulação e de toda hipocrisia, que tenham verdadeiro horror pela sociedade e pelas conversações mundanas, que sigam com constância e estrita fidelidade as opiniões e conselhos de um bom diretor, que mereçam passar da paz e tranquilidade da vida solitária e religiosa – que é um porto – à felicidade celeste, e que possam se preservar das sujeiras, das agitações e dos escândalos que se encontram em toda parte, inclusive nas comunidades religiosas.

164. Deus, para converter os homens voluptuosos, serve-se normalmente de outros homens: ele emprega o ministério dos anjos para a conversão das pessoas cheias de artifícios e malícia; mas somente ele pode operar a conversão dos orgulhosos.

165. Em favor das pessoas que se aproximam retiradamente de vocês, empreguem essa espécie de caridade que consiste em deixa-las agir; permitam que façam o que quiserem, e durante esse tempo mostrem-lhes sempre a benevolência e um rosto simpático e jovial.

166. Não obstante, é preciso examinar e conhecer de que maneira vocês devem usar dessa indulgência, até quanto tempo e em que circunstâncias devem e podem utilizá-la; enfim, saber e poder contar que a penitência feita desta maneira, que não foi estabelecida senão para destruir e eliminar o pecado, não será capaz de destruir também as virtudes e a disciplina religiosas.

167. Precisamos de um grande discernimento e de uma rara prudência para distinguir o bem e para sabermos quando podemos cessar ou continuar os diferentes combates que sustentamos contra a matéria e o cadinho do pecado; pois pode acontecer que, devido à nossa miserável fraqueza, nos seja necessário evitar o combate, empreendendo uma sábia fuga, a fim de evitar o encontro com os inimigos para não estarmos expostos a sermos vencidos e perecer miseravelmente.

168. É preciso ter para com essas ocasiões críticas um cuidado e uma atenção particulares; pois às vezes a amargura faz o fel parecer suave: examinemos seriamente quais são os demônios que nos inflam o orgulho, que nos abatem e nos desencorajam, que nos endurecem e nos tornam insensíveis, que nos consolam e acariciam, que nos precipitam nas trevas e que depois fingem nos iluminar, que nos tornam estúpidos e bestiais, espiritualmente iludidos, que nos atiram num humor sombrio e triste e que nos restabelecem no contentamento e na alegria.

169. Se, no início de nossa retirada e de nossa carreira na vida religiosa, nos sentimos mais agitados e mais atormentados por nossas paixões, do que quando estávamos em pleno século, não nos perturbemos e não fiquemos espantados; pois é necessária uma grande comoção nos humores que nos ocasionaram as enfermidades para podermos chegar a uma cura perfeita. De resto, quando estávamos no mundo, as paixões semelhantes a animais selvagens buscavam a obscuridade, a fim de que, não as vendo, não nos inspirasse horror.

170. Os demônios podem provocar uma falta, uma fraqueza nas pessoas que não estavam afastadas da perfeição; estas devem relevar corajosamente e com grande vantagem por meio da paciência, e, pela prática das boas obras, reparar ao cêntuplo a perda.

171. Vemos algumas vezes que os ventos fazem apenas ondular o mar, e que outras vezes eles o agitam até em seus abismos; ora, observamos os mesmos efeitos nas paixões em relação a nós mesmos: pois existem aqueles que ficam expostos ao seu furor, e que às vezes são perturbados e agitados até o fundo de sua alma; e há os que, por uma vitória obtida sobre elas e pelo progresso feito na virtude, geralmente não se perturbam mais do que na superfície de sua alma. É por isso que estes últimos, conservando seu coração puro e inocente, logo entram na paz e na calma de uma boa consciência.

172. Somente aos que alcançaram a perfeição é dado conhecer e discernir sempre quais são os pensamentos que vêm de sua própria consciência, quais os que provêm de Deus e quais provêm dos demônios; pois esses espíritos malignos e traiçoeiros nem sempre nos inspiram pensamentos contrários à piedade. É por isso que o discernimento que devemos ter a respeito dos pensamentos que são obra sua não é fácil obter.

173. Concluamos dizendo que, assim como nosso corpo é iluminado pelos olhos, também nossa alma é iluminada pelos olhos sutis e penetrantes da discrição.


Breve recapitulação de tudo o que precede.

1. Uma fé firme nos conduz eficazmente a renunciar ao mundo, mas a falta de fé ocasiona o contrário em nós.

2. A esperança inquebrantável é a porta pela qual expulsamos de nosso coração todas as afeições pelas coisas da terra; mas a ausência desta virtude opera o efeito oposto.

3. O amor a Deus nos faz abandonar generosamente o século, mas a indiferença ao Senhor nos retém nele.

4. A obediência é produzida pelos julgamentos que pronunciamos contra nós mesmos e pelo desejo de recuperar a saúde de nossa alma.

5. A conservação desta preciosa saúde é obtida por meio de uma severa abstinência. É o pensamento da morte, a lembrança do fel e do vinagre que foram apresentados ao Senhor no Calvário, que engendram em nós a santa e salutar abstinência.

6. A solidão e o repouso dão e conservam a temperança e a castidade. O jejum extingue os fogos da concupiscência. A contrição e a compunção são inimigas irreconciliáveis dos maus pensamentos.

7. A fé, assim como a fuga do mundo, causa a morte da avareza. A comiseração e a caridade são capazes de nos fazer expor nossa própria vida para aliviar nossos irmãos.

8. A preguiça encontra seu túmulo no exercício contínuo e fervoroso da prece. A lembrança dos julgamentos de Deus enchem o coração de fervor e devoção.

9. O amor às humilhações extermina a cólera.

10. A salmodia, a bondade do coração e o amor à pobreza enchem a alma de uma alegria totalmente celeste.

11. A insensibilidade em relação às coisas sensíveis e corporais nos faz sentir e saborear as coisas espirituais.

12. O silêncio e o retiro são os carrascos felizes da vanglória; e, se você estiver numa comunidade religiosa, será o amor ao desprezo.

13. O rebaixamento e o aviltamento exteriores podem nos curar do orgulho, exteriormente; mas somente Deus, que existe desde antes dos séculos, pode nos curar interiormente.

14. O cervo, diz-se, despreza o veneno de todos os animais peçonhentos, e a humildade consome e faz desaparecer o veneno de todos os maus pensamentos.

15. As coisas criadas e sensíveis que vemos servem para conhecermos as coisas espirituais que não vemos.

16. Como é impossível à serpente se desfazer de sua pele velha se não passar por alguma pequena abertura bem estreita; da mesma forma nos é impossível corrigir nossos maus hábitos, renovar a juventude de nossa alma, desembaraçarmo-nos da túnica do homem velho, se não passarmos pelo caminho estreito e difícil do jejum, do despreza e da humilhação.

17. Assim como os pássaros cheios de carne e de gordura não podem se elevar muito nos ares, também não o pode aquele que nutre e agrada à sua carne.

18. Assim como a lama ressecada não pode mais servir aos porcos para se espojar, também nossa carne seca e ressequida pelos jejuns e as austeridades já não é própria para servir de retiro e de repasto aos demônios.

19. Assim como muita lenha verde afoga as chamas e produz muita fumaça, também uma tristeza levada ao excesso enche a alma, por assim dizer, de fumaça e trevas, e faz secar a fonte das lágrimas.

20. Como um cego não será bem sucedido fazendo tiro ao alvo, também um discípulo que resiste ao seu superior e o reprova, não poderá senão perecer de modo deplorável.

21. Como uma peça de ferro em bom estado é capaz de afiar outra que não está igualmente boa, também um monge fervoroso é capaz muitas vezes de proteger da danação eterna um religioso desleixado e preguiçoso.

22. Assim como os ovos deixados num lugar quente e fechado dão pintinhos, também os pensamentos de bem, cuidadosamente escondidos, acabam normalmente por produzir ações e se manifestando através delas.

23. Assim como os cavalos de corrida animam-se mutuamente na carreira, também os religiosos que vivem juntos sob a mesma regra se incitam uns aos outros à prática das virtudes e da disciplina.

24. Assim como as nuvens escondem o sol e obscurecem o brilho de sua luz, também os maus pensamentos obscurecem as luzes de nossa alma e a expõem a se desviar e se perder.

25. Assim como um criminoso condenado à pena capital não se diverte, ao partir para o local da execução, falando de divertimentos e de espetáculos, também uma pessoa verdadeiramente aflita por suas faltas não se ocupa na terra em contentar suas inclinações pela intemperança e a boa mesa.

26. Assim como os pobres, ao verem os grandes tesouros de um rei, conhecem e sentem mais vivamente sua miséria, também uma alma que contempla as admiráveis virtudes dos santos se torna mais humilde e se confunde, daí por diante, com a visão de sua indigência espiritual.

27. Como o ímã, por força de sua natureza, atrai o ferro para si, também os homens que se deixam corromper e dominar pelos maus hábitos são violentamente atraídos pelo pecado.

28. Assim como o azeite acalma o mar, por mais furioso que esteja, também, por violentos que sejam os ardores da concupiscência, eles serão incapazes de resistir à virtude do jejum e da mortificação.

29. Como as águas comprimidas em canais estreitos se elevam no ar com ímpeto, também uma alma cercada e pressionada por perigos se lança com força para Deus por meio das santas lágrimas da penitência e assim obtém sua salvação.

30. Como alguém perfumado, mesmo que não queira, se anuncia fazendo sentir seu suave odor por todos, também uma pessoa que possui o espírito de Deus, mesmo que não queira, dá a conhecer aos outros, por suas ações e sua humildade.

31. Assim como o sol torna o ouro visível fazendo-o cintilar, também a virtude faz brilhar quem a possui.

32. Como os ventos impetuosos suscitam tempestades amedrontadoras no mar, também a paixão da cólera, mais do que as outras paixões, excita furiosas tempestades numa alma e a perturba.

33. Assim como as coisas que não vemos nos dão pouco desejo por possuí-las, ainda que tenhamos ouvido falar delas, também aquele que conservou seu corpo puro e casto não pensa nos prazeres dos sentidos e vive em grande contentamento.

34. Assim como os ladrões não frequentam os lugares onde ficam guardadas as armas do Estado, também os demônios se previnem de visitar as pessoas que sabem estar continuamente armadas com a oração.

35. Assim como não é possível ao fogo produzir neve, também não é possível que um homem que não tenha ardor senão pelas coisas da terra possa merecer a glória celeste.

36. Como uma pequena fagulha pode colocar fogo numa imensa floresta e reduzi-la a cinzas, também uma única boa ação pode apagar e eliminar um grande número de faltas consideráveis.

37. Assim como sem boas armas não se pode exterminar animais ferozes, também é impossível vencer e exterminar a cólera sem as armas da humildade.

38. Como não há meio natural de conservar a vida senão comendo e bebendo, também não se pode conservar a vida da alma senão por maio da vigilância e da perseverança na virtude.

39. Assim como os raios do sol, ao penetrar num cômodo, o iluminam e permitem distinguir os menores objetos, também o temor a Deus no coração, iluminando-o, lhe permite ver as nódoas produzidas ali pelo pecado.

40. Assim como é fácil agarrar os caranguejos, por causa dos seus movimentos, às vezes para trás, às vezes para frente, também uma alma que se atira a uma alegria imoderada e logo ao pranto, à penitência por seus pecados e logo às doçuras de uma vida folgada e afeminada, se deixa agarrar pelo demônio, perde os frutos de seu trabalho e perece.

41. Assim como é fácil roubar tudo das pessoas mergulhadas no sono, também os que se tornam paralisados pelos vapores do século cujas máximas seguem, abrem todas as avenidas de seu coração aos ladrões de almas e aos assassinos de boas obras.

42. Assim como um homem que combate contra um leão furioso não pode desviar os olhos deste inimigo perigoso sem se arriscar a ser devorado, também aquele que combate contra sua própria carne não pode desviar os olhos de sua atenção e de sua vigilância sem se colocar num perigo iminente de se perder por toda a eternidade.

43. Como as pessoas que sobem numa escada podre colocam sua vida em perigo, também as dignidades, a glória, o poder e a autoridade, que são todos inimigos da humildade e consistem em degraus verdadeiramente podres, colocam aqueles que os possuem em risco de se perder por toda a eternidade.

44. Como alguém que é devorado pela fome pensa necessariamente em pão, também as pessoas que desejam com verdadeiro ardor alcançar a salvação, pensam necessariamente na morte e nos julgamentos do Senhor.

45. Como a água serve para apagar as letras, também as lágrimas da penitência servem para nos purificar de nossos pecados.

46. Se não tivermos água para apagar as letras, podemos empregar outros meios; o mesmo acontece em relação aos nossos pecados: em lugar das lágrimas, podemos nos servir dos suspiros, dos gemidos e de uma viva contrição.

47. Como uma grande quantidade de estrume produz uma quantidade prodigiosa de vermes de toda espécie, também uma grande quantidade de comida produz em nós uma multidão inumerável de iniquidades, de maus pensamentos e de sonhos desonestos.

48. Como um cego não enxerga para caminhar, um preguiçoso não pode ver o bem, nem fazer o bem.

49. Como alguém que tem os pés acorrentados não pode caminhar sem grandes dificuldades, também os que acumulam tesouros sobre tesouros se colocam em posição de não conseguir chegar ao Reino dos Céus.

50. Como uma ferida recente pode facilmente ser curada, também , por um princípio contrário, as feridas inveteradas da alma são difíceis de curar, mesmo que sejam suscetíveis de cura.

51. Como um pessoa a quem a morte feriu já não pode mais caminhar, também é impossível que aquele que desespera de sua salvação possa, enquanto estiver neste miserável estado, salvar sua alma.

52. Um homem que afirma professar a verdadeira fé, mas que cai sem cessar no pecado, se parece com uma pessoa que não tem olhos.

53. Um homem que não tem fé, mas que realiza boas obras, se parece com um insensato que retira água de um poço para colocá-la num odre furado.

54.Assim como um barco dirigido por um piloto experiente e protegido do céu chega com sucesso ao porto, também uma alma, ainda que tenha a infelicidade de cair por um tempo num grande número de pecados, se for dirigida e conduzida por um diretor cheio de sabedoria, de luzes e de prudência, alcançará facilmente o porto da salvação e obterá o céu.

55. Como  um viajante sem guia, por mais prudente que seja, perderá muitas vezes o caminho e se perderá, também o religioso que vive e se conduz por si próprio se desviará do caminho e se perderá, por mais perfeita que seja a sabedoria mundana com que for dotado.

56. Que aquele que cometeu faltas enormes, e que não pode suportar os rigores da penitência por causa de enfermidades corporais, caminhe estritamente sobre a via da humildade; que siga em tudo o espírito e os sentimentos que são próprios desta virtude, pois para ele não existe outro modo capaz de levá-lo à salvação.

57. Como alguém que sofreu uma moléstia longa e grave não pode recuperar num instante sua saúde perfeita, também o pecador que, durante longo tempo esteve sob a servidão das paixões, ou mesmo de uma única paixão, não é capaz de se livrar disso de um golpe só.

58. Considerem atentamente o vício e a virtude, e descobrirão os progressos que fizeram para se corrigir do primeiro para adquirir a segunda.

59. Como alguém que troca ouro por barro não faz uma troca, mas incorre apenas numa perda real, também as pessoas que falam das coisas espirituais da mesma maneira que das coisas mundanas, a fim de satisfazer sua vaidade, sofrem uma perda essencial

60. Se podemos dizer que existem pecadores que receberam logo o perdão de seus pecados, não podemos afirmar que haja pessoas que deste modo tenham alcançado a impassibilidade: pois este é um favor que não pode ser obtido senão depois de muito tempo e trabalhos, e por uma graça particular de Deus.

61. Observemos com toda atenção quais são os animais selvagens e quais as aves que procuram roubar de nosso coração a semente da graça, seja antes de germinar, seja enquanto ainda é muda, seja quando os frutos alcançaram a maturidade, e tratemos de lhes estender exatamente as mesmas armadilhas que nos põem, e de fazê-los cair em nossas redes, ao invés de nos deixarmos prender nas suas.

62. Se é ímpio e injusto que um doente coloque fim a seus dias para terminar com as dores cruéis que lhe faz sofrer uma febre ardente, é igualmente ímpio e injusto para um pecador, enquanto tiver ainda um sopro de vida, se precipitar nos horrores do desespero.

63. É vergonhoso para um homem que acabou de cumprir com seus últimos deveres para com seu pai, passar da beira de seu túmulo para uma animada festa de bodas; é também vergonhoso para um pecador que geme e chora por suas numerosas prevaricações, buscar as honras, os prazeres e a glória da vida presente.

64. As casas que hospedam os cidadãos não são construídas da mesma maneira que aquelas onde se encerram os prisioneiros e os criminosos; assim, é preciso que vivam de modo diferente as pessoas que fazem penitencia por seus pecados, em relação àquelas que, durante sua vida, jamais tiveram a infelicidade de sujar sua consciência com uma falta mortal.

65. Um grande general evita dispensar um soldado que traz ferimentos honoráveis; ele eleva sua dignidade, a fim de se servir beneficamente de coragem e sua bravura contra os inimigos do Estado. Ora, é assim que age o Rei dos reis em relação a um religioso que sustentou com grande valor os combates contra os demônios.

66. A sensibilidade é algo próprio de nossa alma; mas o pecado fere esse sentimento com redobrados golpes e o cobre de vergonhosos tapas. É este sentimento precioso que em nossa consciência alimenta ou diminui a paz e os remorsos; é ela mesma que dá nascimento aos remorsos, e é ela que dirige ou reprime o anjo guardião que Deus nos concedeu pelo batismo. É por essa razão que vemos que as pessoas que não receberam este sacramento não sentem tanto remorso quando cometem más ações.

67. À medida que deixamos de cair em pecado, perdemos o hábito de cometê-los. Ora, essa desistência do pecado se torna o começo da penitência; o começo da penitência se torna o começo da salvação; o começo da salvação, a resolução de bem viver; a resolução de bem viver, o começo dos trabalhos; o começo dos trabalhos, o começo das virtudes; o começo das virtudes, o começo da flor das virtudes; o começo da flor das virtudes, o começo da boa vontade; o começo da boa vontade, o começo do costume da virtude; o começo do costume da virtude, o começo do temor a Deus; o começo do temor a Deus, o começo da fidelidade em observar os mandamentos do Senhor; o começo da fidelidade em observar os mandamentos do Senhor, o começo do amor ao Senhor; o começo do amor ao Senhor, o começo de uma profunda humildade; o começo de uma profunda humildade, o começo da paz soberana do coração; e o começo da paz soberana da alma se torna a perfeição da caridade. Ora, esta perfeição da caridade é ela própria esta santa e perfeita amizade com a qual Deus honrará todos os que, tendo se libertado das afeições desregradas, possuem a pureza em seus corações. Pois eles verão a Deus[75]. A ele, honra e glória por todos os séculos dos séculos. Amém.


VIGÉSIMO SÉTIMO DEGRAU

Do repouso sagrado do corpo e da alma, ou da vida eremítica e solitária


1. Foram sem dúvida a vergonhosa escravidão de minhas paixões tirânicas e os males que elas me fazem sofrer, que me ensinaram as artimanhas maldosas, a conduta maliciosa, a dominação cruel e as mentiras desoladoras dos demônios. Mas felizmente nem todos os homens experimentam a mesma infelicidade; pois existem aqueles que possuem uma consciência plena e inteira dos artifícios desses espíritos das trevas, pela presença interior do Espírito Santo, que os ilumina com suas divinas luzes, depois de tê-los preservado de suas armadilhas e embustes; existe uma grande diferença entre uma pessoa que julga a alegria e o contentamento que traz a saúde após uma longa e dolorosa enfermidade, e a que julga as dores que devemos sofrer durante a moléstia pela alegria que experimenta na saúde. Como nos encontramos entre aqueles a quem a doença rouba as forças, receamos com razão falar a vocês do porto tranquilo e feliz da solidão. De resto, sabemos bem que não existe comunidade, por santa e regular que seja, na qual, semelhante a um cão faminto junto à mesa de seu dono, o demônio não se encontre e não esteja continuamente emboscado para surpreender uma alma e carregá-la para um local secreto e escondido, a fim de devorá-la a seu gosto. Assim, para não favorecer o demônio e não dar ocasião aos temerários de ser devorados por este cão raivoso, devo declarar aqui que não falarei nem da paz nem do repouso da solidão às pessoas que, nos combates que sustentam sob o estandarte de nosso Rei, mostram tanta força, coragem e constância; eu me contentarei em dizer-lhes que suas coroas e suas recompensas não serão inferiores às que serão concedidas aos que, por amor a Deus, vivem na solidão dos desertos. Não obstante, para que ninguém se ponha a murmurar por não termos dito nada a respeito da vida eremítica e de seus benefícios, diremos alguma coisa, mas com reserva.

2. O repouso do corpo, de que se trata aqui, consiste no conhecimento e na arrumação de todos os movimentos e de todos os sentidos segundo a razão iluminada e dirigida pela fé. O repouso da alma é o conhecimento de suas operações espirituais e uma dedicação calma e inviolável ao santo exercício da oração.

3. O verdadeiro amigo da vida eremítica toma resoluções inquebrantáveis e fortes, vigia sem cessar à porta de seu coração para interditar a entrada a todos os maus pensamentos ou para sufocá-los. Aquele que alcançou esse precioso repouso do coração deve certamente me compreender; mas ainda está bem longe de saber em que consistem a paz e a tranquilidade da alma, aquele que acabou de entrar no caminho da piedade, e que ainda não provou de suas maravilhosas doçuras. O solitário prudente e experiente não precisa que lhe dirijam longos discursos e é suficientemente iluminado pelas boas ações de sua vida.

4. O primeiro degrau da vida eremítica consiste em afastar tudo o que pode causar distrações à alma e perturbar a paz do coração; e a perfeição dessa vida consiste em não temer mais nada e em permanecer imóvel e insensível no meio dos maiores objetos de confusão e distração.

5. Quem pretende avançar nos caminhos desta vida bem-aventurada, gosta especialmente de guardar silêncio, de praticar a mansidão e de fazer constantemente de seu coração o santuário da caridade.

6. Quem não gosta de falar se entrega dificilmente à cólera, enquanto que um grande falador será frequentemente e facilmente escravo dessa paixão incendiária.

7. O verdadeiro solitário se esforça em manter encerrado como numa prisão em seu próprio corpo a substância incorpórea da alma – supremo paradoxo.

8. O gato, para agarrar alguns ratos, utiliza mil artifícios e uma grande atenção; o solitário deve empregar todos os recursos de seu espírito e a maior vigilância para agarrar o demônio, que é um rato muito ruim. Que esta comparação, eu lhes peço, não lhes pareça desprezível, ou eu serei obrigado a lhes dizer que vocês ignoram completamente em que consiste a vida eremítica.

9. O religioso que vive na solidão é bem diferente do religioso que vive em comunidade. O solitário deve jejuar muito, ter muita força de espírito e uma grande coragem para perseverar, pois tudo o que ele possui é seu anjo guardião para socorrê-lo e protege-lo, enquanto que o cenobita pode sempre receber o auxílio de seus irmãos.

10. Os espírito celestes têm prazer em permanecer ao lado e agir com um bom anacoreta; mas podemos dizer o mesmo de um mau solitário?

11. É imensa a profundidade dos mistérios da fé; é um abismo sem fundo. Quem quiser penetrar aí não poderá fazê-lo sem se expor evidentemente a se perder.

12. A cela de um solitário encerra seu corpo, e seu corpo encerra o princípio de seus pensamentos.

13. Qualquer um que, achando-se agitado por paixões insolentes, ouse abraçar a vida eremítica, é comparável a um insensato que, viajando por mar, salta no meio das ondas na esperança de que uma simples prancha seja capaz de levá-lo com sucesso ao porto.

14. Aqueles que precisam combater uma carne rebelde não podem ainda se retirar para a solidão. É preciso que aguardem um tempo favorável; e mesmo com a chegada deste tempo, ainda precisarão encontrar um condutor prudente, sábio e piedoso. Com efeito, para abraçar uma vida tão perfeita, é preciso ter a virtude e a força dos anjos; entenda-se bem, quando falo assim, que me refiro apenas à vida solitária, que se refere tanto ao corpo como ao espírito, e que separa o homem completamente da sociedade humana.

15. O solitário negligente não temerá empregar a mentira para fazer crer aos outros, por meio de palavras obscuras e de duplo sentido, que eles devem fazê-lo deixar a solidão; mas assim que abandona a cela, ele se agarra ao demônio. Infeliz! Não sabe que ele mesmo é seu próprio demônio?

16. Já vi anacoretas que, no deserto, satisfaziam admiravelmente bem seu desejo ardente de agradar a Deus por meios extraordinários, constantes e mil vezes repetidos; ademais, eles acrescentam sem cessar novas chamas ao seu amor por Deus, novos ardores à sua piedade e ao seu fervor, e uma nova vivacidade de desejo piedoso.

17. Um verdadeiro anacoreta é um anjo terrestre que, por sua vigilância e seu fervor, bane de suas preces e de suas comunicações amorosas com Deus toda espécie de negligência e tibieza.

18. Este pode com sucesso dizer sempre a Deus: “Meu coração está pronto, meu Deus, meu coração está pronto[76]”; ou então: “Eu durmo, mas meu coração vigia[77]”.

19. Fechem estritamente a porte de sua cela ao seu corpo, a porta de sua língua às palavras e a porta de seu interior ao demônio.

20. A serenidade e os ardores do sol do meio dia permitem conhecer a paciência do marinheiro; a privação das coisas necessárias à vida demonstra a constância do anacoreta em sofrer, pois o marinheiro fatigado pelos raios do sol que o queimam pode se atirar à água para se refrescar, enquanto que o solitário abatido pelo desgosto que lhe causa a solidão se precipita no meio da multidão para aí encontrar a dissipação.

21. Não tema, veja como se fossem jogos as tempestades que os demônios suscitam ao nosso redor. A verdadeira penitência não teme nem treme.

22. Todos os que costumam fazer suas orações com a disposição requerida falam a Deus da mesma maneira como um favorito fala a seu soberano; mas as pessoas que só falam com a boca se assemelham à gente que, quando o rei comunica seu conselho, se atiram aos seus pés; e as que oram estando ainda no século parecem homens que apresentam petições ao seu príncipe no meio do tumulto de todo o povo. Entendam o alcance dessas comparações, se tiverem a felicidade de conhecer o verdadeiro modo de orar.

23. Cuidado para se manterem na parte mais elevada de vocês mesmos para ver como, quando e de onde vêm os ladrões que desejam devastar a vinha espiritual de sua alma, e para saber o quanto eles são numerosos.

24. Uma alma fatigada pelos exercícios de piedade poderá se restabelecer e assistir à oração, e depois retomar seus exercícios espirituais com ardor renovado.

25. Um homem que havia provado pessoalmente tudo o que mencionei, tomara a decisão de só falar disso com cuidado e exatidão; mas ele temia que, se o fizesse, diminuiria o ardor das pessoas que se apresentavam para o combate cheias de zelo e de coragem, e que, pelo ruído de suas palavras ele poderia assustar os que marcham generosamente no caminho da perfeição.

26. Quem quer que fale da vida solitária com exatidão e conhecimento atrairá sobre si a fúria dos demônios, pois ele ensinará a discernir os meios artificiais que esses miseráveis utilizam para fazer com as almas se percam.

27. O anacoreta cheio de fervor penetra nos julgamentos secretos do Senhor; mas ele não recebe este favor eminente senão depois de haver combatido e vencido mil tentações, triunfado sobre os demônios num grande número de combates, expulsado para longe de si toda perturbação e toda agitação e, podemos acrescentar, depois de ter sido amassado e moldado sob o peso dessas provas terríveis. Se não me engano, é o que o próprio apóstolo Paulo nos mostra com seu exemplo. Com efeito, teria ele conhecido os segredos inefáveis que lhe foram revelados, se antes não tivesse sido transportado ao céu, como a um lugar de repouso perfeito[78]?

28. Deus permitirá escutar grandes coisas, a quem levar uma vida angélica na solidão. É por isso que vemos no livro de Jó este homem sábio que, falando em nome desse repouso sagrado e sábio da solidão, pronuncia esta sentença: “Não fará o Senhor que escutem meus ouvidos coisas extraordinárias?[79]”.

29. É realmente um bom praticante dos deveres da vida eremítica, aquele que, sem aversão, evita com todo o cuidado encontrar as pessoas que tentam vê-lo. Pois ele age assim para conservar as doçuras celestes que teve a felicidade de experimentar.

30. Se vocês quiserem deixar o mundo para viver na solidão, desfaçam-se prontamente de tudo o que ainda os pode ligar ao século; distribuam todos os seus bens aos pobres, pois, para vendê-los, seria preciso tempo; deem-nos sobretudo aos monges pobres, a fim de que eles unam suas preces às de vocês, e que vocês se tornem dignos de abraçar a vida solitária. Em seguida tomem sua cruz e carreguem-na cumprindo fielmente todos os deveres impostos pela santa obediência. Sustentem corajosamente o fardo que lhes for imposto ao renunciar de modo perfeito à própria vontade: “Venham e me sigam, e eu os conduzirei a este repouso bem-aventurado”, a esta santa familiaridade e a esta inefável união com Deus, e lhes ensinarei os exercícios e a maneira de viver das potências celestes. Ora, assim como os anjos jamais deixarão, durante os séculos eternos, de catar louvores a Deus, também uma pessoa que penetrou no paraíso da solidão não cessará de celebrar a glória de seu criador e benfeitor. As puras inteligências não sofrem as penas das necessidades corporais, porque não possuem corpos; e os homens que, por assim dizer, mesmo tendo corpos não têm corpos, não mantêm nenhuma inquietação com relação às suas necessidades corporais. Os anjos não precisam se alimentar, e os religiosos solitários se alimentam sem sentimentos de prazer. Os anjos desprezam o ouro e as riquezas, e os solitários acrescentam a esse desprezo o desdém pelas perseguições que lhes fazem os demônios. Os espíritos celestes não são tocados nem movidos pelo amor às coisas visíveis, e os anacoretas, cujo corpo está sobre a terra, mas o coração está no céu, são igualmente insensíveis a todas essas coisas: toda sua estima e afeição estão voltadas para os bens celestes. Os anjos sempre irão progredir no amor a Deus, e os solitários nunca deixarão de caminhar sobre suas pegadas. As beatitudes celestes não ignoram que seu progresso no amor a Deus aumenta suas riquezas e seus tesouros, e os anacoretas sabem bem que eles crescem na graça de Deus na medida em que crescem em seu amor e seu fervor por Ele. Enfim, estes fervorosos religiosos não se deterão jamais, mas farão todos os esforços para chegar o mais próximo possível da perfeição dos Serafins, e não terão repouso enquanto não se tiverem tornado novos anjos. Feliz aquele que espera usufruir de tamanha felicidade! E três vezes feliz aquele que, tornando-se um anjo no céu, possui aí a alegria pela qual suspirou com tanto ardor sobre a terra!


Diferentes aspectos da vida eremítica

31. Ninguém ignora que em todas as artes e todas as ciências existem opiniões diversas e sentimentos diferentes; pois os homens não são igualmente perfeitos em todas as coisas, tanto pela falta de trabalho e de diligência como pela falta de inteligência e de luzes. É assim que vemos gente se apressando em correr para a solidão, na esperança de aí encontrar um porto seguro de salvação; mas, infelizmente, o que encontram é um abismo sem fundo que os engole: onde pretendiam curar a língua da intemperança nas palavras e os vergonhosos hábitos do corpo, tudo o que conseguiram foi aumentar seus males. Vemos a outros voando para os desertos, porque, não conseguindo triunfar sobre seu humor irascível enquanto viviam entre os irmãos, esperam vencê-lo mais eficazmente na solidão; mas este é um erro miserável. Vemos outros abraçarem a vida eremítica porque, cheios de orgulho, preferem viver segundo sua própria vontade a se deixar conduzir por um superior ou um diretor; outros seguem para a solidão porque, vivendo em meio a situações perigosas, não têm em si a força para resistir a elas; outros desejam a vida solitária a fim de cumprir mais estritamente com seus deveres; outros escolhem esse gênero de vida a fim de poder punir mais severamente as próprias faltas; outros não buscam a solidão senão para fazer nome diante dos homens; outros, enfim, supondo que o Filho do homem, voltando à terra para julgar o mundo, aqui encontrasse semelhantes pessoas, unicamente inflamadas pelo amor a Deus e encontrando neste amor as delícias inefáveis, se entregam à vida eremítica como a uma esposa unicamente amada. E eles não tomam este caminho sem antes fazer um divórcio absoluto em relação à negligência e à tibieza. Com efeito, a união da vida eremítica com um espírito de preguiça gera uma espécie de fornicação espiritual.

32. Tais são as diferentes disposições que levam os homens à vida eremítica: é o que pude expressar segundo minhas poucas luzes; cabe a cada um encontrar quais lhe fazem desejar viver na solidão. Será por ser a opção mais fácil, não seguindo senão a própria vontade, ou será para buscar a estima dos homens? Será para mortificar a incontinência da língua, ou para triunfar sobre a cólera? Será para fugir das ocasiões de pecado, ou para expiar mais facilmente as faltas cometidas? Será para se tornar mais rígido e mais fervoroso nos exercícios da piedade, ou para aumentar em si mesmo o fogo sagrado do amor a Deus? Os primeiros serão os últimos, e os últimos serão os primeiros. Ora, desses oito tipos de vida solitária existem sete que representam os sete dias da semana, e esta semana é a imagem da vida presente; mas algumas agradam a Deus, outras lhe são odiosas. Quanto à última, podemos dizer ousadamente: ela é a imagem da felicidade eterna.

33. Vocês que vivem na solidão, observem atentamente o tempo em que os animais ferozes que fazem a guerra às suas almas costumam atacar; de outro modo será impossível a vocês estenderem as armadilhas capazes de as prender e encarcerar. Se a preguiça, à qual vocês renunciaram inteiramente, não lhes faz mais companhia, vocês combaterão e vencerão sem dificuldade todos os inimigos; mas se, ao contrário, ela ainda reina em vocês, eu não vejo como nem por que louvar o gênero de vida que vocês abraçaram.

34. De onde vem que não haja tantos homens extraordinários em luzes e em santidade no mosteiro de Tabene do que em Sceta? Poderia haver. Não posso falar a respeito, ou melhor: não desejo fazê-lo.

35. Dentre aqueles que passam sua vida em profundas solidões, alguns trabalham especialmente no sentido de mortificar suas paixões; outros se entregam ao conto dos salmos ou empregam a maior parte de seu tempo no santo exercício da oração; outros, enfim, se dedicam à meditação e à contemplação das coisas do céu. Quem quiser saber quais são as pessoas mais avançadas na virtude e na perfeição da vida eremítica, poderá fazê-lo se servindo da comparação com os degraus de uma escada. Mas quem desejar dar uma solução a este problema não se dedique a tanto senão na medida das luzes que recebeu do Senhor.

36. É preciso confessar aqui que existem nos mosteiros cenobíticos almas relaxadas e preguiçosas que, encontrando objeto e ocasião de alimentar sua vergonhosa e criminosa indolência, não caminham, mas correm para a perda eterna; mas existem outras que aproveitam o ardor e o zelo das pessoas com as quais vivem para se corrigir de sua tibieza e de sua negligência. Mas não são só os homens formados e dominados pela preguiça que se perdem nos mosteiros: acontece ainda de os mais fervorosos relaxarem pelo mau exemplo dos negligentes e preguiçosos.

37. Ora, o mesmo que dizemos da vida cenobítica, somos obrigados a dizer da vida eremítica: pois muitas pessoas que a abraçaram, antes de fazê-lo pareciam ser fervorosos e próprios à prática das virtudes mais belas e mais raras; mas essa vida os estragou e corrompeu, porque eles só entraram nela para viver e se conduzir com mais liberdade e segundo seus gostos. É por isso que eles deveriam perceber e se reprovar por não ser senão pessoas amigas dos prazeres e das comodidades da vida. Outros, ao contrário, que desde o princípio não haviam escolhido a solidão senão por um espírito de preguiça e desleixo, tocados e apavorados com o pensamento daquilo que os espera no tribunal de Deus, quando terão que responder pela ações de sua vida, fizeram prodígios no caminho da virtude e adquiriram um grande fervor nos exercícios da piedade.

38. Que aquele que é escravo da cólera, do orgulho, da dissimulação, da hipocrisia e da lembrança das injúrias, evite dar um só passo para entrar na solidão; pois é de se temer para este homem, que o único fruto que ele obterá com sua temeridade, será cair num funesto enrijecimento. Quanto aos que se libertaram com sucesso de seus vícios, talvez possam compreender o partido que devem tomar; mas não creio que o possam fazer sozinhos ou por si próprios.

39. As qualidades, as ocupações e os raciocínios das pessoas que, por razões suficientes, abraçaram a vida solitária, consistem na calma perfeita da alma que se colocou ao abrigo de todas as tempestades excitadas pelo vento das paixões, nos pensamentos santos e puros, numa união íntima com Deus, na lembrança constante dos suplícios eternos, no pensamento da morte que nos ameaça de perto, num amor insaciável pela oração, na vigilância constante sobre os sentidos, na total ruína das afeições desonestas, na libertação dos apetites carnais, na morte do espírito e das máximas do mundo, na indiferença quanto ao que comer, na meditação das verdades sobrenaturais, nas luzes de um discernimento sábio e prudente, no dom das lágrimas de uma penitência sincera, na recusa absoluta aos discursos vãos e inúteis, e em tudo o que não é agradável às pessoas que vivem sem regra nem ordem.

40. E eis aqui, de outro lado, as marcas pelas quais podemos reconhecer que não abraçamos a vida eremítica por motivos bons e louváveis: a privação dos dons, das graças e das riquezas do céu, o aumento do mau humor, os acessos de cólera, a lembrança das injúrias, o esfriamento da caridade, o aumento do orgulho, e muitos outros defeitos sobre os quais me calarei.

41. Mas, uma vez que chegamos até aqui, me parece que convém dizer alguma coisa das pessoas que vivem sob a obediência e a direção de um superior, ainda mais porque é a estes que dedicamos este pequeno tratado. Diremos então quais os sinais que distinguem aqueles que realmente, sinceramente e com grande pureza de intenção, abraçaram esta santa e honrada virtude da obediência. Ora, foram nosso pais, este homens virtuosos e cheios do espírito de Deus, que no-la ensinaram; e ainda que as qualidades dos felizes filhos da obediência não devem receber sua perfeição senão no tempo que o Senhor fixou para tanto, elas não deixaram de aumentar e crescer a cada dia entre eles. Esses sinais e essas qualidades da verdadeira obediência consistem assim num aumento contínuo da humildade, numa diminuição progressiva da cólera, na extinção do fel e da bílis, na dissipação sensível das trevas do espírito, no crescimento da caridade, na libertação das paixões e dos pendores viciosos, numa renúncia generosa a toda aversão e a toda raiva, na mortificação da carne segundo os conselhos recebidos, na fuga de toda preguiça e de toda negligência, numa diligência estrita no cumprimento dos deveres, numa terna e eficaz compaixão para com os irmãos e na destruição perfeita do orgulho. Mas esta última qualidade da obediência devemos buscar com o maior cuidado para obtê-la; e no entanto muito poucos a possuem: pois, a uma fonte sem água, podemos chamá-la de fonte? Quem for manso e inteligente me compreenderá facilmente.

42. Uma jovem esposa que viola o juramento feito a seu esposo profana seu corpo e se desonra; uma alma que viola a confiança que dera a Deus, suja e amesquinha sua consciência. A aversão pública, a fraqueza de caráter, os castigos e, acima de tudo, um deplorável divórcio são os males que atrai sobre si uma esposa infiel. A infidelidade sacrílega de uma alma é seguida de mil máculas, do esquecimento da morte, de uma insaciável intemperança, da insolência e o despudor dos olhos, do amor à vanglória, da necessidade contínua de dormir, do endurecimento do coração, da cegueira do espírito, de uma horrível confusão de pensamentos, de uma vontade cada vez mais dirigida ao pecado, da escravidão às paixões mais vis, de um tumulto e uma desordem assustadores, do espírito obstinado e da contradição, de uma abominável afeição pelas criaturas, da infidelidade na fé, de uma desconfiança indigna em relação a Deus, de uma insuportável loquacidade, de uma licenciosidade horrorosa, de uma vã confiança em si próprio – que pode com justiça ser vista como o maior dos males – e, o que é o cúmulo da miséria, da secura do coração, que o torna incapaz do menor gesto de penitência e de compunção, e que, quando é negligenciada, se transforma numa estúpida insensibilidade, que abre as portas a todos os vícios e a todos os crimes.

43. Podemos afirmar aqui que dentre os oito pecados capitais, existem cinco que fazem guerra aos anacoretas e três aos cenobitas.

44. Um solitário que se diverte combatendo a preguiça de forma direta perde um tempo que poderia ser melhor empregado na prece e na meditação.

45. Eis o que me aconteceu no tempo em que eu vivia solitário: um dia fui assaltado em minha cela por uma desencorajamento tão grande, que estava a ponto de abandoná-la; mas ao mesmo tempo chegaram alguns visitantes que me fizeram tantos louvores sobre a vida que eu levava, que os pensamentos de vanglória logo expulsaram de mim o desânimo e outros pensamentos que me abatiam. A este respeito eu nunca pude admirar suficientemente a maneira com que o demônio da vanglória derrubou os outros demônios; para eles, foi uma verdadeira ratoeira.

46. Não deixem, a toda hora, de observar os movimentos, as idas e vindas, bem como a força das inclinações que vocês sentirem pela tibieza que se une intimamente à alma, e conheçam bem de onde vêm essas coisas funestas, e para onde elas podem conduzi-los; mas não se esqueçam de que somente são capazes de discernir essas coisas com sucesso as pessoas que, com o socorro do Espírito Santo, alcançaram a tranquilidade do coração.

47. A primeira e principal coisa à qual um solitário deve se dedicar é expulsar de seu espírito todos os cuidados e inquietações causados pelos diferentes assuntos, bons e maus. Com efeito, quem se ocupar com paixão dos assuntos bons, acabará pouco a pouco se ocupando também dos maus. E assim sofrerá uma funesta queda. A segunda coisa que lhe será necessária é uma prece contínua e fervorosa; a terceira, uma vigilância estrita de seu coração, capaz de torna-lo invulnerável. É possível a uma pessoa que não conhece sequer as letras, ler um livro? Mas isto será mais fácil do que, ao solitário que não possua estas três coisas de que falamos, adquirir as duas seguintes.

48. Tendo tido a felicidade de obter a segunda, eu me vi em meio aos seres que sustentam o estado intermediário, e um deles me ensinou as coisas que eu desejava saber. Ainda estando em meio a eles, eu me permiti perguntar-lhes qual era o estado no qual eles contemplavam o Filho de Deus antes de sua encarnação; e o mesmo anjo me respondeu, dizendo que ele não poderia satisfazer minha questão, porque o Filho de Deus, príncipe e rei dos anjos, não lhe permitia. “Diga-me ao menos, respondi-lhe eu, em que estado ele se encontra presentemente”. Eis a resposta que ele me deu: “Ele está no estado que lhe é próprio, e não em outro”. “Mas, indaguei ainda, de que maneira está ele sentado à direita de Deus Pai?”. “Trata-se de um mistério, respondeu ele, incompreensível ao espírito humano”. Por fim eu implorei receber aquilo que eu desejava com tanto ardor. “A hora, disse-me ele, ainda não chegou; você não possui a chama do fogo celeste”. Ora, eu não sei nem posso afirmar se esta visão se passou no meu corpo ou fora do meu corpo.

49. É raro que ao meio dia, sobretudo durante o calor do verão, não sintamos necessidade de dormir. Neste momento, e somente nele, convém se ocupar de algum trabalho manual.

50. Minha própria experiência me fez conhecer que é o demônio da acídia que se apresenta primeiro a nós, a fim de preparar o caminho para o demônio da luxúria. É por isso que ele agarra fortemente os músculos e os nervos de nossos corpos para paralisá-los e nos mergulhar no sono, a fim de que, neste estado, ele possa nos fazer cair em alguma falta. Assim, se você resistir fortemente e com coragem a esses dois demônios, eles lhe farão uma guerra extrema e, para desencorajá-lo e fazê-lo abandonar o campo de batalha, farão todos os esforços e se utilizarão de todos os meios pra fazê-lo acreditar que você não obterá nenhum benefício espiritual pela vida solitária que você abraçou; mas nada demonstra melhor que os vencemos, do que quando eles nos atacam com mais furor.

51. Você é obrigado a sair de sua cela e aparecer em público? Cuidado para não perder o pouco de virtude que adquiriu. De fato, se você deixar a porta de uma gaiola aberta, os pássaros não demorarão a fugir dali. O mesmo podemos dizer das boas obras de um solitário, se deixar a porta de seu coração aberta à dissipação.

52. O menos objeto nos olhos fadiga e perturba a visão, e o menor cuidado inquietante perturba a paz e o repouso da solidão; pois a vida eremítica consiste essencialmente em deixar de lado todos os pensamentos e todas as inquietações da vida presente, mesmo as que parecem justas e permitidas, a fim de não se ocupar senão dos assuntos da eternidade.

53. As pessoas que abraçaram essa vida com todo coração não se preocupam sequer com os cuidados e necessidades do corpo; pois eles sabem que Aquele que prometeu cuidar de seus filhos não será capaz de faltar com sua palavra.

54. Quem pretende oferecer a Deus uma alma pura e digna de lhe ser agradável, mas que ao mesmo tempo é agitado por mil cuidados com as mais diversas coisas, se parece com alguém que, tentando correr mais depressa e caminhar mais facilmente, amarrasse pesos aos seus pés.

55. Poucos são os homens que fizeram nome das ciências e na sabedoria da filosofia; mas mais raros ainda são os que mostraram excelência na ciência e na filosofia essenciais à vida eremítica.

56. O homem que não conhece a Deus nem se comunica com ele com uma santa familiaridade, está longe de poder levar essa vida, e, se a abraçar, se expõe a uma infinidade de perigos; pois a solidão sufoca os que não possuem nenhuma experiência nos caminhos do Senhor, e que, não tendo jamais experimentado as doçuras do Senhor, passam seu tempo em meio a trevas fatigantes, contínuas distrações, desânimos dilacerantes, uma tibieza delirante e preguiças insuportáveis.

57. Quem possuir com sucesso o dom da oração, evite cuidadosamente a borbulhante sociedade dos homens; fuja com tanto horror como o asno[80]; pois não é a própria oração que o torna, de certa forma, selvagem, retirando-o totalmente da companhia dos seus semelhantes?

58. Quem ainda é refém dos pendores desregrados do coração devem empregar todo seu tempo na solidão, para reprimir seus movimentos e resistir a eles. É o que me ensonou este santo ancião George Arsilaita, cujo nome e virtudes, meu reverendo Pai, não lhe são desconhecidos. Eis o que ele me disse, quando, sem sucesso, ele tentava e se ocupava em me formar nos exercícios da vida eremítica: “Eu observei, dizia-me ele, que os demônios da vanglória e da luxúria nos atacam sobretudo pela manhã, e que ao meio dia nos tentam o demônio da preguiça, da cólera e da tristeza, e à tarde é o demônio da intemperança que nos faz a guerra”.

59. Um cenobita pobre vale infinitamente mais que um anacoreta continuamente agitado por distrações.

60. Quem entra na solidão por motivos justos e razoáveis, e que não observa a cada dia algum progresso na virtude, ou qualquer outro benefício espiritual, deve se perguntar se está se conduzindo de acordo com o espírito de Deus, ou se está se deixando enganar pelo demônio do orgulho.

61. A vida solitária consiste numa união contínua com Deus por meio de um amor ardente e de uma adoração perpétua.

62. Que a lembrança de Jesus reine sempre no seu espírito e no seu coração! Assim você começará a conhecer qual é o fruto de sua solidão.

63. Observem que, como a ligação com sua própria vontade faz tombar o religioso que vive sob a orientação e a autoridade de um superior, também a omissão ou a interrupção da prece ocasiona quedas ao religioso solitário.

64. Saiba que não significa agradar a Deus, mas sim contentar a própria preguiça e desleixo, sentir alegria e prazer quando um grande número de visitantes vem perturbar o repouso de sua cela.

65. A oração de pobre viúva que era achacada pelo cobrador impiedoso deve ser o modelo da prece. O grande Arsênio, este digno êmulo dos anjos, é o exemplo que todo cenobita deve seguir; procurem imitar em sua solidão o modo de vida que ele levava, e não percam jamais de vista que esse anjo da terra, a fim de não faltar com as ordens da Providência e não se privar das comunicações que mantinha com Deus, não temia jamais despachar as pessoas que vinham visitá-lo para consultas.

66. Observei mais de uma vez que os demônios costumam levar os solitários volúveis e inconstantes e que entraram para a solidão por um espírito de vertigem, a visitar muitas vezes os anacoretas cheios de fervor e de recolhimento; mas isto é para que esses solitários vagabundos impeçam os verdadeiros servidores de Jesus Cristo de se aplicarem aos seus exercícios de piedade. Preste atenção, caro irmão; eu lhe suplico, preste atenção a esses levianos, e não hesite em lhes fazer com caridade reprimendas capazes de fazê-lo enrubescer por sua funesta dissipação, mais do que pela humilhação a que você os submeteu, e de levá-los a abandonar a vida errante e vagabunda, fixando-se em suas celas. Porém, se você colocar em prática esse conselho, cuidado para não entristecer demasiado alguma alma que, devorada por uma sede ardente de graça, venha a você para buscar a água de que necessita e que deseja, e para obter o socorro pelo qual suspira. De resto, em diferentes circunstâncias é preciso ser dotado de grande sabedoria e de um discernimento especial.

67. A vida dos anacoretas, ou para melhor dizê-lo, dos religiosos, deve ser dirigida pelas luzes de uma consciência reta e pura, e por sentimentos e afeições de um coração sólida e sinceramente piedoso e devoto. Ora, quem caminha assim nessa ilustre carreira, não se propõe outra coisa que o cumprimento da vontade do Senhor em todos os seus exercícios, em todos os seus pensamentos, em todos os seus modos e em todos os seus movimentos. Não há nada nele que não faça com um grande sentimento de zelo e de fervor pela glória de Deus, com o desejo de lhe agradar e sempre em sua santa Presença; e quem não se encontra nestas felizes disposições, ou que as abandona, é porque ainda não adquiriu a virtude necessária.

68. Alguém já disse: “Eu descobrirei, tocando minha harpa, ou que terei a lhe propor”, ou seja, deste modo eu darei a conhecer meu sentimento, por causa da fraqueza de meu julgamento; quanto a mim, eu oferecerei a Deus toda a minha vontade num prece fervorosa e estou certo de que ele me atenderá e me fará compreender quais são seus adoráveis desígnios a meu respeito.

69. A fé é uma das asas sobre a qual repousam nossas preces para subir até o trono de Deus; mas se aquelas que eu lhe dirigi não forem dignas de chegar até ele, com a cabeça curvada sobre meu peito eu as repetirei com mais fé e insistência.

70. A fé ensina à alma um certeza tão firme que ela se torna inquebrantável em meio às maiores adversidades.

71. O homem que tem fá não é exatamente aquele que acredita que Deus tudo pode, mas o que está persuadido que obterá do Senhor todos os pedidos a ele endereçados.

72. A fé coloca ao nosso alcance mesmo aquilo que não ousaríamos esperar; o próprio bom ladrão nos dá a prova disso.

73. O que abre a porta de nossa alma à fé são a adversidade e a retidão do coração; a adversidade, por nos tornar firmes e constantes; e a retidão, por nos aperfeiçoar na constância e na firmeza.

74. A fé é a mãe da vida eremítica; é possível conceber como os solitários poderiam amar a solidão, se não cressem?

75. Um criminoso na prisão treme todo o tempo ao simples pensamento dos magistrados que deverão julgá-lo e condená-lo; ora, um cenobita em sua cela, não deveria temer o Senhor? O criminoso não tem tantas razões para temer o lugar onde deverá ser julgado, quanto o solitário tem pelo tribunal de Deus ao qual deverá comparecer. Meu caro irmão, em sua solidão este temor salutar é absolutamente necessário, a fim de que você possa expulsar e rejeitar para longe de si a tibieza e a negligência; este é o meio mais seguro e eficaz para ter sucesso.

76. Quando um criminoso foi condenado, ele tem constantemente no espírito o instante em que virão buscá-lo para conduzi-lo ao suplício, mas um verdadeiro servidor de Deus não perde de vista o momento em que o Senhor se agradará em tirá-lo da prisão de seu corpo. Um criminoso é diariamente presa da mais aguda dor, e um solitário chora todo o tempo por seus desvios e suas faltas.

77. Se você tomar o bastão da paciência, ele servirá pata afastar de você os cães, e para impedi-los de ficar latindo ao seu redor.

78. A paciência coloca a alma num estado feliz, e com ela esta pode, sem se abater, trabalhar por sua salvação e seu aperfeiçoamento em meio aos rigores e às dificuldades fatigantes e obstinadas desses trabalhos.

79. A paciência é um limite colocado à tribulação, porque ela acolhe cada dia após dia.

80.Um homem paciente é incapaz de cair, e mesmo que lhe aconteça cair, a própria queda lhe fornecerá os meios para se reerguer com vantagens e derrubar o inimigo que o fez tombar.

81. A paciência é uma forte e generosa determinação em sofrer todos os motivos de aflição que podem ocorrer diariamente; é uma detenção severa de todas as ocasiões capazes de nos desviar do cumprimento de nossos deveres; é uma vigilância cerrada sobre tudo que se refere à salvação.

82. O religioso tem menos necessidade do pão que conserva a vida do corpo do que da paciência que conserva a vida da alma; com efeito, é pela paciência que ele merece a vida eterna; e basta um pouco mais de alimento do corpo para contribuir para a perda dessa vida eterna.

83. O homem que pratica a paciência está morto antes de morrer, e sua cela é seu túmulo.

84. A esperança e a dor pelos pecados produzem a paciência no coração; pois quem não possui essas duas virtudes costuma ser escravo da preguiça.

85. O atleta de Cristo deve saber quais, dentre os seu inimigos, ele deve combater de longe e quais os que é melhor atacar de perto. Às vezes os combates nos fazem merecer as coroas e outras vezes a fuga do combate faz de nós pessoas más e corruptas, mas aqui não podemos entrar em todos os detalhes para fazer entender melhor essas coisas. De fato, nem todos temos as mesmas inclinações, nem somos afetados da mesma maneira, nem temos os mesmos hábitos e as mesmas disposições.

86. Tudo o que podemos dizer é que é de suma importância para nós observarmos e conhecermos quem é o chefe dos inimigos que nos fazem a guerra, pois é ele quem não nos dá trégua nem repouso; é ele quem nos persegue sem cessar; nós o encontramos em toda parte, quer nos detenhamos, quer caminhemos, quer repousemos, ou nos movimentemos, quer estejamos à mesa, quer não, quer oremos, quer durmamos.

87. Alguns dos que abraçaram a vida solitária não cessam de meditar sobre as palavras do salmista: “Eu mirei continuamente o Senhor, e o tive sempre diante de meus olhos[81]”. Mas, como os pães feitos com o fermento celeste para alimentar as almas não são todos feitos da mesma maneira, outros encontram seu alimento espiritual na meditação do preceito de Jesus Cristo: “Vocês possuirão sua alma na paciência[82]”, e outros neste preceito: “Vigiem e orem sem cessar[83]”; outros: “Organize seus negócios na cidade e preparem o campo com cuidado, para que possam construir sua casa[84]”; outros mantêm continuamente no espírito estas palavras: “Por que fui humilde, o Senhor cuidou de mim e me libertou[85]”; outros repassam todo o tempo em sua memória esta bela sentença: “Os sofrimentos da vida presente não são nada comparados com a glória futura que esperamos[86]”; e outros pensam nesta sentença: “Vocês que caíram no esquecimento de Deus compreendam essas coisas, e temam que ele os possa levar de um só golpe, e que ninguém os poderá libertar de suas mãos[87]”. Todos correm na mesma corrida; mas somente um arrebatará o prêmio.

88. Quem progrediu nos caminhos da vida eremítica pratica a virtude com grande facilidade, não apenas acordado, mas até dormindo. É assim que certas pessoas conseguem expulsar, em seu sonhos, os demônios que tentam levá-las ao pecado, e exortar à prática da castidade às pessoas que, em seus sonhos, observam levadas a violar essa virtude celeste.

89. Mas não esperem por esse tipo de tentações, como se elas devessem chegar até vocês, e não se preparem para fazer sermões às pessoas que vocês supõem que poderiam vir a colocar armadilhas à sua consciência; pois a vida de um solitário deve ser simples, livre e isenta de embaraços.

90. Aquele que pretende construir a torre celeste desta vida, não deve se por à obra antes de ter passado um bom tempo observando e pesando diante de Deus os materiais necessários e outras coisas indispensáveis para terminar sua obra, e só depois de ter encomendado ao Senhor, por meio de preces fervorosas, o sucesso de sua empreitada; deve temer ainda, antes de lançar as fundações desse edifício espiritual, se terá condições de terminá-lo, para não se tornar motivo de riso e dos joguetes dos inimigos, e uma pedra de tropeço e um escândalo para as pessoas que tivessem o desejo de empreender uma obra semelhante.

91. Deem especial atenção à suavidade e às delícias interiores que provarem; pois é preciso temer que talvez sejam médicos cruéis e perigosos inimigos aqueles que os fazem sentir essas doçura em sua alma, enganando-os com essa suavidade imaginária.

92. Durante a noite vocês devem se consagrar à oração e à meditação por todo o tempo que dispuserem. Quanto à salmodia, só a empreguem em alguns momentos. Em seguida, preparem-se para bem cumprir todos os seus exercícios diurnos.

93. Nada contribui mais para iluminar e recolher o espírito do que as santas leituras: elas são as próprias palavras do Espírito Santo, e dão inteligência e sabedoria às pessoas que as leem e meditam.

94. No estado que abraçaram, é preciso que suas leituras sejam apropriadas para encorajá-los a cumprir exatamente suas obrigações; pois a resolução firme e generosa de cumprir faz com que não tenhamos mais necessidade de outros auxílios para sermos fiéis a essa resolução.

95. Vocês encontrarão certamente mais salvação nas prática das boas obras do que na leitura dos livros.

96. Vocês devem evitar ler livros estrangeiros e sobretudo aqueles opostos ao gênero de vida que escolheram, mas não percam jamais de vista que acima de tudo vocês devem ser instruídos na ciência e fortalecidos pela virtude do Espírito Santo. As palavras sempre obscuras dos homens não são próprias senão para obscurecer cada vez mais as fracas luzes de nossa inteligência.

97. Para conhecer a qualidade do vinho, basta provar um pouco; da mesma forma, uma única conversação pode fazer compreender aos que possuem discernimento, qual o estado e quais as disposições de um anacoreta.

98. Evitem deixar de desconfiar do demônio do orgulho, e nunca deixem de se precaver contra suas artimanhas; pois ele é o mais hábil e mais sutil inimigo de sua virtude.

99. Ao sair de suas celas, vigiem atentamente sua língua, pois ela é capaz de fazê-los perder em um instante todo o fruto das boas obras que vocês praticaram com tantas penas e trabalhos.

100. Abstenham-se escrupulosamente de toda ocupação que lhes possa sugerir uma vã curiosidade; no mínimo ela lhes será inútil; pois a curiosidade por muitas coisas é o que existe de mais capaz para perturbar e manchar o santo repouso do solitário.

101. Seja para a alma, seja para o corpo, deem às pessoas que vêm visitá-los todas as coisas que possuírem. Se forem religiosos poderosos em virtudes e sabedoria, contentemo-nos em fazê-los conhecer quem somos, e escutemo-los em silêncio; se, ao contrário, forem simples religiosos, conversemos com eles com um espírito de modéstia e moderação, sem nos esquecermos de pensar e crer que os outros valem mais do que nós.

102. Queria aqui aconselhar as pessoas recém-entradas num mosteiro, que se dediquem a trabalhos que não as desviem da oração; mas o exemplo desse religioso que durante a noite portava uma espada sob seu manto me impediu de fazê-lo.

103. Assim como aquilo que a fé nos ensina da santíssima, eterna e adorável Trindade, é diferente do que ela nos propõe crer sobre a encarnação do Filho de Deus, que é uma das três pessoas da gloriosa Trindade – pois aquilo que é plural na santa Trindade é singular no Filho de Deus feito homem, e o que é singular na santa Trindade é plural em Cristo – da mesma forma, existem exercícios que convêm à vida eremítica, e outros que convêm à vida cenobítica.

104. O divino Apóstolo disse: “Quem é o homem que conhece os pensamentos e os conselhos do Senhor?[88]”. Quanto a mim, eu digo: quem pode compreender os pensamentos de um homem que, em corpo e espírito, passa a vida na solidão?

105. O poder de um rei consiste na abundância e na riqueza de seus tesouros e no número de seus súditos; mas o poder de um solitário consiste na abundância de suas orações.


VIGÉSIMO OITAVO DEGRAU

Da prece, santa e fecunda fonte das virtudes; do recolhimento do espírito e do repouso do corpo que lhe são necessários.


1. Se você considerar a prece em si mesma, pense que ela é uma santa conversação, uma doce união com Deus; mas se você considerar sua virtude e seu poder, é preciso dizer que ela converte o mundo, reconcilia a terra com o céu, produz as lágrimas sinceras do arrependimento – e às vezes, dele nasce –, apaga os pecados, triunfa sobre as tentações, nos consola e protege nos tempos duros das aflições, coloca fim e termo às guerras cruéis que nos fazem os inimigos, exerce em nós a função dos anjos, se torna o alimento dos espíritos, atrai as alegrias futuras, entretém o coração numa ação contínua, faz adquirir virtudes, obter dons celestes e avançar a grandes passos nas vias da perfeição; e podemos acrescentar que ela é o fermento da alma, a luz do espírito, a ruína do desespero, a mestra da esperança, o flagelo da tristeza, a fortuna dos religiosos, o tesouro dos solitários, a extinção da cólera, o espelho do progresso na virtude, a demonstração certa das regras a seguir, a manifestação do estado de nossa alma, a noção clara dos bens futuros e o índice da glória eterna; finalmente, ela é, para a pessoa que ora, uma espécie de palácio e tribunal onde o soberano Juiz, sem esperar pelo último dia, proclama a todo momento suas sentenças de justiça e de misericórdia.

2. Levantemo-nos e ouçamos com atenção esta rainha das virtudes que nos chama e nos dirige suas palavras em alta voz: “Venham a mim, vocês que penam e se curvam sob o peso do fardo, e eu os aliviarei; tomem meu jugo, e encontrarão o repouso de suas almas e a cura de suas feridas. Pois meu jugo é doce[89], e eu tenho poder para apagar as maiores faltas”.

3. Quando nos apresentamos diante de nosso Rei e nosso Deus para lhe dirigir nossos votos e nossas súplicas, tenhamos o cuidado de nos havermos preparado para essa importante ação, e temamos que, vendo-nos vir de tão longe sem as armas espirituais e sem outros ornamentos que ele exige de nós, não ordene ele aos executores de sua justiça que nos expulsem vergonhosamente de sua presença, e que nos conduzam ao exílio acorrentados, depois de haver destroçado ante nossos olhos e nos atirado no rosto nossos pedidos e nossas orações.

4. Se vocês forem orar a Deus, vistam com cuidado sua alma com os hábitos convenientes, despojem seu espírito e seu coração de toda lembrança e de todo sentimento pelas injúrias recebidas dos irmãos; pois essa lembrança e esse sentimento paralisariam absolutamente o efeito de sua súplica.

5. Faça com que sua oração seja simples, sincera e sem afetação – outrora bastou uma palavra para reconciliar com Deus o publicano e o filho pródigo.

6. As pessoas que se apresentam diante de Deus para orar se colocam quase todas na mesma posição; mas elas não oram todas da mesma maneira, pois as formas e as variedades da oração são inumeráveis. Com efeito, algumas falam e agem com Deus como o fariam com um amigo ou um mestre cheio de benevolência; e, oferecendo a Ele o incenso de seus votos e de seus louvores, não pensam apenas em si mesmas, mas se ocupam das necessidades e dos assuntos de seus irmãos; outras conjuram com ardor o Senhor, para que este lhes conceda graças, favores espirituais, a glória celeste, e que aumente nelas a confiança que têm em sua bondade; outras lhe pedem todo o auxílio de que precisam para triunfar e se libertar inteiramente dos esforços de seus inimigos; outras solicitam com insistência algum benefício espiritual que desejam com muito ardor; outros exprimem a Deus o quanto desejam ser aliviados das inquietudes cruéis que lhes causa a lembrança das dívidas que tiveram a infelicidade de contrair diante de Sua justiça; outros anunciam o quanto eles suspiram por sair da prisão de seus corpos; outros, enfim, se contentam em pedir o perdão pelas faltas que cometeram.

7. Testemunhar a Deus um vivo e sincero reconhecimento das benesses que dele recebemos é a primeira coisa que devemos fazer, e que nunca podemos deixar faltar no começo de nossas orações; uma humilde e humilhante confissão de nossos pecados é a segunda; expressar a Deus de todo nosso coração o horror e a dor que sentimos por nossos pecados é a terceira. Depois que tivermos cumprido essas três primeiras qualidades da oração, continuaremos este santo exercício pedindo ao Rei do universo todas as graças que desejamos e as que temos necessidade. Esta é certamente a melhor maneira de fazermos nossas orações; assim o revelou um anjo a um monge fervoroso.

8. Vocês já compareceram perante um juiz da terra? Lembram-se de que maneira agiram para ganhar seu processo, e conduzam-se do mesmo modo diante de Deus. Se ao contrário, jamais estiveram diante de um juiz mortal ou se não tiveram ocasião de ver a outros em seu tribunal, pensem nos doentes que serão operados com ferro e fogo, e aprenderão a orar a Deus. Vejam com que ardor e com que palavras eles pedem ao médico que cuide deles e não os façam sofrer em demasia.

9. Evitem colocar em suas orações palavras elegantes e bem arrumadas; pois muitas vezes as palavras simples e entrecortadas dos filhos atraíram a amizade e as boas graças de seu Pai que está nos céus.

10. Também não empreguem longos discursos ao orar; pois o cuidado e o trabalho que terão em encontrar palavras capazes de expressar seus pensamentos e sentimentos dissiparão seu espírito e os farão perder o recolhimento necessário. Não foi uma única palavra do publicano que mereceu a plenitude das Misericórdias do Senhor? Não foi uma única palavra que trouxe a salvação ao bom ladrão na cruz, no momento de expirar? As grandes palavras e as belas frases não são apropriadas senão para encher o espírito de ilusão e de dissipação; enquanto q eu algumas poucas palavras ditas por um coração cheio de fé forçam o espírito a entrar em recolhimento e atenção.

11. Se você se sentir emocionado ou tocado por algum pensamento ou sentimento expresso a Deus, não passe para outro: permaneça aí, detenha-se aí; pois esta é uma prova de que o seu anjo guardião ora com você.

12. Se você tem sólidas razões para crer que seu coração é puro e inocente, nem por isso fale a Deus com muita familiaridade, mas sim com profunda humildade, e esta humildade fortalecerá sua confiança em Sua misericórdia.

13. Ainda que você tenha adquirido todas as virtudes, não cesse de pedir perdão a Deus pelos seus pecados. Não dizia são Paulo ser ele o primeiro de todos os pecadores[90]?

14. Temperamos as carnes com azeite e sal; mas é com temperança e lágrimas de penitência que se temperam as orações.

15. Quando você tiver adquirido uma perfeita mansidão, e tiver triunfado por completo sobre o azedume e a cólera, você não precisará usar de muita violência para se sentir livre de toda perturbação e agitação durante suas orações.

16. Enquanto não houvermos adquirido a prece verdadeira, somos semelhantes a criancinhas que aprendem a andar.

17. Trabalhem para elevar seu espírito até o céu, ou antes, para fixá-lo na meditação de certas palavras que se acham nas suas orações; e, embora devido à fraqueza de sua infância espiritual, lhes aconteçam algumas quedas, levantem-se prontamente e retomem corajosamente seu caminho. Infelizmente a inconstância é um funesto apanágio do espírito humano! Mas o Todo-poderoso pode mudar essa inconstância em uma constância e uma firmeza inquebrantáveis. Ora, se vocês não deixarem de lutar contra a instabilidade de seu espírito, Deus, que fixou as margens às ondas agitadas do mar, fará o mesmo com as agitações de seu espírito, e lhes dirá: “Vocês podem chegar até aí, mas não podem ir mais longe[91]”. É impossível ao homem amarrar a desatenção do espírito; mas tudo é possível a Deus, pois foi ele quem criou o espírito.

18. Se você algum dia contemplou a Deus, que é o sol de justiça, você poderá conversar com ele segundo o respeito que lhe é devido; mas se você jamais teve a felicidade de O ver e conhece-Lo, como poderá fazer para tratar diretamente com ele?

19. Para merecer este grande bem, cuide para jamais começar suas orações senão depois de haver se desembaraçado e rejeitado com grande coragem todas as distrações que lhe acorrerem; prossiga a seguir aplicando com todas as forças seu espírito à meditação das palavras que compõem essas orações; enfim, tente terminá-las com um santo arrebatamento em Deus.

20. As doçuras e a alegria que os religiosos que vivem com seus irmãos experimentam durante o santo exercício da oração, são diferentes das doçuras e da alegria que provam os religiosos que vivem na solidão. Os primeiros se encontram expostos  às ilusões da vaidade, enquanto que os solitários não estão expostos a isso, porque ele não têm senão a Deus como testemunho de suas orações, e a santa humildade se torna a alma de suas comunicações com o Senhor.

21. Você estará sempre recolhido, mesmo à mesa, se, por meio de esforços constantes e uma atenção permanente, você se mantiver em recolhimento, e se conseguir reunir prontamente seu espírito quando ele se perde. Se, ao contrário, você deixar à sua imaginação a liberdade de divagar e se dissipar, você será incapaz de se dominar, ainda que seja para cumprir um dever com seriedade e atenção.

22. É por isso que são Paulo, este homem que possuía uma prece tão santa e perfeita, não hesitou em nos assegurar que ele preferia uma prece dita com cinco palavras do fundo do coração, do que uma dita com dez mil palavras de boca[92]. Mas essa perfeição não pode ser partilhada pelos jovens religiosos, nem por aqueles que começam a servir a Deus. Assim, convém a nós, enquanto nos contarmos entre os imperfeitos, servirmo-nos em nossas orações de um certo número de palavras; este modo de orar irá nos conduzir pouco a pouco a outro mais aperfeiçoado. Com efeito, vendo Deus nossos esforços por tornar nossas orações dignas dele, ainda que elas sejam realmente imperfeitas, nos concederá o auxílio de que precisamos para orar corretamente.

23. Mas tenhamos presente que existe uma grande diferença entre o que mancha nossas preces, os que as destrói, o que as rouba de nós e o que as dissipa. Com efeito, nós manchamos nossas preces nos deixando levar por pensamentos vãos e ridículos; nós as destruímos quando nos tornamos escravos e joguetes de cuidados inúteis e supérfluos; deixamos que no-las roubem quando entregamos nosso espírito, sem perceber, a pensamentos vagos e indiferentes; enfim, nos iludimos em nossas preces quando, ao orar, nos deixamos levar por algum movimento impetuoso.

24. Quando fizermos nossas orações na presença de muitas pessoas, esforcemo-nos interiormente para humilhar nossa alma da mesma maneira como os que dirigem e apresentam suas demandas diante dos príncipes, humilhando exteriormente seus corpos. Se estivermos a sós, quando oramos sem diretor, também não dispensemos as disposições corporais e exteriores que convêm à oração; pois o espírito se conforma bastante com o corpo nas pessoas que ainda não estão muito avançadas nos caminhos de Deus.

25. Todos os que se apresentam diante do Rei eterno, mas sobretudo as pessoas que desejam obter o perdão de seus pecados, devem, entre seus interesses espirituais, lhe oferecer os sentimentos sinceros de um coração contrito e humilhado. Enquanto habitarmos estes nossos corpos, estamos obrigados a observar a ordem e o conselho que outrora o anjo deu a são Pedro[93].

26. Cinjam-se da cintura da obediência; despojem-se inteiramente de sua própria vontade, e, mortos para si mesmos, apresentem-se diante de Deus para lhe oferecer o incenso de suas orações. Pois se nós não nos estudamos senão para conhecer a vontade do Senhor, sentiremos que ele virá visitar nossa alma e conduzi-la sem perigo até a vida eterna.

27. Se vocês se elevarem acima do amor ao século e dos prazeres da terra, vocês rejeitarão para longe de si todas as inquietações da vida presente, desembaraçarão seu espírito de todos os pensamentos vãos e inúteis e renunciarão ao próprio corpo. Com efeito, a prece não é outra coisa do que um renúncia perfeita a tudo o que pertence a este mundo presente; é um esquecimento de todas as coisas que vemos nele, ou que não vemos, vale dizer, das coisas corporais e das que são incorpóreas. Digamos então a Deus: o que existe no céu para mim, ó Deus? Nada! Mas o que posso eu desejar sobre a terra, senão você, ó Deus de meu coração e meu único parceiro para a eternidade? O que eu desejo é unicamente é estar tão solidamente unido a você pela oração que eu jamais possa ser separado. Que uns suspirem e busquem riquezas e grandes posses; outros, a glória e as honras; quanto a mim, não tenho outro bem nem outro benefício a desejar do que estar unido e ligado ao meu Deus e de colocar nele apenas todas as minhas esperanças e a impassibilidade de minha alma[94].

28. É a fé que dá asas à oração; pois sem ela, esta não poderia penetrar até o céu.

29. Quem quer que sejamos, ao experimentarmos os problemas e agitações trazidos pelas paixões e pelas más tendências, não nos desencorajemos, mas peçamos a Deus uma fé firme e, com insistência, para sermos libertos, e não percamos de vista que todas as pessoas que conseguiram alcançar a tranquilidade do coração só chegaram aí passando por esse mar de perturbações e agitações.

30. Ainda que um juiz possa não temer ao Senhor, ele não obstante fará justiça por causa das constantes importunações que o cansam; assim age o Senhor a nosso respeito: vendo nossa alma, que lhe expomos, despojada de sua graça pelo pecado, ele permitirá a ela que triunfe sobre o corpo, que é seu adversário irredutível, e que se vingue dos demônios, seus cruéis inimigos.

31. Este bom e caridoso dispensador de dons e de favores atende, sem diferenciar, as almas fervorosas e reconhecidas, e em seguida as faz entrar no sagrado palácio de seu amor; mas ele deixa as almas frias e sem reconhecimento sofrer longo tempo a fome e a sede, a fim que de essas dores as forcem, por assim dizer, a perseverar na prece. Estas almas infelizes se parecem com cães que, não tendo recebido desde cedo um pedaço de pão, se afastam da pessoa que poderia lhes dar.

32. Não diga que apesar de ter feito longas orações você não fez progresso algum: você não percebe que esta simples constância, mesmo que só ela, já é para você um enorme benefício? De fato, poderá haver para você algo mais precioso do que essa união que você estabelece com Deus e esta perseverança no santo exercício da prece?

33. Um criminoso e um condenado ao suplício tremem menos com a lembrança da sentença que foi ou será pronunciada pelos juízes, do que um cristão que possui o desejo de fazer boas preces treme com o pensamento de fazê-las de uma maneira indigna do Senhor. O simples pensamento da oração numa pessoa sábia e fervorosa por sua salvação basta para afogar nela todo ressentimento e toda lembrança das injúrias recebidas, reprimir os movimentos da cólera, banir os cuidados supérfluos, negligenciar os assuntos puramente temporais, não dar nenhuma atenção às aflições e às penas da vida, guardar uma estrita temperança, triunfas sobre as tentações e se preservar dos maus pensamentos.

34. É por meio de uma prece contínua do coração que vocês deve se preparar para a prece interior e exterior por meio da qual vocês pretendem, apresentando-se diante de Deus, lhe oferecer seus votos e suas súplicas. Conduzindo-se dessa maneira, não duvidem, vocês farão muito progresso em pouco tempo. Já vi pessoas eminentes na virtude da obediência que, conforme as forças e a atenção que possuíam, se conservavam fielmente na presença de Deus, e que quando se apresentavam junto com os irmãos para orar conseguiam num instante recolher o espírito e o coração, e derramavam torrentes de lágrimas. O que as preparava assim para a oração era a obediência que praticavam com total perfeição.

35. A salmodia que acontece junto com a comunidade pode, é verdade, expor a  distrações e pensamentos confusos, enquanto que a salmodia dos solitários não sujeita aos mesmos inconvenientes; mas a presença de nossos irmãos recolhidos e fervorosos pode nos trazer o fervor e nos tirar da negligência, enquanto que a preguiça e o desleixo dos solitários não possuem estes mesmos remédios.

36. A guerra que um rei sustenta contra seus inimigos o faz conhecer o amor e a ligação que seus soldados têm para consigo; a prece manifesta o amor e a ternura que temos por Deus.

37. Ela mostra a nós mesmos o estado de nossa alma. Não é sem razão que os teólogos a chamam de espelho da alma do monge.

38. Qualquer um que comece uma obra e a prossiga quando a obediência o chama para a prece, se engana grosseiramente: o que ele segue é a inspiração dos demônios; pois estes infames ladrões nos roubam, uma a uma, as horas de nossa vida.

39. Ainda que vocês não possuam o dom da prece, se alguém se recomenda a vocês enquanto vocês oram a Deus, não recusem essa recomendação; pois muitas vezes a fé viva da pessoa que pede auxílio em nossas orações obtém para aquele por quem foi feita a recomendação a graça de uma sincera contrição que justifica e salva.

40. Quando Deus, vendo que você ora por seus irmãos, atende suas preces, cuidem-se para não cair na vanglória; pensem que foi a fé deles que trouxe à oração essa virtude e essa eficácia.

41. A cada dia os preceptores obrigam seus alunos a prestar conta exata das lições ministradas; da mesma forma Deus nos pedirá conta da força e da virtude que ele nos deu em nossas orações. É por isso que, quando rezamos com mais fervor, devemos nos vigiar com uma atenção especial; pois é então que os demônios nos atacam com mais violência por meio de movimentos de impaciência, a fim de nos fazer perder o fruto de nossas orações.

42. Devemos, sem dúvida, praticar todas as boas obras com uma grande afeição no coração; mas é sobretudo na prece que devemos colocar essa disposição de nossa alma; e podemos dizer que uma alma ora com santa afeição no coração quando ela triunfou perfeitamente sobre a cólera.

43. Ah, como são sólidos e duráveis os bens espirituais que adquirimos com muitas orações e longos anos de provações, trabalhos e penas!

44. Quando temos a felicidade de nos unirmos a Deus, já não nos inquietamos com as palavras que iremos usar para falar-Lhe em oração; pois o Espírito Santo ora por Si mesmo, com gemidos inefáveis, na pessoa que se encontra neste feliz estado[95].

45. Quando você orar, expulse de seu espírito todas as representações e imagens que aí se apresentarem, a fim de não cair na cegueira e na insensibilidade.

46. A própria prece o fará conhecer e lhe dará a certeza de que suas orações estão sendo atendidas. Esta certeza é uma graça concedida pelo Espírito Santo, por meio da qual ele nos retira toda dúvida e hesitação.

47. Tem você um desejo verdadeiro que suas preces sejam atendidas? Seja bom e cheio de comiseração para com seus irmãos; pois a misericórdia que você exercer em relação ao próximo o fará obter o cêntuplo neste mundo e a vida eterna no outro[96].

48. O fogo celeste inflama com seus benfazejos ardores as preces que fazemos com a amor e reverência; e, uma vez que elas estão assim aquecidas, elas sobem até o céu e dele fazem descer sobre a alma que ora nessas disposições felizes as novas chamas que a purificarão e a santificarão cada vez mais.

49. Existem pessoas que pensam que a prece é mais útil do que a meditação da morte e daquilo que se seguirá a ela; por mim, eu louvo essas duas práticas de piedade, e as vejo como igualmente salutares. Creio mesmo que ambas possuem a mesma natureza.

50. Observemos que quanto mais um cavalo forte e ardente avança para o objetivo ao qual se dirige, mais ele se anima, se lança e, pela rapidez de sua corrida, se esforça para chegar. Esta deve ser a conduta de uma alma no sagrado exercício da oração. Eu entendo a corrida desta alma orante como sendo os louvores que ela presta a Deus. Assim, quando essa alma generosa e ardente vê chegar a hora do combate, ela se anima, se encoraja, toma de suas armas, voa para o campo de batalha e se mostra invencível.

51. É muito penoso para uma pessoa ser devorada pelos ardores de uma sede que queima, ou ter roubada a água com que pretendia dessedentar-se; mas bem mais cruel para uma alma que ora com grandes sentimentos de compunção é ser obrigada a interromper sua união e sua conversação com Deus, que lhe permitem experimentar tantas doçuras e consolações, que ela havia desejado com tanto ardor.

52. Não encerre sua oração enquanto você experimentar os ardores do fogo que Deus colocou nela, e que não deixará secar a fonte das lágrimas que sua graça derrama; pois talvez em toda a sua vida você não reencontre uma ocasião tão favorável para merecer e obter o perdão de suas faltas.

53. É muito comum que pessoas, depois de haver recebido de Deus o dom da oração perfeita, depois mesmo de haver provado por algum tempo das delícias e das consolações celestes, manchem miseravelmente sua consciência com palavras inconsideradas e temerárias, e depois busquem sem sucesso aquilo que estavam acostumadas a encontrar em suas preces.

54. Existe uma grande diferença entre meditar interiormente conversando com seu próprio coração, e conduzir este mesmo coração seguindo as luzes da parte superior da alma que, iluminada pela fé, se torna rainha e capaz de oferecer a Cristo as hóstias agradáveis a ele. É, assim, com razão, que um de nossos padres que, por sua ciência, mereceu o título de teólogo, disse que um fogo santo e celeste desce nas pessoas que se entregam à meditação para inflamá-las e purificá-las das impurezas e das nódoas que ainda lhe restam, e que este mesmo fogo desce também nas almas daqueles que regraram seu coração segundo as luzes da fé, para iluminá-los mais e mais e fazê-los avançar nos caminhos da perfeição. É por isso que esse fogo salutar é com justiça chamado de luz que consome e ilumina. E às vezes vemos também pessoas saírem do santo exercício da prece como de uma fornalha ardente, e sentirem-se purificadas de suas manchas e de suas imperfeições, e livres da concupiscência, este terrível e funesto cadinho de pecados; outros saem cheios de luzes, revestidos de ricos hábitos de humildade e inundados de alegria celeste. E oraram mais com o corpo do que com o coração, aqueles que durante a prece não sentiram nem um nem outros desses dois efeitos; sua prece foi uma prece judaica.

55. Se os corpos são capazes de se transformar ao tocarem outros corpos, como poderia permanecer no mesmo estado o homem que, com a alma e as mãos puras, tocasse a Deus na sua oração?

56. Encontramos na conduta dos reis da terra uma imagem da conduta de nosso Rei supremo e eterno. Com efeito, muitas vezes eles distribui recompensas que ele concede aos seus servidores; outras vezes, ele os distribui alguns favores por intermédio de algum ministério; outras vezes ele não emprega, para fazer essa distribuição, mais do que o ministério de alguns oficiais inferiores; enfim, algumas vezes ele os concede de uma maneira secreta e escondida. Mas lembremo-nos de que todas essas distribuições de recompensas são feitas conforme a humildade que reina em cada coração.

57. Um rei da terra não deixaria de ter horror a um homem que, estando diante de si, virasse o rosto para conversar com seu inimigo; ora, quanto horror não deve sentir o Rei do céu por uma pessoa que durante a prece desvia o rosto de Si para se entreter com maus pensamentos e louvá-los?

58. Se o demônio vem distraí-los durante suas orações, expulsem-no para longe, como expulsariam a um cão, e não cedam jamais à sua importunação.

59. Peçam a Deus seus dons e suas graças com lágrimas de arrependimento e de penitência; mas lembrem-se de que será por meio da obediência que os receberão, e que é com uma paciência cheia de perseverança que vocês devem bater à porta de suas misericórdia; ora, esta porta se abre logo a quem bate dessa maneira; e cedo ou tarde a pessoa obterá o objeto de seus desejos e de seus votos, orando a Deus nessas disposições.

60. Eu os aconselho fortemente a não se encarregarem de impudentemente orar por uma mulher; pois devemos temer que o demônio se sirva dessa ocasião para penetrar no coração e roubar no tesouro precioso das graças com as quais Deus o dotou e enfeitou.

61. Outra precaução que vocês devem tomar é de não considerar em especial e não examinar escrupulosamente as faltas corporais que cometeram; pois vocês devem temer que seu inimigo lhes estenda novas armadilhas e se sirva de vocês mesmos para fazê-los cair numa emboscada.

62. O tempo necessário  aos exercícios e aos assuntos espirituais não deve ser usado para se consagrar à oração; isto seria uma artimanha do demônio por meio da qual ele pretende impedi-los de obter o que existe de mais benéfico e salutar na vida religiosa.

63. Quem tiver o cuidado de caminhar apoiando-se sempre no bastão forte e poderoso da oração, não cairá, ou, se tiver o azar de falsear o passo, sua queda não será total. De resto, a oração é uma doce e santa violência que fazemos por Deus.

64. Ora, as vitórias e os triunfos que obtivermos contra eles [os demônios], nos permitirão conhecer e sentir quais são o poder e a virtude da oração. É por isso que Davi escreveu: “Eu conheci, meu Deus, o seu amor por mim, porque você me assegurou que, na guerra que sustento, meus inimigos não terão ocasião de aplaudir as vantagens que poderiam obter sobre mim[97]”. É ainda por essa razão que o salmista disse: “Atenda-me, Senhor, e eu buscarei a justiça de seus mandamentos[98]”. Enfim, foi para nos fazer compreender essa importante verdade que Cristo nos fez ouvir esta sentença: “Quando dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu me encontrarei no meio deles[99]”.

65. Todas as pessoas, tanto em relação ao corpo quanto em relação à alma, não estão nas mesmas disposições para cantar louvores a Deus; pois umas preferem cantar os salmos mais depressa, outras mais lentamente; as primeiras o fazem, dizem elas, para evitar as distrações e delas se livrarem, enquanto as últimas, porque têm dificuldade na pronúncia ou na compreensão das palavras que cantam.

66. Se você implorar assiduamente o socorro do Rei do céu contra seus inimigos, esteja certo de que eles não mais o fatigarão; pois eles se retirarão rapidamente por si mesmos, uma vez que nada temem tanto quanto lhe dar ocasião de obter novos triunfos e novos troféus nos combates que você vencerá, servindo-se contra eles de arma tão poderosa como a prece. A prece, como um fogo devorador, os afastará e os fará fugir para longe.

67. Tenham sempre uma firme confiança em Deus, e ele próprio será o mestre que os ensinará a salutar arte de bem orar. Nós não podemos nos dar a faculdade de ver; foi Deus quem no-la Deus quando nos criou. Seriam então, todos os homens juntos, capazes de nos permitir discernir e conhecer a excelência da oração? Ah! Somente Deus pode, durante o próprio exercício da prece, nos fazer compreender sua excelência e os benefícios que ela nos traz; sim, é Deus quem dá ao homem toda a ciência de que este é dotado, que concede a quem ora a graça de bem orar, e que derrama as bênçãos de sua ternura sobre as almas justas e santas.


VIGÉSIMO NONO DEGRAU

Do céu terrestre, vale dizer, da paz da alma, que a torna semelhante a Deus, 
aperfeiçoando-a e lhe concedendo a ressurreição antes da ressurreição geral.


1. Eis que, malgrado minha ignorância profunda, malgrado as espessas trevas que minhas paixões derramam sobre meu espírito, malgrado enfim as sombras da morte de meu corpo, cheguei ao momento de ter a ousadia e a temeridade de falar do céu terrestre. Ora, se as estrelas são o soberbo ornamento do firmamento, as virtudes o são em relação à tranquilidade do coração. É por esta razão que eu penso e digo que a paz ou a tranquilidade da alma não são outra coisa sobre a terra do que um verdadeiro céu no qual a alma que as possui já não considera as artimanhas e maldades dos demônios senão como joguinhos e verdadeiras diversões.


2. Verdadeiramente livre e mestre de todas as perturbações e agitações da alma é o homem que purificou sua carne de toda espécie de cargas e de nódoas, e que, por este meio, a tornou de certo modo incorruptível; que soube elevar suas afeições e seus sentimentos acima das coisas criadas, e submeter todos os seus sentidos ao império da razão e da fé; que, enfim, por uma força sobrenatural, pode colocar sua alma face a face diante de Deus, consagrando-a a Ele com deliciosa confiança.

3. Alguns sustentam que este estado feliz da alma é um ressurreição, ou seja, um retorno da alma ao seu verdadeiro estado, antes da ressurreição do corpo que ela anima. Outros chegam a dizer que a paz e a tranquilidade da alma propiciam um conhecimento de Deus semelhante ao que têm os anjos.

4. Este feliz estado de alma, embora consista na perfeição dos corações perfeitos, é apesar disto susceptível de aumentar sem cessar, e quase até o infinito. É essa tranquilidade, conforme me assegurou um grande servidor de Deus que teve pessoalmente essa deliciosa experiência, que santifica e purifica de tal maneira uma alma, que a desliga e liberta tão vitoriosamente de todas as afeições pelas coisas da terra, que, por um arrebatamento divino, a eleva até os céus e, depois de havê-la conduzido ao porto da salvação, a faz contemplar o próprio Deus. Não é deste arrebatamento que experimentou Davi, e do qual ele disse “que os deuses poderosos da terra foram extraordinariamente elevados”. É também aquilo que experimentou este santo religioso do Egito que, nomeio dos irmãos, orava quase que o dia inteiro com os braços estendidos para o céu.

5. E no entanto essa admirável paz da alma não é a mesma em todos que a possuem: pois ela pode ser mais ou menos eminente em perfeita em uns do que em outros. Alguns, por exemplo, são tomados por um horror extremo ao pecado, enquanto outros são devorados pelo desejo de se enriquecerem de virtudes.

6. Com razão chamamos a castidade de paz da alma, pois esta virtude angélica é o princípio da ressurreição geral, da incorruptibilidade e da imortalidade das criaturas que o pecado tornou corruptíveis e mortais. Não é dessa tranquilidade de alma que quis se referir são Paulo, quando disse: “Quem é o homem que conheceu o Espírito do Senhor?[100]”.

7. Não foi ainda esta virtude que quis assinalar um solitário do Egito, ao dizer que já não temia o Senhor? Pretendia ele especificar outra coisa que não a paz da alma, este religioso que pedia a Deus que lhe permitisse ser ainda provado pelo fogo das tentações? Quem é então a pessoa que, antes da glória futura, pode ser considerada mais digna dessa tranquilidade do coração do que este Sírio que, enquanto Davi, tão ilustre entre os profetas, dizia a Deus: “Conceda-me, Senhor, no curso de minha peregrinação, algum refresco e algum repouso, a fim de receber algum alívio antes que eu parta para o mundo[101]”, dizia [este Sírio]: “Modere, Senhor, as efusões transbordantes de graças e as consolações com que você inunda minha alma”?

8. Uma alma possui realmente essa preciosa paz, quando é levada ao bem e se identifica com a virtude, como os maus são levados ao mal e absorvidos pelos prazeres dos sentidos.

9. Se o último degrau da intemperança consiste em se auto violentar para comer e beber depois que se está perfeitamente saciado, a perfeição da temperança e da sobriedade consiste em se privar de alimento e bebida, mesmo quando se tem muita necessidade disso; ora, uma alma não chega a esse grau de virtude senão pelo poder e a autoridade que ela adquire sobre os apetites e as inclinações do corpo. Se o mais execrável dos excessos a que a luxúria pode levar um homem a quem possui como escravo, é o de buscar contentar sua paixão com animais e objetos inanimados, o mais alto  grau da castidade é não ser tocado nem movido, seja por criaturas animadas, seja pelas que não o são. Se o fim da avareza consiste em nunca parar de trabalhar para aumentar as riquezas que já se possui e não se contentar jamais, certamente a prova mais tocante de que alguém ama e pratica a pobreza deve ser não dar atenção alguma ao próprio corpo. Crer-se num estado doce e tranquilo no meio das mais cruéis aflições é prova da mais heroica paciência. O cúmulo da fúria e da cólera é certamente se entregar a ataques de furor quando se está só; o cúmulo da doçura e da moderação deve ser permanecer com calma, seja na ausência, seja na presença de caluniadores. Se o último degrau do delírio ao qual pode conduzir a vanglória consiste em pensar e crer que merecemos ser louvados e receber louvores que ninguém dá nem pode dar, a marca mais segura de que pisoteamos todo sentimento de vaidade é não sentir o menor movimento mesmo no meio dos elogios que nos fazem pelas boas obras que tivemos a felicidade de praticar. Se o verdadeiro caráter do orgulho, esta maldita peste das almas, é de nos elevar acima dos outros, por vis e desprezíveis que sejamos, não devemos concordar que o caráter essencial da humildade, esta mãe fecunda das virtudes, consiste em conservar sentimentos de rejeição e desdém por si mesmo no meio das maiores empreitadas e das ações mais honradas e mais espantosas? Se existe um testemunho irrefutável que somos escravos de todas as paixões quando, sem nenhuma resistência, sucumbimos a todas as tentações do demônio, é, na minha opinião, uma marca certa de que alcançamos a paz da alma, quando podemos dizer abertamente com Davi: “Eu não reconheci o mal que se afastou de mim[102]”, e acrescentar: “Eu não sei como nem por que ele veio, nem como se retirou; pois, estando unido ao meu Deus por laços tão fortes que não me permitiram separar-me Dele, fiquei insensível a todas essas coisas e a outras semelhantes”.

10. Ora, as pessoas a quem Deus se dignou conceder essa graça tão sublime, ainda que revestidas de uma carne frágil, se tornam templos vivos da Divindade, que as dirige e conduz suas palavras, ações e pensamentos, e que, por meio das luzes abundantes com que iluminam seu espírito, as fazem conhecer exatamente qual é a sua adorável Vontade; superiores a todas as instruções dos homens, essas almas afortunadas clamam com sentimentos de um arrebatamento celeste: “Minha alma queima de sede por meu Deus, que é um Deus poderoso e vivo; quando irei e quando estarei diante da face de meu Deus?[103]”; e elas acrescentam: “eu não posso suportar a violência do desejo que me apressa; ó meu Deus, eu desejo, busco e peço essa beleza imortal que você me dera antes desta carne de barro”.

11. E o que podemos dizer mais? Quem quer que possua esta tranquilidade da alma mais do que eminente, não estará este autorizado a dizer com são Paulo: “Eu vivo, mas não sou eu quem vive, mas é Jesus Cristo que vive em mim[104]”? Ou então, com o mesmo apóstolo: “Eu combati o bom combate, terminei a corrida, guardei minha fé[105]”?

12. Há mais de uma pedra preciosa a ornar o diadema dos reis, e a paz da alma não é formada por uma única virtude, mas pela reunião de todas as virtudes – ela não poderia existir ainda que na ausência de uma só.

13. Estejam convencidos de que essa paz é, de certo modo, a corte e o palácio do Rei dos céus; ora, neste palácio comparável a uma cidade, existem diferentes moradas para as almas justas; e o muro que contorna esta nova Jerusalém é a remissão de nossos pecados. Corramos, portanto, irmãos, e cheguemos até o leito que nos foi preparado nesse palácio celeste: aí encontraremos o repouso perfeito. E se por uma infelicidade deplorável ainda nos encontrarmos carregados com o peso de nossos maus hábitos, ou se estivermos embaraçados pelos assuntos da vida que é tão curta, apliquemo-nos no mínimo a buscar um lugar ao redor do leito nupcial do esposo celeste. Se nossa tibieza e nossa negligência ainda nos provarem dessa honra e dessa benefício, façamos ao menos de tal modo a que possamos penetrar no recinto desse palácio; pois será condenado a viver eternamente num solidão desesperadora junto com os demônios, o homem que, antes de sua morte, não tenha entrado nesse recinto, ou melhor, que não tenha escalado as muralhas da cidade celeste para penetrar no seu recinto. É absolutamente necessário, portanto, que com determinação forte e sincera possamos dizer com Davi: “Com o socorro de Deus atravessarei o muro[106]”; e este muro, ensina-nos o Profeta, são os nossos pecados: “Suas iniquidades, disse ele, estabeleceram um muro de separação entre vocês e o seu Deus[107]”. Trabalhemos com coragem, meus amigos, para derrubar esse muro de separação que com tanta infelicidade erguemos com nossa desobediências. Busquemos a todo custo a remissão dos pecados; pois no inferno ninguém poderá nos fornecer os meios de pagar as dívidas que contraímos quando os cometemos. Sejamos cheios de zelo, caros irmãos, pelos interesses de nossa salvação; pois foi com esta finalidade que Deus concedeu a graça de nos engajar em sua milícia santa. Estejamos convencidos de que não podemos nos escusar de sermos animados por esse ardor, nem pelas quedas que sofremos, nem pelas circunstâncias difíceis dos tempos, nem pela dificuldade em carregar o jugo do Senhor; pois todos aqueles que, como nós, se revestiram de Jesus Cristo no sacramento da regeneração, receberam de Deus o poder de se tornar seus filhos[108], e foi a estes que Ele dirigiu estas palavras: “Deixem de lado suas empresas temerárias, considerem e reconheçam que eu sou o seu Deus[109]”, e também: “Eu sou a paz sólida e verdadeira dos corações”. Ora, é a este Deus da paz a quem devemos glória e honra pelos séculos dos séculos. Amém. Essa santa tranquilidade transporta da terra ao céu uma alma que conhece e sente sua miséria, e desperta a coragem do pecador cheio de humildade para fazê-lo sair do âmbito de suas paixões. Mas o amor, que está acima de todo louvor, concede às pessoas que dele se ornam o poder de ser colocadas dente os anjos, que são os príncipes do povo de Deus.


TRIGÉSIMO DEGRAU

Da reunião das três virtudes teologais, a fé, a esperança e a caridade


1. Depois de havermos falado de todas as coisas que nos ocuparam até o momento, podemos dizer com o Apóstolo que nos resta a considerar a fé, a esperança e a caridade, virtudes que são o fundamento e a ligação de todas as virtudes cristãs e religiosas. Ora, a maior e mais bela destas três virtudes é a caridade, pois o próprio Deus é chamado de Amor.

2. Nós enxergamos a fé como um raio de sol que nos ilumina; a esperança, como a luz deste raio que nos dirige e nos encoraja; e a caridade, como o próprio sol que nos inflama e fecunda em nós todo o bem que fazemos. Entretanto devemos dizer que essas três virtudes concorrem para formar a mesma luz e o mesmo esplendor.

3. A fé nos torna capazes de executar tudo o que ele nos faz empreender. A misericórdia de Deus afirma e fortalece a esperança, e não permite que esta virtude seja perturbada nem confundida. A caridade não cai jamais, nem se detém em seu curso, nem permite, a quem foi ferido pelas flechas divinas, descansar ou deixar de se entregar a ações que o espírito do mundo encara como irrazoáveis e insensatas; aqui, porém, elas constituem uma sábia e feliz loucura.

4. Todas as vezes que quisermos falar em caridade, é de Deus que estaremos falando. Veja-se por isto o quanto é grande, difícil e perigoso aquilo que desejam empreender as pessoas que não dão atenção à grandeza daquilo que estão por começar, quando pretendem falar de Deus.

5. Os anjos conhecem a excelência da caridade segundo o grau de luz que o Senhor lhes comunicou.

6. Deus é amor[110], e aquele que pretender explicar com suas palavras o que é Deus, será mais insensato e mais cego do que uma pessoa que pretendesse contar os grãos de areia que existem nas margens e nos abismos do mar.

7. A caridade é assim uma coisa semelhante a Deus, e por sua potência ela torna os homens que a possuem semelhantes a ele, na medida em que sua natureza o permita. Os efeitos que ela produz numa alma ornada com ela consistem em entregá-la a uma santa e deliciosas embriaguez, em ser para ela uma fonte inesgotável de fé, um abismo de justiça e paciência, e um oceano de humildade.

8. A caridade expulsa do espírito todo pensamento desvantajoso ao próximo; ela não pensa mal de ninguém[111].

9. A caridade, a paz do coração e a adoção que Deus nos concede no batismo, para que sejamos seus filhos queridos, são três coisas que só diferem entre si pelo nome, mais ou menos como o fogo, a luz e a chama. As três possuem a mesma natureza, a mesma ação e os mesmos efeitos; esta é a ideia que vocês devem guardar.

10. Temos maior ou menor temor segundo nossa seja nossa caridade mais ou menos perfeita. O cristão que nada teme, ou está cheio dessa virtude, ou ela se encontra inteiramente extinta nele.

11. Creio não fazer algo inútil ao me servir aqui de comparações extraídas das ações humanas, a fim de ajudar a compreender no que consiste o temor, o ardor, o zelo, os cuidados, a pressa, o respeito, a obediência e o amor que devemos sentir por Deus. Feliz, portanto, o homem que ama a Deus com uma afeição tão ardente quanto um amante insensato ama a beldade que arrebatou miseravelmente seu coração! Feliz também aquele que não sente por Deus menos temos do que um criminoso tem pelos juízes que o julgarão e condenarão! Feliz ainda o cristão cujo zelo e ardor nas vias do Senhor inflamam seu coração tanto quanto o ardor e o zelo inflamam o dos servidores fiéis e devotados a seus mestres temporais! Feliz ainda aquele que não sente pela prática das virtudes uma afeição menos pronunciada nem menos ardente do que sentem os maridos ciumentos pelas esposas a quem adoram! Felizes ainda as pessoas que, em suas orações, se apresentam a Deus com o mesmo respeito que os oficiais se apresentam diante de seu soberano! Felizes enfim as almas que se dedicam a agradar a Deus com a mesma atenção que os próprios homens estudam agradar aos outros homens!

12. Uma mãe cujo coração é todo ternura, não ama tanto abraçar e apertar contra seu seio materno a criança a quem deu à luz e nutriu, quanto um verdadeiro filho da caridade ama se unir a Deus.

13. Uma pessoa que ama ardentemente a outra espera sempre ver o objeto de seu amor, o cobre dos beijos mais ternos e afetuosos, e mesmo o sono não é capaz de desviar seu espírito ou seu coração do objeto amado: o amor que sente por essa pessoa a apresenta a ela em sonhos. Ora, aquilo que normalmente acontece na ordem natural, acontece também nas coisas de ordem sobrenatural. É isso que foi maravilhosamente bem descrito por uma alma que foi ferida pela flecha do amor a Deus: “Eu durmo, disse ela, porque sou obrigado a ceder às necessidades do corpo; mas meu coração vela sempre, por causa da grandeza de meu amor[112]”.

14. Mas observem vocês que são de confiança, que a alma, semelhante a um cervo, depois de ter dado morte a todos os animais ferozes que pretendiam devorá-la, queima com uma sede ardente pelo Senhor; e, ferida pela flecha de seu amor, suspira sem cessar junto a ele como se estivesse junto a uma fonte de água refrescante, cai desfalecida e parece querer se perder e se extinguir em Deus.

15. Nem sempre é fácil reconhecer a causa e o princípio da fome que sentimos; mas o mesmo não se pode dizer da sede: ela aparece abertamente, e permite ver de fora os ardores com que atormenta internamente a pessoa sedenta. É por isso que um grande servidor de Deus disse: “Minha alma queima inteira de sede por Deus, que é o Deus vivo e poderoso[113]”.

16. Se a presença de um amigo a quem queremos ternamente produz em nós uma transformação notável, se ela nos torna alegres e contentes, capaz de afastar de nosso coração toda pena e amargura, quão grande transformação, eu lhes pergunto, não deve operar a presença de Deus numa alma pura, santa e inflamada por amor a Ele, quando se apresenta a ela de maneira invisível, é verdade, mas nem por isso menos sensível e deliciosa?

17. O temor a Deus que provém de um sentimento profundo do coração costuma lavar e purificar a alma de todas as suas manchas. É por isso que o salmista dirigiu ao Senhor esta prece admirável: “Trespassa, ó meu Deus, minha carne com seu temor, como se a perfurasse[114]”. Mas existem pessoas a quem o santo amor a Deus devora e consome, segundo estas palavras de Salomão: “Você trespassou meu coração, sim, você trespassou meu coração[115]”. Encontramos outras a quem o amor a Deus iluminou de tal forma, que elas se sentem transportadas de alegria e contentamento, e clamam: “Meu coração colocou no Senhor toda a sua esperança e eu fui socorrido, e minha carne como que refloresceu[116]”. Mas não fiquemos espantados: não derrama no rosto a alegria do coração um frescor semelhante ao deu uma flor? Quando uma pessoa tem a felicidade de ser inflamada pelos ardores da caridade, e se vê, de certa forma, identificada com esta virtude celeste, podemos ver nela, como num espelho, a beleza de sua alma. Não é o que aconteceu ao condutor do povo de Deus? Moisés, este homem extraordinário, que já havia muitas vezes contemplado a Face de Deus, não foi então publicamente rodeado de sua Glória?

18.Os que alcançaram o grau da caridade, que é próprio dos anjos, esquecem-se até mesmo do alimento que seu corpo reclama, e não pensam nisso. Mas não vemos também que no decurso das coisas naturais uma paixão violenta é capaz de fazer perder o pensamento de comer? Assim, o que falamos da caridade não tem nada de espantoso.

19. Penso mesmo que os corpos daqueles que a caridade tornou incorruptíveis de certo modo, estão menos expostos às enfermidades; pois a chama puríssima da caridade que os purificou, depois de haver neles extinguido o fogo da concupiscência, faz com que não mais estejam expostos à corrupção.

20. Por isso eu ouso assegurar, porque estou intimamente convencido disso, que essas pessoas tomam seu alimento sem gosto e sem prazer; pois, se a umidade da terra nutre e conserva as plantas, o fogo sagrado do amor de Deus nutre e conserva as almas.

21. O crescimento do temor a Deus é o começo da caridade; mas a perfeição da castidade é o começo dos verdadeiros conhecimentos teológicos.

22. Deus, por meio de uma palavra misteriosa e secreta, instrui ele próprio as pessoas que estão perfeitamente unidas a ele com todas as potências de suas almas e de seus corpos; mas aquelas que não estão unidas a Deus dessa maneira, é difícil poder falar dele.

23. O Verbo de Deus dá uma castidade perfeita, e por sua presença no coração, leva a morte à própria morte. Ora, a destruição da morte dá aos que aspiram ao conhecimento dos mistérios as luzes necessárias para chegar até aí.

24. Assim, quando falamos a Deus pelo Espírito de Deus, nossas palavras são, de certo modo, as próprias palavras de Deus, que são todas santas e que subsistem eternamente.

25. A castidade eleva verdadeiramente um homem ao conhecimento dos mistérios celestes, de modo que ele consegue conceber a doutrina que nos ensina o mistério de um só Deus em três pessoas.

26.Quem ama a Deus sinceramente não deixa nunca de amar a seu próximo, pois é o amor que temos por nossos irmãos que manifesta e demonstra aquele que temos por Deus.

27. Este amor ao próximo não nos permite admitir que em nossa presença se fale mal de outrem, como se nós mesmos nos entregássemos à maledicência; este vício nos causa horror e temos mais medo de nos tornar culpados dele, mais do que de cairmos no fogo.

28. Podemos comparar uma pessoa que nos assegura amar a Deus e que não obstante nutre em seu coração sentimentos de cólera e animosidade, a um homem que durante o sono imagine que viaja e corre.

29. A caridade se fortalece pela esperança; pois é esta última virtude que nos faz esperar o prêmio e a recompensa de nossa caridade.

30. Ora, a esperança é um dom do céu que nos enriquece com bens espirituais e invisíveis.

31. A esperança é um tesouro seguro que possuímos neste mundo, e que deve nos colocar na posse do tesouro imenso e eterno que esperamos no outro.

32. Esta virtude divina nos consola e nos sustenta em nossas penas e trabalhos, nos abre a porta da caridade, expulsa de nosso coração todo sentimento de desespero; e, ainda que os bens eternos ainda não estejam à nossa disposição, ela nos permite, de certa forma, possuí-los e usufruir deles sobre a terra.

33. A caridade perece se a esperança se retira e falta. É a esperança que nos encoraja a suportar com heroica paciência as penas e as amarguras da vida presente; é ela que nos faz amar nossos trabalhos e suores; é ela que nos cerca com as misericórdias do Senhor.

34. É por sua poderosa proteção que o religioso sufoca a tibieza e triunfa perfeitamente sobre a preguiça e o desânimo.

35. O gosto que sentimos pelos favores e os dons celestes faz nascer em nós os sentimentos de esperança. A pessoa que não provou, no fundo de sua alma, esses dons celestes, corre o grande risco de não perseverar.

36. A esperança e a cólera são inimigas irreconciliáveis. Com efeito, a esperança jamais nos cobre de confusão, e a cólera nos cobre de vergonha.

37. A caridade traz o dom da profecia e dos milagres; ela é uma fonte inesgotável de luzes divinas, um cadinho de chamas celestes que, quanto mais se derramam em abundância em nosso coração, mais o inflamam e consomem; ela é a alegria dos anjos, e nos faz avançar em glória para a eternidade.

38. Ó bela virtude! Ó mais bela de todas as virtudes! Diga-nos, nós suplicamos, diga-nos: aonde você conduz a pastar seus caros rebanhos, onde você repousa durante os ardores do meio dia[117]? Ilumina-nos! Derrama sobre nós seu divino orvalho, dirige-nos, conduza-nos e nos atraia a você; pois desejamos ardentemente subir até o palácio onde você habita. Você comanda todas as coisas e reina sobre tudo; e você feriu meu coração; eu já não posso conter os ardores com que você me abrasou, e queimo de vontade de louvá-la; então eu lhe direi: “Você domina as potências do mar, e, quando lhe agrada, amansa e acalma o movimento e a violência das ondas; você humilha e destrói os soberbos em seu orgulho, como homens trespassados por flechas; e, com a força de seu braço, você dispersou os inimigos[118]”, e tornou invencíveis todos os que a amam. Que me seja dado contemplá-la, como o santo patriarca Jacó pode fazê-lo, quando você se apoiou naquela escada maravilhosa que ele viu! Ah, amável caridade, digne-se ser favorável à minha oração – ensine-me, se lhe agradar, em que estado deverei eu estar para poder subir por essa escada e chegar até você. Que meios devo empregar para tanto, qual o prêmio e qual a recompensa que merece a pessoa que a ama, e que, para subir por essa escada cujos degraus são todos virtudes, as arranja e dispõe em seu coração com intensa atividade? Eu desejaria ainda saber o número de seus degraus, e quanto tempo é preciso para se alcançar o último. Jacó, que outrora lutou contra um anjo e que mereceu ver esta escada, nos ensinou quem são aqueles que devem nos conduzir para subir por ela; mas ele não quis, ou, para melhor dizê-lo, não pode nos ensinar nada mais a respeito desse mistério. Agora que eu já falei a respeito, parece-me que a caridade se mostrou a mim do alto dos céus e me fez ouvir estas palavras em minha alma: enquanto você não se libertar da prisão de seu corpo não lhe será possível, apesar de seu amor por Deus, ver e contemplar os traços de minha beleza: contente-se em saber que essa escada, no cimo da qual você me viu apoiada, marca com seus degraus a ordem e o encadeamento das virtudes, conforme disse esse grande homem que, ainda quando vivo, foi iniciado nos mistérios de Deus; pois foi ele quem ensinou que no presente estas três virtudes, a fé, a esperança e a caridade, permanecem e são necessárias; mas que a caridade é a mais excelente das três[119].


***


[1] Na realidade, foi Evagro o Pôntico quem primeiro estabeleceu uma lista dos “pecados” fundamentais, aos quais ele chamou de pensamentos, em número de oito: vanglória, ira, acídia, tristeza, luxúria, avareza, orgulho e gula. Seu amigo e discípulo Cassiano o Romano simplificou esta lista, unindo em um só os pensamentos da acídia e da tristeza, que se tornaram a “preguiça”. Posteriormente, o papa Gregório Magno, no século VI, organizou a lista que é aceita atualmente pela Igreja de Roma: gula, luxúria, avareza, ira, soberba, inveja e preguiça.
[2] Espécie de armadilha que se coloca na terra, com pontas metálicas dispostas de tal maneira que sempre uma está apontada para cima para ferir a quem pisar.
[3] Isaías 3: 12.
[4] Este parágrafo não existe no original consultado.
[5] I Coríntios 2: 11.
[6] Lucas 16: 10.
[7] Mateus 16: 26.
[8] Salmo 39: 15.
[9] Salmo 39: 16.
[10] I Reis 2: 30.
[11] Lucas 6: 26.
[12] Mateus 5: 16.
[13] Lucas 14: 11.
[14] Lucas 18: 11.
[15] Tiago 4: 6.
[16] Salmo 17: 42.
[17] Ibid.
[18] Cf. Mateus 22: 13.
[19] Êxodo 15: 1.
[20] Este parágrafo não existe no original consultado.
[21] Mateus 4: 9.
[22] Mateus 4: 10.
[23] Mateus 11: 29.
[24] Isaías 66: 2.
[25] Mateus 5: 4.
[26] Salmo 24: 9.
[27] Salmo 36: 2.
[28] Cânticos 1: 4.
[29] Salmo 24: 8.
[30] Salmo 7: 11.
[31] Salmo 11: 7.
[32] Mateus 19: 23.
[33] Mateus 11: 29.
[34] Salmo 135: 23-24.
[35] Salmo 114: 6.
[36] Cf. João 10: 8-9.
[37] Salmo 113: 9.
[38] Salmo 21: 26.
[39] Cf. João 13:35 e Lucas 10: 20.
[40] I Coríntios 4: 4.
[41] Cf. Lucas 22: 43.
[42] Jó 42: 6.
[43] CF. Salmo 51: 18.
[44] Cf. II Samuel 12: 13.
[45] Ibid.
[46] Salmo 90: 13.
[47] Cf. Atos 1: 1.
[48] A lista apresentada por João Clímaco não tem correspondência em português.
[49] Cf. Mateus 6: 23.
[50] Cf. Salmo 67: 2.
[51] Cf. II Coríntios 12: 9.
[52] Cf. Salmo 7: 12.
[53] Salmo 69: 2.
[54] Salmo 118: 42.
[55] Salmo 79: 7.
[56] Salmo 38: 2.
[57] Salmo 118: 51.
[58] Eclesiastes 5: 7-8.
[59] Provérbios 24: 6.
[60] I Coríntios 14: 40.
[61] Salmo 142: 10.
[62] Salmo 142: 8.
[63] I Tessalonicenses 2: 18.
[64] Cf. Romanos 8: 28.
[65] Deuteronômio 4: 9.
[66] Mateus 18: 15.
[67] Cf. II Coríntios 6: 8.
[68] Cf. Mateus 18: 22.
[69] Cf. Tiago 2: 10.
[70] Salmo 118: 96.
[71] Salmo 102: 20-23.
[72] Salmo 122: 2-3.
[73] Cf. Isaías 19: 1.
[74] Cf. Salmo120: 3.
[75] Cf. Mateus 5: 8.
[76] Salmo 56: 8.
[77] Cânticos 5: 2.
[78] Cf. II Coríntios 12: 4.
[79] Jó 4: 12-18.
[80] Cf. Jó 39: 5-8.
[81] Salmo 15: 8.
[82] Lucas 21: 19.
[83] Mateus 26: 41.
[84] Provérbios 24: 17.
[85] Salmo 114: 6.
[86] Romanos 8: 18.
[87] Salmo 49: 22.
[88] Romanos 11: 34.
[89] Mateus 11: 28-30.
[90] Cf. I Timóteo 1: 15.
[91]  Jó 38: 11.
[92] I Coríntios 14: 19.
[93] Cf. Atos 12: 8.
[94] Cf. Salmo 72: 25-28.
[95] Cf. Romanos 8: 26.
[96] Cf. Mateus 19: 29.
[97] Cf. Salmo 40: 12.
[98] Salmo 118: 145.
[99] Mateus 18: 20.
[100] I Coríntios 2: 16.
[101] Cf. Salmo 38.
[102] Cf. Salmo 100: 4.
[103] Salmo 41: 3.
[104] Gálatas 2: 20.
[105] II Timóteo 4: 7.
[106] Salmo 17: 30.
[107] Isaías 59: 2.
[108] Cf. João 1: 12.
[109] Cf. Salmo 45: 11.
[110] João 1: 4.
[111] I Coríntios 13: 5.
[112] Cânticos 5: 2.
[113] Cf. Salmo 118.
[114] Cf. Salmo 118.
[115] Cânticos 4: 9.
[116] Cf. Salmo 27.
[117] Cf. Cânticos 1: 7.
[118] Salmo 88: 9-10.
[119] Cf. I Coríntios 13: 13.