quarta-feira, 29 de abril de 2020

Nikolai Berdiaev - O Divino e o Humano - Capítulo XI




XI
A imortalidade

O problema da imortalidade é fundamental, é o maior problema da existência humana, e o homem só é capaz de esquecer-se dela através da superficialidade e de uma mente leviana. Às vezes ele chega a persuadir-se de que a esqueceu; ele não se permite pensar a respeito desse tema que é mais importante do que todo o resto. A prece que nos concede a lembrança da morte é uma prece profunda, e a seriedade da vida em si é condicionada pela lembrança da morte, não só da própria morte como da morte das outras pessoas. Todas as religiões, a começar pelas crenças rudimentares dos selvagens foram modeladas ao redor da morte. O home é um ser que é confrontado pela morte ao longo de toda sua vida, não apenas na sua hora final. O homem trava uma dupla batalha: pela vida e pela imortalidade. A morte é algo que faz parte da vida, e que não está além dela; é o mais estupendo dos fatos, aquele que toca o transcendente.


Um grande sofrimento sempre levanta a questão da morte e da imortalidade; mas toda experiência que intensifica a vida também traz à tona a mesma questão. Muitas formas de religiões e de doutrinas filosóficas foram construídas sobre a vitória contra o medo da morte e o atingimento de uma imortalidade real ou imaginária. Tais são, por exemplo, o ensinamento espiritualista sobre a imortalidade da alma, a doutrina da reencarnação, a doutrina mística panteísta da fusão com o divino, a doutrina idealista da imortalidade das ideias e valores; a doutrina Cristã da ressurreição do homem por inteiro, a suavização do problema da morte através da fusão com a vida coletiva sobre a terra, e da possibilidade de uma felicidade terrena. O ensinamento espiritualista a respeito da imortalidade da alma promete a imortalidade apenas para uma parte do homem, não para o todo. Menos ainda a doutrina da reencarnação fornece a imortalidade ao homem por inteiro, na medida em que pressupõe a dissolução em elementos separados, e a precipitação do homem no ciclo cósmico, deixando-o à mercê do tempo. Dessa forma, o homem pode passar a formas de existência não humanas. A doutrina da fusão com o divino não implica a imortalidade da personalidade, mas só a imortalidade do divino. A doutrina idealista tampouco implica a imortalidade da personalidade, mas a imortalidade impessoal de ideias e valores. Evitar o tema da imortalidade recorrendo ao que eu chamo de panteísmo social, voltado para uma felicidade futura da humanidade, aponta para a insolubilidade do problema e para uma certa hostilidade em relação a ele. Somente a doutrina Cristã da ressurreição do homem por inteiro fornece uma resposta para a questão, embora a essa resposta, como veremos, estejam associadas muitas dificuldades.

O problema da morte e da imortalidade está indissoluvelmente ligado com a consciência da personalidade e com o destino pessoal. Somente a morte da personalidade é trágica. O que é trágico é precisamente a morte de um ser imortal. Não há nada intrinsecamente trágico na morte impessoal; somente a individualidade, a personalidade morre. Se a aguda consciência da personalidade se perde, e seu destino único e central é esquecido, podemos encontrar consolo no fato de que a vida na natureza e na raça se renova eternamente e é imortal. O homem, enquanto personalidade, luta contra a morte em nome da imortalidade. Os biólogos dizem que a morte é o preço a ser pago por um desenvolvimento altamente diferenciado. Simmel expressa isso em termos mais filosóficos, quando diz que a vida recebe uma forma na medida em que as coisas vivas morrem. Mas isso significa também que o que morre é aquilo que mais exige imortalidade. Paradoxalmente, isso se expressa assim: o que mais está sujeito à morte é imortal. Assim é do ponto de vista naturalista; assim é no mundo objetificado.


Meu gato de estimação morreu; dirão que sua morte não é trágica porque um animal não possui personalidade. Esse argumento não tem nenhuma importância para minha experiência de dor profunda, e isso por muitas razões. Um animal no qual se expressam tão grandes qualidades de beleza, inteligência, ternura e charme possui, claramente, uma individualidade irrepetível, única em seu gênero. Não se trata de uma personalidade no sentido humano, mas mesmo assim é uma personalidade, só que em grau diferente. O que mais importa, evidentemente, é que meu grande amor pelo meu gato exige, como o exige todo amor, a imortalidade, a eternidade do objeto amado. Não consigo imaginar o Reino de Deus sem um lugar para meu gato. É uma questão de relacionamento completamente pessoal de minha parte, e a morte de uma criatura à qual não me é concedido o direito de atribuir uma personalidade mostrou-se uma coisa trágica para mim. A teoria de Descartes de que um animal não possui alma e que constitui um mero mecanismo sempre me causou revolta. Essa teoria me parece estúpida, e por esse motivo eu nunca senti muito apreço por Descartes. Mas a negação da possibilidade de imortalidade no caso dos animas me revolta igualmente. Eu vou além. A morte de uma árvore que eu amei e da qual eu me afeiçoei pode ser também uma coisa trágica para mim, e eu faria um esforço espiritual pela sua ressurreição.

A crença dos antigos não estava voltada para a imortalidade do homem e do humano, mas para a imortalidade dos deuses e do divino. a alma estava associada com o sopro, que provinha do deus. A alma era uma sombra. Havia uma crença disseminada de que era preciso alimentar os mortos, para evitar ações hostis de parte deles. No caminho da vida de além túmulo haveria embaraços de diversos tipos, lugares perigosos pelos quais passar, encontros com bestas selvagens. Na vida após a morte a luta era também árdua e perigosa. Somente no Egito a imortalidade se viu condicionada por considerações morais. Os Egípcios foram os primeiros a reconhecer a alma humana como imortal; mas de início somente o rei era considerado imortal, e posteriormente, as classes privilegiadas. A alma que se libertava do corpo era imortal por ser divina. A imortalidade do grão de trigo era a fonte da crença na imortalidade entre os Egípcios. Por meio dos rituais de Osíris o rei se tornava um deus. Traços dessa crença permaneceram ainda na consagração dos reis durante a era Cristã. O rei Egípcio era considerado como uma alma coletiva, a alma da raça, um totem; ele era identificado a Osíris. Mas nessa concepção, a composição do homem era muito complexa. Em cada homem havia um Ka, seu gêmeo, seu totem, sua fonte de vida, o gênio protetor; e era esse Ka que era imortal. Morrer significava viver com o Ka.

A doutrina da reencarnação, muito disseminada no mundo antigo, estava ligada coma ideia de uma compensação mora, com os males que a pessoa causar nas encarnações anteriores. A ressurreição da carne já aparece no Zoroastrismo. É típico que os Gregos conectassem suas esperanças de imortalidade com a alma, enquanto que os Hebreus as conectavam com Deus. É por isso que a ideia de imortalidade da alma tem origem Grega. Para os Hebreus a salvação implicava a salvação do povo como um todo. Foram feitas tentativas de encontrar os germes da crença na imortalidade em Ezequiel, mas de modo geral não encontramos nenhuma crença na imortalidade pessoal entre os profetas. Na escatologia existe uma distinção entre a visão histórico-messiânica e a imortalidade pessoal. Ambas as visões penetraram no Cristianismo. O ensinamento da antiga religião Hebraica era de um estado sem esperanças, denominado Sheol, após a morte, e eles acreditavam na concessão de recompensas somente na vida. O livro de Jó aponta para uma profunda crise nesse pensamento. Somente a partir do século II o Judaísmo aceitou a crença em uma recompensa na vida futura. Mas, diferentemente dos Gregos, os Hebreus desenvolveram uma crença na ressurreição com o corpo, não na imortalidade da alma. Somente os Essênios adotaram uma linha espiritualista e viram no tema uma fonte de mal. Philo, que pertenceu ao pensamento Helenístico, não expressava tanto a ideia de uma expectativa messiânica conectada a todo o povo, como uma expectativa individual em relação à alma. Os gnósticos pensavam que o elemento espiritual no homem devia se separar da matéria e se unir a Deus, que não era o criador do mundo. Mas tanto o Judaísmo como o Helenismo encontraram uma solução para o problema da vitória sobre a morte e o triunfo da imortalidade.

É muito interessante seguir a história da luta pela imortalidade da alma entre os Gregos. Em Homero existe no homem um reflexo invisível que é liberado na morte. Trata-se da Psiquê. O nome permanece após a morte. A religião Homérica inclui um elemento racional. Em Hesíodo as pessoas se tornam demônios. Alcançar a imortalidade implica que o homem se torne um deus. A imortalidade é a manifestação do princípio divino no homem, e somente ele é imortal. O home deve rebater os perigos que o ameaçam a partir dos deuses ctônicos, os deuses do subterrâneo, por meio da purificação. O medo do impuro era característico dos povos antigos. Mas os heróis eram comparáveis aos deuses ctônicos e à morte. Os heróis eram semideuses. Somente os heróis, os semideuses – nunca o povo comum – eram imortais. Existe uma separação entre o homem e a raça divina; não existe uma ligação deus-homem. A crença na imortalidade da alma nasceu do culto de Dionísio. Havia ali uma mistura do super-homem com o inumano, e o humano desaparecia. E isso reaparece em Nietzsche, num período muito posterior na história. O homem é mortal. Mas a imortalidade é possível porque existe um princípio divino no homem. Nele existem um elemento titânico e dionisíaco. A religião puramente Grega de Apolo, infiltrada no culto dionisíaco elemental, e daí surge o Orfismo. A liberação do homem não provém do homem em si, mas pela graça de um deus salvador. O Deus sofredor concede a imortalidade ao homem por Sua morte e ressurreição.  A imortalidade era concedida à alma pela iniciação nos mistérios Órficos. O êxtase dionisíaco libera o deus da conexão com o corpo. Heráclito ensina que a alma é fogo. O deus está no homem; não existe uma imortalidade individual, mas apenas o fogo universal. Pitágoras acreditava na imortalidade da alma, mas a ligava à reencarnação. De acordo com Anáxagoras, é o espírito, não a alma, que é imortal. O comum é imortal, mas não o individual. É difícil combinar a doutrina da imortalidade individual com a doutrina platônica das ideias. A ideia do mundo além era estranha à tragédia Grega. A ideia de que a alma era imortal em sua própria natureza era estranha às crenças populares Gregas. Essa ideia foi desenvolvida na teologia e na filosofia. A busca pela imortalidade estava conectada com os mistérios, e isso indicava o fim das religiões tribais e o início do universalismo.

A dificuldade de resolver o problema da imortalidade está em que ele sempre é colocado a partir de uma perspectiva de objetivação, da projeção da existência humana dentro do mundo objetivo. Eternamente a alma depende do corpo e o corpo depende do mundo físico objetivo. O homem é transformado em objeto, um dentre os muitos objetos que existem no mundo. Biologicamente a morte acontece a partir da desintegração da complexa composição do organismo. Mas a célula, por sua vez, é imortal, porque é simples. Weissmann pensava que o germe plasmático era virtualmente imortal. Platão defendia a possibilidade da imortalidade com base em que a alma é simples; esse se tornou um argumento clássico para tudo o que possui um caráter essencialmente naturalístico. A energia física do organismo humano não perece, ela apenas se transforma e se dissipa no mundo. Podemos nos perguntar o que acontece com a energia física após a morte. O organismo humano consiste numa composição múltipla; ele é colonizado e, por conseguinte, facilmente solúvel. A personalidade é a única coisa única e imutável dentre as mudanças constantes da composição múltipla do homem; e o princípio espiritual é o que mantém essa singularidade e essa permanência.

Mas existe um paradoxo no fato de que o próprio princípio espiritual requer a morte, uma vez que as infinitas aspirações do homem não podem se realizar dentro dos limites desse mundo fenomênico. A morte reina apenas no mundo dos fenômenos, que está sujeito ao tempo cósmico e histórico. No tempo existencial ela representa não mais do que uma experiência, nada além do que a passagem por um teste. A morte pertence ao destino do homem; morrer é passar pela mais irracional e estupenda experiência que o homem pode ter.

O sentido espiritual da morte é diferente do significado biológico. É um erro pensar que o “nada” existe no mundo natural. Não existe o nada, o vazio, a não-existência na natureza; existe apenas mudança, dissolução, composição, desenvolvimento. O horror do nada, do abismo do não-ser existe apenas em relação ao mundo espiritual. A morte que reina na natureza não é o “nada”. O horror da morte é espiritual, assim como a vitória sobre a morte é espiritual. A morte surge de maneira diferente e possui um significado diverso quando vista de um ponto de vista interior, de uma perspectiva existencial, quando o homem não pensa a si mesmo como projetado no mundo exterior e objetivo. Da perspectiva da existência interior ninguém, de fato, reconhece a possibilidade de um desaparecimento final do ego, daquilo que ele conquistou enquanto personalidade. Eu me pego num juízo contraditório a respeito disso: se não houver nada para mim após a morte, após a morte eu devo estar consciente disso. Se eu morrer e já não houver vida para mim, eu desaparecerei finalmente, e já não existirá nada; já não existirá mundo, porque eu era a única prova da existência do mundo.

A personalidade humana é mais real do que todo o mundo; ela constitui o noúmeno em oposição ao fenômeno; em seu âmago ela pertence à eternidade. Mas isso não pode ser visto desde fora, mas somente de dentro. A alma humana é limitada pelo corpo; ela depende da necessidade natural; mas internamente ela é infinita. Não apenas aquilo que no presente momento se revela como sendo minha alma, mas também aquilo que se revela como minha alma através de toda a extensão de minha vida, não passa de uma pequena parte de minha alma enquanto potencial infinito, tanto em direção à luz, como em direção à treva. A vida, desde o nascimento até a morte, não passa de um minúsculo fragmento de meu destino eterno. O que é de vital interesse para mim é o problema da individualidade que existe em mim, não a questão de minha raça, nem o bem impessoal, nem a razão, e por aí vai. Se em meu destino final eu devo me fundir a Deus, e se meu ego individual desaparece, então eu jamais saberei disso, e isso nada acrescentará a mim, pois não haverá uma consciência minha que esteja ciente disso. O ensinamento de Averroes sobre a imortalidade do intelecto, por exemplo, diz respeito à imortalidade do fator racial no homem; mas ele não responde ao problema da imortalidade. O mesmo é verdade para a imortalidade racial impessoal na memória dos descendentes, nas ideias ou no mundo criado; nada disso resolve o problema. O homem busca uma imortalidade pessoal, não a imortalidade num objeto, mas a imortalidade do sujeito. Mas as doutrinas da imortalidade, em grande parte, trazem a marca da objetificação. É muito importante reconhecer o fato de que somente o eterno é real. Tudo o que não é eterno, tudo o que é transitório, não possui realidade própria. Nietzsche dizia que a eternidade era necessária para a alegria, para a felicidade momentânea, e que assim tudo se justificava. Mas isso só faz sentido se esse mesmo momento entrar na eternidade, se ele não for uma fração do tempo. Nietzsche escreveu para Deussen que ele gostaria de estar certo, não por hoje, nem por amanhã, mas para milhares de anos. Mas existe pouca diferença entre milhares de anos, e hoje ou amanhã; é preciso estar certo por toda a eternidade. Existe um momento de êxtase e de união criativa com Deus, que é uma união com a eternidade, e um escape do poder do tempo.

A morte, que surge como a irrupção da regularidade rítmica da natureza, e à qual o homem está condenado por um processo biológico, é a coisa mais individual e pessoal para o homem. Ela significa, acima de tudo, a dissociação dos contatos e relações com outras pessoas e com a vida do cosmos. Todo homem deve passar pela tragédia da morte. De acordo com Freud, a morte é a meta para a qual se move a vida; o instinto do ego é o instinto da morte. Ao mesmo tempo, e ainda de acordo com Freud, que não admitia nenhum princípio superior ao homem, ninguém acredita na sua própria morte. O paradoxo da morte é que, embora ela seja o mais temível dos males, aquele que mais aterroriza o homem, é através desse mal que se abre o caminho para a vida eterna, ou, ao menos, um dos caminhos para ela. Nossa vida é cheia de paradoxos desse tipo. Assim, por exemplo, a guerra é um mal terrível, mas ela pode revelar possibilidades de heroísmo e um crescimento acima da banalidade da vida cotidiana. Uma infinitude patética da vida é o que torna o homem uma criatura finita.

Existe um conflito entre a imortalidade pessoal e a geração de um filho, que constitui a imortalidade da raça. O poder de produzir uma nova geração de modo algum corresponde a uma qualidade da personalidade, bem ao contrário. A individualidade mais acabada pode possuir a menor capacidade de produção de novas vidas. A imortalidade na vida da raça, em filhos e netos, como a imortalidade da nação, no Estado ou no coletivo social, nada tem em comum com a imortalidade do homem. Isso é verdade, embora em grau diferente, não apenas em relação ao mundo humano, como também para o mundo animal. A relação entre personalidade e sexo é muito complexa e misteriosa. O sexo é algo impessoal, é a presença da raça no homem; e isso o distingue do eros, que possui um caráter pessoal. Por um lado, a energia sexual é um impedimento na luta pela personalidade e a espiritualização, ela esmaga o homem em sua monótona impessoalidade; ao mesmo tempo, por outro lado, ele pode ser transmutado em energia criativa, e a energia criativa exige que o homem não seja uma criatura assexuada. Mas a verdadeira transfiguração e iluminação do homem requer uma vitória sobre o sexo, que é uma marca da Queda do homem. Uma mudança na consciência humana também está associada com a vitória sobre o sexo. A imortalidade depende da condição da consciência. Não se trata de uma consciência dividida, não uma consciência que se desintegra em seus elementos ou que se recompõe a partir de seus elementos, que conduz à imortalidade, mas apenas uma consciência integral. No homem, o imortal está também ligado à memória. Na vida humana é doloroso, não apenas o esquecimento do que foi querido e precioso, a perda da memória, como também – o que é pior – a impossibilidade de esquecer o mal e o penoso do passado. A imortalidade corresponde a uma memória clara e serena. A coisa mais temida na vida é o sentido da irrevogabilidade, da irreparabilidade, da perda absoluta. A liberdade do homem nada pode fazer contra isso, e a crença numa imortalidade individual em nada ajuda. Esse é um ponto em que a ligação divino-humana se parte. É o abandono de Deus. Somente a crença no poder da graça que provém de Cristo pode ajudar, pois Nele encontra-se encarnado o vínculo entre o divino e o humano. A luz pode ser avivada na mais espessa treva.

O homem aspira a uma imortalidade integral, não à imortalidade do super-homem, ou do intelecto, ou do princípio ideal que existe nele: ele aspira à imortalidade do pessoal, não do impessoal ou do que é comum. O problema da morte foi associado a uma questão de sono. Theodor Fechner pensa que a morte é uma transição entre um quase sono que é nossa vida terrestre, para um despertar e um estado de vigilância. O sonho indica a perda da síntese mental; o que Fechner quer dizer é que estamos vivendo num estado semiconsciente, num estado parcialmente de sonho. A imortalidade será assim a transição para a consciência total, que eu prefiro chamar de supraconsciência. Uma consciência plena e integral é uma supraconsciência, e é também um despertar espiritual. Uma consciência voltada para o mundo fenomênico é uma semiconsciência; ela não passa da liberação da consciência apenas em relação ao poder do mundo fenomênico que abre uma perspectiva de imortalidade. A coisa terrível é que perspectivas escatológicas, na maior parte das vezes, são pesadelos, que revelam a temível depressão e o terror que existem no homem.

A consciência humana está sujeita a muitos pesadelos escatológicos, embora às vezes eles adquiram uma forma agradável. O Cristianismo, até hoje, não superou o caráter de pesadelo de sua escatologia pessoal, a introdução do princípio moral nas crenças sobre a vida além túmulo consistiram, é claro, num progresso; tratava-se da espiritualização de crenças mágicas. Mas o princípio moral assumiu um caráter que ameaçava o julgamento e inspirava medo. Mesmo as crenças Cristãs a respeito da vida após a morte carregam a marca de uma imaginação sádica; a imaginação que criou as imagens da vida após a morte foi vindicativa e maligna. Um apocalipse vingativo ainda pode ser encontrado no livro de Enoch, que antecipou o apocalipse Cristão. O Orfismo foi uma forma elevada da consciência religiosa Grega; mas a ideia de inferno, de recompensas e de punições provém, ao que parece do Orfismo. Os pesadelos escatológicos criados pelo próprio homem, às vezes num estado de pavor, às vezes com um desejo de vingança, tomaram diferentes formas. Esses pesadelos, e a perspectiva de uma desaparição final da totalidade do homem, são típicas de um ser que se vê como o centro existencial do universo, com uma realidade maior do que a realidade do mundo. O homem de nosso tempo que processa uma tola visão materialista coerente com sua condição de espiritualidade adormecida, é obrigado a lidar com tais pesadelos. E ele tenta se persuadir de que essa perspectiva escatológica é um consolo para sua vida terrena. Nesses casos, é a vida real que perde todo o seu significado.

Mas existem outros, e mais positivos, pontos de vista sobre o futuro, que não deixam de ser um pesadelo, ou seja, a perspectiva de intermináveis reencarnações, a de uma completa perda da personalidade numa divindade impessoal e monótona e, acima de tudo, a perspectiva dos tormentos eternos do inferno. E, se alguém puder acreditar na possibilidade de uma existência sem fim nas condições de nossa vida atual, isso o levaria a pensar no inferno, o que seria também um pesadelo que evocaria o desejo da morte. A filosofia religiosa Hindu via a reencarnação de uma maneira diversa daquela das modernas teosofias Europeias. Dentre essas, ela se tornou uma doutrina evolutiva otimista, enquanto que na Índia ela constitui uma crença pessimista. O Budismo ensina, acima de tudo, os meios de emancipação dos sofrimentos da reencarnação. A crença na reencarnação não é algo benéfico, e impede a liberação do Karma. Ela não contém nenhuma indicação de saída; nenhum meio de passar do tempo para a eternidade. Adicionalmente, a doutrina da reencarnação justifica da injustiça social e o sistema de castas. Aurobindo, de quem já falei, construiu uma doutrina panteísta mística da imortalidade que é muito superior às doutrinas teosofistas sobre a reencarnação. Segundo ele, a morte é a resposta do todo a uma falsa limitação do ego em sua forma individual. Aurobindo também assimilou alguns elementos Cristãos, embora não desposasse a ideia Cristã de personalidade. Ele dizia que o home que está submetido ao sofrimento e à dor, que é escravo de sensações e emoções, que se ocupa de coisas efêmeras, não tem conhecimento da imortalidade. Com isso, ele quer dizer que a imortalidade é algo a ser conquistado.

A visão de Leon Tolstoy sobre a imortalidade possui um caráter panteísta e lembra mais a filosofia religiosa Hindu do que o Cristianismo. Ele vê a vida pessoal como uma espécie de falsa vida, e em sua visão a personalidade não pode ser herdeira da imortalidade. O horror da morte que tanto sofrimento causou a Tolstoy conectou-se com sua concepção de personalidade, ou seja, com essa espécie de falsa vida. Não haveria morte, pensava ele, quando a vida pessoal é superada. O ensinamento de Nietzsche sobre o eterno retorno consiste na ideia Grega que só admite o tempo cósmico e que mantém o homem como um todo debaixo do poder do ciclo cósmico. Isso pertence ao mesmo tipo de pesadelo que a ideia de uma reencarnação interminável. O eterno retorno contradiz uma outra ideia de Nietzsche, sua ideia messiânica do super-homem. Já escrevi o suficiente sobre essa concepção. O humano, segundo Nietzsche, não somente é mortal como sujeito a desaparição, mas seu desaparecimento é desejado. O pensamento de Nietzsche é decididamente antipersonalista, como o é a ideia de sua antítese, Tolstoy.

O ensinamento de Fedorov sobre a ressuscitação é a mais personalista e humana, de um caráter verdadeiramente humano. Ele pretende que todos os mortos que nos precederam devem receber de volta a vida; ele não admite ver nenhum dos que morreram no passado, como meio de assegurar os interesses do futuro ou o triunfo de qualquer espécie de princípio objetivo impessoal, qualquer que seja, e o que está em jogo é a ressuscitação do home por inteiro. Isso não implica uma expectativa passiva da ressurreição dos mortos, mas um processo que envolve uma participação ativa, vale dizer, um ato de ressuscitação, de reanimação. Mas a fraqueza filosófica de Fedorov reside nisso, que ele dá muito pouca ênfase ao poder criativo do espírito na ressurreição dos mortos, e coloca muita fé no poder do conhecimento técnico. Nisso podemos sentir a influência de uma época de naturalismo científico. Fedorov está absolutamente certo ao considerar que o tema principal do Cristianismo não é a justificação, mas a imortalização, a aquisição da imortalidade, não a sua justificação.

A necessidade da imortalidade jaz nas profundezas da natureza humana. Mas as crenças na imortalidade trazem a marca da limitação da natureza humana. Nela entram ainda os maus instintos humanos, que criaram imagens do paraíso e, especificamente, do inferno. Sempre foi muito difícil para todos falar sobre o paraíso, pois apesar de tudo o inferno está mais próximo do homem; existe menos do outro mundo nele. Mas a imagem do paraíso facilmente dá lugar ao tédio. O tema do paraíso perturbou muito a Dostoievsky, e ele expressou pensamentos notáveis a respeito, como, por exemplo no Sonho de um Homem Ridículo. Ele sempre ligava a questão do paraíso ao problema da liberdade; ele não podia aceitar um paraíso sem liberdade; mas, ao mesmo tempo, o a liberdade sempre poderia criar o inferno. O caráter repulsivo da imagem de um paraíso que carrega, por transferência, as marcas sensuais do mundo, no qual os justos sentem prazer nos sofrimentos dos pecadores no inferno, se deve ao fato de que nada pode ser menos apofático do que o modo como as pessoas pensam o paraíso. Pois o pensamento catafático sobre o paraíso sempre será intolerável para uma moral refinada e para um senso estético. A vida perpassa o infinito; mas a ideia catafática sobre o paraíso possui uma finitude que é desprovida da verdadeira vida criativa. Karl Jaspers fala sobre a posição fronteiriça do homem (Grenzsituation), e na verdade o homem se encontra na fronteira entre diversos mundos; ele não está presente como um todo em apenas um mundo. O homem é um ser de muitos planos; num momento, ele é transportado ao outro mundo; em outro, ele vai ao fundo do abismo.

O problema metafísico da imortalidade está ligado, acima de tudo, com o problema do tempo. Será essa existência nesse tempo cósmico e histórico a única existência para o homem? Ou existirá ele também no tempo existencial, que toca a eternidade e pode mergulhá-lo no eterno? Negar a imortalidade implica assumir que sua existência no tempo é definitiva e única; equivale a dizer que ele está esmagado pelo tempo no mundo fenomênico. A última palavra em filosofia que Heidegger propõe é o caráter finito da existência humana. O Dasein, com o qual ele substitui o homem real, é uma existência finita que se dirige para a morte. A tormentosa ideia do inferno se deve a uma confusão entre eternidade e infinito. A ideia de um inferno eterno é absurda por completo. O inferno não é uma eternidade: não existe outro tipo de eternidade que não a eternidade divina. O inferno é um mau infinito, a impossibilidade de se libertar do tempo para a eternidade; é um pesadelo nascido da objetificação da existência humana, submersa no tempo de nosso éon. Se houvesse algo como um inferno eterno, isso seria o fracasso definitivo e a derrota de Deus; e a condenação de toda a criação do mundo como uma farsa diabólica. Mas existem muitos, muitos Cristãos, para quem o inferno é muito agradável, embora não para eles próprios, naturalmente. A ontologia do inferno é a mais maligna forma de objetificação, a mais pretensiosamente detalhada, a mais inspirada pelos sentimentos de vingança e malícia. Mas a psicologia do inferno é possível, e está associada a uma experiência real.

A interpretação lega da imortalidade é tão básica quanto a antiga concepção mágica. Existe um elemento educacional que desempenha um grande papel nas doutrinas tradicionais sobre a imortalidade, e que é claramente de caráter exotérico. Somente uma concepção espiritual da imortalidade é capaz de responder a uma consciência mais elevada, mas uma concepção espiritual não significa em absoluto que somente a parte espiritual do homem seja imortal. A ressurreição do corpo também deve ser entendida num sentido espiritual. “Ele é semeado como um corpo natural, e renasce como um corpo espiritual”. O homem é imortal porque nele existe um princípio divino, mas não é só o divino no homem que é imortal; todo o organismo do homem, de que o espírito toma posse, é imortal. É a parte espiritual do homem que se bate contra a objetificação final da existência humana, a objetificação definitiva que termina na morte para o homem, submergindo-o finalmente na corrente mortal do tempo. A objetificação da consciência produz a ilusão de um espírito objetivo que só é capaz de reconhecer a imortalidade impessoal.

Uma intensa consciência de sua própria vocação e de sua missão no mundo pode proporcionar o sentido da imortalidade, e isso independentemente das ideias conscientes do homem. Assim acontece um entrelaçamento entre a escatologia pessoal e a escatologia histórica do mundo todo. Minha imortalidade não pode ser separada da imortalidade das outras pessoas e do mundo. Ser absorvido exclusivamente na própria imortalidade pessoal, ou em sua própria e exclusiva salvação constitui um egoísmo transcendente. Se a ideia de uma imortalidade pessoal é separada de uma perspectiva escatológica universal, do destino do mundo, ela se torna uma contradição de amor. Mas o amor é a principal arma espiritual na luta contra a soberania da morte. Essas duas antíteses, amor e morte, estão conectadas. O amor se revela com o máximo de sua força quando a morte se aproxima, e ele não pode deixar de conquistar a morte. Aquele que ama verdadeiramente é o conquistador da morte. Tentamos fazer esforços sobre-humanos para assegurar que aqueles a quem amamos – não só homens, como animais também – possam herdar a vida eterna. Cristo conquistou a morte porque Ele era a encarnação do amor divino universal, e porque o amor não poderia deixar de desejar a salvação universal da morte, e a ressurreição universal. Enquanto houver uma única criatura que possua um centro existencial e que não tenha ressuscitado para a vida eterna, o mundo terá fracassado e a teodiceia terá sido impossível. Nessas condições, minha imortalidade pessoal não estaria simplesmente incompleta sob determinado aspecto; ela seria, de fato, impossível. Eu dependo do destino do mundo e daqueles que estão próximos a mim, e o destino daqueles que me são próximos, e também o destino do mundo, dependem de mim.

Fedorov estava certo e proclamou uma verdade sagrada quando afirmou que o homem deveria ser um agente da ressurreição, mas ele vinculou o destino do homem de forma demasiado exclusiva ao mundo fenomênico, a esse esquema atual de existência. A morte do homem nesse esquema terrestre de existência não pode ser decisiva e definitiva para seu destino. Se a reencarnação, num sistema único de existência, se choca com a ideia de personalidade, num esquema múltiplo de existência ela se torna inteiramente compatível com a ideia de personalidade. O fato de que o caminho pelo qual a vida humana atinge a realização da plenitude da vida e toma seu rumo através do mundo espiritual, não está em contradição com a verdade de que o corpo humano, a forma do corpo, e não apenas a alma, deve herdar a eternidade. Pois o fato de que a forma do corpo está indissoluvelmente ligada com a imagem da personalidade humana certamente não implica um laço indissolúvel com a materialidade do corpo, que é uma composição físico-química essencialmente mortal. A ressurreição do corpo é a ressurreição do corpo espiritual.

A ligação mais misteriosa é aquela entre o destino pessoal e o messianismo histórico. A plenitude da verdade Cristã, que só pode se realizar numa religião do espírito, envolve a união da imortalidade pessoal com a solução messiânica do destino da história, da ideia mística com a ideia profética. Ambos os caminhos da vida espiritual que buscam elevar-se, escapando aos destinos do mundo e da história, e não se dispondo a partilhar deles, e, por outro lado, o que persegue o mesmo objetivo pela atenção exclusiva aos destinos da história, da sociedade e do mundo, abandonando o caminho espiritual pessoal, ambos são igualmente incompletos e errados em sua exclusividade. Nisso reside toda a complexidade do problema da imortalidade. A imortalidade não é somente uma aquisição humana, não meramente um dom divino, ela é uma empreitada divino-humana; é o trabalho a cargo da liberdade e uma obra da graça, um efeito realizado tanto de baixo como de cima. Supor que o homem é por natureza um ser imortal equivale a se perder no pensamento, assim como não é correto pensar que ele simplesmente recebe sua imortalidade desde o alto, de um poder divino.

O erro, aqui como em toda parte, reside na ruptura da ligação que enlaça o homem e o divino, na autoafirmação do homem e ao mesmo tempo na sua degradação de sua verdadeira humanidade. A toda hora estamos aptos a nos encontrarmos pensando na imortalidade, transferindo para o mundo fenomênico aquilo que só tem sentido no mundo noumênico, e vice versa. Também estamos errados quando criamos um rompimento entre os mundos do fenômeno e do noúmeno. A doutrina da imortalidade deve passar através da chama purificadora do criticismo, assim como passou a doutrina da revelação. Ambas tiveram que ser purificadas do ingênuo antropomorfismo, do cosmomorfismo e do sociomorfismo. Mas existe também um antropomorfismo verdadeiro que nasce da posição central que o homem ocupa e do fato da incomensurabilidade entre o humano e o divino. esse antropomorfismo deve se unir ao teomorfismo, ou seja, ele deve ser divino-humano. A verdadeira perspectiva da imortalidade deve ser, desde logo, humana e divina, e não abstratamente humana. Assim, na questão da imortalidade, voltamos a encontrar a mesma dialética entre o divino e o humano.

sábado, 18 de abril de 2020

Nikolai Berdiaev - O Divino e o Humano - Capítulo X






A beleza



A beleza é uma característica do estado qualitativo mais elevado do ser, do ponto mais elevado que a existência pode alcançar. Podemos dizer que a beleza não constitui apenas uma categoria estética, mas também uma categoria metafísica. Se existe algo que o homem percebe e aceita integralmente, como um todo, é precisamente a beleza. Falamos de uma bela alma, de uma bela vida, de uma bela ação, e assim por diante. Não se trata apenas de uma apreciação estética, mas de uma apreciação integral. Tudo o que existe de harmonioso na vida é belo. Um elemento de beleza reside congruentemente em tudo. A beleza é o objetivo final da existência do mundo e do homem. O bem é um meio, uma via, e ele nasce como oposição ao mal (a consciência do bem e do mal). A beleza está além da consciência do bem e do mal. O bem está igualmente além da distinção entre o bem e o mal, na medida em que o mal é esquecido e o bem se torna belo. Não é possível existir uma deformação moral no belo, pois essa é uma propriedade do mal.  A beleza do mal é uma ilusão e uma fraude. O Reino de Deus só pode ser pensado como um reino de beleza. A transfiguração do mundo é uma manifestação da beleza. E toda a beleza do mundo é ao mesmo tempo uma memória do paraíso e uma profecia do mundo transfigurado. A experiência de todo estado harmonioso é uma experiência de beleza. A beleza constitui a ideia final no horizonte da vida, da qual foi extirpada toda desarmonia, toda feiura e toda baixeza.

Devemos traçar uma distinção clara entre a beleza e a mera formosura. A formosura é uma beleza fraudulenta. Ela se refere exclusivamente ao mundo fenomênico; na beleza, ao contrário, existe um princípio noumênico. Mas a beleza possui sua própria dialética, e o homem que melhor tratou disso foi Dostoievsky. Ele pensava que a beleza é capaz de salvar o mundo. Mesmo assim, ele disse: “A beleza não é apenas terrível, mas também é misteriosa, é aqui que o diabo disputa com Deus, e o campo de batalha são os corações dos homens”. Como podemos entender isso? De fato, podemos dizer da beleza, que ela e uma vitória nessa luta e um ingresso na comunhão com o mundo divino. mas a beleza é criada e revelada num mundo de trevas, um mundo dominado por um conflito passional. E nas almas dos homens ela pode se ver envolvida num choque entre princípios contraditórios. A maior beleza existe na tragédia. O próprio Dostoievsky era um escritor trágico. A tragédia é um choque entre dois princípios contrários; ela não representa uma vida harmoniosa. Mas a doutrina de Aristóteles sobre a catarse fala de uma experiência da beleza mediante a tragédia. A beleza trágica é mais profunda do que outras formas de beleza, pois nela está a luz divina.

Exteriormente a beleza harmoniosa pode ser enganosa e falsa, e pode mesmo parecer feia. A beleza pode passar ao seu oposto, como qualquer outro princípio, quando ela se afasta da fonte da luz. O mesmo, aliás, pode ser dito da verdade, que ela consiste numa harmonia e que se repousa de uma dolorosa batalha, que ela pode se tornar um campo de guerra entre Deus e o diabo. O diabo procura se utilizar da beleza para seus próprios fins. A beleza é uma grande alegria nesse mundo sofredor, tanto a beleza da natureza quanto a da arte. É fora de discussão que o julgamento estético não inclui esse elemento de sofrimento que existe no julgamento moral. E talvez seja por essa razão que o diabo tenta usar a beleza para seus propósitos. A beleza pode se tornar diabólica, não por sua própria natureza essencial, não apenas por existir; mas é possível utilizá-la num conflito entre forças diametralmente opostas.

A beleza fraudulenta é possível, como no caso da beleza enganadora de certas mulheres, ou de determinados produtos de arte. O princípio demoníaco não reside na beleza, nem na criatividade, mas na condição interior e nas tendências dos homens. O princípio demoníaco nas obras de Leonardo da Vinci constitui um tema favorito – por exemplo, em seu São João Batista e na Gioconda. Mas o elemento demoníaco que talvez existisse no próprio Leonardo, foi consumido em sua arte criativa, na qual ele obtinha uma transfiguração através da qual atingia a eternidade. O meio no qual os desvios demoníacos mais aparecem é o esteticismo, que reconhece apenas os valores estéticos, e substitui todos os demais, tais como a verdade e a bondade, por eles. Mas os grandes criadores nunca foram estetas. O esteticismo não é uma condição criativa, ele é um estado de passividade. O esteta vive em seu meio, ele se move num mundo secundário, não num mundo primário. Ele nunca busca a verdade, nem se agrada dela, pois ela constitui para ele uma lembrança desagradável. O desvio demoníaco que brota desse solo não se aprofunda. De fato, estou inclinado a pensar que os estetas não amam a beleza, pois não existe neles a atração pelas alturas divinas. O esteticismo produz seus mais venenosos frutos na vida pública, onde ele distorce todos os valores. Podemos ver isso em Nietsche e Leontyev. É intolerável que alguém adote uma atitude hostil em relação à realização de uma maior equidade na vida social, sob a alegação que no injusto regime passado existia mais beleza. O esteticismo histórico e o romantismo de Leontyev são intrinsecamente falsos e errados.

A percepção intuitiva da beleza na natureza, no homem ou numa obra de arte constitui um domínio criativo sobre o caos, a desintegração a e a feiura. É um ato que rompe com a feia couraça que envolve o mundo. Quando a questão de ser a beleza objetiva ou subjetiva é colocada nos livros de estética, esse é um modo errôneo de considerar o problema. Quando se diz que a beleza é subjetiva e não objetiva, o que está dito é que ela não passa de uma ilusão, de uma condição subjetiva do homem. Mas também não é verdade dizer que a beleza é objetiva. Dizer que a beleza é subjetiva implica também dizer que ela é real, pois a realidade está fundamentada na subjetividade – nessa existência que ainda está cheia da chama primordial da vida, e não na existência objetificada, na qual o fogo da vida se extinguiu.

Isso nos conduz ao complexo problema da relação entre a criatividade e a objetificação, ou alienação. A expressão tangível e concreta de qualquer ato criativo constitui uma objetificação? Será a beleza, que pode ser realizada pelas forças criativas da natureza, ou pelo poder criativo do homem, uma beleza indefectivelmente “clássica” e objetiva? A controvérsia entre o classicismo e o romantismo está ligada a isso. O classicismo exige algo como uma completude e um acabamento objetivos, vale dizer, ele requer a perfeição nos produtos da criação. O mesmo teria que acontecer com os fenômenos da natureza, para que pudessem ser considerados acabados. Mas a natureza sabe ser romântica também. As novelas de Sir Walter Scott estão cheias disso. A objetividade clássica consiste na obtenção da perfeição dentro do finito, como uma espécie de triunfo sobre a informalidade do infinito. Não por acaso, os Gregos associavam a perfeição com a finitude, e temiam o infinito como sendo o caos. O romantismo, ao contrário, tendo surgido somente após a era Cristã, debruça-se sobre o infinito; ele não crê na obtenção da perfeição dentro do finito.

Clássico e romântico partilham da mesma expressão do princípio eterno. A criatividade humana não pode se esforçar pela perfeição da forma, assim como não pode encontrar satisfação em qualquer coisa que seja finita e confinada a esse mundo. O noúmeno do qual provém a criatividade, deve estar sempre além do fenômeno, pois o que é finito se esgota em sua investida em direção ao infinito. As relações entre a forma e o infinito conteúdo da vida são paradoxais e informais. Sem a forma não existe beleza, a ausência de forma é desagradável, e podemos dizer mesmo feia. A força criativa da vida necessita receber uma forma, isso pode ser visto nos processos da natureza, na modelagem do cosmo. Mas a forma pode se tornar endurecida e ossificada, ela pode extinguir o fogo criativo da vida, esfriá-lo e impor limites a ele. então o fogo criativo precisa ser aceso novamente, ele deve romper as formas que se tornaram rígidas e entorpecidas e se desviaram do caminho para o conteúdo infinito. O conflito é eterno e não pode chegar a um fim dentro dos limites desse mundo. A beleza está ligada à forma, mas também à força criativa da vida, que aspira ao infinito.

Para usarmos a fraseologia de Nietsche, é preciso combinar Apolo e Dionísio, os dois princípios eternos. O eterno princípio da forma e o eterno princípio do poder infinito devem se fundir. Vyacheslav Ivanov dizia que Dionísio em si é desagradável de se ver, mas que sem Dionísio não existiria a beleza de Apolo. As mesmas forças operam também na existência cósmica. Mas a beleza jamais pode ser objetificada em si, e não exigir mais do que a mera passividade em relação a si mesma. A beleza, mesmo quando é apenas contemplada, requer a atividade criativa do sujeito. A beleza não é nunca objetiva, ela consiste sempre numa transfiguração. E apenas a transfiguração criativa é real. As grandes artes nunca foram puramente clássicas, nem puramente românticas, elas nunca se encaixaram num conflito de tendências, nem puderam ser inteiramente objetificadas, porque nelas sempre subsistiu um elemento eterno. A forma da grande arte jamais se torna rígida num mero formalismo, pois a ela se liga o infinito, e a aspiração ao infinito. É o que acontece em Shakespeare, Goethe, Tolstoy, Dostoievsky, Sófocles, Beethoven, Rembrandt, Michelangelo e outros. Assim, também a beleza de um rosto humano tem que ter forma, ele não pode ser belo sem ela, mas debaixo dessa forma deve brilhar uma aspiração à existência infinita, sem a qual essa beleza se torna uma coisa morta. E a beleza da natureza deve ser vida, não apenas forma. Benedetto Croce está certo quando ele conecta a arte acima de todas as expressões. Aqui não apenas existe uma tendência específica da arte à qual se deu o nome de expressionismo, mas de fato toda arte, e toda beleza, é expressionista. A beleza é a expressão da vida infinita numa forma finita.

Houve um movimento simbolista na arte, mas que pertence ao passado. Mas ainda existe um simbolismo eterno na arte. A coisa mais realista seria se através da arte pudesse se realizar a transfiguração da vida humana e da vida do mundo. Mas o que a arte fornece são meros acenos que antecipam a transfiguração real. O significado das artes reside no fato de que ela antecipa a transfiguração do mundo. A arte está cheia de simbolismo do outro mundo. Toda vez que se alcança a beleza, isso constitui um começo da transfiguração do mundo. A transfiguração não é obtida dentro dos limites da arte. Mas a arte pode ultrapassar as fronteiras que foram colocadas a ela como uma esfera separada da cultura. Assim é que as maiores conquistas da literatura Russa do século XIX foram alcançadas toda vez que se foi além da arte, tentando-se passar da criação de obras de arte perfeitas para a criação de uma vida perfeita. Richard Wagner tentou transformar toda a vida numa síntese entre música e poesia. Os simbolistas pretenderam superar as fronteiras da arte, indo além dela em direção a algo que fosse mais elevado do que a arte; mas nem sempre eles obtiveram sucesso nisso. O sentimento simbolista pela vida foi responsável por conduzir a um extremo exagero dos mais insignificantes eventos das próprias vidas (podemos ver exemplos disso em Andrei Byeli, Alexander Blok e outros), seja num exagero hipócrita, seja numa perda do sentido da realidade. Mas também aqui houve uma parte importante.

O romantismo, mesmo sem se satisfazer com a finitude da arte clássica e se confinamento dentro de uma esfera separada da cultura, também se mostrou incapaz de alcançar o quer almejava. Mas existe uma outra forma de arte, que age mais poderosamente sobre a alma humana – a qual, em sua natureza, é mais romântica do que clássica – e essa forma de arte é a música. A música é uma arte dinâmica. Sua esfera está no movimento, no t empo, mas não no espaço; não se pode encontrar nela a forma acabada de uma arte plástica, e isso, em especial, fazer nascer no homem uma comoção emocional que toca profundamente seu coração. É verdade que falamos da música clássica como sendo diferente da romântica, mas trata-se apenas de uma expressão convencional. A música clássica por excelência é a de Bach, e ela tenta expressar a música das esferas celestes, não a tragédia humana, como o faz Beethoven. Mas mesmo a música de Bach conduz a pessoa para fora desse mundo, e não a deixa com uma perfeição formal acabada típica desse mundo, como às vezes acontece com as artes plásticas. Não é por mero acaso que a música é uma arte associada à era Cristã e com a aspiração Cristã de ir além das fronteiras e em direção ao transcendente.

Foi a escultura, por ouro lado, que caracterizou a arte Grega. A pintura, naturalmente, é uma forma de arte mais complexa do que a escultura; quanto à literatura, sua forma mais complexa, e também a menos pura, é a novela, característica da alma do século XIX. O homem já não buscava tanto a beleza como a veracidade. Isso foi um ganho em si, mas ao mesmo tempo conduziu a algo que obscureceu o ideal de beleza. NO final, a arte passou a repudiar o ideal de beleza. Os livros de estética deixaram de relacionar a receptividade estética e a emoção estética com a beleza. Isso deu nascimento a uma profunda crise na arte. Podemos ver isso em movimentos como o futurismo, o cubismo, o surrealismo e outros. A poesia e a arte deixaram de ser uma reminiscência do paraíso, e passaram a falar do inferno. O inferno se tornou um dos temas da literatura moderna (em Kafka, por exemplo). Antes disso a arte já representava a feiura (como em Goya, em Gogol), mas a feiura se transfigurou em arte na medida mesma em que hoje já não se faz esforço algum para alcançar essa transfiguração. E as tentativas de voltar ao classicismo são impotentes e reacionárias. A crise da arte é a crise do homem, e ela reflete o estado do mundo. O mundo está passando por uma condição fluída, ele perde sua forma, já não existe solidez nele. As formas sólidas do cosmos desaparecem nas teorias e nas descobertas da física contemporânea. As formas sólidas da alma humana se perdem nas descobertas da psicanálise e entre os filósofos do desespero, do medo e do horror. As formas sólidas da vida social se perdem na desintegração do velho mundo, e assim por diante. Cada vez é mais difícil à arte e à literatura alcançar uma forma sólida.

A crise da arte é também a crise de toda a cultura, e ela leva ao tema da escatologia. O sentido imediato da beleza do cosmo se enfraquece e se retira, pois já não existe nenhum cosmo. Ele foi destruído pelas ciências físicas e pelo poder do conhecimento técnico sobre a alma humana de hoje. A máquina foi colocada entre o homem e a natureza. A entrada numa época que é técnica por excelência possui uma importância metafísica. E nessa época as relações humanas com a beleza são revolvidas. O homem, por assim dizer, perdeu o que restava de sua memória do paraíso. Ele se move em direção a uma noite na qual não é possível distinguir as formas, mas apenas o brilho das estrelas. Estamos quase chegando ao fim. No meio das formas dissolventes do mundo, o culto da Igreja possui uma grande estabilidade, e, conforme passa o tempo, sua beleza afeta poderosamente a vida emocional do homem. Isso pode ser facilmente entendido, pois é aí, acima de tudo, que a conexão divino-humana se encontra preservada. Mas mesmo aí são possíveis processos de mortificação, a menos que formas renovadoras sejam descobertas para expressar o processo criativo religioso.

Há cerca de trinta anos eu conduzi uma leitura pública sobre “A agonia da beleza”. Eu sustentei uma tese pessimista a respeito da diminuição da beleza no mundo. A beleza está morrendo tanto na vida do homem – que se torna a cada dia mais desagradável e sem estilo – como na arte que repudia a beleza mais e mais. A arte busca expressar a verdade amarga sobre o homem, e essa verdade é desagradável. Trata-se de um grande serviço prestado pela arte e a literatura, e que contribui para o conhecimento da vida. Pela contemplação da beleza plástica o homem retorna a períodos antigos. A época da habilidade técnica, a idade das massas, a idade das quantidades esmagadoras, a da aceleração do tempo, essa época não deixa espaço para a beleza. É como se o triunfo de uma mais ampla justiça social fosse uma coisa desagradável; como se nos tempos da injustiça social a vida fosse mais bela. Mais do que tudo, é isso que abalou Constantine Leontyev. Nietsche era revoltado contra a feiura da era democrática. Ele se voltava para a Renascença, um período que foi profundamente imoral, mas criativo em matéria de beleza.

Existe um conflito entre a beleza e a bondade, e a solução desse conflito está longe de ser tão simples quanto parece aos estetas e aos moralistas. A união da beleza com a verdade constitui a transfiguração total da vida e sua iluminação, enquanto que a beleza divorciada da verdade e da bondade começa logo a decair e termina em feiura. Não existe um crescimento progressivo da beleza na história da cultura, mas podemos traçar um refinamento e uma agudização da consciência e da sensibilidade estética. Aqui é preciso reconhecer a verdade do pessimismo estético. O esteticismo não pertence tanto aos períodos de tempo marcados pela criação da beleza, como aos períodos em que a beleza falta. As épocas de maior vigor na criação da beleza certamente não foram aquelas de maior avanço na consciência estética.

É natural que as pessoas caiam sob a influência da ilusão estética. Somos arrebatados pela beleza das ruínas históricas. Mas nesse passado que nos atrai não haviam ruínas, pois elas pertencem ao tempo presente ficamos deliciados pela beleza de uma igreja antiga, mas ela pertencia ao seu próprio tempo, quando ela era nova, quando havia sido simplesmente construída e não era uma coisa antiga. O mesmo acontece com tudo o mais. No passado, esse passado que atrai o esteta não existia, o que existia no passado era o presente. O fato de que o passado envelheceu é para nós um consolo, em meio à feiura do presente. Recordar a força criativa, seu poder transfigurador, não é, de modo algum, uma condição passiva. Estamos ao mesmo tempo colidindo com a natureza paradoxal do tempo. Atualmente, as principais cabeças dos novos movimentos intelectuais e literários da França estão chegando a uma filosofia do desespero, e para eles a última palavra caberá à não-existência. O homem é tão ardiloso que ele é capaz de encontrar consolo mesmo no desespero. As maioesr influências sobre essas correntes de pensamento são de Nietsche e Heidegger, e em parte, de Kierkegaard e Shestov, embora esses últimos constituam uma direção diferente, por suas aspirações religiosas. Sartre, Bataille, Camus, são representativos desses novos movimentos. Tomados por um sentido da feiura e da repelência da existência, eles tentam encontrar uma via de escape nos poderes criativos do homem. Mas, para eles, o homem é nada, e não passa de poeira. Como pode ele ser criador, se não possui poder para tanto? A bondade em si é impotente, ela não é capaz de salvar. Mas em si a criatividade na arte é igualmente impotente, e tampouco é capaz de salvar. O homem se vê face a face com o abismo da não-existência, com o desespero como resultado de experimentar o sopro que existe entre o humano e o divino, o desespero de conhecer o abandono de Deus. A beleza não é somente humana, ela é divino-humana. A jornada ao longo do caminho da pura autoafirmação e da autossuficiência conduz à ruína da beleza. Existe aqui uma dialética inescapável, a dialética da vida em si, não meramente do pensamento. O tema da beleza leva à questão do fim e da escatologia. O homem palmilha o caminho da Cruz até o final.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Nikolai Berdiaev - O Divino e o Humano - Capítulo IX




A espiritualidade



A aquisição da espiritualidade constitui um problema central na existência humana, mas a espiritualidade precisa ser tomada num sentido mais amplo do que aquele em que costuma ser entendida. A espiritualidade é necessária, mesmo na luta que no homem sustenta nesse mundo. Sem a espiritualidade é impossível fazer sacrifícios ou executar feitos heroicos. Alegra-se com a luz do sol constitui uma alegria espiritual: o sol é espiritual. A forma do corpo humano e o semblante humano são espirituais. Uma grande espiritualidade pode existir num homem que, à primeira vista de seus pensamentos, e, em muitos casos, tendo de si um falso entendimento, se considere como materialista. Chernishevsky[1] pode ser tomado como exemplo disso. Se for possível construir uma filosofia da espiritualidade, ela não teria a forma da matéria abstrata que recebeu essa denominação nas escolas, e que se parece com uma metafísica naturalista. O espírito não é uma substância. Ele não só constitui uma realidade diferente daquela do mundo natural, como ainda é uma “realidade” num sentido totalmente diferente. O espírito é liberdade e energia livre, que irrompe no mundo natural e histórico. É essencial afirma a relativa verdade do dualismo, sem o qual a independência da vida espiritual não pode ser entendida. Mas o dualismo não é entre espírito e matéria, ou entre espírito e corpo. O espírito é liberdade, não natureza. O espírito não é um constituinte da natureza humana; mais do que isso, ele é o mais alto valor qualitativo. A qualidade espiritual e o valor espiritual do homem são determinados, não pela natureza de qualquer espécie, mas pela união da liberdade e da graça.

O espírito é revolucionário em relação ao mundo natural e histórico; ele irrompe desde o outro mundo nesse mundo, e derruba a ordem coercitiva desse mundo. O elemento fundamental da existência do mundo consiste na libertação da escravidão. Mas o erro fatal dos libertadores foi o de supor que a libertação provém da matéria, da natureza. A liberdade provém do espírito. Um erro ainda mais fatal, e esse, de parte dos defensores do espírito, foi o de pensar que o espírito não liberta, mas que ele está ligado e subordinado à autoridade. Tanto um grupo como outro se enganam a respeito do espírito, e prepararam o caminho de um verdadeiro progrom sobre a espiritualidade. O espírito não é apenas liberdade, ele também é sentido. O sentido do mundo é espiritual. Quando se diz que a vida e o mundo não têm sentido, a existência de um sentido mais elevado do que a vida e o mundo e consentido por isso mesmo, ou seja, o julgamento é estabelecido sobre a falta de sentido da existência do mundo, do ponto de vista do espírito. O filósofo Alemão Karl Jaspers (1884-1969) diz com razão que o espírito ocupa uma posição paradoxal entre opostos. O espírito e a espiritualidade refazem, transformam e iluminam o mundo natural e histórico; eles lhe trazem liberdade e sentido.

A objetificação do espírito aparece quando ele é visto como encarnação e realização. Mas o espírito objetificado é um espírito alienado de si mesmo, um espírito que perdeu seu fogo, sua juventude e força criativa; é um espírito acomodado ao mundo do dia-a-dia, à mediocridade. Não podemos falar em um espírito objetivo, como falou Hegel. A verdade é que só existe o espírito subjetivo, ou um espírito que se coloca além do subjetivo e do objetivo. “Espiritualidade objetiva” é uma expressão sem sentido. A espiritualidade é sempre subjetiva; ela está fora da objetificação. A objetificação é, como se fosse, a atrofia e a mortificação do espírito. A espiritualidade está fora do mundo fenomênico objetificado; não que ela não possa se desenvolver fora dele, ela simplesmente irrompe dentro dele. Não podemos acreditar num triunfo progressivo no desenvolvimento do espírito e da espiritualidade na história, como acreditava Hegel. As mais altas expressões da espiritualidade no mundo não transmitem a impressão de serem resultado de um desenvolvimento gradual do espírito na história.

Alcançar a espiritualidade consiste na libertação do poder do mundo e do meio social. É como se fosse uma irrupção do noumênico no fenomênico. O crescimento da espiritualidade no homem não pertence à regularidade rítmica do processo evolutivo. Onde opera a liberdade não existe processo algum controlado pela necessidade; onde age a criatividade não existe evolução no sentido naturalista do termo. A espiritualidade é uma incumbência, um problema colocado para o homem em relação à vida. Existe um paradoxo no fato de que o crescimento da espiritualidade é realizado pelo próprio esforço espiritual que existe no homem; mas esse crescimento não pode se o resultado de condições que não sejam espirituais. O mais elevado não pode provir do mais baixo, daquilo que não contém em si a semente do mais alto, que não contem a potencialidade do mais alto. O desenvolvimento espiritual é a realização do possível. Uma experiência de vida que não contenha nada de espiritual pode parecer estimular uma força espiritual num homem; por exemplo, o sofrimento devido a uma doença ou devido ao desejo por justiça, contra uma injustiça ou uma traição; mas, na realidade, o despertar da força espiritual pressupõe que ela sempre tenha estado ali, latente, num estado oculto e adormecido. A liberdade, que se opõe à natureza, é sempre espírito. O erro da teoria evolucionista natural consiste na suposição de que o mais baixo pode dar origem ao mais alto, de que o material tem poder para criar o espiritual. O poder espiritual no homem não é humano em sua origem, ele é divino-humano. A espiritualidade é uma condição divino-humana. Em suas profundezas espirituais o homem toca o divino, e é dessa fonte divina que ele recebe seu suporte.

Não existe uma evolução necessária na história espiritual do mundo, como supunha Hegel e outros depois dele. O que vemos na história do mundo é a objetificação do espírito. Mas a objetificação do espírito corresponde à sua diminuição. A objetificação é o contrário da transcendência, vale dizer, do movimento em direção a Deus. Mas seria um erro ver no processo de objetificação da espiritualidade, que encontra sua expressão na evolução da civilização, apenas uma negatividade. Nas condições do mundo fenomênico, ele também possui um sentido positivo. Ele contribui para subjugar a barbárie, a selvageria, a natureza animal do homem, e assim a consciência do homem começa a crescer. Mas esse é um processo elementar, e as alturas da espiritualidade não podem ser alcançadas por ele. Mais do que isso, não temos como definir exatamente quando a verdadeira espiritualidade se revela; sua revelação pode não se dar nos pontos mais altos da civilização. É muito importante entender, além disso, que de modo algum a espiritualidade se opõe à alma e ao corpo; ela os controla e os transfigura. O espírito é, acima de tudo, uma força libertadora e transformadora. Um homem que expressa uma grande espiritualidade não é necessariamente um homem que se retirou do mundo e da existência histórica. Ele é um homem que se coloca na existência do mundo e da história, que é ativo nela, mas que é livre de seu poder e que está empenhado em transformá-la.

A espiritualidade que dá as costas ao mundo pluralista, como, por exemplo, em certas formas de espiritualidade na Índia, como em Plotino, como no monasticismo ascético, não pode ser considerada Cristã; ela contradiz o caráter divino-humano do Cristianismo e o mandamento de Cristo a respeito de amar o próximo. A espiritualidade Cristã não é apenas ascendente; ela é também descendente, e somente essa espiritualidade é verdadeiramente humana. Uma forma de espiritualidade que seja inumana e hostil ao homem é também uma possibilidade; e essa deterioração da espiritualidade é mais comum do que se pensa. Mas o homem deve aceitar a responsabilidade não apenas sobre seu próprio destino e sobre o destino dos que lhe são próximos, mas também sobre o destino de seu povo, da humanidade e do mundo. Ele não deve se separar de seu povo e do mundo para, orgulhosamente, habitar a sós nas alturas espirituais. O perigo do orgulho reside em esperar no caminho, e muitas advertências foram feitas a esse respeito. Esse perigo é sempre resultado do mesmo rompimento da ligação divino-humana. Um exemplo desse orgulho está em alguns Brâmanes que se consideram super-homens; ele também está presente em certas formas de ocultismo. A coisa mais necessária é esforçar-se pela espiritualidade humana, que é também uma espiritualidade divino-humana.

Não apenas existem espiritualidades Cristãs e não-Cristãs, como ainda dentro do próprio Cristianismo existem vários tipos, como, por exemplo, as espiritualidades Ortodoxa e Romana. Mas a espiritualidade possui suas próprias fundações eternas. A espiritualidade da Índia é muito profunda. Os místicos de todos os tempos e de todos os povos saúdam-se mutuamente. A oração possui um significado universal. O homem é uma criatura que ora, e mesmo os que não se consideram crentes sentem necessidade de orar. No que consiste a essência da prece? A prece é evocada pelo anseio que a pessoa tem de não se sentir inteiramente dependente da necessidade que reina no mundo, e do poder do destino que está presente nesse mundo. A prece é uma conversa com o Único Existente, que é exaltado acima do ciclo do mundo, acima da falsidade e o erro nos quais o mundo está submerso. A espiritualidade Cristã se distingue da não-Cristã pelo fato de afirmar constantemente a personalidade, a liberdade e o amor. Uma espiritualidade na qual a pessoa única, ímpar, irrepetível desapareça, e na qual não exista a liberdade do homem e o amor pelo homem, deve ser considerada como sendo não-Cristã. A espiritualidade chamada monástica, que nega a independência da natureza humana, é não-Cristã.

A espiritualidade da Índia, sublime como é, é fria em comparação com a espiritualidade Cristã, devido principalmente ao seu caráter panteísta, que nega metafisicamente o princípio da personalidade. Aurobindo, em seus comentários sobre o Bhagavad-Gîta, diz que o homem sábio é benevolente com todos por igual; que ele se caracteriza pela indiferença em relação ao tudo, pela ausência de desejo, e por negar a distinção entre a felicidade e a infelicidade. Ideias similares nasceram também no Cristianismo, em especial na espiritualidade ascética Síria e na Dobrotolyubie. A mesma separação em relação ao mundo múltiplo pode ser encontrada no misticismo de Plotino e nos neoplatônicos. Mas a verdadeira espiritualidade do Cristianismo é cristológica, ou seja, divino-humana. Nela, o homem não pode desaparecer numa apática união e identificação. A espiritualidade divino-humana pode começar com a consciência da condição pecadora e da indignidade do homem, submerso que está ele nos elementos do mundo, mas ela deve afirmar a dignidade do homem por ser a semelhança de Deus, predestinado à eternidade. O sentimento amargo que nasce do conhecimento da baixeza humana não deve esconder o alto destino ao qual o homem está predestinado.

A espiritualidade Cristã não é friamente desapaixonada; ela é uma chama ardente; nela combinam-se um sentimento de emancipação e de separação em relação aos elementos do mundo e uma participação no destino desse mesmo mundo, da humanidade e de toda a criação sofredora. A espiritualidade deve transformar, não esmagar a natureza passional do homem. O Cristianismo liberta o homem dos espíritos elementais da natureza, e ao fazer isso ele afirma a independência e a liberdade do homem e do espírito. Mas isso não implica em absoluto uma indiferença em relação ao mundo e ao homem. No próprio fundamento do Cristianismo está o mandamento de amar a Deus e ao próximo, e nisso reside seu caráter divino-humano e, por isso, verdadeiramente humano. Trata-se da antítese da separação e do distanciamento em relação ao mundo múltiplo. Amar ao próximo equivale a amar o mundo múltiplo. Voltar-se para o Um não significa dar as costas ao múltiplo, e a tudo o que há de individual no mundo.

Mas a espiritualidade, como tudo o mais no mundo, é objetificada. Ela adquiriu um caráter formal e legal; ela se esfriou; ela se acomodou à prosaica normalidade social e se adaptou ao homem médio. O caráter não espiritual da pretensa vida nas Igrejas oficiais e outras Confissões é apavorante. Elaborou-se uma espiritualidade convencional, retórica, formal, e que fez nascer um desgosto em relação ao Cristianismo. Estabeleceu-se uma importância desmedida ao fato de que a espiritualidade estava originalmente ligada aos mitos. Todo mito significativo estava ligado a uma realidade, mas essa conexão se perdeu, e um ávido desejo pelo direito e a veracidade da vida espiritual fez com que surgisse uma necessidade de libertar a espiritualidade do mito. Isso implicou uma transição do simbolismo para o realismo, para um realismo místico.

O ego profundo do homem conecta-se com a espiritualidade; o espírito é o princípio que sintetiza, que mantém a unidade da personalidade. O homem deve o t empo todo realizar uma ação criativa em relação a si mesmo. Nesse ato criativo a autorrealização da personalidade abre seu caminho. Trata-se de uma luta constante contra a multiplicidade do falso ego que existe no homem. O caos puxa o homem; e ele se conecta com o caos oculto que se esconde por detrás do cosmo. É desse caos que nascem os egos falsos e ilusórios. Toda paixão pela qual o homem se vê possuído pode criar um ego que não é real, que é um Es. NA luta pela personalidade, pelo ego real e profundo, surge um processo de dissolução – esse é um perigo que aguarda sempre – e um processo de síntese, de integração. O homem tem mais necessidade de uma psico-síntese do que de uma psico-análise, que pode conduzir à desintegração ao colapso da personalidade.

A espiritualidade que provém das profundezas constitui também um poder que molda e mantém a personalidade do homem. O sangue, a hereditariedade, a raça possuem um significado que não vai além do fenômeno, do mesmo modo que o indivíduo biológico. Mas o espírito, a liberdade, a personalidade possuem um sentido noumênico. Os sociólogos sustentam que a personalidade humana é moldada pela sociedade, pelas relações sociais, e que a sociedade organizada é a fonte da mais elevada moralidade. Mas a ação da sociedade sobre o homem, impondo-se a ele de fora para dentro, exige uma adaptação a normalidade do cotidiano, aos requisitos do Estado e ao código de comportamento estabelecido pela nação. Isso atira o homem numa atmosfera de mentiras úteis que o protegem e garantem. Um sentimento de verdade e de direito conduz o homem a um conflito com a sociedade. Aquilo que, espiritualmente, é mais significativo no homem certamente não provém das influências sociais, nem do meio social; ele provém de dentro, não de fora.

O primado da sociedade, a dominação da sociedade sobre o homem, leva a que a religião se transforme numa arma da tribo e do Estado, e numa negação da liberdade de espírito. A religião Romana estava baseada num forte sentido da vida social, mas do ponto de vista espiritual ela era uma religião muito fraca. O Cristianismo histórico foi distorcido pelas influências e os ajustes sociais. A arregimentação social do homem conduziu à indiferença em relação ao direito e à verdade. Todo sistema social monista é hostil à liberdade de espírito. O conflito entre o espírito e a sociedade organizada com seu legalismo é um conflito eterno. Mas seria um erro interpretar isso como um individualismo e uma falta de senso de sociedade. Ao contrário, é preciso insistir em que existe uma sociabilidade interior, que o homem é um ser social e que ele é plenamente capaz de se realizar apenas dentro da sociedade. Mas uma sociedade melhor, mais justa e real só pode ser criada a partir da sociabilidade espiritual do homem, a partir de uma fonte existencial, e não da objetificação.

A sociedade que é deificada o é de um ponto de vista metafísico, o que constitui um princípio reacionário. A irrupção da espiritualidade na vida social é possível, e tudo o que existe de bom na vida social provém dessa fonte. A espiritualidade traz consigo a libertação; ela traz consigo a hominidade, enquanto que a dominação de uma sociedade objetificada traz em si a escravidão. A ideia absolutamente falsa corrente na segunda metade do século XIX, de que o homem é uma criação do meio social, deve ser abandonada. Ao contrário, o meio social é que consiste numa criação do homem. Isso não significa que o meio social não atue sobre o homem; ele o faz, e em alto grau. Mas o meio social servil que escraviza o homem é fruto de uma condição servil do próprio homem, uma criação de almas servis. Se não existe Deus, então eu sou um escravo do mundo. A existência de Deus e a garantia de minha independência em relação ao mundo, à sociedade e ao Estado.

Dostoievsky diz que às vezes o homem acredita em Deus através do orgulho. Essa frase é um paradoxo; mas, socialmente, seu significado é de que o homem não consente em se prostrar diante do mundo, da sociedade e das pessoas, e que ele adora a Deus como a única fonte de sua independência e liberdade em relação ao poder do mundo. Existe um orgulho, no bom sentido, na recusa em adorar a qualquer um, ou qualquer coisa, exceto Deus. Espiritualmente, o que está sempre ligado a Deus é o encontro da força interior; ela constitui uma resistência ao poder do mundo e da sociedade sobre o homem. São loucos os que pensam que o fato de que Deus existe empobrece o homem, e que Deus constitui uma alienação de suas próprias riquezas, como pensa Feuerbach. Não: o homem se torna incomensuravelmente rico pelo fato de que Deus existe. A pessoa só é miserável se só existir ela mesma, se não nada acima dela, nada maior do que ela. E todo o mundo se torna terrivelmente pobre, insosso e sem brilho se ele for suficiente em si, se não existir um Mistério além dele.

Além do tipo de espiritualidade que encontramos nos livros de misticismo que descrevem o caminho da alma para Deus e a experiência de comunhão com Deus, existe também outro tipo de espiritualidade, totalmente diferente, que podemos chamar de profética. O profetismo é de inspiração divina; trata-se de ouvir a voz interior de Deus sobre o destino do mundo e da humanidade, sobre o futuro. O homem profeticamente inspirado é um solitário; muitas vezes, ele é apedrejado pelo povo a quem ele serve, mas num sentido espiritual ele se inclina para a sociedade; ele está envolvido com a sociedade. O caminho do homem de inspiração profética não é um caminho de ascensão metódica, mas o caminho de uma irradiação interior. A espiritualidade profética é inteiramente diferente da espiritualidade elaborada pelas escolas místicas da Índia e da Grécia. Trata-se da espiritualidade do tipo dos antigos Hebreus, dos Persas e dos Cristãos. Mas o Cristianismo combina em si os dois tipos de espiritualidade.

A espiritualidade está ligada tanto com uma escatologia individual como com uma escatologia histórica e universal. O Cristianismo primitivo herdou um messianismo Hebraico conectado com o destino da história, e um messianismo Grego ligado ao alcance de uma imortalidade individual através dos mistérios. Por esse motivo podemos ver que na doutrina Cristã da imortalidade existem dois estratos (a imortalidade individual da alma e a ressurreição dos mortos na carne), que não são fáceis de combinar numa unidade. Mas a espiritualidade é sempre uma preparação e uma promessa de imortalidade. A estrutura natural do homem não é imortal em si, ela se torna imortal em virtude de estar penetrada pelo espírito, pelo princípio que permite que o humano e o divino se toquem. O amor é uma grande força espiritual, e ele vence a morte e traz a imortalidade; ele é mais forte do que a morte. O amor está conectado com a personalidade e exige que a personalidade seja imortal.

Nygren, em seu livro já referido aqui, vê no ágape a essência do Cristianismo, e conecta isso ao senso de comunidade, vale dizer, à Igreja. O homem se eleva a Deus pelo eros; no ágape Deus se abaixa até o homem. Deus ama porque ama, não como resultante de qualquer qualidade presente no objeto de Seu amor. E é nisso que consiste também o verdadeiro amor humano. Não é possível encaixar o mais misterioso fenômeno da vida do mundo, o amor, num esquema de “eros” e “ágape”. Na visão de Nygren o misticismo e a gnose pertencem à tradição de eros, e por isso ele os rejeita. Dessa maneira, o Cristianismo é empobrecido. A espiritualidade, em todas as suas formas, é uma luta pela eternidade. A verdadeira humanidade exige uma luta pela eternidade, pois a morte é o mais inumano dos princípios.

Na fraseologia religiosa a espiritualidade é a revelação do Espírito Santo ao mundo e ao homem. Mas o Espírito Santo não se revela de fato completamente; ele não se extravasa realmente na vida do mundo. Uma nova espiritualidade é possível, uma espiritualidade divino-humana na qual o homem se revele com sua força criativa, numa extensão mais ampla do que o fez até agora. A criatividade, a liberdade, o amor, mais do que tudo, devem caracterizar a nova espiritualidade. É preciso dar uma resposta à agonia do mundo, ao interminável sofrimento do homem. A velha espiritualidade não fornece resposta a isso. Mas antes do transbordamento da luz é inevitável uma diminuição das trevas. Antes de uma nova intensidade da espiritualidade o desgaste da espiritualidade se torna visível. Antes do advento do novo Deus-homem, deve acontecer uma irrupção da desumanidade, indicativa do estado de abandono de Deus no homem. A dialética existencial entre o divino e o humano ainda não chegou ao fim, ainda não atingiu seu limite, mas existem ocasiões em que ela toca seu fim e seus limites, e o homem se vê na beira do abismo. A expectativa por uma nova espiritualidade é a expectativa por uma nova revelação do Espírito Santo no homem e através do homem. Aqui não cabe uma espera meramente passiva; é preciso que existe uma condição ativa no homem. Se o homem estiver condenado a esperar um evento do alto, tremendo passivamente, a espiritualidade não será divino-humana, e a divina humanidade não se tornará possível. O paráclito se revelou mais de uma vez na história Cristã, mas ai da não chegou o tempo, a hora ainda não se apresentou. Mas existem muitas circunstâncias que nos fazem pensar que o tempo e a hora estão se aproximando cada vez mais.



[1] Nikolay Gavrilovich Chernyshevsky (1828-1889) foi um escritor revolucionário russo, filósofo materialista, crítico e socialista.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Nikolai Berdiaev - O Divino e o Humano - Capítulo VIII




A hominidade


Não existe, realmente, uma verdadeira antropologia religiosa e metafísica. Nem a antropologia dos Padres, nem a antropologia escolástica, nem mesmo a antropologia dos humanistas, podem nos satisfazer. A doutrina tradicional Cristã sobre o homem não nos revelou a natureza criativa do homem; ela foi sufocada pela consciência depressiva do pecado. Por outro lado, a concepção da hominidade não alcançou diretamente as profundidades de suas fundações religiosas e metafísicas. A verdadeira hominidade consiste na semelhança para com Deus: ela consiste no divino presente no humano. O divino presente no homem não é “sobrenatural”, nem constitui um ato especial da graça; ele é o princípio espiritual que existe no homem como uma realidade específica. Nisso reside o paradoxo das relações entre o humano e o divino. Para que a pessoa seja inteiramente humana é preciso que ela seja semelhante a Deus. É preciso possuir a imagem divina, para poder ter a imagem humana. O homem, tal como o conhecemos hoje, quase não chega a ser humano; na verdade, muitas vezes ele é inumano. Não é o homem que é humano, mas Deus. É Deus que pede ao homem que ele seja humano; de sua parte, o homem pede muito pouco por isso. Exatamente da mesma maneira é Deus que pede ao homem que seja livre, e não o homem em si. Por si só, o homem ama a servidão e trata com ela com grande facilidade. A liberdade não é um direito do homem, mas uma obrigação do homem perante Deus. O mesmo pode ser dito sobre a hominidade. Ao realizar em si mesmo a imagem de Deus, o homem realiza a imagem humana, e ao realizar em si a imagem humana, ele realiza a imagem divina. Nisso reside o mistério do Deus-homem, o maior dos mistérios da vida humana. É no Deus-homem que consiste a hominidade. O home realiza em si a imagem de um animal, muito mais do que a imagem de Deus. A hominidade animal ocupa um espaço incomensuravelmente maior do que a hominidade divina, a hominidade em Deus.

A imagem do animal no homem certamente não implica sua semelhança com as feras, que são uma maravilhosa criação de Deus. O horrível não é o animal, mas o homem que se torna um animal. Um animal é muito melhor do que um homem que se torna um animal. O animal é incapaz de descer aos horríveis patamares que o homem pode alcançar. No animal vemos uma semelhança com os anjos; eles trazem dentro de si uma imagem distorcida de um anjo, do mesmo modo como o homem traz em si a imagem distorcida de Deus. Mas num animal essa imagem jamais chega a ser tão horrivelmente distorcida como ela é no homem. O homem é responsável por sua condição de animal nesse mundo, enquanto que o animal não é responsável; e isso é determinado pelo fato de que o homem constitui um microcosmo, e possui a liberdade que outras partes do cosmo não possuem, pelo menos não no mesmo grau. Se não existisse Deus, o homem seria animal perfeito, e ao mesmo tempo um animal deteriorado. O Deus-homem é um duplo mistério, o mistério do nascimento do nascimento de Deus no homem e do homem em Deus. Não é apenas a necessidade que o homem tem de Deus, como também a necessidade que Deus tem do homem. O monismo, o monofisismo, negam essa dupla verdade e a independência do homem. Existem dois movimentos, um que parte de Deus em direção ao homem, outro que parte do homem em direção a Deus. O homem é necessário para a vida divina, para sua plenitude, e apenas por causa disso existe o drama do divino e do humano. As relações entre Deus e o homem não são forenses, mas dramáticas.

O nascimento do homem em Deus é um processo teogônico. Em sua eterna ideia a respeito dele, o homem está enraizado no Deus-hominidade e conectado ao Deus-homem, e assim podemos dizer que existe em Deus uma hominidade pré-eterna. O Homem pré-eterno existe, aquele que a Cabala chama de Adão celestial (hebraico: Kadmon). A humanidade existe na eternidade, mas deve ser realizada no tempo. Esse é um mistério da relação paradoxal entre a eternidade e o tempo. A eternidade em si deve ser entendida dinamicamente, não de modo estático; nela, o repouso absoluto coincide com o movimento absoluto. A “condição humana[1]” não é a mesma coisa que o humanismo, nem o humanitarianismo: ela é a hominidade de Deus no homem. O dogma Cristológico expressa a verdade a respeito do Deus-hominidade de forma simbólica, mas ainda sem estender essa verdade ao homem inteiro, simplesmente porque ele é homem, vale dizer, ele é um Deus-homem apenas potencialmente falando. Isso não pode ser entendido em termos racionais. Se tentarmos conceber isso em termos racionais, sempre iremos tender a um desvio, seja para o monismo, seja para o dualismo. É muito fácil produzir uma exposição racional ao estilo do monismo, sobre a verdade de que a imagem do homem é a imagem de Deus. Mas aqui existe o mistério da união de dois em um, o mistério do Deus-homem, de um duplo movimento. De todos os doutores da Igreja, talvez somente São Gregório de Nissa tenhas defendido a liberdade e a dignidade do homem enquanto imagem de Deus. Sua antropologia é a melhor que existe dentro do pensamento Cristão a respeito do homem.

Nosso entendimento do homem em geral, ou de qualquer homem concretamente e em particular, é muito confusa pelo fato de que a composição do homem é complexa, e porque não é tarefa simples reduzir a complexidade à unidade. A personalidade do homem é resultado de um conflito. É a composição múltipla do homem que tornou possíveis essas antigas concepções que admitiam a existência de uma sombra, de um duplo do homem; e era difícil decidir qual seria a realidade principal. Não há dúvida de que existe um duplo ego no homem – o verdadeiro, o real, o ego profundo, e o ego criado pela imaginação e as paixões, que é fictício e que arrasta o homem para baixo. A personalidade é elaborada por meio de um longo processo de tensão, pela escolha, pela eliminação daquilo que existe em mim, mas que não compõe meu ego. A alma consiste num processo criativo: ela é atividade. O espírito humano deve sempre transcender a si mesmo e despertar para aquilo que existe de mais elevado no homem; somente então o homem não perde a si mesmo, somente assim ele não desaparece, mas realiza a si próprio. O homem desaparece na autoafirmação e na autocomplacência, e por isso esse sacrifício constitui o caminho para a realização da personalidade. O homem não aparece como sendo um ser absolutamente solitário. Nele, existe a voz do daimon. Os Gregos diziam que os daimons eram aqueles que outorgavam a felicidade. O “eudaimônico” é aquele que recebia um bom daimon para si. A complexidade da composição do homem se torna ainda maior assim. Mas isso não deve, de modo algum, ser estendido ao núcleo metafísico da personalidade. Existem muitos egos, mas existe o ego profundo. O homem é confrontado por muitos mundos que correspondem a diferentes formas de atividade: o mundo da vida prosaica do dia-a-dia, o mundo da religião, o mundo da ciência, o da arte, o da política, o da economia, e muitos ainda. E esses vários mundos deixam sua impressão sobre a formação da personalidade, sobre o modo como o mundo será representado; nossa percepção do mundo é sempre um ato de escolha, um ato de limitação, e existe muita coisa que escapa ao campo da consciência. Cada ação nossa, como, por exemplo, a leitura de um livro, é assim. Cada pessoa entende apenas aquilo que ela encontra em si mesma.

O homem é, ao mesmo tempo, extremamente limitado e infinito. Ele possui uma capacidade ínfima, e ao mesmo tempo encontra espaço para todo o universo. Potencialmente, ele inclui tudo o que existe, mas só é capaz de realizar um pouco. Ele é uma contradição viva, uma mistura de finito e de infinito. Da mesma, podemos dizer que o homem combina em si o sublime e o medíocre. Pascal expressou isso melhor do que ninguém. A separação das emoções, da vontade, ou dos processos de apreensão intelectual, existem apenas no pensamento abstrato, enquanto que para a realização concreta todas as coisas pressupõem a totalidade da vida física. O ato criativo sintetizador gera a imagem do homem, que, sem ele, não passaria de uma coleção e uma miscelânea de partes e peças. O enfraquecimento da espiritualidade no homem, a perda de seu centro, chega, de fato, à desintegração em partes e peças. Trata-se de um processo de dissolução e de dissociação da personalidade. Mas a vida emocional é um elemento básico e compõe o pano de fundo da existência humana. Sem o emocional, mesmo a apreensão se torna impossível. Carl Gustav Carus (1789-1869), um antropólogo e psicólogo da era romântica, pensava que o consciente era individual, enquanto que o inconsciente seria supraindividual. Isso é verdadeiro apenas no sentido de que, nas profundezas do inconsciente, o homem vai além das fronteiras da consciência e entra em união com os elementos cósmicos. A amarga verdade que deve ser reconhecida é que é uma coisa natural para as pessoas odiar e matar umas às outras, mas é algo supranatural e espiritual para elas amarem-se e ajudarem-se mutuamente. Por essa razão, o que deve ser afirmado não é o direito natural, a ética natural e a razão natural, mas o direito espiritual, a ética espiritual, a razão espiritual. Houve um engano, quando a integralidade da liberdade humana foi correlacionada com o primitivo e o natural, com as fontes do mundo fenomênico, quando, na verdade, ela só pode ser correlacionada ao espírito, ao mundo noumênico. Tudo é determinado por um ato do espírito que emerge acima do ciclo natural. Felix Ravaisson, em seu livro De l’Habitude, contrasta a paixão (na qual a causa reside fora do ser que a experimenta) com a ação (quando a causa está no próprio ser). Mas a ação tem a primazia sobre a paixão, uma vez que o que provém de fora consiste numa projeção e numa ejeção para o exterior daquilo que o ser contém em si mesmo.

A dolorosa e dramática natureza da existência humana depende, em grande medida, da seclusão dos seres humanos uns em relação aos outros, e da fraqueza dessa espiritualidade sintetizadora que deveria conduzir à unidade interna e à união entre os homens. A união erótica, de fato, causa uma dissociação temível e até hostil. A verdadeira união entre seres humanos é uma evidência da ligação entre o humano e o divino. somente no Deus-homem as pessoas podem se unir, não no humano; a unidade do humano só existe enquanto unidade espiritual, enquanto unidade de destino. Quando os homens tentam resolver o problema da perfeita vida humana, ao mesmo tempo em que são absorvidos pela via que conduz à moral individual e à perfeição religiosa, eles percebem que também é necessário um caminho de mudança e aperfeiçoamento social. Quando esse mesmo problema é resolvido pelos que estão concentrados na vida da mudança e do aperfeiçoamento social, em contrapartida a própria necessidade exige um processo de aquisição de aperfeiçoamento interior dos seres humanos.

Existe uma crítica verdadeira e uma falsa, em relação ao humanismo (humanitarianismo). Sua falsidade fundamental reside na ideia da autossuficiência do homem, da autodeificação do homem, vale dizer, na negação do Deus-homem. A aspiração do homem e sua atração pelas alturas pressupõem a existência de algo mais elevado do que o homem. E, quando o homem é deixado à sua própria sorte, encerrado em sua humanidade, ele constrói ídolos para si, sem os quais ele não consegue se erguer. É sobre isso que se fundamenta a verdadeira crítica ao humanismo. A falsa crítica, por sua vez, nega o significado positivo da experiência humanística e conduz à negação da humanidade do homem. Ela pode levar à sua brutalização, ao adorar deuses inumanos. Mas um deus inumano não é, de modo algum, melhor, e, de fato, é bem pior do que um homem sem deus. Ao longo da história do Cristianismo, muitas vezes se validou um deus inumano, e isso levou ao aparecimento do homem sem deus. Mas devemos sempre nos lembrar que a negação de Deus e do Deus-homem na superfície da mente não implica a ausência do verdadeiro Deus-homem nos homens. A mais elevada humanidade está inserida no Cristianismo, porque ele repousa sobre o personalismo do Deus-homem e Cristão, sobre o reconhecimento de toda personalidade humana como o mais alto valor. Mas é preciso reconhecer três estágios na história do mundo Cristão: a inumanidade dentro do Cristianismo, a humanidade fora do Cristianismo, e uma nova humanidade Cristã. A humanidade que permanece fora do Cristianismo pode facilmente representar uma atitude em relação ao ser humano concreto, mas, por outro lado, uma atitude abstrata em relação ao conjunto dos homens e à humanidade. Isso pode sempre acabar na construção de ídolos, fora da sociedade, fora da humanidade, fora da ideia de justiça, etc. Mas a criatura viva concreta, esse homem que está diante de mim, possui um valor mais alto do que a ideia abstrata do bem, do bem-estar geral, do progresso infinito e coisas afins; e é essa a atitude Cristã diante do homem. Existe um paradoxo real no fato de que essa é também a mais alta ideia do humanismo e do personalismo.

Somente o Cristianismo exige do homem uma atitude perante seu inimigo, somente ele pede que amemos nossos inimigos. Mas os Cristãos continuaram a praticar a desumanidade nas guerras, nas revoluções e contrarrevoluções, na punição daqueles considerados criminosos, nos conflitos contra os que sustentavam diferentes formas de fé, ou diferentes modos de pensar. Na vida das sociedades, o “humano” dependia do nível de desenvolvimento moral dessas sociedades. A verdade Cristã absoluta foi ajustada à esfera do relativo, e sua realidade foi distorcida. Por outro lado, o normativismo e o legalismo moralista rapidamente se tornaram desumanos. Em Kant, que prestou grandes serviços na esfera da filosofia moral, não é tanto o homem concreto que possui um valor incondicional, mas a natureza ética e racional do homem. O formalismo moralista sempre produz efeitos maléficos e distorce a relação vital imediata de homem para homem. A mesma coisa pode ser dita do moralismo de Tolstoy. A visão sociológica do mundo, que substituiu a teologia pela sociologia, pode colocar o homem dentre as suas bandeiras, mas não encontramos nela relação alguma com o homem concreto. A primazia da sociedade sobre o homem, sobre a personalidade humana, é mantida.

A dialética existencial que nasce da doutrina de Jean-Jacques Rousseau, de que a natureza do homem era originalmente boa, mas que foi distorcida pelas sociedades e civilizações, é muito interessante. Devemos dizer, em primeiro lugar, que, devido à fraqueza da postura filosófica geral de Rousseau, seus oponentes tiveram muita ocasião para criticá-lo abertamente. Mas essa crítica sempre incorria num erro. Em Rousseau, a boa natureza do homem era sua natureza anterior à Queda: tratava-se de uma lembrança do Paraíso. O estado da sociedade civilizada é decadente. São Tomás de Aquino também considerava boa a natureza do homem. Por isso ele assinalou um importante papel à razão natural, à moral natural e à lei natural. O mal não nasce da natureza, mas da vontade. Rousseau partiu de uma revolta contra a estrutura da sociedade enquanto fonte de todos os males, enquanto aquilo que oprime o homem. Mas ele terminou na conclusão do Contrato Social, dizendo que ele estava ligado a uma nova estrutura da sociedade. Mas esse novo estado e essa nova sociedade voltariam a oprimir o homem. O inalienável direito, a inalienável liberdade do homem e, acima de tudo, a liberdade de consciência, são negados. Rousseau propõe expulsar os Cristãos da nova sociedade. Isso frutificou no Jacobinismo, que possui um caráter totalitário. Tolstoy era mais consistente e meticuloso. Ele não pretendia concluir nenhuma espécie de contrato social; ele propunha sem rodeios permanecer na natureza divina. Mas por outro lado, a doutrina do caráter pecaminoso da natureza humana levou diretamente a uma interpretação que degradava o homem à condição desumana. No Calvinismo clássico e no moderno Barthianismo[2], o homem é rebaixado, ele é visto como um mero nada. Mas onde a audácia humana é exaltada, como em Kant, ainda assim o homem é negado e destruído; ele desaparece ante o super-humano. Já falei sobre a dialética entre o humano e o divino em Nietsche. Também Marx partia da defesa do homem, com o humanismo, e terminava com a desaparição do homem na sociedade, no coletivo social. Por caminhos diferentes, tanto Nietsche como Marx desembocaram na negação da humanidade, num rompimento tanto com a ética do Evangelho como com a ética humanitária; mas Marx negava menos a humanidade, e abriu a possibilidade para o neo-humanismo. Todo o trabalho criativo de Dostoievsky estava cheio de dialética emocional entre o divino-humano e o humano-divino. A humanidade não pode ser tomada separadamente, rompida com o supra-humano e o divino, e o humano que se autoafirma passa facilmente para a desumanidade.

Para a construção de uma antropologia religiosa é de grande importância o entendimento da parte desempenhada pelo sexo na existência humana. O desafio do sexo esmaga o homem. O ser humano não é uma criatura completa; uma criatura completa seria andrógina; mas o homem está dividido em duas metades, vale dizer, ele é uma criatura sexual. Ele busca e luta por se completar, para alcançar a inteireza que jamais consegue atingir, ou que atinge por instantes. Não existe esfera na vida na qual se tenha acumulado tanto de horrível e banal, quanto o sexo. O homem esconde seu sexo como se fosse algo de que se envergonhar. O sexo é vivido, não apenas como a fonte da vida e com aquilo de onde brota um impulso vital, mas como a degradação e a escravidão do homem. O mundo está passando por uma crise de nascimento, e se encontra gravemente doente. Essa crise está ligada à agudização da consciência individual e pessoal. O homem já não pode viver sua velha vida a esse respeito, e isso se deve em parte ao papel das máquinas. A entrada da máquina no mundo humano está produzindo uma terrível revolução. O principio do organismo está sendo substituído pelo espírito da organização, e o cósmico está sendo substituído pelo social.

Não devemos confundir o sexual com o erótico; existem aí dois princípios que são distintos, ainda que interligados. A união dos sexos é um princípio biológico, animal; a família é um princípio social, ligado à geração e criação dos filhos; o amor é um princípio pessoal e metafísico. Com relação ao primeiro, poderíamos estabelecer uma ascese delimitadora, e mesmo uma ascese que o superasse por completo; para o segundo, um companheirismo livre e uma soro-fraternidade. Quanto ao terceiro, nenhuma regra é possível, porque o amor é livremente místico e de um caráter individual único e irrepetível; ele não está sujeito às leis do mundo; e muitas vezes ele exige um sacrifício livre. O racismo é anti-humano e anti-Cristão, por se basear inteiro sobre o princípio da hereditariedade biológica, que está sujeita a sérias dúvidas do próprio ponto de vista biológico. Ele é de um antipersonalismo extremo, e vê o homem meramente como uma espécie animal. É um erro pensar que por meio da seleção racial, que é reminiscente da seleção das raças de gado, poderá ser criada uma raça aristocrática. Esse tipo de seleção, que é biológica e social, não passa de um princípio plebeu baseado desejo de manobrar a si mesmo para galgar os primeiros lugares – é um desejo plebeu. O espírito aristocrático não pode ser senão original e inato. A aristocracia é um espírito; a matéria é sempre plebeia. A verdadeira aristocracia é aquela que se dobra, se inclina, a aristocracia do sacrifício. Em sua base existe um sentimento de culpa e de piedade. Duas ideias lutam entre si no mundo, a saber: a seleção dos mais fortes, dos melhores, dos bem-nascidos, dos aristocratas de sangue e raça; a dominação de alguns seres humanos sobre os demais; e a soros-fraternidade de todos os homens, a dignidade e o valor de cada personalidade humana, o reconhecimento da base espiritual da personalidade. Para aqueles que apreciam a primeira ideia, o homem é meramente uma natureza; para os segundos, a ideia de homem está no espírito. O humano verdadeiro está ligado à segunda ideia; a primeira ideia é inumana.

Mas existe uma dialética entre essas ideias. O inumano adquire a primazia, e tudo é atirado num círculo sem esperança, do qual não existe saída. E atualmente, a ética racial determina os valores morais; nos dias de hoje, sentimentos ilusórios dominam o homem. A ética da tribo ainda é forte. A ela está associada uma falsa concepção de honra, de família, e honra tribal e nacional, de classe e de armada, que toma o lugar da verdadeira ideia da dignidade e do valor da personalidade. Hoje em dia, os Cristãos têm um fraco entendimento do fato de que o que degrada o homem é o que sai dele, e não o que entra nele. Ainda hoje os Cristãos se veem possuídos por Instintos idealizados de vingança. A ética do verdadeiramente humano colide com a contradição moral e o paradoxo. Quando um homem se esforça por adquirir a pureza e a perfeição, quando ele é ferido pelo mal do mundo e professa um maximalismo moral, isso não apenas não garante sua verdadeira humanidade enquanto homem, mas pode mesmo conduzi-lo à desumanidade. Os exemplos dos Montanistas, dos Maniqueus, dos Cátaros, dos Puritanos, dos Jansenistas, dos Jacobinos, dos Tolstoyenses, dos fanáticos crentes do comunismo e de muitos outros, mostram o quão complexo e difícil é o atingimento de uma real humanidade. O paradoxo moral está em que foram os publicanos e os pecadores os primeiros a penetrar no Reino dos Céus. O caráter distintivo do Cristianismo é seu amor pelos pecadores. Talvez seja essa a causa de não encontrarmos misericórdia entre os puros, entre aqueles que mantiveram limas suas vestes. É um engano, e é até mesmo hipócrita separarmo-nos do mundo, como se fôssemos puros. É daí que provém o desdém monástico pelo mundo e pelos homens, daí que nasce a apreciação puritana das pessoas. Essa é a dialética existencial que devem encarar aqueles que buscam sua própria pureza.

A coisa mais difícil de todas é defender e manter o humano na vida das sociedades. Mas, de fato, a humanidade forma a base da sociedade que os homens desejam, e que querem que exista. Queremos lutar por uma nova sociedade, uma que reconheça o alto valor do homem, não do Estado, da sociedade ou da nação. As massas humanas foram e continuam a ser governadas por pão duro e pela oferta de circo; elas são governadas pelo agenciamento de mitos, por suntuosas cerimônias e festivais religiosos, pela hipnose e a propaganda, e acima de tudo pela violência sanguinária. Parece humano, se parece muito com o humano, mas não é humano. Na política, um enorme papel é desempenhado pela falsidade, e há pouquíssimo espaço para a verdade. Estados foram e são construídos em cima de mentiras, e sobre mentiras naufragaram. De fato, costuma-se dizer que, sem a falsidade, tudo nesse mundo pereceria, e adviria uma completa anarquia. O Maquiavelismo não constitui uma espécie de linha política específica da Renascença; ao contrário, ele é a essência da política, que é considerada como sendo autônoma e livre de restrições morais. O Maquiavelismo é praticado tanto por conservadores como por revolucionários, e até hoje não houve revolução que tenha se voltado contra o poder irrestrito dos políticos, em nome do homem e da verdadeira humanidade. O homem não deve suportar o ultraje à dignidade humana, nem a violência e a escravidão; é nisso que reside a justificativa moral da revolução. Mas nem todos os meios empregados pela revolução são justificados. A própria revolução pode perpetrar ultrajes contra a dignidade humana; ela pode devastar e escravizar. Mudam as vestimentas, mas o homem permanece sendo o que era, e o verdadeiro humano nunca triunfa. Isso exige uma revolução espiritual mais profunda. Muitas vezes o homem interpretou carregar sua cruz como significando uma forma de submissão ao mal, como uma mansa resignação em face do mal. Essa foi uma das causas da revolta contra o Cristianismo. Mas o sentido não contaminado da humildade Cristã é algo totalmente diferente. Ela implica uma ação espiritual interior de superação do egocentrismo, não uma submissão servil. As pessoas frequentemente representam ações que são na verdade mitos criados para agradar seu egocentrismo. Elas criam mitos a respeito de si mesmas, sobre seus ancestrais, sua terra natal, sua classe e seu nível, sobre seu partido e seus negócios, a fim de sustentar e melhorar sua posição. Não há praticamente pessoa alguma que esteja livre dessa criação de mitos. Também nesse caso é necessária a ação de uma humildade interior, mas é precisamente aqui que ela é menos requisitada.

O desejo de poder, tanto em si quanto nos outros, deve ser subjugado. A deificação que os homens fazem do poder, dos reis, capitães, lideres, é uma mentira anti-Cristã, anti-humana, e escraviza o homem. Ela consiste na adoração ao poder, não à verdade. O culto aos santos possui um significado diferente e um sentido espiritual positivo. Mas ele também pode assumir uma forma falsa e idólatra. Em contraste com a quase deificação dos homens pela autoridade e o poder, a reverência perante aquilo que é realmente grande, pelos homens de gênio, pelos homens criativos, pelos profetas, apóstolos, reformadores, filósofos, professores, inventores, poetas, artistas, músicos, etc., expressa a nobre veneração pela grandeza criativa e espiritual que costuma sempre ser perseguida pelo mundo. Não devemos nos esquecer do destino do maior dos filósofos da Índia e seu renovador religioso, Shankara, que foi excomungado como herético, e a cuja mãe foi negado o funeral. Pessoas fora do comum, homens de gênio, são, por um lado, solitários e mal entendidos; eles não se submetem à influência do meio e do tempo, mas por outro lado eles não permanecem calados e ensimesmados; eles expressam o espírito do movimento universal, enquanto vivem diante do seu tempo. Mas a formação de uma elite exclusiva e orgulhosa é algo absolutamente errado. As pessoas mais incríveis e criativa emergem, não em grupos, mas individualmente; elas são, no entanto, individualmente ligadas à vida profunda de seu povo. As mais criativas individualidades rompem o círculo da escravidão da objetificação, em direção à existência real. O limite final da objetificação seria a transformação do homem numa formiga, e da sociedade num formigueiro. A objetificação se quer acima da lei e da norma; ela não se preocupa com o mistério do indivíduo. Se só existisse a lei, a vida do homem seria intolerável. É preciso que haja uma esfera fora da lei, uma esfera que seja única e irrepetivelmente individual.

Mas é difícil ao homem superar sua tendência à objetificação; é sobre ela que repousaram tranquilamente todos os reinos do mundo, e também todas as religiões pagãs ligadas a tribos ou a cidades-estados. O humano verdadeiro se levanta contra a objetificação; porque ela não consiste na socialização, mas na espiritualização da existência humana. O problema social é um problema do humano. Não apenas o mundo, como o meio social influenciam o homem; mas ele, por sua vez, projeta suas próprias experiências interiores sobre eles. A expressividade brota das profundezas, e é ela que determina a comunidade e a comunhão entre os seres humanos. O homem deve, acima de tudo, ser livre, e isso significa muito mais do que simplesmente ter o direito à liberdade. É impossível criar uma sociedade livre a partir de almas servis. A sociedade em si não é capaz de libertar o homem. É o homem que deve tornar a sociedade livre, porque ele próprio é um ser espiritual livre. O pêndulo balança entre o velho regime, um totalitarismo que impõe crenças obrigatórias (como as épocas de Augusto e de Luis XIV), que se caracteriza pela ausência de liberdade e a submissão da personalidade à sociedade ou ao Estado, e, por outro lado, as democracias superficiais e fáceis, a descrença e o ceticismo dos regimes liberais. A verdade está numa terceira via, numa sociedade de trabalho criativo. O homem é um ser criativo, não só no sentido cósmico, como também no sentido teogônico. Mas as contradições e as divisões invadiram toda sua vida. Johann Karl Kaiserling diz com razão que a criatividade também pode consistir na destruição, e que a aceitação da vida é também a aceitação da morte. Se comparado com o mundo antigo, o Cristianismo fortaleceu, desenvolveu e refinou a vida interior do homem, mas ao mesmo tempo ele se tornou a fonte de uma grande inquietação em relação ao destino do homem. Isso ficou completamente evidente, não na Idade Média, mas nos tempos modernos. Nos primeiros séculos, esse sentimento jazia oculto sob as cerimônias, os símbolos, a ornamentação externa; ele se tornou mais sincero nos séculos XIX e XX. A sensibilidade de Rousseau, a melancolia de Chateaubriand, Senancourt e Amiel consistiram em novas manifestações na história da alma Europeia; um fenômeno ainda mais novo foi a visão trágica de Kierkegaard, Dostoievsky e Nietsche.

O humano está associado ao amor e à compaixão. Uma pessoa humana é aquela que ama e se compadece. Não existe no mundo princípio mais alto do que a compaixão. Mas, como todo princípio nesse mundo, a compaixão não pode ser um princípio exclusivo; ela tem que combinar com os sentimentos de liberdade e de dignidade. A compaixão deve penetrar o amor erótico; de outra forma, esse se torna destrutivo e demoníaco. O homem disputa a respeito das relações entre o amor erótico e o amor ágape; essa é uma questão que foi levantada de modo especialmente nítida no livro de Anders Nygren, Eros and Agape. Eros é o desejo, o anseio, a sensação de falta. Nesse sentido, os deuses não podem amar, porque nada lhes falta. Eros é egoísta. O amor erótico ama o divino no homem, mas não o humano em si. O Platonismo era assim. Nygren se inclina a assinalar apenas propriedades negativas ao eros. Mas o amor erótico não pode senão conduzir ao amor verdadeiro, pois existe no amor uma capacidade de arrebatamento, e um impulso para o alto na direção das alturas divinas. O limite do amor Platônico estava em que ele, em si, era não tanto o amor pelo homem, mas pelo divino; era um amor por Deus no homem, e não pelo homem em si. Nesse sentido, havia uma falta do humano verdadeiro nesse eros. Para Nygren, ágape é o amor criativo e ao mesmo tempo um amor que não precisa de motivos. O amor a Deus é desse tipo; em Deus não pode haver amor erótico. Mas, apesar do que diz Nygren, mesmo em Deus existe o anseio por ser amado, e por receber o amor em resposta. É inexplicável a existência do amor ágape no homem; é como se ele fosse um privilégio exclusivo de Deus.

De fato, é preciso que exista uma união entre o amor erótico e o amor ágape. O amor no homem é uma coisa mais complexa do que um esquema com dois tipos de amor. O amor que é compaixão, simpatia, caritas, não pode ser coberto nem pelo eros, nem pelo ágape, pois trata-se de uma amor pelas coisas criadas, em seu abandono de Deus. A experiência do amor é a mais estupenda que o homem pode ter e ela atua como uma ação de verdadeira transcendência sobre o ciclo imanente do mundo. O amor está conectado com a personalidade, ele consiste numa relação entre uma personalidade e outra. O amor é realmente humano quando ele é um amor não apenas pelo Deus que está no homem, pelo que existe de perfeito e maravilhoso nele, mas também pelo homem em Deus, por sua individualidade irrepetível, que me agrada independentemente de qualquer perfeição que possa ou não possa ter. o amor precisa ser inspirado e permeado pelo espiritual, mas ele não pode ser exclusivamente espiritual: ele é espiritual e psíquico, e mesmo espiritual e físico. Ele possui uma relação com aquilo que é irrepetivelmente individual. O amor é divino-humano, e somente assim ele pode ser humano. O amor conquista e vence a morte; nele descortina-se a imortalidade. É na experiência do amor que o Reino de Deus começa a se revelar. Ser humano, ser compassivo, ser amoroso – então o caminho da imortalidade se abre. A diferença fundamental entre as pessoas é a diferença entre aquelas que amam e se compadecem, e aquelas que não amam nem se compadecem; essa é a diferença entre as pessoas “boas” e as “más”. Não menos importante, é a diferença entre aquelas que são real e verdadeiramente seres humanos, e aquelas que não o são, entre as pessoas verdadeiras e as falsas pessoas.

Não é só a humanização do homem em si que está colocada, vale dizer, a revelação de sua hominidade, como também a humanização de seu meio natural e social. Também acontece a humanização da ideia de Deus que há no homem, e isso implica simplesmente a libertação do falso antropomorfismo. Paradoxalmente é preciso dizer que a marca do homem não é a marca do antropomorfismo, mas a marca do teomorfismo. Pois a hominidade é divina; não é o homem que é divino, mas a hominidade. A hominidade constitui uma atitude integral do home perante a vida, não apenas diante do mundo da humanidade, mas também perante o mundo dos animais. A hominidade é a revelação da plenitude da natureza humana, vale dizer, a revelação da natureza criativa do homem. Essa natureza criativa do homem deve se mostrar também na atitude de cada homem em relação ao outro.

Costuma-se dizer que é preciso que surja um novo homem; trata-se de uma terminologia Cristã. O Cristianismo consiste na proclamação do surgimento de um novo Adão, da vitória sobre o velho Adão. O homem deve eternamente se renovar, ou seja, ele deve efetivar a plenitude de sua humanidade. Não existe, em absoluto, uma natureza humana imutável, como imaginaram Aristóteles, São Tomás de Aquino e Kant (embora de modos diversos), tal como a teologia hegemônica imagina, nisso acompanhada por muitos filósofos racionalistas. O homem muda, ele progride e regride; sua consciência se expande e se aprofunda, mas também se contrai e retorna à superfície. Mudanças ainda mais profundas na consciência humana são ainda possíveis, e como consequência disso o mundo poderá tomar uma aparência diferente. Nada, senão uma concepção dinâmica do homem, pode ser verdade. Mas, ainda assim, o desígnio de Deus para o homem permanece o mesmo. O homem jamais pode ser substituído por um super-homem, pelo espírito ou por outras hierarquias, como pensam os teosofistas e os ocultistas. O homem herdará a eternidade em sua hominidade ele é chamado a uma vida em Deus. Ele se move da eternidade para o tempo, em direção à eternidade. O novo homem pode representar um enriquecimento criativo na realização da plenitude de sua humanidade. Mas ele pode representar a traição da ideia de homem, ele pode se tornar uma perversão dessa ideia; ele pode ser uma manifestação, não do Deus-homem, mas da besta-homem, vale dizer: ele pode negar sua hominidade.

O novo homem pode também se ver diante do abismo do não-ser, e pode ser confrontado com a atração do não-ser. O homem atual oprimido por um ser falido e desintegrado, está sendo cativado pelo não-ser. Face a face com a própria fronteira do não-ser, ele pretende experimentar o êxtase final, seja o êxtase do heroísmo em nome do nada, seja o êxtase da criatividade que brota de seu próprio nada. Nietsche já se movia em direção ao abismo. No atropelo de seu gênio criativo ele chegou, não a um novo homem, mas à destruição do homem, à substituição desse por algo completamente diferente, por uma criatura não humana na qual o humano desaparecia. Os movimentos revolucionários sociais também podem chegar à negação do homem. Somente no Deus-homem, no Filho de Deus e Filho do Homem, pode o novo homem ter início, o homem de uma nova e eterna humanidade.

Na linguagem tradicional, o Deus-homem corresponde à união da g raça com a liberdade. Daí pode nascer uma nova ética, uma que se oponha à velha ética racial, que era baseada na idealização dos velhos instintos de vingança, de inveja, de posse, de submissão servil diante do poder e da autoridade, estabelecida sobre um falso entendimento da honra, sobre falsos sentimentos em reação à realidade coletiva, sobre a confusão entre a crença e o fanatismo exclusivista. A ética do homem, a ética do personalismo, deve ser construída sobre uma atitude que diga respeito ao homem, à personalidade, como o mais alto valor, ela deve estar fundamentada na irrepetitividade individual, e não na impessoalidade comum. A nova ética do novo homem será, acima de tudo, uma ética da criatividade, não da lei; mas a criatividade do homem e do humano, não a criatividade de um ser que já não é homem. Pois o humano está conectado com a espiritualidade.



[1] Inglês: Humanness.
[2] Karl Barth, teólogo protestante, dizia que a única revelação de Deus aos homens foi Jesus. Só Ele é a Palavra de Deus. Foi através de Cristo somente que Deus comunicou-se com o ser humano. Dizia Barth que quando o Verbo se fez carne Deus-homem se manifestou ao mundo. Tomando como partida esse plano barthiano, surge o pensamento de que a Bíblia não é a Palavra de Deus, pois só Cristo é. Barth também era de opinião que as Escrituras não eram inspiradas por Deus e cria que ela não era infalível.