A
hominidade
Não existe, realmente, uma verdadeira antropologia religiosa e
metafísica. Nem a antropologia dos Padres, nem a antropologia escolástica, nem
mesmo a antropologia dos humanistas, podem nos satisfazer. A doutrina
tradicional Cristã sobre o homem não nos revelou a natureza criativa do homem;
ela foi sufocada pela consciência depressiva do pecado. Por outro lado, a
concepção da hominidade não alcançou diretamente as profundidades de suas
fundações religiosas e metafísicas. A verdadeira hominidade consiste na
semelhança para com Deus: ela consiste no divino presente no humano. O divino
presente no homem não é “sobrenatural”, nem constitui um ato especial da graça;
ele é o princípio espiritual que existe no homem como uma realidade específica.
Nisso reside o paradoxo das relações entre o humano e o divino. Para que a
pessoa seja inteiramente humana é preciso que ela seja semelhante a Deus. É
preciso possuir a imagem divina, para poder ter a imagem humana. O homem, tal
como o conhecemos hoje, quase não chega a ser humano; na verdade, muitas vezes
ele é inumano. Não é o homem que é humano, mas Deus. É Deus que pede ao homem
que ele seja humano; de sua parte, o homem pede muito pouco por isso.
Exatamente da mesma maneira é Deus que pede ao homem que seja livre, e não o
homem em si. Por si só, o homem ama a servidão e trata com ela com grande
facilidade. A liberdade não é um direito do homem, mas uma obrigação do homem
perante Deus. O mesmo pode ser dito sobre a hominidade. Ao realizar em si mesmo
a imagem de Deus, o homem realiza a imagem humana, e ao realizar em si a imagem
humana, ele realiza a imagem divina. Nisso reside o mistério do Deus-homem, o
maior dos mistérios da vida humana. É no Deus-homem que consiste a hominidade.
O home realiza em si a imagem de um animal, muito mais do que a imagem de Deus.
A hominidade animal ocupa um espaço incomensuravelmente maior do que a
hominidade divina, a hominidade em Deus.
A imagem do animal no homem certamente não implica sua semelhança com
as feras, que são uma maravilhosa criação de Deus. O horrível não é o animal,
mas o homem que se torna um animal. Um animal é muito melhor do que um homem
que se torna um animal. O animal é incapaz de descer aos horríveis patamares
que o homem pode alcançar. No animal vemos uma semelhança com os anjos; eles
trazem dentro de si uma imagem distorcida de um anjo, do mesmo modo como o
homem traz em si a imagem distorcida de Deus. Mas num animal essa imagem jamais
chega a ser tão horrivelmente distorcida como ela é no homem. O homem é responsável
por sua condição de animal nesse mundo, enquanto que o animal não é
responsável; e isso é determinado pelo fato de que o homem constitui um
microcosmo, e possui a liberdade que outras partes do cosmo não possuem, pelo
menos não no mesmo grau. Se não existisse Deus, o homem seria animal perfeito,
e ao mesmo tempo um animal deteriorado. O Deus-homem é um duplo mistério, o
mistério do nascimento do nascimento de Deus no homem e do homem em Deus. Não é
apenas a necessidade que o homem tem de Deus, como também a necessidade que
Deus tem do homem. O monismo, o monofisismo, negam essa dupla verdade e a
independência do homem. Existem dois movimentos, um que parte de Deus em
direção ao homem, outro que parte do homem em direção a Deus. O homem é
necessário para a vida divina, para sua plenitude, e apenas por causa disso
existe o drama do divino e do humano. As relações entre Deus e o homem não são
forenses, mas dramáticas.
O nascimento do homem em Deus é um processo teogônico. Em sua eterna
ideia a respeito dele, o homem está enraizado no Deus-hominidade e conectado ao
Deus-homem, e assim podemos dizer que existe em Deus uma hominidade pré-eterna.
O Homem pré-eterno existe, aquele que a Cabala chama de Adão celestial
(hebraico: Kadmon). A humanidade existe na eternidade, mas deve ser
realizada no tempo. Esse é um mistério da relação paradoxal entre a eternidade
e o tempo. A eternidade em si deve ser entendida dinamicamente, não de modo
estático; nela, o repouso absoluto coincide com o movimento absoluto. A
“condição humana[1]”
não é a mesma coisa que o humanismo, nem o humanitarianismo: ela é a hominidade
de Deus no homem. O dogma Cristológico expressa a verdade a respeito do
Deus-hominidade de forma simbólica, mas ainda sem estender essa verdade ao
homem inteiro, simplesmente porque ele é homem, vale dizer, ele é um Deus-homem
apenas potencialmente falando. Isso não pode ser entendido em termos racionais.
Se tentarmos conceber isso em termos racionais, sempre iremos tender a um
desvio, seja para o monismo, seja para o dualismo. É muito fácil produzir uma
exposição racional ao estilo do monismo, sobre a verdade de que a imagem do
homem é a imagem de Deus. Mas aqui existe o mistério da união de dois em um, o
mistério do Deus-homem, de um duplo movimento. De todos os doutores da Igreja,
talvez somente São Gregório de Nissa tenhas defendido a liberdade e a dignidade
do homem enquanto imagem de Deus. Sua antropologia é a melhor que existe dentro
do pensamento Cristão a respeito do homem.
Nosso entendimento do homem em geral, ou de qualquer homem
concretamente e em particular, é muito confusa pelo fato de que a composição do
homem é complexa, e porque não é tarefa simples reduzir a complexidade à
unidade. A personalidade do homem é resultado de um conflito. É a composição
múltipla do homem que tornou possíveis essas antigas concepções que admitiam a
existência de uma sombra, de um duplo do homem; e era difícil decidir qual
seria a realidade principal. Não há dúvida de que existe um duplo ego no homem
– o verdadeiro, o real, o ego profundo, e o ego criado pela imaginação e as
paixões, que é fictício e que arrasta o homem para baixo. A personalidade é
elaborada por meio de um longo processo de tensão, pela escolha, pela
eliminação daquilo que existe em mim, mas que não compõe meu ego. A alma
consiste num processo criativo: ela é atividade. O espírito humano deve sempre
transcender a si mesmo e despertar para aquilo que existe de mais elevado no
homem; somente então o homem não perde a si mesmo, somente assim ele não
desaparece, mas realiza a si próprio. O homem desaparece na autoafirmação e na
autocomplacência, e por isso esse sacrifício constitui o caminho para a
realização da personalidade. O homem não aparece como sendo um ser
absolutamente solitário. Nele, existe a voz do daimon. Os Gregos diziam
que os daimons eram aqueles que outorgavam a felicidade. O “eudaimônico”
é aquele que recebia um bom daimon para si. A complexidade da composição
do homem se torna ainda maior assim. Mas isso não deve, de modo algum, ser
estendido ao núcleo metafísico da personalidade. Existem muitos egos, mas
existe o ego profundo. O homem é confrontado por muitos mundos que correspondem
a diferentes formas de atividade: o mundo da vida prosaica do dia-a-dia, o
mundo da religião, o mundo da ciência, o da arte, o da política, o da economia,
e muitos ainda. E esses vários mundos deixam sua impressão sobre a formação da
personalidade, sobre o modo como o mundo será representado; nossa percepção do
mundo é sempre um ato de escolha, um ato de limitação, e existe muita coisa que
escapa ao campo da consciência. Cada ação nossa, como, por exemplo, a leitura
de um livro, é assim. Cada pessoa entende apenas aquilo que ela encontra em si
mesma.
O homem é, ao mesmo tempo, extremamente limitado e infinito. Ele
possui uma capacidade ínfima, e ao mesmo tempo encontra espaço para todo o
universo. Potencialmente, ele inclui tudo o que existe, mas só é capaz de
realizar um pouco. Ele é uma contradição viva, uma mistura de finito e de
infinito. Da mesma, podemos dizer que o homem combina em si o sublime e o
medíocre. Pascal expressou isso melhor do que ninguém. A separação das emoções,
da vontade, ou dos processos de apreensão intelectual, existem apenas no
pensamento abstrato, enquanto que para a realização concreta todas as coisas
pressupõem a totalidade da vida física. O ato criativo sintetizador gera a
imagem do homem, que, sem ele, não passaria de uma coleção e uma miscelânea de
partes e peças. O enfraquecimento da espiritualidade no homem, a perda de seu
centro, chega, de fato, à desintegração em partes e peças. Trata-se de um
processo de dissolução e de dissociação da personalidade. Mas a vida emocional
é um elemento básico e compõe o pano de fundo da existência humana. Sem o
emocional, mesmo a apreensão se torna impossível. Carl Gustav Carus
(1789-1869), um antropólogo e psicólogo da era romântica, pensava que o
consciente era individual, enquanto que o inconsciente seria supraindividual.
Isso é verdadeiro apenas no sentido de que, nas profundezas do inconsciente, o homem
vai além das fronteiras da consciência e entra em união com os elementos
cósmicos. A amarga verdade que deve ser reconhecida é que é uma coisa natural
para as pessoas odiar e matar umas às outras, mas é algo supranatural e
espiritual para elas amarem-se e ajudarem-se mutuamente. Por essa razão, o que deve
ser afirmado não é o direito natural, a ética natural e a razão natural, mas o
direito espiritual, a ética espiritual, a razão espiritual. Houve um engano,
quando a integralidade da liberdade humana foi correlacionada com o primitivo e
o natural, com as fontes do mundo fenomênico, quando, na verdade, ela só pode
ser correlacionada ao espírito, ao mundo noumênico. Tudo é determinado por um
ato do espírito que emerge acima do ciclo natural. Felix Ravaisson, em seu
livro De l’Habitude, contrasta a paixão (na qual a causa reside fora do
ser que a experimenta) com a ação (quando a causa está no próprio ser). Mas a
ação tem a primazia sobre a paixão, uma vez que o que provém de fora consiste
numa projeção e numa ejeção para o exterior daquilo que o ser contém em si
mesmo.
A dolorosa e dramática natureza da existência humana depende, em
grande medida, da seclusão dos seres humanos uns em relação aos outros, e da
fraqueza dessa espiritualidade sintetizadora que deveria conduzir à unidade
interna e à união entre os homens. A união erótica, de fato, causa uma
dissociação temível e até hostil. A verdadeira união entre seres humanos é uma
evidência da ligação entre o humano e o divino. somente no Deus-homem as
pessoas podem se unir, não no humano; a unidade do humano só existe enquanto
unidade espiritual, enquanto unidade de destino. Quando os homens tentam
resolver o problema da perfeita vida humana, ao mesmo tempo em que são
absorvidos pela via que conduz à moral individual e à perfeição religiosa, eles
percebem que também é necessário um caminho de mudança e aperfeiçoamento
social. Quando esse mesmo problema é resolvido pelos que estão concentrados na
vida da mudança e do aperfeiçoamento social, em contrapartida a própria
necessidade exige um processo de aquisição de aperfeiçoamento interior dos
seres humanos.
Existe uma crítica verdadeira e uma falsa, em relação ao humanismo
(humanitarianismo). Sua falsidade fundamental reside na ideia da
autossuficiência do homem, da autodeificação do homem, vale dizer, na negação
do Deus-homem. A aspiração do homem e sua atração pelas alturas pressupõem a
existência de algo mais elevado do que o homem. E, quando o homem é deixado à
sua própria sorte, encerrado em sua humanidade, ele constrói ídolos para si,
sem os quais ele não consegue se erguer. É sobre isso que se fundamenta a
verdadeira crítica ao humanismo. A falsa crítica, por sua vez, nega o significado
positivo da experiência humanística e conduz à negação da humanidade do homem. Ela
pode levar à sua brutalização, ao adorar deuses inumanos. Mas um deus inumano
não é, de modo algum, melhor, e, de fato, é bem pior do que um homem sem deus.
Ao longo da história do Cristianismo, muitas vezes se validou um deus inumano,
e isso levou ao aparecimento do homem sem deus. Mas devemos sempre nos lembrar
que a negação de Deus e do Deus-homem na superfície da mente não implica a
ausência do verdadeiro Deus-homem nos homens. A mais elevada humanidade está
inserida no Cristianismo, porque ele repousa sobre o personalismo do Deus-homem
e Cristão, sobre o reconhecimento de toda personalidade humana como o mais alto
valor. Mas é preciso reconhecer três estágios na história do mundo Cristão: a
inumanidade dentro do Cristianismo, a humanidade fora do Cristianismo, e uma
nova humanidade Cristã. A humanidade que permanece fora do Cristianismo pode
facilmente representar uma atitude em relação ao ser humano concreto, mas, por
outro lado, uma atitude abstrata em relação ao conjunto dos homens e à humanidade.
Isso pode sempre acabar na construção de ídolos, fora da sociedade, fora da
humanidade, fora da ideia de justiça, etc. Mas a criatura viva concreta, esse homem
que está diante de mim, possui um valor mais alto do que a ideia abstrata do
bem, do bem-estar geral, do progresso infinito e coisas afins; e é essa a
atitude Cristã diante do homem. Existe um paradoxo real no fato de que essa é
também a mais alta ideia do humanismo e do personalismo.
Somente o Cristianismo exige do homem uma atitude perante seu inimigo,
somente ele pede que amemos nossos inimigos. Mas os Cristãos continuaram a
praticar a desumanidade nas guerras, nas revoluções e contrarrevoluções, na
punição daqueles considerados criminosos, nos conflitos contra os que sustentavam
diferentes formas de fé, ou diferentes modos de pensar. Na vida das sociedades,
o “humano” dependia do nível de desenvolvimento moral dessas sociedades. A verdade
Cristã absoluta foi ajustada à esfera do relativo, e sua realidade foi
distorcida. Por outro lado, o normativismo e o legalismo moralista rapidamente
se tornaram desumanos. Em Kant, que prestou grandes serviços na esfera da
filosofia moral, não é tanto o homem concreto que possui um valor
incondicional, mas a natureza ética e racional do homem. O formalismo moralista
sempre produz efeitos maléficos e distorce a relação vital imediata de homem
para homem. A mesma coisa pode ser dita do moralismo de Tolstoy. A visão sociológica
do mundo, que substituiu a teologia pela sociologia, pode colocar o homem
dentre as suas bandeiras, mas não encontramos nela relação alguma com o homem
concreto. A primazia da sociedade sobre o homem, sobre a personalidade humana,
é mantida.
A dialética existencial que nasce da doutrina de Jean-Jacques
Rousseau, de que a natureza do homem era originalmente boa, mas que foi
distorcida pelas sociedades e civilizações, é muito interessante. Devemos dizer,
em primeiro lugar, que, devido à fraqueza da postura filosófica geral de Rousseau,
seus oponentes tiveram muita ocasião para criticá-lo abertamente. Mas essa
crítica sempre incorria num erro. Em Rousseau, a boa natureza do homem era sua
natureza anterior à Queda: tratava-se de uma lembrança do Paraíso. O estado da
sociedade civilizada é decadente. São Tomás de Aquino também considerava boa a
natureza do homem. Por isso ele assinalou um importante papel à razão natural,
à moral natural e à lei natural. O mal não nasce da natureza, mas da vontade.
Rousseau partiu de uma revolta contra a estrutura da sociedade enquanto fonte
de todos os males, enquanto aquilo que oprime o homem. Mas ele terminou na conclusão
do Contrato Social, dizendo que ele estava ligado a uma nova estrutura da sociedade.
Mas esse novo estado e essa nova sociedade voltariam a oprimir o homem. O inalienável
direito, a inalienável liberdade do homem e, acima de tudo, a liberdade de
consciência, são negados. Rousseau propõe expulsar os Cristãos da nova
sociedade. Isso frutificou no Jacobinismo, que possui um caráter totalitário. Tolstoy
era mais consistente e meticuloso. Ele não pretendia concluir nenhuma espécie
de contrato social; ele propunha sem rodeios permanecer na natureza divina. Mas
por outro lado, a doutrina do caráter pecaminoso da natureza humana levou
diretamente a uma interpretação que degradava o homem à condição desumana. No Calvinismo
clássico e no moderno Barthianismo[2],
o homem é rebaixado, ele é visto como um mero nada. Mas onde a audácia humana é
exaltada, como em Kant, ainda assim o homem é negado e destruído; ele
desaparece ante o super-humano. Já falei sobre a dialética entre o humano e o
divino em Nietsche. Também Marx partia da defesa do homem, com o humanismo, e
terminava com a desaparição do homem na sociedade, no coletivo social. Por caminhos
diferentes, tanto Nietsche como Marx desembocaram na negação da humanidade, num
rompimento tanto com a ética do Evangelho como com a ética humanitária; mas
Marx negava menos a humanidade, e abriu a possibilidade para o neo-humanismo. Todo
o trabalho criativo de Dostoievsky estava cheio de dialética emocional entre o
divino-humano e o humano-divino. A humanidade não pode ser tomada
separadamente, rompida com o supra-humano e o divino, e o humano que se
autoafirma passa facilmente para a desumanidade.
Para a construção de uma antropologia religiosa é de grande
importância o entendimento da parte desempenhada pelo sexo na existência
humana. O desafio do sexo esmaga o homem. O ser humano não é uma criatura
completa; uma criatura completa seria andrógina; mas o homem está dividido em
duas metades, vale dizer, ele é uma criatura sexual. Ele busca e luta por se
completar, para alcançar a inteireza que jamais consegue atingir, ou que atinge
por instantes. Não existe esfera na vida na qual se tenha acumulado tanto de
horrível e banal, quanto o sexo. O homem esconde seu sexo como se fosse algo de
que se envergonhar. O sexo é vivido, não apenas como a fonte da vida e com
aquilo de onde brota um impulso vital, mas como a degradação e a escravidão do
homem. O mundo está passando por uma crise de nascimento, e se encontra gravemente
doente. Essa crise está ligada à agudização da consciência individual e
pessoal. O homem já não pode viver sua velha vida a esse respeito, e isso se
deve em parte ao papel das máquinas. A entrada da máquina no mundo humano está
produzindo uma terrível revolução. O principio do organismo está sendo
substituído pelo espírito da organização, e o cósmico está sendo substituído
pelo social.
Não devemos confundir o sexual com o erótico; existem aí dois princípios
que são distintos, ainda que interligados. A união dos sexos é um princípio
biológico, animal; a família é um princípio social, ligado à geração e criação
dos filhos; o amor é um princípio pessoal e metafísico. Com relação ao
primeiro, poderíamos estabelecer uma ascese delimitadora, e mesmo uma ascese
que o superasse por completo; para o segundo, um companheirismo livre e uma soro-fraternidade.
Quanto ao terceiro, nenhuma regra é possível, porque o amor é livremente místico
e de um caráter individual único e irrepetível; ele não está sujeito às leis do
mundo; e muitas vezes ele exige um sacrifício livre. O racismo é anti-humano e
anti-Cristão, por se basear inteiro sobre o princípio da hereditariedade
biológica, que está sujeita a sérias dúvidas do próprio ponto de vista
biológico. Ele é de um antipersonalismo extremo, e vê o homem meramente como
uma espécie animal. É um erro pensar que por meio da seleção racial, que é reminiscente
da seleção das raças de gado, poderá ser criada uma raça aristocrática. Esse tipo
de seleção, que é biológica e social, não passa de um princípio plebeu baseado
desejo de manobrar a si mesmo para galgar os primeiros lugares – é um desejo
plebeu. O espírito aristocrático não pode ser senão original e inato. A aristocracia
é um espírito; a matéria é sempre plebeia. A verdadeira aristocracia é aquela
que se dobra, se inclina, a aristocracia do sacrifício. Em sua base existe um
sentimento de culpa e de piedade. Duas ideias lutam entre si no mundo, a saber:
a seleção dos mais fortes, dos melhores, dos bem-nascidos, dos aristocratas de
sangue e raça; a dominação de alguns seres humanos sobre os demais; e a
soros-fraternidade de todos os homens, a dignidade e o valor de cada
personalidade humana, o reconhecimento da base espiritual da personalidade. Para
aqueles que apreciam a primeira ideia, o homem é meramente uma natureza; para
os segundos, a ideia de homem está no espírito. O humano verdadeiro está ligado
à segunda ideia; a primeira ideia é inumana.
Mas existe uma dialética entre essas ideias. O inumano adquire a
primazia, e tudo é atirado num círculo sem esperança, do qual não existe saída.
E atualmente, a ética racial determina os valores morais; nos dias de hoje,
sentimentos ilusórios dominam o homem. A ética da tribo ainda é forte. A ela
está associada uma falsa concepção de honra, de família, e honra tribal e
nacional, de classe e de armada, que toma o lugar da verdadeira ideia da
dignidade e do valor da personalidade. Hoje em dia, os Cristãos têm um fraco
entendimento do fato de que o que degrada o homem é o que sai dele, e não o que
entra nele. Ainda hoje os Cristãos se veem possuídos por Instintos idealizados
de vingança. A ética do verdadeiramente humano colide com a contradição moral e
o paradoxo. Quando um homem se esforça por adquirir a pureza e a perfeição, quando
ele é ferido pelo mal do mundo e professa um maximalismo moral, isso não apenas
não garante sua verdadeira humanidade enquanto homem, mas pode mesmo conduzi-lo
à desumanidade. Os exemplos dos Montanistas, dos Maniqueus, dos Cátaros, dos
Puritanos, dos Jansenistas, dos Jacobinos, dos Tolstoyenses, dos fanáticos
crentes do comunismo e de muitos outros, mostram o quão complexo e difícil é o
atingimento de uma real humanidade. O paradoxo moral está em que foram os
publicanos e os pecadores os primeiros a penetrar no Reino dos Céus. O caráter
distintivo do Cristianismo é seu amor pelos pecadores. Talvez seja essa a causa
de não encontrarmos misericórdia entre os puros, entre aqueles que mantiveram
limas suas vestes. É um engano, e é até mesmo hipócrita separarmo-nos do mundo,
como se fôssemos puros. É daí que provém o desdém monástico pelo mundo e pelos
homens, daí que nasce a apreciação puritana das pessoas. Essa é a dialética
existencial que devem encarar aqueles que buscam sua própria pureza.
A coisa mais difícil de todas é defender e manter o humano na vida das
sociedades. Mas, de fato, a humanidade forma a base da sociedade que os homens
desejam, e que querem que exista. Queremos lutar por uma nova sociedade, uma
que reconheça o alto valor do homem, não do Estado, da sociedade ou da nação. As
massas humanas foram e continuam a ser governadas por pão duro e pela oferta de
circo; elas são governadas pelo agenciamento de mitos, por suntuosas cerimônias
e festivais religiosos, pela hipnose e a propaganda, e acima de tudo pela
violência sanguinária. Parece humano, se parece muito com o humano, mas não é
humano. Na política, um enorme papel é desempenhado pela falsidade, e há
pouquíssimo espaço para a verdade. Estados foram e são construídos em cima de
mentiras, e sobre mentiras naufragaram. De fato, costuma-se dizer que, sem a
falsidade, tudo nesse mundo pereceria, e adviria uma completa anarquia. O Maquiavelismo
não constitui uma espécie de linha política específica da Renascença; ao
contrário, ele é a essência da política, que é considerada como sendo autônoma
e livre de restrições morais. O Maquiavelismo é praticado tanto por
conservadores como por revolucionários, e até hoje não houve revolução que
tenha se voltado contra o poder irrestrito dos políticos, em nome do homem e da
verdadeira humanidade. O homem não deve suportar o ultraje à dignidade humana,
nem a violência e a escravidão; é nisso que reside a justificativa moral da
revolução. Mas nem todos os meios empregados pela revolução são justificados. A
própria revolução pode perpetrar ultrajes contra a dignidade humana; ela pode
devastar e escravizar. Mudam as vestimentas, mas o homem permanece sendo o que era,
e o verdadeiro humano nunca triunfa. Isso exige uma revolução espiritual mais profunda.
Muitas vezes o homem interpretou carregar sua cruz como significando uma forma
de submissão ao mal, como uma mansa resignação em face do mal. Essa foi uma das
causas da revolta contra o Cristianismo. Mas o sentido não contaminado da
humildade Cristã é algo totalmente diferente. Ela implica uma ação espiritual
interior de superação do egocentrismo, não uma submissão servil. As pessoas
frequentemente representam ações que são na verdade mitos criados para agradar
seu egocentrismo. Elas criam mitos a respeito de si mesmas, sobre seus
ancestrais, sua terra natal, sua classe e seu nível, sobre seu partido e seus
negócios, a fim de sustentar e melhorar sua posição. Não há praticamente pessoa
alguma que esteja livre dessa criação de mitos. Também nesse caso é necessária
a ação de uma humildade interior, mas é precisamente aqui que ela é menos
requisitada.
O desejo de poder, tanto em si quanto nos outros, deve ser subjugado. A
deificação que os homens fazem do poder, dos reis, capitães, lideres, é uma
mentira anti-Cristã, anti-humana, e escraviza o homem. Ela consiste na adoração
ao poder, não à verdade. O culto aos santos possui um significado diferente e
um sentido espiritual positivo. Mas ele também pode assumir uma forma falsa e
idólatra. Em contraste com a quase deificação dos homens pela autoridade e o
poder, a reverência perante aquilo que é realmente grande, pelos homens de
gênio, pelos homens criativos, pelos profetas, apóstolos, reformadores,
filósofos, professores, inventores, poetas, artistas, músicos, etc., expressa a
nobre veneração pela grandeza criativa e espiritual que costuma sempre ser
perseguida pelo mundo. Não devemos nos esquecer do destino do maior dos filósofos
da Índia e seu renovador religioso, Shankara, que foi excomungado como
herético, e a cuja mãe foi negado o funeral. Pessoas fora do comum, homens de
gênio, são, por um lado, solitários e mal entendidos; eles não se submetem à
influência do meio e do tempo, mas por outro lado eles não permanecem calados e
ensimesmados; eles expressam o espírito do movimento universal, enquanto vivem diante
do seu tempo. Mas a formação de uma elite exclusiva e orgulhosa é algo absolutamente
errado. As pessoas mais incríveis e criativa emergem, não em grupos, mas individualmente;
elas são, no entanto, individualmente ligadas à vida profunda de seu povo. As mais
criativas individualidades rompem o círculo da escravidão da objetificação, em
direção à existência real. O limite final da objetificação seria a
transformação do homem numa formiga, e da sociedade num formigueiro. A objetificação
se quer acima da lei e da norma; ela não se preocupa com o mistério do
indivíduo. Se só existisse a lei, a vida do homem seria intolerável. É preciso
que haja uma esfera fora da lei, uma esfera que seja única e irrepetivelmente
individual.
Mas é difícil ao homem superar sua tendência à objetificação; é sobre
ela que repousaram tranquilamente todos os reinos do mundo, e também todas as
religiões pagãs ligadas a tribos ou a cidades-estados. O humano verdadeiro se levanta
contra a objetificação; porque ela não consiste na socialização, mas na
espiritualização da existência humana. O problema social é um problema do
humano. Não apenas o mundo, como o meio social influenciam o homem; mas ele,
por sua vez, projeta suas próprias experiências interiores sobre eles. A expressividade
brota das profundezas, e é ela que determina a comunidade e a comunhão entre os
seres humanos. O homem deve, acima de tudo, ser livre, e isso significa muito
mais do que simplesmente ter o direito à liberdade. É impossível criar uma
sociedade livre a partir de almas servis. A sociedade em si não é capaz de
libertar o homem. É o homem que deve tornar a sociedade livre, porque ele
próprio é um ser espiritual livre. O pêndulo balança entre o velho regime, um
totalitarismo que impõe crenças obrigatórias (como as épocas de Augusto e de
Luis XIV), que se caracteriza pela ausência de liberdade e a submissão da
personalidade à sociedade ou ao Estado, e, por outro lado, as democracias
superficiais e fáceis, a descrença e o ceticismo dos regimes liberais. A verdade
está numa terceira via, numa sociedade de trabalho criativo. O homem é um ser criativo,
não só no sentido cósmico, como também no sentido teogônico. Mas as
contradições e as divisões invadiram toda sua vida. Johann Karl Kaiserling diz
com razão que a criatividade também pode consistir na destruição, e que a
aceitação da vida é também a aceitação da morte. Se comparado com o mundo
antigo, o Cristianismo fortaleceu, desenvolveu e refinou a vida interior do
homem, mas ao mesmo tempo ele se tornou a fonte de uma grande inquietação em
relação ao destino do homem. Isso ficou completamente evidente, não na Idade
Média, mas nos tempos modernos. Nos primeiros séculos, esse sentimento jazia oculto
sob as cerimônias, os símbolos, a ornamentação externa; ele se tornou mais
sincero nos séculos XIX e XX. A sensibilidade de Rousseau, a melancolia de
Chateaubriand, Senancourt e Amiel consistiram em novas manifestações na história
da alma Europeia; um fenômeno ainda mais novo foi a visão trágica de
Kierkegaard, Dostoievsky e Nietsche.
O humano está associado ao amor e à compaixão. Uma pessoa humana é
aquela que ama e se compadece. Não existe no mundo princípio mais alto do que a
compaixão. Mas, como todo princípio nesse mundo, a compaixão não pode ser um
princípio exclusivo; ela tem que combinar com os sentimentos de liberdade e de
dignidade. A compaixão deve penetrar o amor erótico; de outra forma, esse se
torna destrutivo e demoníaco. O homem disputa a respeito das relações entre o
amor erótico e o amor ágape; essa é uma questão que foi levantada de modo
especialmente nítida no livro de Anders Nygren, Eros and Agape. Eros é o
desejo, o anseio, a sensação de falta. Nesse sentido, os deuses não podem amar,
porque nada lhes falta. Eros é egoísta. O amor erótico ama o divino no homem,
mas não o humano em si. O Platonismo era assim. Nygren se inclina a assinalar
apenas propriedades negativas ao eros. Mas o amor erótico não pode senão
conduzir ao amor verdadeiro, pois existe no amor uma capacidade de
arrebatamento, e um impulso para o alto na direção das alturas divinas. O limite
do amor Platônico estava em que ele, em si, era não tanto o amor pelo homem,
mas pelo divino; era um amor por Deus no homem, e não pelo homem em si. Nesse sentido,
havia uma falta do humano verdadeiro nesse eros. Para Nygren, ágape é o amor
criativo e ao mesmo tempo um amor que não precisa de motivos. O amor a Deus é
desse tipo; em Deus não pode haver amor erótico. Mas, apesar do que diz Nygren,
mesmo em Deus existe o anseio por ser amado, e por receber o amor em resposta.
É inexplicável a existência do amor ágape no homem; é como se ele fosse um
privilégio exclusivo de Deus.
De fato, é preciso que exista uma união entre o amor erótico e o amor
ágape. O amor no homem é uma coisa mais complexa do que um esquema com dois
tipos de amor. O amor que é compaixão, simpatia, caritas, não pode ser
coberto nem pelo eros, nem pelo ágape, pois trata-se de uma amor pelas coisas
criadas, em seu abandono de Deus. A experiência do amor é a mais estupenda que
o homem pode ter e ela atua como uma ação de verdadeira transcendência sobre o
ciclo imanente do mundo. O amor está conectado com a personalidade, ele
consiste numa relação entre uma personalidade e outra. O amor é realmente
humano quando ele é um amor não apenas pelo Deus que está no homem, pelo que
existe de perfeito e maravilhoso nele, mas também pelo homem em Deus, por sua
individualidade irrepetível, que me agrada independentemente de qualquer
perfeição que possa ou não possa ter. o amor precisa ser inspirado e permeado
pelo espiritual, mas ele não pode ser exclusivamente espiritual: ele é
espiritual e psíquico, e mesmo espiritual e físico. Ele possui uma relação com
aquilo que é irrepetivelmente individual. O amor é divino-humano, e somente
assim ele pode ser humano. O amor conquista e vence a morte; nele descortina-se
a imortalidade. É na experiência do amor que o Reino de Deus começa a se
revelar. Ser humano, ser compassivo, ser amoroso – então o caminho da imortalidade
se abre. A diferença fundamental entre as pessoas é a diferença entre aquelas
que amam e se compadecem, e aquelas que não amam nem se compadecem; essa é a
diferença entre as pessoas “boas” e as “más”. Não menos importante, é a
diferença entre aquelas que são real e verdadeiramente seres humanos, e aquelas
que não o são, entre as pessoas verdadeiras e as falsas pessoas.
Não é só a humanização do homem em si que está colocada, vale dizer, a
revelação de sua hominidade, como também a humanização de seu meio natural e
social. Também acontece a humanização da ideia de Deus que há no homem, e isso
implica simplesmente a libertação do falso antropomorfismo. Paradoxalmente é
preciso dizer que a marca do homem não é a marca do antropomorfismo, mas a
marca do teomorfismo. Pois a hominidade é divina; não é o homem que é divino,
mas a hominidade. A hominidade constitui uma atitude integral do home perante a
vida, não apenas diante do mundo da humanidade, mas também perante o mundo dos
animais. A hominidade é a revelação da plenitude da natureza humana, vale
dizer, a revelação da natureza criativa do homem. Essa natureza criativa do
homem deve se mostrar também na atitude de cada homem em relação ao outro.
Costuma-se dizer que é preciso que surja um novo homem; trata-se de
uma terminologia Cristã. O Cristianismo consiste na proclamação do surgimento
de um novo Adão, da vitória sobre o velho Adão. O homem deve eternamente se
renovar, ou seja, ele deve efetivar a plenitude de sua humanidade. Não existe,
em absoluto, uma natureza humana imutável, como imaginaram Aristóteles, São Tomás
de Aquino e Kant (embora de modos diversos), tal como a teologia hegemônica
imagina, nisso acompanhada por muitos filósofos racionalistas. O homem muda,
ele progride e regride; sua consciência se expande e se aprofunda, mas também
se contrai e retorna à superfície. Mudanças ainda mais profundas na consciência
humana são ainda possíveis, e como consequência disso o mundo poderá tomar uma
aparência diferente. Nada, senão uma concepção dinâmica do homem, pode ser
verdade. Mas, ainda assim, o desígnio de Deus para o homem permanece o mesmo. O
homem jamais pode ser substituído por um super-homem, pelo espírito ou por
outras hierarquias, como pensam os teosofistas e os ocultistas. O homem herdará
a eternidade em sua hominidade ele é chamado a uma vida em Deus. Ele se move da
eternidade para o tempo, em direção à eternidade. O novo homem pode representar
um enriquecimento criativo na realização da plenitude de sua humanidade. Mas ele
pode representar a traição da ideia de homem, ele pode se tornar uma perversão
dessa ideia; ele pode ser uma manifestação, não do Deus-homem, mas da
besta-homem, vale dizer: ele pode negar sua hominidade.
O novo homem pode também se ver diante do abismo do não-ser, e pode
ser confrontado com a atração do não-ser. O homem atual oprimido por um ser
falido e desintegrado, está sendo cativado pelo não-ser. Face a face com a
própria fronteira do não-ser, ele pretende experimentar o êxtase final, seja o
êxtase do heroísmo em nome do nada, seja o êxtase da criatividade que brota de
seu próprio nada. Nietsche já se movia em direção ao abismo. No atropelo de seu
gênio criativo ele chegou, não a um novo homem, mas à destruição do homem, à
substituição desse por algo completamente diferente, por uma criatura não
humana na qual o humano desaparecia. Os movimentos revolucionários sociais
também podem chegar à negação do homem. Somente no Deus-homem, no Filho de Deus
e Filho do Homem, pode o novo homem ter início, o homem de uma nova e eterna
humanidade.
Na linguagem tradicional, o Deus-homem corresponde à união da g raça
com a liberdade. Daí pode nascer uma nova ética, uma que se oponha à velha
ética racial, que era baseada na idealização dos velhos instintos de vingança,
de inveja, de posse, de submissão servil diante do poder e da autoridade,
estabelecida sobre um falso entendimento da honra, sobre falsos sentimentos em
reação à realidade coletiva, sobre a confusão entre a crença e o fanatismo exclusivista.
A ética do homem, a ética do personalismo, deve ser construída sobre uma atitude
que diga respeito ao homem, à personalidade, como o mais alto valor, ela deve
estar fundamentada na irrepetitividade individual, e não na impessoalidade
comum. A nova ética do novo homem será, acima de tudo, uma ética da
criatividade, não da lei; mas a criatividade do homem e do humano, não a criatividade
de um ser que já não é homem. Pois o humano está conectado com a
espiritualidade.
[1]
Inglês: Humanness.
[2]
Karl Barth, teólogo protestante, dizia que a única revelação de Deus aos homens
foi Jesus. Só Ele é a Palavra de Deus. Foi através de Cristo somente que Deus
comunicou-se com o ser humano. Dizia Barth que quando o Verbo se fez carne
Deus-homem se manifestou ao mundo. Tomando como partida esse plano barthiano,
surge o pensamento de que a Bíblia não é a Palavra de Deus, pois só Cristo é.
Barth também era de opinião que as Escrituras não eram inspiradas por Deus e
cria que ela não era infalível.
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