quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Filocalia - Tomo II Volume 4 - Extratos dos Santos Padres: Sobre a prece e a atenção

EXTRATOS DOS SANTOS PADRES



SOBRE A PRECE E A ATENÇÃO




Estes extratos dos Padres, publicados sem nome de autor, são talvez devidos ao mesmo Calixto Telikoudes. Em todo caso, no corpo da antologia, eles estão na sequência da “prática hesiquiasta”. À primeira vista é a mesma demonstração e a mesma exortação: impossível “voltar o olho livremente para a luz” sem a dupla ascese do corpo e do intelecto. Uma só necessidade: pela temperança, pela vigilância, revestir o homem interior, “viver para Deus”, fazer do corpo a “moradia da alma”, aí “recolher o intelecto” e alcançar assim o “céu do coração onde habita Cristo”. Donde, por meio da prece, uma atenção em todos os instantes: “sempre observar o presente para nele encontrar a beleza”. A inteligência, desembaraçada do sensível, se torna “semelhante a uma safira celeste”. Do despojamento das paixões à visão da luz eterna temos aqui como que uma ilustração do testemunho de Calixto Telikoudes: um breve resumo, fiel e incisivo, da via hesiquiasta.



Sobre a prece e a atenção.

Todo o esforço da ascese deve focar este ponto: quer a altura da alma não seja derrubada pela revolta dos prazeres. Pois como uma alma que se liga ao que está embaixo pelo prazer da carne poderá lançar um olhar livre para a luz inteligível à qual é aparentada? É por isso que, antes de tudo, é preciso ser temperante: a temperança guarda em lugar seguro a castidade. O intelecto que nos guia não deve se deixar absorver por pensamentos impuros. É, assim necessária a vigilância do homem interior, se quisermos que o intelecto não se perca em divagações, mas que se mantenha firme no objetivo da glória de Deus, a fim de escapar ao julgamento do Senhor que disse: “Infelizes de vocês, por que se assemelham a sepulcros caiados, que por fora parecem belos mas que por dentro estão cheios de ossos dos mortos e de todo tipo de impureza. Por fora vocês parecem justos perante os homens, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e iniquidade[1]”.

É por isso que, pelo coração, a palavra e a ação, devemos conduzir um grande e justo combate, a fim de não recebermos em vão a graça de Deus[2]. Mas, assim como a cera é modelada pela arte do escultor, também nosso homem interior é modelado pelos ensinamentos de nosso Senhor Jesus Cristo. Então podemos realizar com nossas ações a palavra de Paulo, que disse: “Vocês se despojaram do homem velho e de suas obras e se revestiram do homem novo, que se renova no conhecimento, à imagem de seu Criador[3]”. Ele chama de homem velho a todos os nossos pecados e manchas. Devemos nos revestir do homem interior, como sinal de vida nova[4], até a morte, para que possamos dizer em verdade: “já não sou eu quem vive, mas é Cristo que vive em mim[5]”.

Portanto, é preciso muita atenção, muita vigilância para não faltar com nenhum dos deveres de que falamos, quando cumprimos os mandamentos. Pois senão não apenas seríamos privados de tamanha recompensa, como ainda tombaríamos sob o golpe de temíveis ameaças. Quando o diabo espalha suas armadilhas e, com grande violência, envia como se fossem flechas incendiárias[6] os pensamentos que ele secreta de si mesmo contra a alma que vive na hesíquia e na calma, quando ele se abrasa subitamente, quando ele prolonga indefinidamente e torna insolúvel a lembrança daquilo que algum dia foi lançado em nosso espírito, é preciso escapar a estas armadilhas por meio de uma sobriedade e de uma atenção ainda mais intensas, como um atleta que, com a defesa precisa e a velocidade de seu corpo consegue iludir os desígnios de seus adversários. Enfim, por meio da prece e da invocação da aliança do alto, é preciso deter a guerra e desviar as flechas. É o que Paulo nos ensinou quando disse: “Tomem sobre vocês o escudo da fé...[7]”.

Quando a alma relaxa o rigor e o ardor da reflexão e começa a rememorar ao acaso tudo o que já lhe aconteceu, então o pensamento, longe de qualquer educação ou ciência em relação às coisas das quais ela se lembra, é absorvido por elas e, divagando mais e mais, acaba por cair em pensamentos infames e absurdos. É preciso corrigir esta negligência e este despedaçamento da alma por meio de uma tensão mais rigorosa e mais vigilante da reflexão, é preciso fazer com que a alma retorne sobre si mesma, e lhe dar sempre o presente para considerar, para que nele ela veja a beleza. Quer esteja numa praça pública, quer participe de uma festa, quer esteja sobre uma montanha, ou no campo, ou no meio de uma multidão, o filósofo justo faz de seu corpo o lugar de sua meditação e permanece seguro em sua alma, ele se mantém fundamentado em si mesmo como em seu mosteiro natural, recolhendo aí seu intelecto e pensando com toda sabedoria naquilo que lhe convém. Pois pode acontecer que aquele que permanece sentado em sua cela, mas que é negligente, deixe seus pensamentos errando por aí, e que o que está na praça pública, mas é sóbrio e vigilante, esteja como que no deserto, voltado para si e apenas para Deus, com os sentidos trancados às perturbações que, por intermédio das coisas sensíveis, assaltam sua alma.

Assim, é preciso que aquele que se aproxima do Corpo e do Sangue de Cristo em sua memória[8], em memória dele que morreu por nós e que ressuscitou[9], se purifique de toda mancha da carne e do espírito[10], para não comer e beber de sua própria condenação[11]. E ainda será preciso claramente que ele seja o signo do julgamento Daquele que morreu por nós e ressuscitou, não apenas purificando-se de todo pecado, mas morrendo para o pecado, para o mundo e para si mesmo, e vivendo apenas para Deus[12].

Dentre os maus pensamentos, alguns não chegam a atingir a alma, se nos protegermos. Outros nascem e germinam em mós, quando somos negligentes: se nos prevenimos, eles logo se afogam e desaparecem. Outros enfim, quando perseveramos na negligência, nascem e crescem, nos conduzem às más ações e alteram toda a saúde da nossa alma. A beatitude consiste em não receber nenhum mau pensamento; depois, em rejeitar os pensamentos logo que eles entram e não aceitar que permaneçam em nós daí para frente, a fim de que eles cessem de produzir o mal. Mas ainda que sejamos sempre negligentes, o amor que Deus tem pelo homem pode corrigir esta negligência. Sua inefável bondade pode preparar inúmeros remédios para essas feridas.

Assim é que eu lhe peço, enquanto você viver num corpo, não relaxe seu coração. Com efeito, assim como o cultivador não pode jamais estar certo dos frutos que surgirão no seu campo, por que ele não sabe o que poderá acontecer com este fruto antes que ele o guarde no celeiro, também o homem não pode relaxar seu coração enquanto houver um sopro em suas narinas. E assim como nenhum homem, até seu último suspiro, conhece os sofrimentos pelos quais poderá passar, também o monge, enquanto respirar, não pode relaxar seu coração. Ele deve clamar a Deus continuamente, pedindo seu Reino e sua piedade. Ora, o maligno sabe muito bem que que ora a Deus sem cessar poderá realizar grandes coisas. Então, ele se esforça, pelas vias da razão ou da loucura, para desviar o intelecto. E cabe a nós, uma vez que temos consciência disto, nos opormos ao nosso inimigo. Quando permanecemos em oração, quando dobramos os joelhos, não deixemos que entre em nosso coração nenhum pensamento, nem branco, nem preto, nem direito, nem esquerdo, que tenha sido escrito ou que jamais tenha sido escrito. Não deixemos entrar senão a súplica a Deus, a iluminação, a irradiação solar que vem do céu iluminar a razão.

É preciso ter conduzido um grande combate, ter passado muito tempo em oração, para descobrir a serenidade da reflexão, tal como um novo céu, o céu do coração onde habita Cristo, como disse o Apóstolo: “Não reconhecem vocês que Cristo habita em vocês?[13]”. Se quisermos atingir este estado da inteligência, guardemo-nos de todo pensamento. Então o intelecto verá a si mesmo semelhante a uma safira celeste. Pois se o intelecto não estiver acima de todos os pensamentos que o ligam às coisas, jamais ele verá em si próprio o lugar de Deus. E jamais ele estará no alto, se não se despojar das paixões que, através dos pensamentos, o ligam às coisas sensíveis. Ele ultrapassará as paixões por meio das virtudes; os pensamentos simples pela contemplação espiritual; e a própria contemplação, quando lhe aparecer a luz.



[1] Mateus 23: 27-28.
[2] Cf. II Coríntios 6: 1.
[3] Colossenses 3: 9-10.
[4] Romanos 6: 1.
[5] Gálatas 2: 20.
[6] Cf. Efésios 6: 16.
[7] Efésios 6: 16.
[8] Cf. Lucas 22: 19.
[9] Cf. II Coríntios 5: 15.
[10] Cf. I Coríntios 11: 29.
[11] Cf. II Coríntios 7: 11.
[12] Cf. Romanos 6: 11.
[13] II Coríntios 13: 5.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Filocalia - Tomo II Volume 4 - Calixto Telikoudes: Sobre a prática hesiquiasta

CALIXTO TELIKOUDES



SOBRE A PRÁTICA HESIQUIASTA

 
Calixto Telikoudes


Calixto Telikoudes (cujo nome significa “realização”), também chamado de Angelikoudes (o “angélico”), é conhecido por haver vivido durante a segunda metade do século XIV num pequeno mosteiro da Macedônia, talvez sob a autoridade de Gregório o Sinaíta – com certeza, sob a de Nicéforo. Este curto texto sobre a prática hesiquiastas, retirado de seus Trinta Discursos, revela-o como um testemunho de última hora, fiel, embora apagado, aberto ao porvir absoluto, que transmite como nunca o inventário condensado da experiência monástica.

Calixto Telikoudes começa por explicar o duplo movimento que preside a vida do monge: em primeiro lugar, o retiro, que conduz à purificação, por meio do arrependimento, da anacorese e da hesíquia; depois a obra aberta e pacífica, por meio da qual o intelecto, desfrutando “da beleza mais alta que o mundo” se torna “o lugar do amor de Deus”. Enfim, ele sublinha a permanência obrigatória deste duplo movimento. O estado monástico – estado de solidão ofertada à comunhão – implica a um tempo a humildade e a confiança, a ascese da hesíquia (as privações, a salmodia, a leitura, o trabalho manual), alimentando sem descanso e protegendo da acídia isto que Calixto denomina “o outro cume”: a prece do coração. “Que em tudo o que você fizer em nome de Deus, de aurora a aurora, esteja em primeiro lugar a prece”. Calixto lembra então as condições e as modalidades desta oração (o coração manso e humilde e o amor de Cristo, o “paraíso de amor”), de que este texto simples, de pura transparência, que não retira nem acrescenta nada à milenar tradição hesiquiasta, oferece uma última imagem sucinta e clara.


SOBRE A PRÁTICA HESIQUIASTA


Não é possível arrepender-se sem a hesíquia. Também não é possível alcançar a pureza sem a anacorese. Não podemos ao, mesmo tempo, encontrar e conviver com os homens e sermos julgados dignos de encontrar e de contemplar a Deus. Assim, é aos que desejam se arrepender de suas faltas e se purificar das paixões, que é concedido desfrutar do encontro e da contemplação de Deus. Estes são o fim e o objetivo dos que levam sua vida em Deus, e tais são, se posso dizê-lo, as garantias da herança eterna de Deus, que recém aqueles que, por todos os meios, buscam a hesíquia. Eles são, para seu próprio bem, levados a se retirar para a solidão e a fugir dos homens. Isto é tudo o que lhes pede seu estado de alma.

O começo dessas coisas se dá através do luto e da tristeza, da vergonha e da condenação de si mesmo, assumida através da hesíquia, a fim de alcançar a pureza. Depois vêm as vigílias, as horas passadas em pé em oração, a temperança, as penas corporais, que finalmente conduzem às lágrimas, que correm dos olhos devotados à humildade, na compunção do coração. Assim é que a purificação se aproxima. É por meio destas ações que chegamos a ela, que levamos enfim a paz aos nossos pensamentos, enquanto as lágrimas correm, conforme foi dito.

E é então que o intelecto começa por si próprio a examinar a natureza dos seres, a buscar a arte de Deus, a conceber pensamentos divinos, a contemplar o poder, a sabedoria, a glória, a bondade e os demais atributos de Deus. Ele começa a trabalhar e se aproxima dos segredos da Escritura. Ele prova dos bens espirituais. Ele desfruta da beleza que está acima do mundo. Ele se torna o lugar do amor de Deus. Ele é arrebatado. Ele se regozija e exulta por se elevar ao cume das virtudes, ao amor do Criador do universo. Daí por diante ele cessa de trazer em si ou de temer o erro: ele pode escorregar eventualmente ou sofrer os impulsos pecadores e as desordens que lhe são impostos por diferentes razões, por que permanece sujeito à mudança. Nestes momentos, ele deve retornar sobre si mesmo e se manter longe do desespero. Ele deve se elevar em direção ao divino que dispensa o amor ao homem, sobre as asas da esperança, deve se entregar às lágrimas, à oração e aos outros bens de que falamos, e, na medida em que lhe for possível, desfrutar das delícias do divino Paraíso do amor; e não ver mais nada, nem imagem, nem volume, nem forma, nada além das lágrimas, da paz dos pensamentos e do amor a Deus. É assim que é possível se guardar de todo erro e adquirir a salvação da alma. Pois então a alma se torna modesta, sóbria e vigilante, e orante em Jesus Cristo nosso Senhor.

Quando você estiver sentado em sua cela, que seu intelecto se confie a Deus com toda humildade. Que ele se mostre humilde, por conta de sua baixeza, de sua vacuidade. Mas que tenha confiança, por causa do amor e da paciência incomensuráveis de Deus pelo homem. Pois é assim que a alma honra a Deus: embora sabendo-se pecadora, ela se confia ao amor que Deus tem pelo homem e se agarra a ele. É por isso que são Paulo ordenou: “Aproximemo-nos com confiança do Trono da graça[1]”. A confiança em Deus é verdadeiramente o fulcro da oração, como que suas asas, como que uma segunda natureza. Mas não se deve pensar que nos confiamos a Deus por sermos bons: afastemos de nós tal disposição. É pelo pensamento do amor e da paciência de Deus, de seu inefável amor pelo homem, que subimos com sobre asas em direção à esperança divina. Portanto, ore com um coração humilde, oferecendo sua vida com toda confiança, nutrido da boa esperança em Deus, como dissemos, em nosso Senhor Jesus Cristo.

É preciso procurar sempre e atentamente as coisas que acalmam o corpo e que livram o intelecto da perturbação. Ou seja: comer moderadamente, beber pouco, não dormir demais, permanecer acordado tanto quanti possível, ajoelhar-se quando puder, manter-se humilde, vestir-se com simplicidade, falar sobriamente e somente se necessário, dormir no chão duro e outras coisas que submetem o corpo. Também é bom buscar as coisas que despertam o intelecto e que contribuem para nossa ligação com Deus: a leitura refletida das Escrituras e dos Santos que as interpretaram, a salmodia compreendida, o estudo das palavras da Escritura e das maravilhas que podemos contemplar na criação, enfim, a oração que nossa boca pronuncia até que a santa graça do Espírito a faça subir ao coração. A partir daí virá o tempo de uma nova festa, o tempo de uma nova celebração, não mais dita pela boca, mas realizada pelo coração, no Espírito.

Veja agora como buscar essas coisas: ajoelhe-se sempre que puder e permaneça em oração. Quando você sentir a acídia depois de muito orar, dedique um tempo à leitura, e depois retorne à oração. Se a acídia voltar, levante-se, salmodie um pouco e depois volte a rezar. Se ela mais uma vez ressurgir, consagre-se ao estudo como dissemos, e em seguida retorne à oração. Enfim, para impedir toda forma de acídia, santo irmão, você deverá trabalhar um pouco com as mãos, conforme ensinaram os Padres. Que em tudo o que você fizer em nome de Deus, de aurora a aurora, a prece seja a primeira. Todo o resto só tem como função remediar a acídia que acompanha a oração. Mas quando a piedade de Deus socorre a alma e a graça do Espírito faz jorrar a prece do coração como de uma fonte, então o intelecto já não se consagra mais senão à prece e à contemplação, ele se desliga de tudo e sua única delícia consiste na prece e na contemplação no paraíso do amor de Deus.

A prece tem poder sobre todas as boas obras. É ela que engendra as lágrimas do arrependimento. Não considerando senão a Deus, que é a paz suprema, ela contribui grandemente para a paz do pensamento. É ela que faz nascer em nós o amor a Deus. Somente ela purifica a razão da alma, contemplando a Deus que suscita a purificação dos próprios anjos. Ela guarda puro o desejo que conduz a alma a Deus. Confiando-se a Deus infinita e sobrenaturalmente belo e bom, entretendo-se apenas com ele, ela se liga a ele com todo seu desejo. Enfim, ela acalma de tal maneira o ardor que este cai, invoca e clama por Deus, e leva a alma à humildade prosternando-se diante dele. Pois ninguém que ore e invoque a Deus pode ter um coração orgulhoso e irascível. É por isso que, numa palavra, a santa prece purifica e corrige todas as potências da alma, todas as energias da ação e da reflexão, em especial quando, através de uma vida dedicada à hesíquia e uma conduta como a que mencionamos, a alma se une à contemplação de Deus e ao eros divino que a acompanha. Que seu pensamento, voltando-se para seu interior, fixe sua meditação e sua visão no lugar do coração de onde provêm as lágrimas, quando você orar tanto quanto quando respirar o ar, e que lá ele permaneça sempre que possível. Isto constitui um grande auxílio e uma fonte de lágrimas abundantes e contínuas, libertando o intelecto de seu cativeiro, dispensando a paz, suscitando a prece intelectual e contribuindo, com Deus, à descoberta da prece do coração, pela graça do Espírito vivificante em nosso Senhor Jesus Cristo.

É importante saber. Assim como o contemplativo, aquele que vê o que está oculto e que desfruta disto tem duas naturezas (ele é ao mesmo tempo Deus e homem), da mesma forma como, falando no geral ou em particular, ele tem dois modos (as aflições, seguidas das lágrimas). Aflições e lágrimas diferem muito entre si, mesmo sendo boas as duas, dadas por Deus e portadoras da bem-aventurança divina e da herança por ela concedida. As primeiras têm sua origem no temor a Deus e nos sinais do luto; as outras, no amor divino e no próprio Deus. As primeiras não conduzem diretamente ao regozijo, mas as últimas suscitam uma alegria imensa. As primeiras ocorrem aos noviços, as segundas àqueles que pela graça alcançaram a perfeição.

A hesíquia é feita de cinco obras: a prece (ou seja, a lembrança contínua de Jesus, introduzida no coração por meio da respiração, na ausência de qualquer pensamento) à qual chegamos por meio da mais ampla temperança, a do ventre, do sono e de todos os sentidos, permanecendo humildemente em nossa cela; a salmodia parcial, a leitura dos Evangelhos e dos Padres divinos, de seus capítulos sobre a oração, em especial os do Novo Teólogo, de Hesíquio e de Nicéforo; a meditação sobre o Juízo de Deus, ou a lembrança da morte e daquilo que está implicado nela; algum trabalho manual; depois dobrar-se novamente à oração, por mais obrigado que pareça, até que o intelecto, pela lembrança do Senhor e a descida contínua ao esforço do coração, se habitue a rejeitar por si próprio toda agitação. Tal é a obra dos monges noviços que desejam viver na hesíquia, e por isso estes monges não devem sair muito de suas celas, mas evitar entreter-se com outros, mesmo vê-los, salvo se absolutamente necessário, e mesmo assim com atenção e prudência, e raramente. Pois estas coisas provocam dispersão não apenas entre os noviços, mas inclusive entre os mais avançados.

A prece se liga à atenção, que deve cortar todo pensamento. Ao dizer “Senhor Jesus Cristo Filho de Deus” o intelecto se volta para o Senhor lembrando-se dele de maneira imaterial e silenciosa. Ao dizer “tenha piedade de mim” ele se volta para si mesmo. O intelecto não pode deixar de pedir por si mesmo. Tendo avançado no amor, ele tende para o próprio Senhor, na união, por experiência; depois do segundo apelo ele recebe a plena certeza. É por isso que os Padres nem sempre nos transmitem aparentemente a oração inteira. Um nos dá a prece inteira, como João Crisóstomo. Outro diz simplesmente “Senhor Jesus”, como Paulo, que acrescentava: “no Espírito Santo[2]”. Com efeito, o coração ora quando recebe a energia do Espírito Santo. Isto é próprio dos mais avançados, mas ainda não é o cume, que é a iluminação. João Clímaco disse: “Flagele os adversários com o nome de Jesus. Pois o nome de Jesus está ligado à sua respiração[3]”. Ele não acrescenta nada mais.

Mesmo aos noviços é permitido seja dizer todas as palavras da oração, seja não dizer mais do que uma parte em espírito, como mencionamos. Mas não se deve mudar constantemente, para não cair na divisão. É preciso manter-se ligado ao método que descrevemos: o caminho da prece pura. Se os pensamentos e as presunções que impedem a oração não a desviam, aquele que combate alcança um estado de ser em que consegue orar com toda liberdade, mantendo o intelecto no coração. No momento da inspiração o intelecto não força sua entrada no coração para logo sair: ele aí permanece como se estivesse em casa, e aí ele ora. É a prece do coração, e por isso é assim chamada. Ela é precedida no coração por um certo calor, que expulsa tudo o que poderia impedir a prece pura de se realizar completamente. Assim o intelecto permanece e ora livremente dentro do coração. É no seio deste calor e por meio desta prece que o amor pelo Senhor Jesus – de quem nos lembramos – nasce no coração, de onde correm as doces lágrimas que fazem jorrar em abundância o desejo de Jesus, quando o guardamos na memória.

Mas para que um homem seja considerado digno de todas essas coisas e de outras que as acompanham (das quais não falaremos agora) ele precisa se esforçar, com a lembrança de Jesus, mantendo diante dos olhos o temor a Deus dentro de seu coração e não simplesmente fora, a fim de escapar sem esforço não apenas às más obras, mas aos pensamentos passionais, chegando assim à plena certeza de que Deus o ama. Mas que ele não busque a manifestação de Deus, a fim de não receber aquele que é feito de trevas e se disfarça de luz. Com efeito, quando, sem procurar, seu intelecto encontra uma luz, que não a acolha nem a recuse, mas interrogue aquele que tem o poder de lhe ensinar. E que assim aprenda a verdade. Se ele encontrou a quem o ensine, não apenas por ter aprendido nas Escrituras, mas por ter recebido pessoalmente a luz em toda beatitude, graças sejam dadas a Deus. Caso contrário, é melhor não receber a visão, mas recorrer a Deus humildemente, considerando a si próprio como indigno de tal contemplação, como fizeram os Padres e no-lo ensinaram. Em diversos escritos eles falaram dos sinais da iluminação real e da iluminação ilusória. Mas assim como é preciso ter escutado de viva voz todas as coisas que dissemos, também é preciso ouvir estas últimas coisas a seu tempo. E aqui não é o momento.

Ao mesmo tempo que destas coisas e antes de tudo, é preciso agora instruir-se a respeito do seguinte: assim como alguém que quer aprender a atirar com arco não o estira sem ter um alvo, também o que pretende viver na hesíquia deve ter como alvo ser sempre manso de coração. Ele próprio jamais irá se preocupar com nada, nem nada irá preocupá-lo, senão aquilo que diz respeito à piedade. Esta é uma coisa fácil de alcançar se nos separamos de tudo e se nos calamos com mais frequência. E se mesmo então cometermos alguma falta, devemos nos arrepender imediatamente, condenando-nos, e nos colocarmos atentos para invocar antes de tudo a Jesus na hesíquia e com uma consciência pura, conforme já dissemos, para obtermos avançando no caminho sua graça divina que repousa na alma, e não apenas isto, mas ainda termos a alma em repouso longe dos demônios e das paixões que antes a perturbavam, e que ela se regozije com uma alegria inefável. Pois ainda que ela venha a se turbar, os demônios não poderão agir: ela não está mais ligada a eles, nem deseja o prazer que eles oferecem. Todo o desejo do homem que alcançou este estado está voltado para o Senhor que lhe concede sua graça. Assim é que o Senhor já não o abandona, embora permita que ele seja combatido. Por que? Para que seu intelecto não se encha de orgulho com aquilo que encontrou de bom. Ser combatido o mantém constantemente humilde. E somente a humildade não apenas lhe permite vencer os orgulhosos que o combatem, como ainda ser sempre considerado digno dos maiores dons, que também nós recebemos de Cristo que se rebaixou por nós[4] e que dispensa aos humildes sua graça em abundância[5], agora e sempre, e pelos séculos dos séculos. Amém.



[1] Hebreus 4: 16.
[2] I Coríntios 12: 3.
[3] Cf. A escada santa XX, 7 e XVII, 62.
[4] Cf. Filipenses 2: 8.
[5] Cf. Tiago 4: 6.