quarta-feira, 15 de junho de 2016

Hierotheus de Nafpaktos - Psicoterapia Ortodoxa - Capítulo III - Parte III

1.1.  Nous, coração e pensamentos

O que foi dito constitui uma introdução à nossa análise e interpretação da vida interior da alma. A doença e a cura da alma é principalmente a doença e a cura do nous, do coração e dos pensamentos. A seguir abordaremos esse tópico. Estudaremos separadamente o nous, o coração e os pensamentos. Creio que essa análise nos ajudará a examinar nosso interior.

1.1.1.        O nous

Já enfatizamos que o termo nous possui muitos significados nos trabalhos dos Padres da Igreja. Às vezes ele se identifica com a alma, outras vezes é uma energia da alma, o olho da alma, outras vezes o termo sugere a essência da alma, às vezes sua energia, e algumas vezes significa a atenção que é mais sutil do que a mente. Nesta seção, ao estudarmos a doença e a cura do nous, nós o veremos como o olho da alma. Tomaremos o termo principalmente para designar a potência da alma, e também a parte mais pura da alma, que é seu olho, de acordo com as palavras de São João Damasceno: “[A alma] não possui o nous como algo distinto de si mesma, mas como sua parte mais pura, porque aquilo que são os olhos para o corpo, é o nous para a alma”. Esse olho da alma, o nous, que age por intermédio dos sentidos, é o que se contamina, cai doente e precisa ser curado. Do mesmo modo como todo o corpo se obscurece quando os olhos do corpo adoentam, também quando o nous adoece, toda a alma do homem se vê obscurecida. É o que quis dizer o Senhor, quando disse: “Se a luz que existe em vocês é treva, quão grande será a escuridão![1]”. Quando o nous se retira do coração e se afasta de Deus, ele adoece e morre, e toda a alma agoniza. É o que veremos mais analiticamente a seguir.

1.1.1.1.  A vida natural do nous

Os Padres definem claramente a vida natural do nous. De acordo com Nicetas Stethatos, “Deus é o nous impassível, acima de todo nous e de toda impassibilidade. Ele é a luz e a fonte da boa luz, ele é a sabedoria, a palavra e o conhecimento, assim como também é aquele que concede a sabedoria, a palavra e o conhecimento”. E o homem, enquanto imagem de Deus, possui um nous impassível, na medida em que seu nous permanece “em seu estado natural e não se move em relação ao seu próprio nível e sua natureza”. Quando é assim, o nous do homem deseja e busca se unir a Deus, “de onde ele teve seu começo”, e, por meio de suas qualidades naturais ele o segue “e anseia por imitá-lo em sua simplicidade e amor pelo homem”. E do mesmo modo como o Nous-Pai gerou o Verbo, que gerou e recriou o homem, também o nous da alma gera a palavra, e “recria as almas dos homens de mesma raça como se fossem seres celestiais, e os torna fortes para que perseverem nas virtudes ativas”. E não apenas o nous recria as almas dos outros homens por meio da palavra, mas lhes dá a vida “pelo sopro de sua boca”. Assim, o nous do homem que se move na direção de Deus recria outras almas, e, imitando a Deus, “ele próprio mostra ser um criador da criação inteligível e do grande universo”. Essa passagem de Nicetas Stethatos mostra que quando o nous se move em direção a Deus naturalmente e a ele se une, também ele se torna pela graça aquilo que o Nous Celestial é por natureza.

A união do nous com Deus é um repouso, mas ao mesmo tempo um movimento, uma vez que a perfeição em geral jamais pode ser completa. São Máximo escreve a respeito desse repouso que sempre se move e dessa movimento estacionário. Enquanto o home permanece em Deus, ele está em constante movimento. Nicetas Stethatos diz o mesmo a respeito do nous: “Todos os nous, neste Nous Primeiro, possuem um repouso constante e um movimento sem fim”. Não é esse o caso do nous impuro, mas só do nous puro e incorrupto. O nous unido ao Nous Primeiro se torna bom e sábio. “Somente Deus é bom e sábio por natureza; mas se você se exercitar, também seu nous se tornará bom e sábio por participação”.

Ao descrevermos o estado natural do nous precisamos definir claramente o que são os movimentos naturais, antinaturais e supranaturais. São Marcos o Asceta descreve os três movimentos do nous. “O nous muda de um para outro de três diferentes estados: um de acordo com a natureza, um acima da natureza e um contra a natureza”. Quando ele entra no estado de acordo com a natureza, ele percebe ser ele próprio a causa dos maus pensamentos e confessa seus pecados a Deus, compreendendo claramente as causas das paixões. Quando ele entra num estado contrário à natureza, ele esquece a justiça divina e luta contra o homem, acreditando estar sendo injustamente maltratado. Mas quando ele se eleva a cima da natureza, ele encontra os frutos do Espírito Santo. É a vida do Espírito que manifesta o estado natural do nous e retrata seu desenvolvimento natural. Quando uma pessoa persevera em manter seu nous movendo-se de acordo com a natureza, ela permanece pura em relação à esfera material e “se adorna de gentileza, humildade, amor e compaixão, e então é iluminada pela luz do Espírito Santo”.

De acordo com São Máximo o Confessor, “o nous funciona de acordo com a natureza quando mantém as paixões sob controle, quando contempla as essências interiores incriadas dos seres e quando habita em Deus”. Os santos Padres também enfatizam o fato de que o nous é alterado por toda imagem conceitual das coisas que ele aceita. Se ele contempla as imagens das coisas espiritualmente, “ele se transforma de diversas maneiras de acordo com o que ele contempla”. Quando ele se une a Deus ele perde tanto a forma como a configuração. Por isso é muito importante para o nous aprender a receber as imagens conceituais das coisas espiritualmente, pois de outro modo ele não estará vivendo em seu estado natural, ele estará distorcido, e quando o nous, que é o olho da alma, se distorce, toda a alma automaticamente se distorce com ele. Porque quando uma das potências da alma se corrompe e se torna doente, todas as demais potências se deformam e adoecem, porque “a alma é simples”.

É o nous que determina toda a condição de uma pessoa, uma vez que é ele quem alimenta a alma. Nosso nous se coloca entre duas coisas, a virtude e o vício, o anjo e o demônio, cada uma das quais trabalha pelos seus próprios objetivos. O nous conectado com a liberdade “possui tanto a liberdade como o poder de seguir ou resistir qualquer coisa que quiser”. O nous é aquilo que divide a ala. Primeiro o nous adoece e então ele corrompe toda a alma e a leva a extraviar-se. “A alma vai para onde o nous impulsiona por qualquer paixão humana”. É característico do nous que quando algo se torna seu interesse constante, ali essa coisa prospera, e, como resultado disso, ela se transforma em desejo e amor nessa direção. Isso pode acontecer tanto em direção àquilo que é divino, inteligível e apropriado à sua natureza, quanto em direção às paixões e às coisas da carne. A paixão do amor, quando é repreensível, ocupa o nous com coisas materiais, mas quando ela é dirigida corretamente “ela o une ao divino”. Por isso a ascese Ortodoxa da grande importância ao progresso e ao movimento do nous. Pois quando o nous se volta e contempla as coisas materiais e é corrompido pelas imagens conceituais dessas coisas, ele transmite essa enfermidade a todas as potências da alma.

Em geral, podemos dizer que os movimentos do nous são de acordo com a natureza, acima da natureza ou contra a natureza. Com a liberdade que lhe é própria, o nous se move de acordo com seu próprio desejo e se transforma conforme o caminho que segue e o lugar onde se coloca, e então ele altera a alma, seja positiva, seja negativamente. “O homem volta sua mente, seja para seus pecados, seja para Jesus, seja para os homens”. Isso ficará mais claro a seguir, quando discorrermos a respeito da doença e da cura do nous.

São Gregório de Nissa ensina: “O nous não se encontra confinado em parte alguma de nós, mas está em todas as partes e permeia todas as partes”. A comunicação do nous com o corpo apresenta um contato inefável e inconcebível, “não estando dentro dele (porque o incorpóreo não pode ser encerrado num corpo) nem o envolvendo (porque o que é incorpóreo não pode ter nada dentro de si), mas abordando-o de um modo complexo e incompreensível e, fazendo contato com ele, pode ser visto tanto nele como ao seu redor, nem implantado nele, nem o envolvendo”.

São Gregório Palamas, explicando a passagem de São Macário que ensina que o nous e todos os pensamentos da alma estão no coração como se fosse num órgão, e a passagem de São Gregório de Nissa que ensina que o nous, sendo incorpóreo, não está no corpo, escreve que essas duas passagens não são contraditórias, mas se completam formando uma unidade. São Macário e São Gregório de Nissa partem de pressupostos antropológicos diferentes. Vale dizer que o que São Mácario diz do nous estar no corpo, e o que São Gregório diz dele estar fora do corpo, deve ser entendido em sentidos diferentes. Do mesmo modo como alguém que sustenta que Deus não está em parte alguma por ser incorpóreo, não está em contradição com outro que diz que o Verbo estava no seio da pura e virgem Mãe de Deus, também acontece com essas passagens dos Padres que se referem ao nous. O nous humano, sendo incorpóreo, está fora do corpo, mas também está no corpo, utilizando inefavelmente o coração como o primeiro órgão da carne. Já explicamos em outras seção que o nous possui essência e energia, e que, enquanto essência, ele está no coração, mas que enquanto energia ele opera nos pensamentos, e então ele sai do corpo e concebe as imagens conceituais das coisas. No estado natural o nous penetra no coração, a energia entra na essência e assim ele se ergue para Deus. Esse é o movimento circular do nous de que iremos falar mais adiante.

O nous, enquanto imagem de Deus, só possui vida quando está unido a Deus e se torna sábio e bom. Esta é a vida do nous. O Apóstolo Paulo escreve: “Pois quem conheceu o nous do Senhor a ponto de instruí-lo? Mas nós temos o nous de Cristo[2]”. O estado natural do nous é o de estar unido ao nous de Cristo. Assim ele se torna iluminado e esclarecido. A “verdadeira vida e a verdadeira energia do nous” estão presentes quando a inteligência da alma se ocupa com as visões divinas e dirige preces e ações de graças a Deus, e quando se liga a Ele por meio de uma lembrança contínua. O afastamento de Deus mata o nous, enquanto que a vida do nous consiste na associação e na união com Ele. De acordo com São Máximo, a luz do conhecimento espiritual é a vida do nous e, uma vez que essa luz é gerada pelo amor a Deus, não existe nada maior do que o amor a Deus.

Da mesma forma que o corpo necessita de pão para viver, a alma precisa das virtudes para viver, de modo que assim a prece espiritual é o alimento do nous. A prece alimenta o nous e lhe dá vida. Quando o nous se move em direção a Deus e se une a Ele, se torna saudável e vital. Nesse estado ele recebe as consolações de Deus. Em Deus o nous adquire saúde e percepção. E essa faculdade perceptiva do nous consiste “no poder de discriminar acuradamente entre as experiências (sabores) das diferentes realidades”. Para a vida espiritual é essencial que o nous tenha vida, para ser capaz de distinguir as ações e as consolações de Deus das ações do diabo. Num nous saudável e que se dedica continuamente às realidades divinas, “a parte passional da alma se torna uma arma divina”. Então toda a alma se torna saudável. O nous é como uma carruagem que conduz a alma seja para Deus, seja para o diabo e para as ações do pecado. O mandamento do Apóstolo Paulo a respeito de possuir um nous puro e vivo é claro: “Que todos estejam inteiramente convencidos em seus próprios nous[3]”.

Embora o nous seja uma potência da alma no sentido que definimos nessa seção, ele possui outras potências e energias. Nicetas Atethatos ensina que o nous possui quatro potências: entendimento, acuidade, apreensão e sagacidade. Essas quatro potências do nous devem se unir às quatro virtudes gerais da alma: o entendimento do nous deve se unir ao autocontrole da alma, a acuidade com o julgamento moral, a apreensão com a justiça e a sagacidade com a coragem. Tudo disso forma “a carruagem de fogo cruzando os céus”, que confronta as três paixões da avareza, da sensualidade e da ambição.

Essas divisões do nous em nós são sem dúvida incompreensíveis para nós, mas os Padres, por meio de seus esforços e iluminados pelo Espírito Santo, distinguiram e descreveram essas potências, que se tornaram familiares junto com toda a construção interior da alma. A pessoa que “vive na revelação”, iluminada pelo Espírito Santo, chega a conhecer todas as profundezas da alma e todas as potências do nous, que são desconhecidas e inconcebíveis para qualquer um que esteja distante da graça. Mais do que isso, aliás: para alguém que está afastado de Deus o próprio homem é obscuro e desconhecido.

Todas essas coisas que mencionamos mostram o estado natural do nous tal como ele funciona no homem natural, no homem de Deus. “A tarefa do nous é a de rejeitar todo pensamento que vilipendia o próximo”. Em seu estado natural o nous repele os pensamentos contrários ao amor. Analogamente, o nous se aperfeiçoa na medida em que cresce e se enriquece no conhecimento de Deus. “O nous é aperfeiçoado quando se transforma pelo conhecimento espiritual”. Esse conhecimento é o conhecimento de Deus e das coisas criadas, de uma forma que transcende o conhecimento. “O nous perfeito é aquele que, por meio da verdadeira fé e de uma maneira além de tudo, suprema e desconhecidamente conhece o supremamente Desconhecido e sonda a totalidade da criação de Deus”.

1.1.1.2.  A doença do nous

O nous foi entenebrecido, obscurecido e adoeceu por causa da queda. Ele deixou de ser perfeito. O mesmo acontece toda vez que o homem comete um pecado.

A primeira batalha que o demônio trava é contra o nous. Os demônios tentam escravizá-lo sempre que o homem costumeiramente dá seu consentimento e comete o pecado. São Máximo ensina que os demônios, tirando vantagem das paixões que existem na alma, estimulam pensamentos passionais, por meio dos quais eles lutam contra o nous e o forçam a lhes dar consentimento. Uma grande batalha é levada a cabo pelos demônios para capturar o nous e atraí-lo para o pensamento passional. Quando o nous é derrotado, “eles o levam ao pecado na mente e, quando isso é feito, eles o induzem, cativo que está, a cometer o pecado em ato”. Mas o mal não termina aí. Depois de haver desolado o coração por meio de pensamentos passionais, os demônios se retiram. Mas, apesar disso, o ídolo do pecado permanece no nous. São Máximo, referindo-se às palavras do Senhor: “Quando vocês virem a abominação da desolação (...) estabelecida no lugar santo...[4]”, diz que o nous é o templo de Deus no qual os demônios, tendo devastado a alma por meio de pensamentos passionais, “estabelecem o ídolo do pecado”.

Tal é a enfermidade do nous. Ele não apenas é capturado, como ainda cai doente, uma vez que o ídolo do pecado permanece como uma ferida persistente e causa um novo pecado. Dizemos que nessa situação o nous foi capturado pelo demônios e pelas paixões, e que “um nous dominado pelas paixões tem pensamentos ignóbeis”. Isso se manifesta em palavras e atos. Tudo o que um homem diz e faz, manifesta a enfermidade ou a saúde de seu nous. Por isso, aqueles que possuem o dom do discernimento discriminam a condição do nous de cada homem por seus movimentos exteriores e suas palavras. A ligação do nous aos sentidos, “escravizam-no ao prazer corporal”. O nous, ao invés de se voltar para Deus e se unir a Ele, procura se unir aos sentidos e assim se torna escravo. Essa escravidão, esse cativeiro é a doença do nous. E, naturalmente, tal moléstia causa a morte do nous.

Vamos citar a seguir algumas passagens patrísticas para descrever algumas condições e características da doença do nous.

A Sagrada Escritura fala do nous depravado, a mente da carne: “homens com o nous corrompido e destituídos da verdade[5]”. Todos os que resistem à verdade são “homens com o nous corrompido[6]”. O Apóstolo Paulo, referindo-se a um herético de seu tempo, diz que ele está “estufado por seu nous carnal[7]”. Essa passagem implica claramente que quando um homem é sensual, desprovido da operação do Espírito Santo, como mencionado na teologia do Apóstolo Paulo, ele possui um nous carnal. Em outra parte, o nous que está afastado de Deus é caracterizado como “rebaixado[8]”. O Apóstolo Paulo não quer que os Cristãos vivam como os Gentios, “na futilidade de seus nous[9]”. E os Padres, como Thalassius, falam de como o nous se move para longe do domínio do conhecimento espiritual quando a parte passional da alma se afasta de suas virtudes.

A doença do nous também é caracterizada pela palavra “obscurecimento”. O nous, como imagem de Deus, é “luminoso”. Mas quando ele se afasta de Deus ele perde seu estado natural, ele se entenebrece, se obscurece. Hesíquio o Presbítero ensina que os oito principais pensamentos do mal, aos quais estão submetidos todos os maus pensamentos, aproximam-se da entrada do coração. E se a encontram desguarnecida, penetram no coração um a um, cada um na sua vez. Qualquer um deles que entrar, “introduz um enxame de outros pensamentos malignos após si; e, tendo assim obscurecido o nous, estimula o corpo e o provoca para as ações pecaminosas”. Em outro trecho Hesíquio ensina que quando uma pessoa leva uma vida de pecado e dissolução, “ela obscurece seu nous”. Por isso o ensinamento patrístico nos adverte para manter vigilância sobre os nossos pensamentos para que “nosso nous não se obscureça, mas que, ao contrário, ele possa ver”.

Assim, podemos falar da cegueira e da incapacidade do nous dever as coisas com clareza. E quando o nosso nous é obscurecido, não conseguimos uma passagem pura e aberta para o nosso próximo. Tudo fica corrompido e obscurecido, com consequências lamentáveis e terríveis para nossa vida. Assim como as nuvens obscurecem o sol, os maus pensamentos trazem sombras para a mente e a arruínam. Nosso nous é obscurecido e se torna improdutivo ainda que digamos palavras de sentido universal, ou que, entretendo tais palavras em nossa mente, a associemos a elas, ou que nosso corpo se envolva com o nous nas coisas sensíveis. Então perdemos imediatamente nosso fervor, a compunção, a intimidade com Deus e o conhecimento espiritual. Por isso “enquanto concentramos nossa atenção no nous, ficamos iluminados; mas quando não nos atentamos para ele caímos na escuridão”.

O obscurecimento é também chamado de cegueira, porque ele constitui realmente a cegueira do nous. E o nous se torna cego pelas três paixões da avareza, da autoestima e do prazer sensual. De acordo com Nicetas Stethatos, a ignorância de um nous terrestre, que é como uma neblina e uma profunda escuridão, “cobrindo os olhos da alma, a torna escura e obscurece a percepção do divino e do humano, de tal modo que ela se torna incapaz de olhar para os raios da divina luz, ou para se deleitar naquelas coisas boas que nenhum olho viu, nem ouvido ouviu, nem o coração do homem concebeu”. O nous, e a alma em geral, fica incapacitado de contemplar a Deus e ser iluminado. Nisso está sua enfermidade e morte. Nessas condições o homem não consegue encontrar a verdade. São Basílio o Grande ensina que, assim como o olho não pode ver um objeto claramente que se desloca todo o tempo para os lados ou para cima e para baixo,  o mesmo acontece com o olho da alma, o nous. “Distraído por milhares de preocupações do mundo, ele não consegue mirar claramente a verdade”.

Outro estado doentio da alma é a frieza, a insensibilidade, a indiferença. “Ter um coração insensível significa ter entorpecido o nous”, disse São João Clímaco. Quando os demônios chegam ao coração e extinguem a luz do nous, logo desaparecem em nós a sobriedade, o discernimento, o autoconhecimento e a vergonha, e somos deixados com “a indiferença, a insensibilidade, a pretensão do discernimento e a cegueira”.

O nous enfermo está cativo, prisioneiro. “As paixões repreensíveis acorrentam o nous, amarrando-o aos objetos sensíveis”. São Máximo diz que da mesma forma como um pardal amarrado pela perna não é capaz de voar, por mais que tente, porque é puxado de volta ao chão, “similarmente, quando o nous que ainda não atingiu a impassibilidade voa em direção ao conhecimento espiritual, ele é puxado de vota pelas paixões e atirado ao solo”. Não importa o quanto ele tente voar para o conhecimento celeste, ele não poderá fazê-lo a menos que se liberte das paixões. As paixões o acorrentam e o mantêm preso à terra. O nous é tornado vulgar pelas várias paixões e não consegue orar com pureza a Deus.

“Um nous vaidoso é como uma nuvem sem água que é levada pelos ventos da autoestima e do orgulho”.

Um nous que está doente com a paixão da autoestima permanece numa ilusão, tentando encerrar a Divindade em modelos e formas.

Hesíquio o Presbítero também descreve o modo como o nous se torna cativo. Se ele não tem experiência e vive desatento, ele começa por se entreter com qualquer fantasia passional que lhe aparece, ou seja, com aquilo que a fantasia traz consigo, e logo ele começa a conversar com ela e a elaborar respostas. Dessa maneira, “nossos próprios pensamentos são combinados com a fantasia demoníaca”. E conforme a fantasia cresce e floresce o nous adoece.

Além dos estados enfermos do nous que já mencionamos, existe ainda a conspurcação. O Apóstolo Paulo diz: “Para a pessoa pura tudo é puro, mas para os corrompidos e descrente nada é puro; até seu nous e consciência estão conspurcados[10]”. O nous pode ser conspurcado não apenas por um grande e mortal pecado, mas também por uma palavra descuidada. Mas isso acontece principalmente com alguém que já provou da alegria e do efeito da prece.

São João Clímaco fala de um vacilo do nous, como um piscar de olhos, durante o qual, sem passagem de tempo, palavra ou imagem, uma compulsão passional súbita se apodera da vítima. A paixão na alma de um homem pode ser evocada por um simples movimento sem que tenha havido nenhum pensamento complexo anterior.

Assim sendo, a doença do nous, conforme foi dito, consiste na corrupção, no obscurecimento, na cegueira, na indiferença e insensibilidade, no cativeiro e escravidão, na ilusão, na conspurcação e no vacilo da mente. Tudo o que expulsa o nous de seu movimento natural constitui uma moléstia que acaba por resultar na morte do nous. Nesse estado, o homem por inteiro adoece, definha e morre.

1.1.1.3.  Curando o nous

A vida Ortodoxa pressupõe acima de tudo que a faculdade noética da alma esteja curada. Isto posto, quando o nous se encontra obscurecido, toda a alma se obscurece e se corrompe, de modo que a cura do nous resulta na cura de todo o nosso ser. Vamos então nos voltar para o tema da cura do nous.

De modo a esclarecer o assunto, vamos nos limitar a dois pontos básicos: primeiro, como alcançar a cura, e, segundo, quais são os resultados dessa ação.

É um ensinamento básico de nossos santos que o nous é curado por meio da sua guarda; a isso se dá o nome de ‘vigilância’. A guarda do nous consiste numa “torre de sentinela que controla a visão de toda a nossa vida espiritual”. A guarda do nous já foi chamada de “produtora da luz e da iluminação, doadora da luz e portadora da chama”, e ela ultrapassa muitas virtudes. A guarda do nous é aquilo que, pelo poder de Cristo, pode mudar um homem de pecador, indecente, profano, ignorante e estúpido para justo, responsável, puro, santo e sábio. Além dessas coisas, o nous pode capacitar os homens a “contemplar misticamente e a teologizar”. Por meio da guarda do nous um homem é purificado, é feito santo e se torna capaz de teologia. De acordo com Filoteu do Sinai, devemos ser extremamente rígidos na guarda do nous. Quando vemos um mau pensamento devemos repeli-lo imediatamente e chamar por Cristo. “Jesus, em seu amor gentil, dirá: Veja, eu estou ao seu lado e pronto para ajudá-lo”. Mas para isso é necessária e requerida a guarda do nous.

Por isso, guardar o nous não consiste apenas no esforço para não deixar que os pensamentos maus entrem e capturem o nous, mas numa variedade de ações. Uma vez que os maus pensamentos provêm das paixões, a guarda do nous começa com o autocontrole no comer e no beber, na rejeição de todos os tipos de maus pensamentos e no repouso do coração. A guarda do nous deve ser combinada com a vigilância e com a Prece de Jesus, porque “não existe progresso, qualquer que seja, na guarda do nous, sem a vigilância, a humildade e a Prece de Jesus”. Isso significa que essa guarda não pode ser obtida a menos que a pessoa faça um esforço para se libertar das paixões e para adquirir as virtudes.

Curar um nous moribundo requer coragem. Os Padres dão grande importância à coragem para a vida espiritual. Um bravo atleta não desiste nem fraqueja mesmo numa circunstância em que tenha que se curvar perante o diabo, mas ao contrário, mantém sua esperança em Deus. “Uma alma corajosa ressuscita seu nous falecido”. Um bom cavalo, quando montado, logo se aquece e apressa o passo. O canto dos salmos é o passo e o nous resoluto é o cavalo. Somente a coragem dá ao homem ânimo para reviver seu nous que foi morto pelo pecado.

É assim que o nous possui muitas obrigações: todos os mandamentos de Cristo devem ser observados se ele quiser reviver. Porque se a morte chega ao nous por não ter ele guardado os mandamentos, sua ressurreição e a restauração de sua vida virão pela guarda desses mesmos mandamentos. A pessoa deve estar preocupada em amar a Deus, em se lembrar de Deus e do Reino, do zelo dos santos mártires, lembrar-se da presença real de Deus, das santas e espirituais potências, lembrar-se da partida desta vida, do julgamento, da sentença e da punição. Repouso, oração, amor e autocontrole são “uma quadriga que conduz o nous aos céus”. O nous é iluminado quando a pessoa não negligencia a prática das virtudes.

Nicetas Stethatos, discípulo de Simeão o Novo Teólogo, e dentro da mesma tradição, aponta que “o caminho mais curto para o principiante adquirir virtudes é o silêncio dos lábios e fechar os olhos e os ouvidos”. Esse repouso dos sentidos mediante fechar as entradas ajuda o nous a ver claramente e a discernir movimentos. Então o nous, “como um comandante, permanece independente entre as ideias, julgando e separando os bons dos maus pensamentos”, aceitando os bons e “acumulando bens espirituais” com os quais se alimenta, fortalece e se enche de luz, empurrando os demais pensamentos para o abismo do esquecimento, “sacudindo fora seu amargor”.

Esta passagem merece toda a atenção. Vemos claramente que um nous que é liberto da escravidão dos sentidos pelo silêncio dos lábios e pela interrupção dos estímulos exteriores se torna um regulador da alma. Ele não permite que pensamentos pútridos e satânicos penetrem no assim chamado ‘inconsciente’, ou seja, no fundo da alma. Os bons pensamentos, que nutrem e dão vida à pessoa devem mergulhar fundo na alma. Assim, todas as imagens conceituais e as ações do homem cujo pensamento segue as ordens do comandante, são puras.

São Máximo virá em seguida para exortar o combatente espiritual: “Refreie a potência irascível da alma por meio do amor, apague sua concupiscência com o autocontrole, dê asas à inteligência por meio da prece, e a luz de seu nous jamais se apagará”. É uma instrução básica dos Padres que no começo de nosso trabalho espiritual para curar o nous devemos conservá-lo puro. É claro que isso deve prosseguir depois. São João Clímaco instrui: “Controle seu nous impetuoso no seu corpo distraído (...) fixe seu nous em sua alma como ao madeiro da cruz, bata nele com golpes alternados de martelo como numa bigorna (...) segure seu nous, tão atarefado com suas próprias preocupações”. Mas esse trabalho deve ser unido ao esforço para proteger os desígnios de Deus para a vida da pessoa. Devemos enfatizar que o homem prático submete seu nous de modo diferente do homem iluminado. Similarmente, existe um diferença de acordo com a idade espiritual do homem e com o trabalho que ele está fazendo para controlar seu nous. “O homem engajado na prática ascética pode prontamente submeter seu nous à prece, enquanto que o contemplativo pode rapidamente submeter a prece ao seu nous”.

Esse trabalho adquire a cura do nous que é chamada de purificação na linguagem dos Padres. Um nous que foi corrompido pelas paixões deve ser purificado. Esse trabalho de purificação é realizado pelo Espírito Santo. “Somente o Espírito Santo pode purificar o nous”. Por isso é preciso acima de tudo que o Espírito Santo habite em nós, “para que possamos ter a lâmpada do conhecimento espiritual sempre ardendo dentro de nós”. Quando o poderoso [Espírito Santo] penetra no coração e expulsa o usurpador, aquele que estava cativo pode ser libertado; de outra forma, isso é impossível.

Nicetas Stethatos descreve como o nous é purificado: “Como  temos cinco sentidos, também precisamos ter cinco práticas ascéticas. As cinco práticas ascéticas são as vigílias, a meditação, a prece, o autocontrole e a hesíquia. Devemos unir a visão com a vigília, o ouvido com a meditação, o olfato com a prece, o paladar com o autocontrole e o tato com a hesíquia. Dessa forma o nous é purificado rapidamente, refinado, e se torna impassível e perspicaz”.

Hesíquio o Presbítero dá grande atenção à Prece de Jesus, porque ela purifica o nous dos pensamentos tolos. Qualquer um que está perturbado com alimentos nocivos toma o remédio apropriado e se cura disso. O mesmo é feito pela prece em relação ao nous corrompido. Quando o nous, tendo recebido maus pensamentos, os engole e sente seu amargor, “é fácil expeli-los e se afastar deles completamente por meio da Prece de Jesus nascida do fundo do coração”.

Portanto, purificar o nous não consiste apenas em encontrar os pensamentos que penetraram nele, mas em expulsá-los, coisa que não pode ser obtida com pensamentos racionais e análises, mas apenas com a Prece de Jesus. E quando dizemos ‘prece’, queremos significar a ação do Espírito Santo que chega ao coração quando Cristo é lembrado no coração. São Gregório Palamas enfatiza que a ação do nous, por consistir em pensamentos, é rapidamente purificada “ao devotarmos tempo para a prece, especialmente para a prece monológica”. Quando um homem se dedica à prece, a ação de seu intelecto é curada. Cessam os maus pensamentos, mas a alma por inteiro ainda não está pura. A potência que produz a ação não pode ser curada a menos que “todas as demais potências da alma” tenham sido purificadas. Todas essas potências devem ser purificadas pelo autocontrole, o amor, etc., porque de outro modo o homem se ilude pensando estar purificado. Limitar o sono, ou seja, fazer vigílias, contribui para essa purificação: “Um olho vigilante torna o nous puro”.

Se por um lado a ignorância do nous, que é como uma profunda escuridão que recobre a visão da alma, a torna turva e obscurece o entendimento das coisas divinas e humanas, por outro lado o arrependimento a cura. Podemos ver aqui o grande valor do arrependimento. Por isso São Nicetas Etethatos, que descreve o entenebrecimento do nous, também propõe da cura por meio do arrependimento. “Quando seus olhos são descobertos por via do arrependimento a alma vê essas coisas claramente, dá ouvidos a elas com conhecimento e as capta com entendimento”. Ao mesmo tempo ela adquire o conhecimento de Deus, e, como resultado, “por meio da sabedoria de Deus ela conta as maravilhas de Deus a todos”. O arrependimento que provém de uma profunda tristeza e se une à confissão é o que retira o véu dos olhos da alma para que ela veja as grandes coisas de Deus.

No escritos dos Padres se fala muito do retorno do nous ao coração, no retorno da energia para a essência. A carta de São Basílio o Grande a seu amigo São Gregório contém esse famoso trecho: “Quando o nous não está engajado nos negócios exteriores, nem disperso pelos sentidos mundo afora, ele se retira para dentro de si mesmo. Então ele ascende de forma espontânea para a contemplação de Deus. Iluminado por esse esplendor, ele se esquece de sua própria natureza. A partir daí, então, ele já não arrasta a alma para baixo pensando em seu próprio sustento ou em como irá se vestir, mas desfruta da liberdade em relação aos cuidados terrenos, e dirige seu zelo para a aquisição dos bens eternos”. Reproduzi essa passagem inteira porque ela é expressiva e porque foi utilizada por São Gregório Palamas em sua disputa com Barlaam. São Basílio o Grande diz que o nous que não está disperso pelas coisas dos sentidos no mundo exterior retorna para dentro de si mesmo e se eleva até a visão de Deus. Então, iluminado e brilhando com beleza, ele se desinteressa das coisas terrestres e chega mesmo a esquecer de sua própria natureza.

O retorno do nous disperso para o coração – ou seja, o retorno da energia para a essência – constitui a cura do nous. Ali o nous encontra seu lugar verdadeiro. Em seu retorno ele primeiro encontra o coração físico e em seguida o coração espiritual e metafísico. O asceta “desce até o coração mais recôndito, primeiro em seu coração natural, e depois até aquelas profundidades que já não pertencem à carne. Ele encontra seu coração profundo – o cerne íntimo, espiritual e metafísico de seu ser; e olhando para ele, o asceta enxerga que a existência da humanidade não é algo de estrangeiro nem de estranho para ele, mas é algo que está inextricavelmente vinculado ao seu próprio ser. O retorno no nous ao coração é na realidade a unificação do nous, vale dizer, a união do nous com o coração. Essa união é confirmada pelas lágrimas de compunção e por uma doce sensação de amor a Deus. “As lágrimas de compunção durante a prece são o sinal certo de que o nous está unido ao coração, e de que a prece pura encontrou seu lugar por excelência para dar o primeiro passo em direção a Deus. É por isso que as lágrimas possuem tanto valor na ascese”. Ao penetrar no coração, o nous se separa de toda imagem, seja visual ou mental. As portas do coração se fecham para todo elemento de fora e “a alma penetra numa ‘escuridão’ de natureza especial, e subsequentemente é considerada digna de se colocar inefavelmente diante de Deus com um nous puro”.

Ao discutirmos o retorno do nous ao coração, da energia do nous para a sua essência, devemos falar dos três movimentos do nous descritos por São Denis o Areopagita. Ele diz que a alma e o nous possuem três movimentos. O primeiro é circular, “a entrada em si mesmo e para longe do que está fora, de modo que acontece uma concentração interior de suas potências espirituais”. Nesse movimento, primeiro a alma retorna para si mesma, reúne todas as suas potências e dessa forma se eleva a Deus, que não tem começo nem fim e que está além de todas as coisas. Esse caminho é imóvel, ele não permite à mente vaguear, e, assim concentrada, a alma se eleva para Deus. O nous é libertado de todo o criado, ele descarta toda noção de criação, toda fantasia, ele se une ao coração por meio do arrependimento, e ali Deus se revela, uma vez que o nous se une a Ele. Esse movimento é o que se chama de ‘teologia apofática’ (que descreve a Deus negativamente, afirmando apenas o que não pode ser dito Dele). O segundo movimento consiste numa linha reta, quando a alma “progredindo em direção às coisas que a rodeiam, se eleva das coisas externas, deixando os símbolos múltiplos e coloridos para ir às contemplações simples e unificadas”. Isso é o que se chama de theoria natural ou de teologia catafática, que vê a Deus na natureza. Por intermédio da contemplação da natureza a alma se eleva em direção a Deus. Esse método está arriscado à ilusão, porque muitas pessoas que aprenderam a olhar diretamente para as criaturas de Deus se iludiram e começaram a adorar as coisas criadas mais do que a Criação e o Criador. O terceiro movimento, chamado de espiral, forma uma ligação entre os dois primeiros. Os Padres dão prioridade ao primeiro movimento, chamado de circular, porque forma um círculo. O nous retorna ao coração e através do coração se eleva até a visão de Deus. Assim se evita a ilusão. O movimento circular é obtido através da prece noética, na qual o atleta do espírito luta para “fazer o nous retornar sobre si mesmo, para empurrá-lo não numa linha reta, mas num movimento circular, que é infalível”.

O retorno do nous ao coração é obtido por meio da prece, e em especial pela prece noética, quando o nous, purificado de quaisquer pensamentos ou ideias ora a Deus sem distração. Por isso Nilo o Asceta bendiz o nous que ora sem distração e imaterialmente a Deus: “Bendito é o nous que está completamente livre de formas durante a prece. Bendito é nous que, sem distrações em sua prece, adquire uma crescente saudade de Deus. Bendito é o nous que durante a prece está livre da materialidade e despido de todas as possessões. Bendito é o nous que adquiriu completa liberdade em relação às sensações durante a prece”.

Agora que vimos as maneiras pelas quais se pode curar o nous, veremos a seguir os resultados obtidos com essa cura. Vale dizer que veremos, a partir dos trabalhos dos Padres, o que acontece com o nous diretamente depois da cura ou durante esse processo.

Um dos primeiros frutos é a impassibilidade. O nous impassível é “aquele que conquistou suas paixões e que transcendeu a dor e a alegria”. Nesse estado, quando chegam as atribulações, ele se regozija, nunca indo além dos limites. Essa impassibilidade é a morte vivificante do Senhor[11], que provém do trabalho do Espírito Santo. Quando o nous se liberta dos estímulos externos e se limpa das corrupções do pecado, ele enxerga as coisas com mais clareza. Ele vê todos os métodos empregados pelo maligno, inclusive o momento em que este se prepara para a batalha. Ele tem um claro conhecimento de todas as artimanhas do maligno. O nous impassível “forma imagens conceituais que são também desapaixonadas, esteja o corpo dormindo ou acordado”. A consciência esclarecida não é perturbada com pensamentos passionais durante o sono, quando a mente está inativa.

A purificação também está intimamente ligada à impassibilidade. “O nous puro é aquele que está divorciado da ignorância e iluminado pela luz divina”. A purificação do nous é importante porque desse modo a pessoa adquire o conhecimento de Deus, o nous puro instruído às vezes por Deus, às vezes pelas potências angélicas e às vezes “pela natureza das coisas que ele contempla”. O puro nous, de acordo com São Máximo, “é ocupado ou por imagens conceituais desapaixonadas dos assuntos humanos, ou pela contemplação das coisas visíveis ou invisíveis, ou pela luz da Santíssima Trindade”. Ele compreende as Escrituras: “E ele abre seu entendimento, de modo a compreender as Escrituras[12]”.

De acordo com São Máximo existe uma atração entre o nous puro e o conhecimento. “Através do amor o conhecimento de Deus se dirige naturalmente para o nous puro”. O Espírito Santo encontra o nous puro e “o inicia adequadamente nos mistérios do século futuro”. Desse modo o homem se torna teólogo. Pois a teologia não é dada pelo conhecimento humano e pelo zelo, mas pelo trabalho do Espírito Santo que habita num coração puro. O nous que foi purificado “se torna para a alma um céu cheio de estrelas de pensamentos radiantes e gloriosos, com o sol de justiça brilhando acima de tudo, enviando seus raios efulgentes de teologia para o mundo”. Por isso o Abade Sisoés, respondendo à pergunta do Abade Ammon sobre se, na leitura das Escrituras, é necessário concentrar-se nas palavras de modo a estar pronto a responder a qualquer questão que seja feita, respondeu: “Não é necessário; é melhor ter em si pureza de espírito, não estar ansioso, e então responder”.

A verdadeira teologia não é fruto de uma concentração material, mas uma manifestação do Espírito Santo. Quando o nous do homem é purificado, ele é iluminado e, se seu nous tiver a capacidade, ou seja, a sabedoria, ele poderá teologizar. O homem purificado é por inteiro uma teologia. Os Padres às vezes mencionam os primeiros Padres, não por não possuírem eles próprios a experiência, mas para confirmar essa experiência, especialmente em tempos em que outros homens a negam.

Através da purificação do nous ganhamos também um conhecimento real a respeito de nós mesmos. O filósofo Barlaam sustentava que a santidade e a perfeição não podiam ser encontradas “sem divisão, raciocínio e análise”, de modo que ele afirmava que quem quisesse possuir a perfeição e a santidade devia se utilizar de “métodos de divisão, raciocínio e análise”. Mas São Gregório Palamas se opôs a essa visão como sendo “uma heresia de Estoicos e de Pitagóricos”. Nós, os Cristão, disse ele, “não consideramos como verdade um conhecimento fundamentado em palavras e raciocínios, mas somente aquele que é demonstrado pelos dados da vida, que não apenas é verdadeiro, como ainda seguro e irrefutável”. Ele prossegue afirmando que ninguém é capaz de conhecer a si mesmo por meio de distinções, raciocínios e análises, a menos que seu nous tenha se libertado da presunção e do mal por meio de uma severa penitência e um intenso ascetismo. Ninguém que não tenha libertado seu nous da presunção e do mal, vale dizer, que não tenha purificado seu nous, poderá ter consciência de sua própria pobreza, consciência esta que constitui uma proveitosa entrada para o autoconhecimento.

Essa passagem é muito importante, porque muitas pessoas hoje em dia ensinam que se pode alcançar o autoconhecimento por meio da autoanálise e da psicanálise. Mas isso é uma ilusão que pode levar a resultados temíveis. Quando alguém analisa a si mesmo, o mais provável é que termine esquizofrênico. O método ascético é simples. Utilizando os métodos descritos – ou seja, guardando o nous, purificando-o e levando-o de vota ao coração por meio da penitência e da prece noética, e guardando os mandamentos de Cristo – tentamos livrar o nous de suas imagens e de seu cativeiro pelas coisas sensuais, de modo a que ele possa retornar para o coração e enxergar sua desolação interior. O autoconhecimento vem através do trabalho do Espírito Santo. É somente quando a graça de Deus, junto com nosso próprio trabalho, ilumina nossa alma é que conhecemos acuradamente cada detalhe de nosso ser. A partir daí a cura de nosso nous nos revela a existência das paixões, de modo a que, iluminados pelo Espírito Santo e empoderados por ele, possamos guerrear contra elas.

A partir do momento em que o nous está curado, ele se torna puro e se livra da fantasia e da debilidade.

Outro fruto da cura do nous é a liberdade. Assim como antes ele era prisioneiro, agora ele se vê livre e “cheio de alegria, voando em seu caminho de volta para o reino celeste, que é sua terra natal”. Quando ele se liberta das paixões, tudo o que fizer será contado como uma pura oferenda a Deus.

Quando o nous é resgatado das paixões, que são a sua morte, ele ressuscita. Por isso podemos falar da ressurreição do nous. Nicetas Stethatos relaciona essa ressurreição à ressurreição de Lázaro. Assim como Lázaro morrei, o nous morre pelo pecado e é enterrado. E tal como Cristo foi a Betânia para levantar Lázaro, também ele vem até o nosso nous morto para levantá-lo. E do mesmo modo como as irmãs de Lázaro, Marta e Maria, chegaram a Ele com lágrimas e lamentações, também “a prudência e a justiça, mergulhadas na dor por causa da morte do nous se apresentam em lágrimas diante de Cristo”. A justiça é o trabalho difícil e vigoroso, enquanto a prudência é o trabalho espiritual e contemplativo.

Encontramos essa correlação entre dois milagres, ou seja, entre a ressurreição de Lázaro e a do nous morto, em muitos de nossos hinos Ortodoxos que são cantados nas igrejas. Gostaria de registrar aqui dois deles.

“Vamos nos apressar para levar adiante nossa theoria e nossa praxis amarradas com a Prece de Cristo, para que, por meio de Sua temível autoridade vivificante, possamos oferecer-Lhe nosso nous morto e enterrado como Lázaro, como uma palma de justiça, e clamar: Bendito é Aquele que vem!”. Nesse tropário Marta é a praxis e Maria é a theoria por intermédio das quais Cristo é chamado para ressuscitar o nous que está morto.

“Vamos, em fiel imitação de Marta e Maria, enviar ações inspiradas, como uma delegação para o Senhor, pedindo a Ele que venha e levante nosso nous que jaz horrivelmente morto na tumba, que insensatamente desdenhou do temor a Deus, e que agora está insensível e sem energia vital, para clamarmos: Veja, Senhor, assim como antes, em Sua compaixão, você levantou a Lázaro, seu amigo, agora, em toda a Sua misericórdia, dê a vida a nós todos”. O nous está morto na tumba e não possui mais sua energia vital, de modo que exortamos a nós mesmos para enviarmos a Marta e Maria, ou seja, ações, até Cristo, para que Ele o ressuscite. Um nous que recuperou o controle sobre si mesmo, que ressuscitou, se torna um templo para o Espírito Santo.

Nesse estado o nous puro é iluminado e arrebatado em êxtase. Ele se regozija na visão de Deus e conversa com o Senhor. Quando os Padres falam do arrebatamento e do êxtase do nous, eles não consideram que o nous deixou o corpo como acontecia com a Pítia, mas que ele se libertou dos cuidados corporais e terrenos e se ofereceu a Deus, sem perder a consciência deste mundo. Quem possui a prece incessante experimenta o êxtase do nous. Esse êxtase é chamado de arrebatamento, e é uma forma de theoria.

O nous puro é iluminado, recebe a luz. Nesse ponto, é preciso que falemos a respeito da luz, especialmente da luz do nous, porque os textos patrísticos tratam muito dela.

São Diádoco, um expert da teologia mística, se refere a essa luz do nous: “Não duvide que o nous, quando começa a ser energizado pela luz divina, se torna tão completamente translúcido que chega e enxergar vividamente sua própria luz”. Mas ele esclarece que isso acontece “quando a potência da alma adquire o controle sobre as paixões”. Semelhantemente, em outro trecho ele diz: “Aqueles que meditam incessantemente a respeito desse santo e glorioso nome nas profundezas de seu coração podem eventualmente ver a luz de seu próprio nous”.

Esse ensinamento de São Diádoco é partilhado também por Calixto e Inácio Xanthopoulos.

São Nilo o Asceta ensina que “quando o anjo de Deus vem até nós, apenas com a sua presença ele coloca fim a todas as energias adversas dentro do nous e faz com que sua luz produza energia sem ilusões”.

O nous é feito à imagem de Deus. E, assim como Deus é luz, também o nous é luz. Nesse sentido é que os santos dizem que o homem pode ver a luz de seu nous. Mas essas coisas acontecem ao homem natural, enquanto que no homem decaído o nous está entenebrecido, obscurecido e oculto pelas paixões. Entretanto, quando um homem se livra das paixões e é iluminado por Deus, durante a prece ele se torna capaz de ver a luz de seu nous.

Em suas “Tríades” São Gregório Palamas se refere a esse assunto em muitos lugares. Depois de citar numerosas palavras de santos, ele termina dizendo: “Você entende claramente, irmão, que o nous liberto das paixões pode ver a si próprio como luz durante a prece, e que ele brilha com a luz divina?”. De fato, “o nous, vendo a si mesmo, enxerga a si mesmo como luz”, mas São Gregório prossegue: “assim é toda natureza purificada, que não é coberta pelo véu do mal”. Quando não se encontra coberta pelo véu do mal, “ela vê a si mesma como uma luz espiritual”. Essa visão da luz do nous acontece por obra do Espírito Santo. “O nous purificado e iluminado, quando participa claramente da graça de Deus, também contempla outras visões místicas e sobrenaturais – como quando, ao olhar para si mesmo, ele vê mais do que a si mesmo: ele não percebe apenas outro objeto, nem apenas sua própria imagem, mas sim a glória impressa em sua imagem pela graça de Deus”.

Esse ensinamento indica que o nous purificado vê, não sua própria imagem, mas a glória de Cristo espelhada nela pela graça de Deus. Os santos veem essa imagem transformando-se de glória em glória, “ou seja, na qualidade de seu brilho em nós, como uma irradiação divina que se torna cada vez mais distinta”. Assim como o olho dos sentidos não pode ser ativo a menos que uma luz brilhe desde fora, o nous não pode ver com seu sentido noético a menos que a luz divina brilhe sobre ele.

Em resumo, podemos dizer que, de acordo com o ensinamento de São Gregório Palamas, o nous, enquanto imagem de Deus, é luz, mas que ele é obscurecido pelas paixões. É apenas quando a luz divina brilha e o nous é purificado, que ele consegue ver, não exatamente sua própria luz, mas o brilho formado em sua imagem pela graça de Deus. A visão sensível, sensorial, por si só, não tem utilidade a menos que exista uma luz sensorial. O mesmo é verdade para a visão da luz divina no nous do homem. São Gregório Palamas desenvolveu esse ensinamento porque o filósofo Barlaam sustentava que o homem poderia ver a Deus e adquirir o conhecimento de Deus por meio do conhecimento humano e da elaboração de pensamentos humanos, o que constitui um erro absoluto.

Em seu livro “São Silouane o Athonita”, o Arquimandrita Sofrônio escreve o seguinte a respeito da luz natural do nous: “Ao alcançar essa fronteira, ‘onde já não existe dia ou noite[13]’, o homem contempla a beleza de seu próprio nous, que muitos identificam como o ser Divino. Ele vê a luz, mas esta ainda não é a Verdadeira Luz, na qual ‘não existe absolutamente treva alguma’. A luz que ele vê é a luz natural, peculiar ao nous do homem, criado à imagem de Deus. Essa luz do nous, que ultrapassa qualquer outra luz do conhecimento empírico, ainda pode ser chamada de escuridão, porque essa é a escuridão do despojamento, e Deus ainda não está nela. Talvez nessa ocasião, mais do que em qualquer outra, devamos escutar a advertência do Senhor: ‘Cuidado para que a luz que existe em vocês não seja escuridão[14]’. A primeira catástrofe cósmica e pré-histórica – a queda de Lúcifer, o filho da manhã, que se transformou no príncipe das trevas – foi devida à apaixonada contemplação de sua própria beleza, que terminou com sua autodeificação”. Em outra passagem, o mesmo monge escreve sobre a luz natura, que é a escuridão do despojamento: “Se pudéssemos ‘situar’ o paradeiro dessa escuridão poderíamos dizer que ela deve ser encontrada nos arredores da Luz incriada. Mas quando a prece hesiquiasta é praticada sem o devido arrependimento e sem que seja inteiramente dirigida a Deus, a alma, desnudada de todas as imagens, pode se colocar por um breve período nessa ‘escuridão do despojamento’, sem ter ainda contemplado a Deus, porque Deus, ipso facto, não está na escuridão”.

“Colocado na escuridão do despojamento, o nous conhece um deleite peculiar e uma sensação de paz. Se nesse ponto ele se volta para si mesmo, ele pode perceber algo semelhante à luz, que, entretanto, ainda não é a luz incriada da Divindade, mas um atributo natural do nous criado à imagem de Deus”.

“Dispersando as fronteiras do tempo, essa contemplação aproxima o nous do conhecimento do intransitório, empoderando o homem em uma nova, mas ainda abstrata cognição. Pobre daquele que confundir essa sabedoria com o conhecimento do Deus verdadeiro, e essa contemplação com a comunhão com o ser Divino. Pobre dele, porque a escuridão do despojamento nas fronteiras da verdadeira visão se torna um portal impenetrável e uma barreira fortíssima entre ele e Deus, ainda mais forte do que a escuridão devida ao levante de uma enorme paixão, ou da escuridão das óbvias instigações demoníacas, ou da escuridão que resulta da perda da graça e do abandono de Deus. Pobre dele, porque ele estará perdido e cairá na ilusão, uma vez que Deus não está na escuridão do despojamento. Deus se revela ao homem na luz, e como luz”.

É difícil fazermos uma comparação entre os textos escritos por São Gregório Palamas e pelo Arquimandrita Sofrônio a respeito da luz do nous, porque nos falta o principal, a experiência. Conquanto externamente pareça haver diferenças, acreditamos que estas se devem a uma questão de estilo. Cremos firmemente que ambos os Padres tiveram a experiência desses estados e que apenas expressam diferentes aspectos dessa experiência. Temos a sensação, sem que estejamos absolutamente certos disso, que o Arquimandrita Sofrônio está se referindo mais à inteligência que o homem deifica e ama em si mesmo. Assim sendo, ele enfatiza epigramaticamente que a escuridão do despojamento constitui uma “cobertura impenetrável da Divindade e um muro” que separa o homem de Deus mais ainda do que as paixões, o entenebrecimento das sugestões demoníacas e o abandono de Deus. Na realidade essa luz do nous é uma escuridão, e ao dizer isso ele concorda absolutamente com São Gregório Palamas, assim como concorda com o ensinamento de Palamas de que a theoria é a pura ação de Deus no homem. “A visão da Luz Divina Incriada é impossível, a menos que a pessoa esteja em estado de iluminação pela graça – um estado em virtude do qual o ato de contemplar a Deus é em si, acima de tudo, a ‘amizade com Deus’, a união com a Vida Divina”. Pessoalmente, não encontramos divergência entre esses dois testemunhos. Eles simplesmente se expressam com palavras diferentes, tendo em mente diferentes concepções às quais desejavam refutar.

De qualquer modo, é um fato que, quando o homem se torna um só espírito com o Senhor, “ele vê as coisas espirituais com clareza”. A impassibilidade do nous o estimula a alcançar um conhecimento espiritual dos seres criados. O nous, liberto das paixões e incessantemente iluminado por meio da contemplação dos seres criados, se torna como luz.

Ao nous, uma vez curado, é concedida a visão de Deus. Naturalmente, o que ele vê não é a essência de Deus, mas Sua energia. Quando os santos veem a luz, eles a veem “quando obtêm a comunhão divinizante do Espírito”. Vale dizer que, quando se unem a Deus, eles veem as vestimentas de sua deificação, “seu nous sendo glorificado e preenchido com a graça do Verbo, belo além de toda medida em Seu esplendor”. É assim que o nous é glorificado.

Então o deleite espiritual brota no nous porque “quando o nous está engajado na visão das realidades inteligíveis, ele se deleita nelas a ponto de não mais poder ser arrastado dali”. Unido a Deus ele se torna “sábio, bom, poderoso, compassivo, misericordioso e resiliente; em resumo, ele inclui em si muitas das qualidades divinas. Mas quando o nous se afasta de Deus e se liga às coisas materiais, ou ele se torna autoindulgente como os animais domésticos, ou como uma besta selvagem ele luta com os homens para obter essas coisas”.

Como resultado da cura do nous, também o corpo se cura. Naturalmente, quando dizemos que o corpo é curado não queremos dizer que ele se livra das doenças, ainda que isso possa acontecer até certo ponto. Dizemos ‘até certo ponto’ porque muitas moléstias, especialmente as de natureza nervosa, se originam da morte do nous; mas o fato é que o corpo se livra principalmente das paixões da carne. São Máximo diz: “Quando você percebe que o seu nous reflete sobre as imagens conceituais do mundo com reverência e justiça, você pode estar certo de que também seu corpo se encontra puro e sem pecado”. O nous que medita sobre as coisas divinas também mantém o corpo puro em relação às chamadas paixões corporais. Primeiro o nous é receptivo à promessa das coisas boas que virão, depois ele se ergue em direção ao Primeiro Nous, e, sendo santificado, “ele próprio se vê transformado junto com o corpo que lhe está ligado, para torná-lo mais divino”. Assim, ele também é preparado “para a absorção da carne pelo Espírito no século futuro”. Uma vez que o corpo também experimentará as coisas boas e eternas, é essencial que ele seja preparado para essa nova vida.

Todos os santos que viveram essa vida seguiram o mesmo método de cura e de purificação do nous, e adquiriram os mesmos ensinamentos. Acreditamos que os santos não expressam suas visões particulares e que eles não têm diferentes posições dogmáticas. Uma vez que tiveram a mesma experiência, apresentam o mesmo ensinamento. Se nós vemos diferenças em alguns pontos, é porque interpretamos seus ensinamentos a partir de pressupostos errôneos. Se tentarmos ver a expressão diferente de cada santo – porque, embora tenham todos o mesmo conhecimento de Deus, não têm todos a mesma sabedoria –, se tentarmos detectar o real sentido de cada palavra, não encontraremos ensinamentos diferentes. De fato, somos nós que somos fragmentados e inexperientes em assuntos espirituais, separados da tradição viva da Igreja, e por isso vemos diferenças entre os santos Padres.

O Apóstolo Paulo escreveu: “Estejam perfeitamente unidos no mesmo nous e no mesmo julgamento”. Todos os santos pensam o mesmo. São Gregório Palamas enfatiza que “esse conhecimento suprarracional é comum a todos os que acreditaram em Cristo acima dos conceitos”.

Tudo o que citamos mostra que o nous que foi afetado pelas paixões está doente, fraco, moribundo e desprovido de seu estado natural, necessitando de cura urgente. O método ascético Ortodoxo descreve como o nous pode ser curado. Essa cura é indispensável, porque com ela o nous é purificado e adquire o conhecimento espiritual de Deus, e esse conhecimento espiritual constitui a salvação do homem.

1.1.2.        O coração

Um dos nossos pedidos básicos a Deus é pela nossa salvação. “Pela paz que vem do alto e pela salvação de nossas almas, oremos ao Senhor”. Da mesma forma, muitos outros tropários terminam com as palavras “oremos para que sejam salvas as nossas alma”.

A salvação da alma não consiste em se despir ou se despojar de algo, mas em colocar a Cristo dentro de nós. Não se trata de um estado negativo, mas positivo, que consiste primariamente na comunhão e na união com Cristo. Essa comunhão se dá basicamente no coração. Por isso, alcançar a salvação é principalmente encontrar o coração. Quando Deus concede que encontremos o coração, começamos a caminhar pelas veredas da salvação. As palavras do Abade Pambo são características a respeito: “Se você possui um coração, você pode ser salvo”. Possuir um coração significa encontrar o próprio coração, dentro do qual podemos ser guiados por Deus.

São Marcos os Asceta, interpretando as palavras do Senhor: “O Reino de Deus está dentro de vocês[15]”, diz: “Em primeiro lugar é necessário possuir a graça do Espírito Santo para energizar o coração, e a partir daí, proporcionalmente a essa energização, penetrar no Reino do céu”. Por isso muitos Padres consideram essencial encontrar o lugar do coração, que é energizado pela graça incriada de Deus, porque então o Cristão possui a Deus como seu mestre e pode ser guiado com segurança pelo Espírito Santo.

1.1.2.1.  O que é o coração

Quando as Sagradas Escrituras e os Padres falam do coração, eles querem dizer o coração metafísico – espiritual – mas também o coração corporal. O coração é tanto o órgão corporal como o centro de nosso ser, no qual temos a união e a comunhão com Deus. Esses dois significados do coração são confluentes e ao mesmo tempo diferenciados. A seguir vamos lançar um olhar mais analítico a respeito disso.

Em primeiro lugar, vamos considerar o coração metafísico e espiritual. É bastante difícil para alguém definir o coração espiritual, porque “verdadeiramente, o coração é um abismo incomensurável”. Especialmente para o homem carnal, que é regulado pela lógica e vive na escuridão da vida depois da queda, é impossível conhecer o coração espiritual. Por isso não podemos encontrar nenhuma definição capaz de descrever a realidade experimentada pelo homem espiritual. Pode-se apenas formular caracterizações e imagens.

O homem espiritual, que vive em oração, “descobre que seu coração não é apenas um órgão ou centro de sua vida física, mas algo indefinível e ainda capaz de entrar em contato com Deus, a fonte de todo o ser”. O coração é o lugar onde se desenvolve toda a vida espiritual, o lugar energizado pela energia incriada de Deus. Em muitas pessoas esse “coração profundo” é desconhecido, não apenas para os outros, mas para a própria pessoa. Porque a graça de Deus efetua a salvação do homem de forma oculta em seu coração. O que diz o Arquimandrita Sofrônio é característico: “O campo de batalha da luta espiritual é, primeiramente e acima de tudo, o próprio coração do homem, e aquele que explora seu próprio coração apreciará a reflexão de Davi de que ‘o coração é profundo[16]’. A verdadeira vida do Cristão é vivida no fundo do coração, oculto não apenas de olhares estrangeiros, mas ainda, em sua totalidade, do próprio dono do coração. Aquele que penetra nesse recinto secreto encontra-se face a face com o mistério do ser. Qualquer um que já tenha desistido de contemplar seu ‘eu’ oculto sabe o quanto é impossível detectar o processo espiritual do coração, porque em sua profundidade o coração alcança este estado do ser em que não existem processos”.

O Apóstolo Pedro chama o coração de pessoa oculta, “a pessoa oculta do coração[17]”. Aí é realmente o lugar onde Deus é santificado: “Santifiquem o Senhor em seus corações[18]”. A graça de Deus desponta no coração: “...até que o dia amanheça e a estrela da manhã se erga em seus corações[19]". Apesar da união com Deus se dar no coração, o coração permanece sendo ‘menor’, e Deus, maior. “Deus é maior do que o coração”.

Essas passagens escriturárias foram colocadas aqui, não para mostrar como as Escrituras ou os Padres caracterizam o coração, coisa que faremos em outra seção, mas para mostrar que muitas passagens das Escrituras e dos Padres falam do coração.

Já dissemos que o nous é o olho do coração e apontamos que em muitos lugares os Padres ligam o nous ao coração. De fato, o coração é identificado ao nous. São Máximo o Confessor é característico a respeito: “...para limpar o nous, que o Senhor chama de coração”. O nous é o olho da alma, enquanto o coração é o centro do ser humano, o centro do mundo espiritual; mas parece que esses dois estão ligados. É bastante significativo que São Gregório Palamas, ao falar da pureza do coração, prossegue analisando o nous e sua pureza.

Certamente, devemos ter em mente o que examinamos na última seção, que os Padres chamam o nous tanto de essência da alma, que está no coração, como de atividade da alma, que consiste nos pensamentos. “A atividade do nous, que consiste em pensamentos e em imagens conceituais, também é chamada de nous. O nous é também a potência energizadora dessas coisas, que a Escritura chama de coração”. Nicéforo o Solitário, analisando e descrevendo a atenção, diz que alguns Padres caracterizam a atenção como sendo a guarda do nous, outros a chamam de guarda do coração, outros de vigilância e outros de repouso espiritual. “Mas todos esses nomes significam a mesma coisa. Assim como podemos chamar um pão de pão, filãozinho, bisnaga, o mesmo se entende por isso”. Por isso, de acordo com Nicéforo o Solitário, falar em guarda do nous ou do coração é a mesma coisa. Isso significa que na teologia patrística o nous está ligado e identificado com o coração. Por isso, tudo o que escrevemos na seção anterior sobre o nous é também verdadeiro para  o coração, mas aqui diremos mais sobre este último.

A conexão entre nous e coração aparece também nos ensinamentos de Diádoco de Foticeia. Ele ensina que, a partir do momento do batismo a graça de Deus “se oculta nas profundezas do nous”, e ao mesmo tempo esconde sua presença da percepção do nous. Quando a pessoa começa a amar a Deus “com plena resolução”, então, “por intermédio da percepção do nous a graça comunica à alma um pouco de sua riqueza”. E quando ele se afasta de toda riqueza material, “então ele descobre o lugar onde se escondia a graça de Deus”. Em outro capítulo, São Diádoco diz que através do batismo a graça vem habitar nas profundezas da alma, “ou seja, no nous”. E quando recordamos a Deus com fervor, “sentimos uma saudade divina que sobre de dentro de nós desde o fundo de nosso coração”. Nessas passagens podemos ver a ligação entre o nous, a alma e o coração.

Visto que nos tempos de São Diádoco predominava a ideia herética dos Messalianos – de que a graça de Deus e Satanás existiam ao mesmo tempo e nos mesmo lugar na alma – Diádoco fez uma distinção entre aquilo que se conhece a partir da Escritura e aquilo que é sentido pelo nous. Ele enfatizou que “antes do santo batismo, a graça encoraja a alma no sentido do que é bom e vem de fora, enquanto Satanás fica emboscado nas suas profundezas, tentando bloquear as vias que o nous tem para se aproximar do divino. Mas no momento em que a pessoa renasce pelo batismo, o demônio é expulso para fora, e a graça penetra no interior”. Portanto, a graça e Satanás não coexistem no mesmo lugar. A graça divina, através da faculdade perceptiva do nous, deleita o corpo com uma alegria inefável, enquanto que os demônios capturam a alma à força por intermédio dos sentidos corporais, em especial quando nos encontram relaxados na batalha espiritual.

Quando agimos de acordo com os desejos da carne, a graça de Deus que estava no fundo de nosso coração espiritual desde o batismo se vê encoberta pelas paixões, de modo que nosso esforço será no sentido de descobrir essa graça mediante uma vida ascética na graça. Isso significa que nosso esforço de ser dirigido para afastar as nuvens que encobrem nosso coração. São Diádoco pergunta, a partir do momento em que o diabo foi expulso de nosso coração pelo batismo, “como, então, pode esse intruso, expulso da maneira mais vergonhosa, voltar e se instalar junto com o verdadeiro Mestre que vive agora livremente em sua própria casa?”.

Esse ensinamento de São Diádoco está colocado aqui para deixar claro que através do batismo a graça de Deus penetra no fundo do coração, no fundo do coração espiritual. E que, quando esse coração é encoberto pelas paixões, é preciso uma grande luta para descobri-lo.

Teolepto, Metropolita de Filadélfia, ensina que o coração, vale dizer, o nous, se revela quando a pessoa vive de acordo com o método hesiquiasta. “Quando, tendo colocado um fim nas distrações exteriores, você domina também os pensamentos internos, então o nous começa a despertar para as palavras e ações espirituais”. Ele nos exorta: “Ponham fim nas conversações com o mundo exterior e lute contra seus pensamentos internos até encontrar o lugar da prece pura e a morada onde habita Cristo”.

Por esta passagem parece que o coração é o lugar que se revela em graça por intermédio do ascetismo, e o lugar onde Cristo se torna manifesto. O homem que se lavou de todas as paixões e atos pecaminosos conhece esse lugar. Para o homem decaído que vive afastado de Deus, o coração se esconde, completamente desconhecido – ele sequer sabe que ele existe, enquanto que para o homem que vive a vida divina o coração é uma realidade bem conhecida.

Esse ensinamento nos leva à visão de que a revelação do coração é de fato a revelação da pessoa. Quando alguém, por meio da ascese da graça, descobre o coração, onde Cristo se revela e é Rei, ele se torna uma pessoa, uma vez que a pessoa é propriamente a “semelhança”. Por isso a revelação do coração é também a revelação da pessoa.

Não é nossa intenção a essa altura desenvolver uma ontologia da pessoa, conforme ela se apresenta nos ensinamentos dos Padres da Igreja. Eles escreveram importantes estudos a esse respeito. Acreditamos, de acordo com os ensinamentos dos Padres, que a imagem de Deus constitui uma semelhança potencial com Deus, e que a semelhança com Deus é a imagem em ação. Do mesmo modo, o homem criado por Deus e recriado por meio do santo batismo pela Igreja, é potencialmente uma pessoa. E quando, por uma luta pessoal e principalmente pela graça de Deus, ele alcança a semelhança, então ele se torna uma pessoa real. Por isso sustentamos que ontologicamente todos os indivíduos são pessoas, mesmo o próprio diabo, mas que soteriologicamente nem todos são pessoas, por não terem ainda atingido a semelhança com Deus. Sem querer desconsiderar a ontologia da pessoa, nesse ponto queremos enfatizar particularmente a vida ascética da pessoa, que costuma ser passada por alto nos teólogos contemporâneos.

Tudo o que o Arquimandrita Sofrônio diz a esse respeito é característico: “No Ser Divino a Hipóstase constitui o mais interior princípio esotérico do Ser. Similarmente, no ser humano a hipóstase é o fundamento mais intrínseco. A ‘Persona’ é “o homem oculto no coração, na parte que não é corruptível (...) que, aos olhos de Deus, tem um alto valor[20]”, o mais precioso núcleo de todo o ser humano, que se manifesta em sua capacidade de autoconhecimento e de autodeterminação; em sua posse de uma energia criativa; em seu talento para a cognição, não apenas do mundo criado, mas também do mundo Divino. Consumido pelo amor, o homem se sente unido ao seu amado Deus. Por meio dessa união ele conhece a Deus, e então o amor e a cognição emergem como um ato único”.

A pessoa é “o homem oculto no coração”. Essa é a única formulação que pode ser feita sobre a pessoa, porque ela não pode ser definida em termos científicos, por se tratar de uma comunhão e de uma união mística com Cristo. Assim como não é possível dar uma definição da Igreja, mas apenas dizer que ela consiste no Corpo de Cristo, o mesmo é verdade em relação à pessoa humana, o coração, no qual acontece a comunhão mística entre Deus e o homem. “O conhecimento científico e filosófico pode ser formulado, mas a ‘persona’ está além das definições e por isso é incognoscível desde fora, a menos que ela própria se revele. Uma vez que Deus é um Deus Secreto, também o homem possui suas profundezas secretas. Ele não é nem o autor da existência, nem o fim. Deus, não o homem, é o Alfa e o Ômega. A qualidade divina do homem reside no modo de seu ser. A semelhança em ser é a semelhança de que fala a Escritura”. Tanto quanto a pessoa não pode ser definida, tampouco o coração, que é a pessoa, pode ser definido.

A pessoa é uma realidade que nasce pela graça de Deus. “A ‘persona’ nasce do Altíssimo e como tal não está sujeita às leis da natureza. A ‘persona’ transcende os limites terrestres e se move em outras esferas. Ela não pode ser descrita. Ela é singular e única”. Uma vez que a pessoa é o coração, podemos dizer que também o coração renasce desde o Alto. Não se trata de um estado natural. Somente pela graça de Deus é possível discernir o lugar do coração.

O renascimento da pessoa é na realidade uma revelação, a pessoa se torna “um novo nascido do Alto. Uma flor exótica que se abre dentro de nós: a hipóstase – ‘persona’. Como o Reino de Deus, a ‘persona’ “não vem ostensivamente[21]”. O processo pelo qual o espírito humano penetra no domínio da divina eternidade é diferente para cada um de nós”. Assim é que a ‘persona’, tal como o coração, nasce do Alto.

O coração é o lugar onde Deus se revela como amor e luz. ”Deus se revela principalmente através do coração, como Amor e Luz. Nessa luz o homem contempla os preceitos do Evangelho como o reflexo na terra da Eternidade celestial, e a glória de Cristo como o filho único do Pai, cuja glória os discípulos viram no Monte Tabor. A revelação pessoal torna a revelação geral do Novo Testamente espiritualmente familiar”.

Examinamos essas coisas para tornar compreensível que quando um homem descobre seu coração, ele se torna propriamente uma pessoa. Também queremos deixar claro que o coração é o lugar que é descoberto por meio da vida ascética na graça, na qual Deus se revela. É aí que o homem percebe a luz de Deus e então ele é inundado com o amor de Deus e com o amor a Deus. O homem pode alcançar a percepção do coração, mas é impossível compreender toda a vida que existe nele.

De acordo com o ensinamento dos Padres, esse coração espiritual está localizado no coração corpóreo como num órgão. Já falamos a respeito quando estudamos a localização da alma e do nous. As mesmas coisas são válidas também para o coração. São Gregório Palamas, se referindo às palavras do Senhor: “Do coração procedem os maus pensamentos, os adultérios, os assassinatos, as fornicações, o roubo, o falso testemunho, as blasfêmias[22]”, e ao dito de São Macário: “O coração dirige todo o organismo, e quando a graça entra na posse do coração, ela reina sobre todos os pensamentos e todos os membros, porque é aí, no coração, que a mente e todos os pensamentos da alma têm sua sede”, escreve que “nosso coração é o lugar da faculdade racional, o primeiro órgão racional do corpo”. Em apoio ao ensinamento de que o coração espiritual está no coração, no órgão corporal, São Gregório se reporta às palavras de São Paulo: “vocês são nossa epístola escrita em nossos corações (...) vocês são manifestamente uma epístola de Cristo ministrada por nós, escrita, não com tinta, mas pelo Espírito do Deus vivo, não em tablitas ou pedras, mas nas tábuas da carne, ou seja, no coração[23]”, e nos ensinamento de São Máximo o Confessor: “Quando Deus vem habitar num coração assim, Ele o honra gravando Suas próprias letras nele através do Espírito Santo, assim como fez com as tábuas de Moisés”.

Quando o nous retorna de sua dispersão, primeiro ele encontra o coração físico, depois ele penetra no coração espiritual, e finalmente no coração profundo. Essa é a experiência comum a todos os que praticam a Prece de Jesus e o santo trabalho do retorno do nous ao coração. “O asceta aprende os grandes mistérios do Espírito através da prece pura. Ele desce ao seu mais recôndito coração, primeiro ao seu coração natural, e a seguir até essas profundezas que já não são mais da carne. Ele encontra seu coração profundo – ele e contra seu espírito profundo, o cerne metafísico de seu ser; e olhando para este, ele vê que a existência da humanidade não é algo de estrangeiro e estranho a ele, mas que é algo que está inextricavelmente vinculado ao seu próprio ser”. Consequentemente, o atleta do método hesiquiasta pode distinguir claramente o coração espiritual do coração corporal. Ele percebe a existência e a energia desses corações. De início, o nous encontra o coração corpóreo e então ele descobre o coração espiritual, tornando-se capaz de perceber os movimentos de ambos ao mesmo tempo. Assim, não existe confusão nessa situação.

São Nicodemos o Hagiorita, que pertencem organicamente ao cerne da tradição Ortodoxa,  diz que o coração corpóreo é um centro natural, paranatural e supranatural. Ele é um centro natural, porque de todos os membros do corpo humano o coração é o primeiro a ser modelado. São Basílio diz: “Na criação dos animais o coração é o primeiro a ser colocado pela natureza, de acordo com o animal, que deverá ser análogo a ele”. Ele é um centro paranatural porque é dele que saem todas as paixões e pensamentos blasfemos. Certamente isso deve ser interpretado, de acordo com o que já dissemos, no sentido de que depois do batismo a graça de Deus está presente no centro do coração, enquanto o diabo opera desde fora. O Apóstolo Pedro disse a Ananias: “Ananias, porque Satanás colocou em seu coração que mentisse ao Espírito Santo?[24]”. Satanás invadiu o coração de Judas: “E terminada a refeição, o demônio colocara no coração de Judas Iscariotes, o filho de Simão, a traição a Jesus[25]”. Da mesma forma, é bem conhecida a lição do Senhor: “Do coração procedem os maus pensamentos, os assassinatos, os adultérios, a fornicação, o roubo, o falso testemunho, as blasfêmias[26]”. E o coração é também um centro supranatural porque a graça de Cristo está ativa aí. O Apóstolo Paulo diz: “Deus enviou primeiro o Espírito de seu Filho aos seus corações, clamando: Abba, Pai![27]”. E em outro trecho ele escreve: “O amor de Deus foi derramado em seus corações[28]”. São Thalassius escreve que um bom coração produz bons pensamentos porque seus pensamentos correspondem ao seu tesouro guardado.

O fato de que os bons e maus pensamentos provêm do coração não significa que a graça e Satanás estejam no mesmo lugar e ao mesmo tempo. “O coração produz bons e maus pensamentos por si só”, mas as ideias más não nascem de sua natureza, mas como resultado da lembrança do mal. O coração concebe a maior parte dos maus pensamentos a partir dos ataques do demônio. Em nenhuma circunstância sentimos que eles nascem do coração. São Diádoco enfatiza que a graça de Deus que vem pelo batismo manifesta sua presença nos que foram batizados “esperando para ver para que lado a alma se inclina”. Quando a pessoa guarda os mandamentos de Cristo e se lembra do nome de Cristo incessantemente, o fogo da divina graça se espelha do coração até os órgãos mais exteriores da percepção e queima “as taras no campo da alma”. Nesse estado, o sopro do Espírito Santo extingue as flechas do demônio antes que elas atinjam o corpo, extingue os dardos temíveis enquanto eles ainda estão no ar.

Por isso a maior de todas as batalhas se dá no coração. Depois que Deus o conquista e o diabo é expulso, começa a paz interior e exterior. Então, o trabalho mais importante do combatente consiste em “penetrar em seu próprio coração e lá fazer guerra a Satanás, para odiá-lo”. O coração, este centro natural, paranatural e supranatural, é a fonte da vida corpórea e espiritual, mas também pode ser a fonte da morte espiritual.

1.1.2.2.  A caracterização do coração

Do que foi escrito, fica evidente que, embora não seja possível dar uma definição do coração espiritual, podemos dizer que o coração é o lugar que é revelado por meio da vida ascética na graça, e onde o próprio Deus se revela e habita. Esse lugar é perceptível para a pessoa que está organicamente e essencialmente inserida na tradição Ortodoxa.

Os santos Padres que experimentaram esse fato forneceram numerosas caracterizações e imagens dessa vida. A seguir vamos tentar ver essas caracterizações e definições, que mostram mais claramente o coração e seu papel na vida espiritual como um todo.

O coração é o lugar onde habita Deus: “Possa Cristo habitar em seus corações pela fé[29]”. “O amor de Deus se derramou em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado[30]”. Do mesmo modo como o carvão gera a chama, “também Deus o fará, ele que habita em nossos corações pelo batismo”. E se Ele encontrar o espaço de nosso pensamento livre do mau e se ele estiver protegido pela guarda do nous, então Ele aquecerá nosso nous para a theoria, assim como uma chama acende uma vela. A partir do momento em que Deus habita ali, “todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento espiritual” ali se escondem. “Eles se revelam ao coração na medida de nossa purificação por intermédio dos mandamentos”. No espelho da alma, “Jesus Cristo, a sabedoria e o poder de Deus Pai, é representado e luminosamente refletido”. Devemos buscar o Reino de Deus dentro de nosso coração e, se lavarmos o olho do nous, realmente ali encontraremos o Reino de Deus, a semente, a pérola, o fermento e muitas outras coisas. Encontraremos a Divindade em nosso coração. “Cristo disse que o Reino dos céus está dentro de nós, indicando que a Divindade habita em nossos corações”.

Habitando em nossos corações, Deus ensina e escreve sua doutrina e suas leis. A partir daí o coração passa a ser o lugar onde os mandamentos de Deus estão escritos. O Apóstolo Paulo fala daqueles “que mostram a obra da lei escrita em seus corações[31]”. Então a pessoa não apenas conhecerá “as essências, como ainda, passando através delas, chegará, numa certa medida, a ver o próprio Deus”. Quando Deus chega a habitar um coração assim, “ele o honra gravando Suas próprias letras nele através do Espírito Santo”. Por isso os santos, que possuem a Deus em seus corações, e sendo dignos de ter a lei de Deus inscrita em seus corações, adquirem o nous de Cristo, conforme disse o Apóstolo: “Nós temos o nous de Cristo[32]”. O nous de Cristo que os santos recebem não traz consigo uma perda da potência noética, nem a transforma em “uma parte suplementar adicionada ao nosso nous”, nem “a faz passar essencial e hipostaticamente para o nosso nous. Ao contrário, ele ilumina a potência de nosso nous com sua própria qualidade e conforma a atividade de nosso nous à sua própria atividade”. Vale dizer, a potência de nosso nous, sem ser perdida, é iluminada pela energia de Cristo. “Ter o nous de Cristo” significa, de acordo com São Máximo, “ter a compreensão de acordo com a de Cristo, e compreender a Cristo através de todas as coisas”. A pessoa pensa de acordo com a vontade de Deus, com uma perpétua lembrança de Deus. O mesmo se aplica à potência concupiscente. A pessoa deseja todo o tempo apenas o que Deus deseja, e quer a Deus insaciavelmente. São Pedro Damasceno se refere a São Basílio o Grande, que dizia que quando Deus encontra um coração livre de todas as preocupações terrenas e ciências mundanas, Ele “inscreve nele Suas próprias doutrinas como se fosse numa lousa limpa”. Por isso, nesse estado, trata-se de uma “consciência doutrinal”. A pessoa conhece as doutrinas da Igreja por experiência, porque ela possui a vida de Deus em seu coração. Devemos lutar para termos a Cristo habitando em nosso coração, porque então o próprio Deus “nos ensinará a dominar rapidamente Suas leis”.

O coração é o inferno ao qual Cristo desceu para libertar a alma do homem. Assim como ele desceu aos infernos e libertou as almas dos justos, também ele desce às profundezas de nosso coração. São Macário ensina que quando escutamos que o Senhor desceu aos infernos e libertou as almas, não devemos pensar que essas coisas estão distantes daquilo que acontece hoje. O túmulo é o coração. O Senhor desceu “até as almas no inferno que clamavam por Ele”, ou seja, até as profundezas do coração, e, depois de um diálogo com a morte, “erguendo a pesada pedra que oprime a alma, e abrindo o túmulo, Ele nos ressuscita – porque estávamos de fato mortos – e liberta nossa alma aprisionada de sua prisão escura”.

O coração é a terra onde a semente de mostarda é lançada pelo Senhor. De acordo com São Máximo, “a semente de mostarda é o Senhor, que é lançada espiritualmente pela fé nos corações daqueles que O aceitam”.

O coração é a igreja e o altar, o local sagrado onde o Senhor é glorificado e santificado. O Apóstolo instrui: “Santifiquem o Senhor Deus em seus corações[33]”. Todas as coisas visíveis, de acordo com São Macário, são reflexos das coisas invisíveis. A igreja visível simboliza e reflete a igreja do coração. O sacerdote que celebra os sacramentos é uma figura do “verdadeiro sacerdote da graça de Cristo”. Nesta verdadeira e espiritual igreja que é o fundo do coração, acontece uma liturgia eterna no homem ressuscitado: “Falando uns aos outros em salmos, hinos e canções espirituais, cantando e compondo melodias em seus corações ao Senhor[34]”. o coração que não tem maus pensamentos e se encontra energizado pelo Espírito, “é um verdadeiro santuário, mesmo antes da vida futura”. O coração é uma igreja e um altar. São João Clímaco ensina: “Manter uma vigilância regular sobre o coração é uma coisa; tornar-se bispo no coração é outra”. No primeiro caso o nous é um guarda, no segundo ele é um bispo que oferece os sacrifícios espirituais. O coração é também o santuário onde fica o fogo. É o que sentiram os dois discípulos em sua jornada até Emaús, quando Cristo falava com eles: “Não queimavam nossos corações quando Ele falava conosco pelo caminho, e quando Ele revelou as Escrituras para nós?[35]”. O coração é a “sala de acolhida do Senhor”.

O coração é o vaso que contém o azeite da divina graça. De acordo com São Macário do Egito, “as cinco virgens sábias que verteram no vaso de seus corações o azeite que não era inerente à sua natureza – porque este era a graça do Espírito Santo – foram capazes de entrar com o noivo na câmara nupcial”. Assim o coração é o vaso no qual a pessoa prudente guarda a graça do Espírito Santo, de modo a entrar na câmara nupcial para regozijar-se na celebração do noivo.

O coração é o campo onde está escondido o tesouro, e pelo qual aquele que o encontrar venderá tudo o que possui.

O coração é a imagem do Novo Testamento, ou melhor, o Novo Testamento representa a pureza do coração, a vigilância e a guarda do nous. O Antigo Testamento é um ícone do ascetismo exterior, corporal e sensível. “O Santo Evangelho, ou Novo testamento, é um ícone da atenção, ou seja, da purificação do coração”.

O coração é o céu celestial. Onde existe a humildade e a lembrança de Deus “estabelecidas mediante a vigilância e a atenção, e também por meio de uma prece inflexível em sua resistência ao inimigo, ali é o lugar de Deus, os Céus do coração”.

Dentro do coração está a garantia do Espírito: “Deus, que nos colocou um selo e nos deu o Espírito em nossos corações como uma garantia[36]”.

O coração são as tábuas nas quais foram inscritas as letras de Deus: “Vocês são nossa epístola escrita em nossos corações (...) vocês são manifestamente uma epístola de Cristo ministrada por nós, escrita, não com tinta, mas pelo Espírito do Deus vivo, não em tablitas ou pedras, mas nas tábuas da carne, ou seja, no coração[37]”.

O coração é o lugar onde brilha a Luz de Deus, “que brilhou em nossos corações para nos dar a luz do conhecimento da glória de Deus na face de Jesus Cristo[38]”.

No coração o homem tem assegurada sua filiação e aí a voz de Deus é ouvida claramente, dizendo “porque vocês são filhos, Deus enviou diante de si o Espírito de Seu Filho em seus corações, clamando, Abba, Pai![39]”. Uma vez que Deus reside aí, é aí que ele fala ao homem. Aí a voz de Deus é ouvida clara e distintamente.

No coração puro estão também os olhos com os quais vemos os mistérios de Deus: “que o Pai de glória lhe conceda um espírito de sabedoria (...) que os olhos de seu coração sejam iluminados, para que vocês conheçam a esperança para a qual Ele os chamou[40]”.

A paz de Deus prevalece no coração: “Deixe que a paz de Deus governe seus corações[41]”.

O coração é a lira, suas cordas são os sentimentos, a palheta é a mente que, por intermédio da inteligência constantemente se move com a lembrança de Deus, “da qual uma doçura inefável enche a alma, e o nous puro se aclara pelas divinas iluminações”.

O coração é a nascente da qual, por intermédio da prece e de um cálido sentimento, brota a água “do Espírito vivificante”.

O coração é o homem interior.

Os Padres e os Apóstolos usaram essas muitas imagens e caracterizações para a presentar e expressar o coração. Podemos dizer resumidamente que o coração é “nosso homem interior”, o lugar que é revelado mediante a vida ascética na graça e onde Deus se revela e habita. É a igreja espiritual onde uma perpétua e divina Liturgia é celebrada, onde uma perpétua doxologia é oferecida a Deus. Esse lugar, desconhecido para a maioria, mas conhecido dos santos, é o que dá a vida ao homem.

1.1.2.3.  A doença do coração

É bem conhecido o fato, através da tradição Bíblica e patrística, que quando o coração do homem deixa de se conformar com a vontade de Deus e começa a desejar o mal, ele adoece e morre. Fala-se de moléstia, endurecimento, sujeira, morte espiritual do coração. Nesta seção veremos algumas manifestações da doença do coração.

O mal penetra no coração do homem e o torna cativo: “E terminada a refeição, o demônio colocara no coração de Judas Iscariotes, o filho de Simão, a traição a Jesus[42]”. Não há dúvida de que seu coração já vinha num estado de escravidão desde muitos anos antes. “Assim como é impossível que o fogo e a água passem pelo mesmo conduto juntos, também é impossível para o pecado penetrar no coração sem primeiro bater à sua porta na forma das fantasias provocadas pelo demônio”. A fantasia é aquilo que leva as provocações do demônio até o coração. No homem decaído, a fantasia, que é mais sutil do que o pensamento e mais grosseira do que o nous, é o princípio do mal. Por isso os Padres nos advertem para manter nossa fantasia pura, ou melhor, para viver de tal maneira a não ativar a fantasia, mas, ao contrário, a mortificar o que é fantasioso. Somente depois que a fantasia morre, como resultado de muita penitência e muita dor interior, é que a pessoa se torna capaz de teologizar.

Os Padres escreveram a respeito da perdição do coração. Isso deve ser tomado no sentido de que a graça de Cristo já não está agindo no coração e que este centro supranatural se tornou um centro paranatural. A perdição do coração representa a perda da salvação.

Uma das doenças do coração é a ignorância e o esquecimento de Deus. Quando perde a graça de Deus, o coração se torna nublado, escuro, escondido. É o que vimos acontecer com os Judeus e os heréticos. Eles leram as Escrituras, mas não as entenderam porque seus corações estavam encobertos. “Nos dias de hoje, quando se lê Moisés, um véu cobre seus corações[43]”. É por intermédio do coração que a pessoa adquire a certeza de Deus, é no coração que Deus se revela, que Ele fala e interpreta Suas palavras. Quando essas coisas se ocultam, o homem se coloca na mais densa escuridão. E um coração cheio de ignorância é o inferno. “O inferno é a ignorância, pois ambos são escuros; e a perdição é o esquecimento, porque os dois envolvem a extinção”.

Dureza e endurecimento são outra doença do coração. Como ele não aceita a graça de Deus, que transmuta tudo, ele se torna duro. “Homens teimosos, incircuncisos de corações e ouvidos”, disse o Protomártir Estêvão aos Judeus[44]. Essa dureza é o produto acumulado da arrogância, e o homem será julgado por ela. “Por causa de seu coração duro e impenitente, vocês estão acumulando a ira sobre si mesmos, quando se revelar o justo julgamento de Deus[45]”. Um coração endurecido é como um portão de ferro diante de uma cidade. Quando está fechado, ninguém consegue entrar na cidade. Mas o coração daquele que sofre e se aflige se abrirá sozinho, como aconteceu com Pedro. Nossa tarefa é não criarmos precondições para o endurecimento do coração. “Não endureçam seus corações como numa rebelião[46]”. Muitas vezes o Senhor encontrou esses corações calejados. Depois do milagre da multiplicação dos cinco pães e da tempestade, “seus corações estavam enrijecidos[47]”. Em outro ponto o Senhor diz ao povo: “Seus corações ainda estão endurecidos?[48]”. Quando confrontado pelos homens que o criticavam por curar num sábado, o Senhor “olhou ao redor com ira, pesaroso com a dureza de seus corações[49]”, e curou o homem que tinha a mão seca.

A sujeira é outra doença do coração. Quando o coração perde a graça de Deus e os demônios começam a operar dentro dele, ele se torna naturalmente sujo. De acordo com Nicetas Stethatos, a sujeira do coração não provém apenas do fato da pessoa ter pensamentos sujos, mas também porque ela ostenta seu sucesso, se incha com suas virtudes, tem pensamentos grandiosos, ou seja, é orgulhosa de sua sabedoria e de seu conhecimento de Deus, e desdenha de seus irmãos que são indolentes e descuidados. É isso que é mostrado na parábola do Fariseu e do Publicano. Todo desejo que chega ao seu coração, mesmo os que não provêm de fora, são impuros e adúlteros. O Senhor disse: “Todo aquele que olhar para uma mulher com luxúria já cometeu adultério com ela em seu coração[50]”. Mas também quaisquer outros desejos, mesmo que não sejam carnais no sentido estrito, mas que sejam contra a vontade de Deus, constituem uma conspurcação do coração e, por conseguinte, uma moléstia. E assim o coração se torna doente.

Da mesma forma, o coração tolo é enfermo. Dos idólatras que adoravam as coisas criadas mais do que o Criador, foi dito: “seus tolos coações estavam obscurecidos[51]”.

A falta de correção é outra enfermidade do coração. O coração que faz a vontade do diabo não está direito, uma vez que a retidão do coração só é possível quando este se encontra em seu estado natural, ou seja, quando ele é a morada de Deus. O Apóstolo Pedro falou de modo acusador a Simão o Adivinho, que pretendia obter a graça de Deus por dinheiro: “Seu coração não é direito aos olhos de Deus[52]”.

 Outra moléstia do coração á a rudeza. A presença das paixões no coração torna-o rude, e essa rudeza logo se manifesta exteriormente. Por isso na tradição Ortodoxa fala-se claramente da ternura, não apenas interna como externa. O coração deve ser simples, refinado. Um homem com um coração simples é também exteriormente terno. Mas existe uma ternura exterior que não provém da ternura do coração, ou antes, que está em flagrante contraste com uma rudeza do coração, e existe uma ternura exterior que brota e reflete uma gentileza interior. O Arquimandrita Sofrônio escreve a respeito de São Silouane: “Mesmo a intuição mais perceptiva, colocada em contato com o Padre Silouane, em quaisquer circunstâncias , jamais encontraria nele nada que fosse ignóbil. Ele não sabia o que fosse o desdém ou a desconsideração. Era estranho a toda forma de afetação. Era realmente um espírito nobre, da maneira como só um Cristão sabe ser nobre”. Pois quando existe afetação, hipocrisia, sarcasmo, antipatia, é claro que ali está  um coração doente, pois o comportamento é rude.

Também a autoindulgência interior é uma moléstia do coração. Ao invés de se concentrar e se comprazer no amor a Deus, o coração se deleita com as coisas carnais, desagradáveis a Deus. Um coração autoindulgente é uma prisão para a alma, especialmente na hora da morte. de acordo com São Marcos o Asceta, “um coração autoindulgente se torna uma prisão e uma corrente para a alma quando ela deixa esta vida”. As paixões da alma são satisfeitas enquanto existe um corpo. Mas quando a alma deixa o corpo ela não será capaz de se satisfazer, por lhe faltarem as coisas materiais. Por isso essas paixões, em especial a autoindulgência da alma, não encontrando satisfação, estrangulam a alma. Nos escritos patrísticos fala-se desses demônios. Por isso um coração autoindulgente é uma prisão e uma corrente para a alma no momento em que ela parte desta vida.

A alma doente e moribunda de um homem transmite sua enfermidade e seu obscurecimento a todo o ser psicossomático. Tudo o que ele pensa e deseja é morto. Por isso o Abade Doroteu disse que enquanto estivermos sujeitos às paixões não poderemos confiar no coração. Pois um juiz trapaceiro transforma em trapaça até as coisas mais corretas. São Marcos o Asceta adverte: “Enquanto vocês não erradicarem o mal, não confiem em seus corações”.

O coração enfermo deve ser curado. Se ele não se curar, todo o organismo humano estará doente.

1.1.2.4.  A cura do coração

O mais alto objetivo do homem é chegar ao conhecimento de Deus, porque aí está a sua salvação. Naturalmente, quando dizemos “conhecimento de Deus”, não queremos dizer um conhecimento mental, mas uma “comunhão de ser”. Ou seja, o conhecimento de Deus é a comunhão com Deus. Quando essa comunhão é alcançada, existe salvação. Mas essa comunhão acontece nas profundezas do coração. Aí Deus encontra o homem, aí ele reparte Seu conhecimento, aí o homem adquire o sentido de Seu ser. Para que aconteça essa comunhão e essa visão de Deus, o coração deve ser puro. O Senhor afirmou: “Bem-aventurados os de coração puro, porque verão a Deus[53]”. O coração que caiu doente e morreu precisa ser curado e purificado de modo a se oferecer ao conhecimento de Deus. O coração puro é o órgão do conhecimento, o órgão da epistemologia Ortodoxa.

A seguir veremos de que maneiras o coração pode ser curado.

O arrependimento é a primeira medicina curativa. O coração precisa se arrepender e retornar à sua condição natural. Se uma vida de pecado levou o coração a um estado antinatural, uma vida de arrependimento lhe devolverá o estado natural, lhe dará a vida. São João Clímaco oferece uma definição precisa do arrependimento: “O arrependimento é a renovação do batismo. O arrependimento é um contrato com Deus para um novo começo de vida. O arrependimento adquire a humildade. O arrependimento sempre desconfia do conforto corporal. O arrependimento é uma consciência crítica e uma segura vigilância sobre si mesmo (...) O arrependimento é a reconciliação com o Senhor (...) O arrependimento é a purificação da consciência”. Em outra parte o mesmo santo diz como aquele que foi corrompido depois do batismo pode ser purificado e remover de si a mancha por meio do incessante fogo do coração e do óleo da divina compaixão. A compaixão de Deus no fogo do coração cura a pessoa de sua doença.

Quanto maior o arrependimento, mais cresce a contrição. Um coração contrito é aquele que vive em arrependimento. O profeta e rei Davi disse: “O sacrifício agradável a Deus é um espírito quebrantado. Um coração contrito e quebrantado não será recusado por Deus[54]”. Deus habita num coração contrito. Todo aquele que se apresenta diante do Rei para receber a remissão de um débito precisa ter uma “contrição inexprimível”. De acordo com São Nicetas Stethatos, as marcas distintivas da verdade não estão nos rostos, nas maneiras nem nas palavras, nem Deus reside nessas coisas, mas tanto a verdade como Deus residem “nos corações contritos, nos espíritos humildes e nas almas iluminadas pelo conhecimento de Deus”.

Para falarmos em contrição do coração devemos descrever de que modo o coração se torna contrito e no que consiste essa contrição. São Marcos o Asceta, que começa por dizer que é impossível a uma pessoa se afastar do mal sem a contrição do coração, descreve precisamente o que o torna contrito. “O coração se torna contrito por um triplo autocontrole: no dormir, no comer e no relaxamento do corpo”. O relaxamento do corpo produz a autoindulgência, que é receptiva aos maus pensamentos. A contrição também pode ser produzida por “uma sábia solidão e um completo silêncio”. E São Marcos o Asceta, voltando ao tema, enfatiza que a vigília, a prece e a aceitação paciente com o que nos acontece constituem pausas que não prejudicam, mas beneficiam o coração. O trabalho corporal e a privação das necessidades produzem uma dor no coração que é útil e salutar para a pessoa. São Filoteu do Sinai, que enfatiza que devemos fazer todo o possível para humilhar a arrogância de nosso coração, salienta algumas maneiras de adquiri-lo. O coração é quebrantado e humilhado pela lembrança de nossa vida original, ou seja, da vida de Adão antes da queda, e pela recordação de todos os pecados que cometemos desde a infância, exceto, naturalmente, dos pecados da carne, “cuja lembrança é nociva”. A memória dos pecados gera lágrimas e nos faz agradecer sentidamente a Deus; e uma constante e vívida consciência da morte faz nascer uma tristeza divina. Da mesma forma, a alma é humilhada pela recordação da Paixão do Senhor e das muitas bênçãos que recebemos de Deus. O homem carnal, que é o homem que está distante de Deus, se distingue pela dureza e aspereza de seu coração. O homem de Deus, que recebeu o Espírito Sato, se distingue pelo refinamento de seu coração. O coração é sensibilizado e enternecido quando foi purificado das paixões e se fez contrito.

Os Padres descrevem também uma contrição prejudicial. De acordo com São Marcos o Asceta, “existe um quebrantamento do coração que é suave e o torna penitente, e existe outro que é violento, prejudicial, despedaçando-o por completo”. A boa modalidade de quebrantamento acontece num espírito de compunção e numa atmosfera de prece. Vale dizer que o coração contrito ora constantemente a Deus, ele não se desespera, mas espera no grande amor de Deus pelos homens. Por isso ele é marcado pelo amor. São Simeão o Novo Teólogo, um médico espiritual experiente, reconhece que uma longa e oportuna tristeza do coração “escurece e perturba a mente”, afasta a prece pura e a compunção da alma e cria uma ânsia dolorosa no coração, que resulta no seu endurecimento e empedramento. É assim que os demônios trazem o desespero. Assim, um quebrantamento que não está rodeado de compunção e prece acaba por entenebrecer a pessoa e cria um clima favorável para que o demônio lhe injete o desespero e a desesperança. O quebrantamento genuíno, que, como dissemos, não prejudica o coração, é marcado pela presença da prece, da compunção e da esperança em Deus.

Um coração quebrantado começa com a oração e produz muitos resultados. Um hesiquiasta anônimo apresentou uma lista dos benefícios desse método salutar, dentre os quais destacamos: “1. Torne seu coração quebrantado por meio da prece, ó monge, para que o poder do diabo seja completamente banido de seu coração pela perfeição (...) 7.  Assim como um homem teme um ferro aceso e incandescente, o demônio teme o coração quebrantado; porque este coração destrói suas artimanhas completamente. 8. Um coração negligente e que não foi partido, tão logo se veja confrontado com as fantasias do diabo, aceita-as e fica muito impressionado com a ideia da fantasia; mas no coração quebrantado não há lugar para fantasias. 9. Onde existe contrição do coração todo mal satânico é expulso e toda ação demoníaca é incendiada (...) 25. Quando o demônio vê um coração ferido pela contrição da prece, logo ele lembra os golpes que Cristo sofreu pela mão do homem, e logo lhe impõe medo e o faz desencorajar-se. 26. Bem-amado, destrua o demônio com a contrição de seu coração de tal modo a que você possa entrar triunfante na alegria do seu Senhor. 27. Parta seu coração por meio da prece, para que Satanás, o enganador, seja destruído em pedaços”.

Para podermos de certo modo interpretar a contrição do coração, vamos falar da dor no coração. Devemos desde já dizer que quando falamos em ‘dor’ estamos nos referindo principalmente ao coração espiritual. O coração espiritual dói, está dolorido. Quando ele se levanta pela graça de deus, isso não tem consequências para o coração físico. Ou seja, quando o coração espiritual está quebrantado, está partido, está sofrendo por causa da alegre tristeza de viver no arrependimento, o coração físico continua seu caminho natural sem outros efeitos molestos. Em muitos casos os cardiologistas não conseguem detectar a doença, pela simples razão que o coração físico da pessoa que está com o coração dolorido, não está doente.

A dor no coração é necessária porque mesmo a ascese mais estrita é espúria e infrutífera sem ela. E está claro que para que aconteça essa dor, tão essencial para a vida espiritual, a pessoa não deve satisfazer inteiramente os desejos do corpo. Pois, “assim como o cordeiro não é companheiro do lobo, também o sofrimento do coração não combina com a saciedade, para dar nascimento às virtudes”, diz São Marcos o Asceta. Todas as virtudes são concebidas por meio da dor no coração. Uma vida Cristã sem dor é uma fraude.

A dor no coração é essencial para a salvação. No livro “A arte da prece”, o HIgoumeno Caritão menciona essa passagem: “Deve ficar bem entendido que o verdadeiro sinal do esforço espiritual e o preço do progresso é a dor do sofrimento, que corresponde à sensação de nossa condição vergonhosamente pecaminosa, quando, com tristeza e lágrimas nos lançamos aos pés de Jesus como a mulher pecadora na casa de Simão o Leproso em Betânia[55]. Ela ouviu Cristo lhe dizer: “Seus pecados estão perdoados”. Quem não sofre não produz frutos, porque “a prece sem dor é contada como um aborto”, de acordo com São Isaac o Sírio. A dor no coração e o esforço físico trazem à luz o dom do Espírito Santo, concedido no santo batismo para cada fiel, mas que foi enterrado sob as paixões por nossa negligência no cumprimento dos mandamentos, e trazido novamente à vida pelo arrependimento, por intermédio da inefável misericórdia de Deus”.

“Por causa do sofrimento que os acompanha, não abandone os esforços dolorosos, para não ser condenado como infrutífero, para não ter que escutar: “Tire dele o talento[56]”. Todo esforço em exercitar a alma, seja físico ou mental, que não seja acompanhado de sofrimento, que não requeira um supremo esforço, não dará fruto. “O Reino dos céus sofre violência, e os violentos o tomam à força[57]”. Muitas pessoas trabalharam e continuam a trabalhar sem dor, mas, por causa dessa ausência de dor, continuam estranhas à pureza e permanecem de fora da comunhão com o Espírito Santo, porque se colocaram à parte da severidade do sofrimento”.

“Quem trabalha debilmente e descuidadamente pode demonstrar estar fazendo grandes esforços, mas não colhem fruto algum, porque não suportaram sofrimento. De acordo com o profeta, “a menos que nossas costas estejam quebradas, enfraquecidas pela obra do jejum, a menos que tenhamos suportado a agonia da contrição, a menos que tenhamos sofrido como uma mulher no parto, não conseguiremos dar nascimento ao espírito de salvação no campo de nosso coração”. Pois “devemos entrar no Reino de Deus pela via de muitas atribulações[58]”, conforme está escrito”.

Essa dor no coração espiritual, que também é sentida fisicamente – sem que isso seja lesivo se estiver de acordo com o que é propugnado pela tradição Ortodoxa – é essencial para a nossa salvação, porque ajuda todas as potências de nossa alma a se concentrar aí. Dessa forma, o nous se liga mais facilmente ao coração e retorna a ele. Essa dor, que de certo modo cria uma ferida, é frequentemente relacionada ao pranto. A isso se dá o nome de ‘lágrimas’. A pessoa explode ruidosamente em lágrimas. A isso de dá o nome de ‘tristeza’. E sabemos, pelas obras dos Padres, que essa ferida, que contribui para a salvação, é sentida mais agudamente do que um ferimento físico. Mas, como veremos a seguir, a dor do coração cria também um inefável prazer.

São Teófano o Recluso escreve sobre essa ferida que cria a dor metafísica: “Cuide para que sua atenção esteja no seu coração e não na sua cabeça, e mantenha-a assim não apenas enquanto estiver em oração, mas por todo o tempo. Tente adquirir uma espécie de chaga em seu coração. Com um esforço constante você obterá isso rapidamente. Não há nada de estranho nisso: a aparição dessa dor não tem o significado de uma ferida, embora seja essencialmente uma dor. Essa ferida não é uma ferida física que produz uma dor física, que pode desencorajar a pessoa e ameaçar sua vida. É uma ferida do amor inebriante sentido pela alma penitente, como a do Filho Pródigo, na união com o divino abraço. É um sofrimento expiatório e uma doçura insaciável, uma contemplação mística inexprimível, um inseparável vínculo com Deus, um desejo de deixar esta vida e uma amorosa conversação com Deus. Essa dor o ajudará a recolher todas as potências de sua alma nesse adorável labor, e Deus, vendo seu esforço, lhe dará o que você busca. Então acontecerão algumas mudanças e estados divinos em seu coração”.

São João Clímaco testemunha o fato – que é provavelmente sua própria experiência – de que em algumas pessoas a dor metafísica é tão grande, o coração sofre de tal maneira, que o sangue literalmente brota do coração ferido e da boca: “Eu vi homens que chegaram ao máximo da tristeza, nos quais o sangue do sofrimento e da dor do coração realmente jorrava de suas bocas, e me lembrei do que foi dito: ‘como a erva eu fui cortado, e meu coração foi secado[59]’.”

As lágrimas que brotam são um dos outros resultados desse sofrimento. O Senhor abençoou os que se entristecem: “Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados”. Portanto, a tristeza divina e as lágrimas que dela provêm são um mandamento de Cristo. As lágrimas são um modo de vida. Assim como o arrependimento e a aflição são um modo de vida, também o são as lágrimas que brotam do arrependimento e do coração quebrantado. Falando em lágrimas, devemos observar que existem lágrimas interiores do coração e lágrimas exteriores do corpo. Muitas vezes o coração chora e é lavado por lágrimas. O combatente espiritual que vive no espírito da tradição Ortodoxa muitas vezes flagra seu coração chorando. Normalmente essas lágrimas do coração aparecem exteriormente, mas algumas vezes elas são secretas. Vejamos agora o valor das lágrimas.

Os santos conclamam os Cristãos a chorar, porque nesse clima o coração é purificado e adquire uma sensibilidade espiritual, que supera sua dureza. Santo Isaac conclama: “Encharque sua face com as lágrimas de seus olhos”. Ele nos incita em especial a nos lembrarmos de Marta e Maria[60] para aprendermos o “pranto da tristeza”. São Nilo o Asceta nos ensina a orar primeiro pelo dom das lágrimas. Da mesma forma, se orarmos em lágrimas, tudo o que pedirmos será ouvido.

É grande o valor das lágrimas. Os Padres, que experimentaram esse fato, são exemplares. As lágrimas são um batismo. “Maior do que o próprio batismo é a fonte de lágrimas após o batismo, embora essa afirmação possa parecer uma audácia”. As lágrimas são um sinal do homem renascido. De acordo com o Abade Poêmio, “o pranto é o caminho que as Escrituras e os nossos Padres nos indicaram quando disseram: ‘Chore!’. Em verdade, não existe outro caminho fora este”. Trata-se, como dissemos, de um modo de vida. É impossível que alguém conheça a si mesmo sem lágrimas. Ou seja, se nos conscientizamos de nosso pecado, o que é um sinal da presença da graça divina em nós, se obtivemos o dom do autoconhecimento e da auto reprovação, então, espontaneamente, começamos a chorar. Por isso, “ninguém deve Gaza. As lágrimas de um homem mostram que “Cristo tocou seus olhos e lhe deu a visão espiritual”. As lágrimas abrem os olhos da alma. Isso é também necessário, porque, como ensina o Abade Arsênio, um homem terá que chorar em algum momento de qualquer maneira. Se ele chorar voluntariamente na terra, ele não chorará na próxima vida. Ao contrário, aquele que não chorar aqui, “chorará eternamente depois”.

São Simeão o Novo Teólogo, que, juntamente com outros, pode ser caracterizado como um teólogo das lágrimas, dizia que as lágrimas são um sinal de vida. Tal como os bebês choram quando saem do ventre da mãe, e isso constitui um sinal de vida, o mesmo acontece coo o nascimento espiritual. As lágrimas são parte do renascimento humano. Se o bebê não chora, não se pode dizer que está vivo. Por isso, de acordo com São Simeão, “a natureza humana possui a tristeza e as lágrimas concomitantes ao nascimento”. Ele disse isso porque muitos de seu tempo afirmavam que nem todas as pessoas possuem a mesma natureza, e que, portanto, nem todas derramam lágrimas. Mas isso não é assim. Os santos acrescentam ainda que as lágrimas são tão necessárias para a alma quanto o são o comer e o beber para o corpo. Quem não chora todo dia ou toda hora, “destruirá sua alma e a fará morrer de fome”. Quando uma pessoa adquire a preferência pela bondade, pelo zelo, a paciência, a humildade e o amor a Deus, a alma, que até o presente é como uma rocha, “se torna uma fonte de lágrimas”. São Simeão reporta a informação, também encontrada nas Escrituras, de que “alguns adultos, no instante de seu batismo, derramaram lágrimas, foram como que golpeados pela compunção à chegada do Espírito Santo; não ainda as lágrimas dolorosas do sofrimento, mas lágrimas doces como o mel (...) que escorriam de seus olhos sem dor nem ruído”.

Todas essas coisas mostram, de um lado, que as lágrimas são necessárias para a vida espiritual e, por outro, que elas são um caminho de vida, um alimento para a alma. E mais ainda, que elas apresentam-se sob muitas formas. Para isso eu quero chamar a atenção em seguida.

Nicetas Stethatos, discípulo de São Simeão o Novo Teólogo, ensina que as lágrimas de arrependimento são uma coisa e que as lágrimas provenientes da santa compunção são outra. As primeiras são como um rio que transborda e derruba os muros do pecado, enquanto que as últimas são para a alma como a chuva que cai sobre os campos ou como a neve sobre a relva: “elas nutrem a semente do conhecimento, e o tornam luxuriante e frutífero”. Ele também enfatiza que o sabor das lágrimas às vezes traz amargura e dor e às vezes alegria e felicidade ao sentido noético do coração. As lágrimas de arrependimento criam amargura e dor; as lágrimas do coração puro, o coração que obteve a libertação das paixões, são de prazer e de doçura indescritíveis. Quase a mesma diferença existe entre as lágrimas do temor a Deus e aquelas do amor a Deus.

As lágrimas produzem muitos efeitos. Elas purificam o coração da pessoa das nódoas dos pecados e então o iluminam. Os Padres ensinam que quando o demônio chega ao coração de alguém, ele deixa ali diversas imagens e então se retira, deixando o ídolo do pecado no coração. As lágrimas levam esse ídolo embora: o lugar do coração é lavado e a nuvem que o recobria desaparece. O Abade Poêmio ensina: “Aquele que deseja purificar-se de suas faltas deve fazê-lo com lágrimas”. Em outra parte, ele diz: “Em todas as nossas aflições, derramemos lágrimas na presença da bondade de Deus até que ele nos mostre a sua misericórdia”. Assim é que, onde quer que exista a tristeza, ali não haverá traço de maledicência nem criticismo. Na verdade, está confirmado pela experiência da Igreja que as lágrimas podem lavar os pecados assim como a água apaga algo que foi escrito. Em nossas lágrimas o Espírito Santo vem e se coloca em nosso coração, nos purifica e nos lava de nossa culpa e nossa fraqueza.

As lágrimas não apenas purificam como ainda iluminam a alma. Na realidade, a graça de Deus, que nos chega mediante o arrependimento, ilumina e santifica o coração do homem. Uma tristeza imensa, ou seja, os abismos da tristeza trazem a consolação. Com a pureza do coração chega a iluminação. “A iluminação é uma energia inefável que é percebida sem que a conheçamos e é vista invisivelmente”. A tristeza traz o conforto conforme a beatitude de Cristo. Esse conforto é o consolo de uma alma entristecida. O auxílio divino é a renovação da alma deprimida pela aflição, que, “de modo maravilhoso, transforma as lágrimas dolorosas em lágrimas sem dor”. E Nicetas Stethatos nos ensina que ninguém pode alcançar a potencial semelhança com Deus a menos que tenha previamente, por meio de cálidas lágrimas, purificado a culpa que traz dentro de si e guardado os mandamentos de Cristo. Desse modo é possível eliminarmos toda deformidade e nos tornamos capazes de nos regozijarmos com a glória de Deus.

Os Padres também registram as lágrimas da ilusão. É possível que algumas lágrimas sejam ativadas pelo diabo. Quando uma pessoa chora e ostenta seu pranto, ela está iludida. Por isso os Padres nos advertem: “Não se fiquem convencidos se derramarem lágrimas ao orar”. Ninguém deve pavonear-se e se considerar superior aos demais. O objetivo de nossas lágrimas é o de, por meio delas, nos lavarmos da culpa das paixões. Quando esquecemos a finalidade das lágrimas e nos tornamos orgulhosos, podemos perder a cabeça: “Muitas pessoas, mesmo derramando lágrimas por seus pecados, esqueceram-se do que são as lágrimas, e em seu delírio se perderam”.

Existem muitos tipos de lágrimas, tais como as lágrimas sentimentais, as egoístas, as lágrimas de Satanás, as de Deus, etc. Mas devemos nos esforçar para transformarmos também as lágrimas sentimentais. Os Padres da Igreja nos conclamam a chorar, ainda que nosso pranto traga em si alguns elementos de egoísmo. Então, através da autor reprovação, voltando nossa atenção para nós mesmos e para os nossos pecados, cessando as conversas com os outros e falando apenas com Deus e olhando para nossa própria miséria, poderemos ser transformados e obter a salvação.

Creio que a terrível condição em que muitas pessoas se encontram se deve ao fato de que nos tornamos estranhos às lágrimas: simplesmente, não choramos. Por isso, quando ardemos em dificuldades, quando nossos nervos se desgastam, quando toda a nossa atmosfera interior está em mísero estado, é nessa hora que, com um sentimento de auto reprovação, devemos tentar chorar. Se prestarmos atenção, Deus nos enviará Sua graça e as lágrimas se tornarão um modo de vida e a partir daí nosso coração será purificado das paixões.

Arrependimento, tristeza, contrição, lágrimas – essas coisas estão estreitamente ligadas ao fogo que é gerado no coração. O arrependimento é auxiliado pelo fogo que o Espírito Santo acende no coração da pessoa. O Senhor, referindo-se a esse fogo que ele acende no coração, disse: “Eu vim colocar fogo nos corações; é como gostaria que já estivesse aceso![61]”. Na medida em que Cristo se aproxima do coração, esse se incendeia devido à existência das paixões, como analisaremos a seguir. É esse incêndio que sentiram os discípulos a caminho de Emaús: “Não queimavam nossos corações quando ele nos falava no caminho, quando ele nos abriu o sentido das Escrituras?[62]”.

Esse fogo que queima as paixões do coração é experimentado na forma de luz. Quando o Apóstolo Paulo teve essa experiência, ele escreveu: “... antes de o Senhor chegar, ele que iluminará o que agora está oculto na escuridão, e que manifestará as intenções dos corações[63]”. E o Apóstolo Pedro expressa sua própria experiência, ao escrever: “Até que amanheça mo dia e o sol da manhã se erga em seus corações[64]”. O coração experimenta a graça de Deus primeiramente como fogo, um fogo que queima o pecado e as paixões, e, quando essas paixões estão queimadas, ele experimenta a graça de Deus como uma luz que ilumina todo o homem interior.

Esse ensinamento de que experimentamos primeiro a graça de Deus como fogo e depois como luz, é analisado por São João Clímaco. Ele diz que quando o fogo supracelestial vem habitar no coração, ele incendeia a alguns porque ainda restam coisas a purificar, e ilumina a outros “de acordo com o seu grau de perfeição”. Isso é também chamado de “tanto o fogo que consome quanto a luz que ilumina”. É por isso que algumas pessoas saem de suas orações como se saíssem de uma fornalha quente, e sentem um alívio de seu anterior estado de corrupção, enquanto que outras, ao final da prece, sentem como se tivessem saído resplendentes de luz e vestidas com as roupas da humildade e da alegria. Esse fogo que o coração do homem percebe é igualmente sentido pelo corpo. A pessoa pensa que está no inferno e queimando com as chamas infernais. Isso é importante e salutar, porque esse arrependimento cura a alma. E sabemos bem que, quanto maior o arrependimento, mais efetiva é a cura. Da mesma forma, quanto mais o fogo do arrependimento é sentido, mais são criadas as precondições para a visão da Luz incriada.

De acordo com o Apóstolo Paulo, Deus é um fogo devorador[65]. Todo o nosso trabalho, diz São João Clímaco, prossegue até que o fogo de Deus penetre em nosso santuário, ou seja, em nosso coração. Esse Deus, que é fogo, consome “todo desejo, toda a agitação das paixões, todas as predisposições, toda a dureza do coração, dentro como fora, visível ou espiritual”.

O arrependimento é um feito e um momento de graça, mas também é preciso ajudar o verdadeiro arrependimento a chegar, ou seja, ajudar para que o fogo de Deus chegue ao coração. Aliás, toda a vida ascética consiste numa cooperação, numa sinergia entre as vontades divina e humana. Os Padres ensinam que nos lavamos das paixões “tanto por meio de sofrimentos voluntários como por infelicidades involuntárias”. O sofrimento voluntário consiste na divina tristeza, no arrependimento, na sensação do fogo do arrependimento. As infelicidades involuntárias são as diversas provações de nossas vidas. “Quando o sofrimento voluntário chega primeiro, o involuntário não se apresenta”. Por isso devemos nos esforçar para termos o arrependimento, o fogo de Deus, para desenvolvermos em nós essas coisas de modo a ficarmos livres das provações involuntárias. Devemos manter sempre em nossos corações esse fogo do arrependimento e o calor que provém dele. O diabo tem medo do monge que vive na tristeza e não ousa se aproximar deste. Por isso o monge fiel e prudente é aquele que “mantém aquecido o calor de sua vocação, que a cada dia acrescenta fogo ao fogo, fervor ao fervor, zelo ao zelo”.

A prece pura nasce no coração de quem possui esse fogo. Por isso um dos pedidos de nossa prece é para que esse fogo venha, para que, de um lado, ele queime os pecados e as paixões, e para que, de outro, ele nos dê a prece pura. “Quando o fogo vem habitar em nosso coração, ele ressuscita a prece”, e, como resultado disso o fogo do Espírito Santo desce na câmara superior de nossa alma. Por isso a ordem é clara: “Não cesse de orar enquanto, pela graça de Deus, o fogo (ou o fervor) e a água (das lágrimas) não tiverem se extinguido”.

Esse fogo abençoado, aceso em nosso coração com a chegada da graça em conexão com o arrependimento e as lágrimas, é o que permite nosso renascimento espiritual. Com a ajuda desse fogo toda a nossa condição interior é transformada, e muitas expressões do nosso corpo podem mudar também. São Teófano o Recluso escreve: “A partir do momento em que seu coração começa a se aquecer com o calor divino terá se iniciado sua transformação interior. Essa pequena chama irá com o tempo consumir e fundir tudo dentro de você, e aos poucos irá espiritualizar seu ser como um todo. Enquanto essa chama não começar a queimar, não haverá espiritualização, apesar de todos os seus esforços em adquiri-la. Portanto, a geração de sua primeira centelha será tudo o que importa nesse momento, e convém que você dirija todos os seus esforços nesse sentido. Mas você deve se dar conta de que esse aquecimento não poderá acontecer em você enquanto as paixões ainda forem fortes e vigorosas, ainda que você não se entregue a elas. As paixões funcionam como a umidade para o combustível de seu ser, e a lenha úmida não queima. Não há outra coisa a fazer senão trazer lenha seca de fora para secar a madeira molhada, até que esta esteja suficientemente seca para começar lentamente a pegar fogo. E pouco a pouco a queima da lenha seca irá dispersar a umidade e se espalhar até que toda a madeira pegue fogo”.

“Todas as potências da alma e as atividades do corpo são o combustível de nosso ser, mas enquanto o homem não presta atenção em si mesmo, tudo permanece saturado e sem efeito pela umidade das paixões. Enquanto as paixões não forem afastadas, elas resistirão obstinadamente ao fogo espiritual. As paixões penetram tanto na alma como no corpo, e suplantam até mesmo o espírito do homem, sua consciência e sua liberdade; e desse modo acabam por dominá-lo inteiramente. E como elas estão ligadas aos demônios, por meio delas estes dominam o homem, ainda que ele imagine falsamente ser dono de si mesmo. Liberto pela graça de Deus, o espírito é o primeiro a se desfazer dessas amarras. Cheio de temor a Deus e sob a influência da graça, o espírito destrói os vínculos com as paixões, e, arrependendo-se do passado, resolve firmemente, daí por diante, agradar apenas a Deus em todas as coisas, viver apenas para Ele, caminhar de acordo com os Seus mandamentos”.

São Teófano escreve a respeito desse fogo abençoado: “De acordo com São Barsanulfo, quando recebemos em nosso coração o fogo que o Senhor trouxe à terra, todas as nossas faculdades humanas começam a queimar interiormente. Quando, depois de uma longa fricção, o fogo tem início e a lenha começa a queimar, a madeira irá estalar e esfumaçar até que esteja completamente acesa. Mas depois que ela acender, ela parecerá estar permeada pelo fogo, e produzirá uma luz agradável e um calor sem fumaça nem estalidos. É o que acontece no interior do homem”.

“A madeira recebe o fogo e principia a queimar – e somente aqueles que experimentaram isso sabem quantos estalos e fumaça se produzem então. Mas quando o fogo é aceso realmente, cessam os estalidos e a fumaça, e então apenas a luz reina. Essa condição constitui um estado de pureza; o caminho até ela é longo, mas o Senhor é misericordioso e todo-poderoso. Assim, é claro que quando um home recebe o fogo de comunhão consciente com Deus, o que o aguarda não é a paz, mas um grande labor. Mas a partir desse ponto ele achará todo labor suave e cheio de fruto, enquanto que antes o trabalho era amargo e quase não dava fruto”.

Quanto mais esse abençoado fogo queima as paixões, mais ele é sentido como uma luz que ilumina o coração. Hesíquio o Presbítero ensina que do mesmo como enche os olhos de luz alguém que mira o sol, “também aquele que olha para dentro do seu coração atentamente não pode deixar de ser iluminado”. O coração que não recebe imagens, formas e fantasias de espíritos do mal está condicionado por natureza a fazer nascerem de dentro de si “pensamentos cheios de luz”. O carvão produz a chama. Quanto mais fará Deus, que habita em nossos corações desde o batismo, “aquecendo nossa mente com a contemplação”, se a encontrar livre dos ventos do mal e protegida pela guarda do nous. Um coração vazio de fantasias “dá nascimento a misteriosas imagens conceituais divinas que brincam dentro dele”. O coração se torna um instrumento do Espírito Santo e adquire o conhecimento de Deus. Todos os pensamentos e ações da pessoa que se afasta das paixões e das fantasias são teológicos. Toda a pessoa se torna teologia. A teologia jorra das palavras, do silêncio, das ações e do repouso. No coração puro, que é “o céu celestial no coração”, “o lugar de Deus”, brilha o sol de justiça.

Já falamos antes sobre o fogo que provém do coração, o “santuário de Deus”. A existência do fogo cria calor no coração e no corpo. Uma das energias do fogo é o calor. São Diádoco de Foticéia é expressivo a respeito desse calor que é gerado no coração. Diz ele que quando a alma adquire o conhecimento de si própria, brota dela uma sensação de calor por Deus. Esse calor facilmente se esgota. Mas o calor gerado pelo Espírito Santo é pacífico e duradouro. Ele não se dispersa fora do coração, mas, por intermédio do coração ele faz com que “todo o homem se regozije com um amor sem amarras”. O primeiro calor é um calor natural, enquanto que o segundo é um calor espiritual. O calor que jorra como uma fonte foca o nous, de modo a que a prece pura começa a existir. O atleta desse exercício espiritual deve saber que o calor espiritual não começa nem da direita, nem da esquerda, nem de cima, mas “vem diretamente do coração como uma fonte de água do Espírito vivificante”. Ele existe no coração. “É somente essa prece, que você deve desejar encontrar e possuir em seu coração, somente ela manterá seu nous livre de fantasias e despido de imagens conceituais e pensamentos”. A chegada desse calor em nosso coração é importante porque desse modo as potências da alma se concentrarão aí e a prece se tornará sem distrações. São Teófano o Recluso ensina: “Essa chama é o trabalho da graça de Deus; não de uma graça especial, mas uma graça comum. Ela aparece quando o homem atingiu uma determinada medida de pureza na ordem moral geral de sua vida. Quando essa pequena chama é estimulada, ou quando um calor permanente se forma no coração, o fermento dos pensamentos se aquieta. A mesma coisa acontece na alma como na mulher que tinha o fluxo de sangue: ‘Seu sangue estancou[66]’. Nesse estado a prece é quase permanente, e para isso a Prece de Jesus serve como intermediária. Esse é o limite até onde pode subir a prece executada pelo homem. Isso deve ficar bem claro para você”.

“A partir desse estado, outro tipo de oração aparece, que chega ao homem pela graça, mais do que realizada por ele. O espírito de oração chega ao homem e o dirige para as profundezas de seu coração, como se uma mão forte o conduzisse obrigado de uma sala à outra. Aqui a alma é invadida por uma força invasora, e é mantida voluntariamente dentro, enquanto essa força irresistível a mantiver sob seu jugo. Eu conheço dois graus dessa invasão. No primeiro, a alma vê a tudo e está consciente de si mesma e do que a cerca exteriormente; ela consegue raciocinar e governar a si mesma, e pode até destruir esse estado se assim o desejar. Isso também deve ficar bem claro para você”.

“Mas os santos Padres, em especial Santo Isaac o Sírio, mencionam um segundo estágio da prece que é concedido, ou desce sobre o homem. Santo Isaac considera que essa prece, que ele chama de êxtase ou arrebatamento, é mais elevada do que a descrita anteriormente”.

Como São Diádoco mencionou acima, é possível avivar um calor natural. Vale dizer que existem dois tipos de calor, o natural e o supranatural. São Teófano o Recluso escreve ainda sobre isso e sobre os efeitos do calor supranatural: “O verdadeiro calor é uma dádiva de Deus; mas também existe um calor natural que é fruto de nossos esforços e de nossos estados de espírito passageiros. Esses dois estão tão distantes um do outro como os céus da terra. Nos primeiros estágios, não fica claro qual o tipo de calor que você sente; isso será revelado depois. Você diz que seus pensamentos o cansam, e que eles não o deixam permanecer firme diante de Deus. Isso é um sinal de que seu calor não provém de Deus, mas de você próprio”.

“O primeiro fruto do calor de Deus é a reunião de todos os pensamentos num só, e a incessante concentração em Deus. Pense na mulher cujo fluxo sanguíneo cessou subitamente. Da mesma forma, quando recebemos o calor de Deus, o fluxo dos pensamentos se detém. O que é preciso para tal? Mantenha seu coração aquecido, mas não o valorize, e considere isso apenas como uma espécie de preparação para o calor de Deus. Então, aflito com a debilidade do calor de Deus em seu coração, ore incessantemente e com sofrimento a Ele: ‘Tenha piedade! Não desvie seu rosto de mim! Deixe que sua face brilhe para mim!’. Ao mesmo tempo, aumente corporalmente a provação de comida, de sono, aumente o trabalho, etc. E coloque tudo nas mãos de Deus”.

Acima de tudo devemos colocar que, como em muitos outros assuntos, também aqui o diabo é capaz de trazer um calor ao coração de modo a distrair nossa atenção de Deus. Quando o calor aquecido distrai a atenção em Deus e a prece perde sua pureza e começa a se tornar excitada, esse é um sinal de que esse calor é satânico. O bom e sábio atleta espiritual não fica admirado consigo mesmo, ele não deixa seu nous se afastar da sensação de pecado, da experiência do arrependimento e da insaciável lembrança de Deus com profunda humildade.

De qualquer modo, o calor do coração se comunica ao corpo. São Gregório Palamas, opondo-se à postura de Barlaam de que o corpo não participava da prece, disse não ser esse o ensinamento patrístico Ortodoxo. Não apenas a alma recebe a promessa dos bens futuros, como também o corpo. O renascimento da alma pressupõe o renascimento do corpo. A tristeza não se esgota na alma, mas “da alma ela passa para o corpo e para os sentidos corpóreos”. Também a graça de Deus que está na alma passa para o corpo. São Gregório usa como argumentos escriturários o caso de Moisés, cuja face brilhava, e de Estevão, cuja face se tornou como a de um anjo. O mesmo acontece com o calor. O calor da alma passa para o corpo. Durante a prece contínua, quando a lâmpada noética se ilumina e o nous, através da theoria espiritual, ergue o amor como uma chama alta, “também o corpo, de uma maneira estranha, é levantado e aquecido. Para os que o veem, ele parece saído do fogo de uma fornalha visível”. E o suor de Cristo é igualmente um sinal do calor perceptível que “a súplica contínua a Deus comunica ao corpo”.

Esse calor é tão indispensável para a vida espiritual que São João Clímaco afirma que, se perdermos esse abençoado e amado fervor, devemos nos perguntar cuidadosamente o porquê disso, e deixar nossa alma “se armar com toda sua ânsia e zelo” para trazê-lo de volta.

A presença da graça no coração também se manifesta como um sobressalto do coração. São Gregório Palamas, junto com São Basílio o Grande e Santo Atanásio o Grande, diz que o sobressalto do coração é um sinal da graça: o coração salta “com o entusiasmo do amor ao que é bom”. Em outra passagem ele diz que quando a alma salta com o amor pelo Mais Desejado, “Também o coração é posto em movimento, indicando por sobressaltos espirituais que está em comunhão com a graça, como num ímpeto para se atirar e encontrar a Deus quando ele se mostra com seu corpo nas nuvens, de acordo com a promessa”. É o coração se preparando para receber o Rei celestial.

Por todas essas maneiras o coração vai sendo purificado e curado da culpa do pecado. As paixões se transformam. Ao invés de servir ao demônio e às suas obras pecaminosas elas agora servem ao Senhor. Assim o coração do homem é purificado e se prepara para ver a Deus. A seguir veremos essa purificação do coração e os resultados disso para o homem.

O Senhor disse: “Bem-aventurados os de coração puro, porque verão a Deus[67]”. Tiago, o irmão do Senhor, conclama: “Purifiquem seus corações, ó homens de dupla mente[68]”. E o Apóstolo Pedro ordena: “Amem uns aos outros fervorosamente com um coração puro[69]”.

O coração puro vê a Deus e “os tesouros que Nele existem”. Ele vê a Deus, que é “a suprema consumação de todas as bênçãos”. O Antigo testamento é um ícone do ascetismo corporal exterior, enquanto que o Evangelho, ou o Novo Testamento, é um ícone da pureza do coração. O jejum, o autocontrole, dormir no chão, manter-se em pé, as vigílias e todas as demais práticas ascéticas corporais são boas, porque mantêm a parte passional do corpo longe de cometer atos pecaminosos. Trata-se de uma educação do homem exterior e uma guarda contra as paixões ativas. Ao mesmo tempo, elas protegem contra os pensamentos pecaminosos. Mas “a pureza do coração ou a vigilância e a guarda do nous, cuja imagem é o Novo Testamento, não apenas desenraizam todas as paixões e os males do nosso coração, como ainda introduzem nele a alegria, a esperança, a compunção, a tristeza, as lágrimas, um entendimento de nós mesmos e de nossos pecados, a lembrança da morte, a verdadeira humildade, um ilimitado amor a Deus e aos homens, e um intenso e amoroso anseio pelo divino”.

Os santos Padres, sem desdenhar das práticas ascéticas exteriores, que permanecem educativas, dão grande atenção à pureza interior, à pureza do coração. As práticas ascéticas exteriores preparam o campo para o desenvolvimento da batalha interior. Se a pessoa se mantiver nas práticas ascéticas exteriores e não penetrar em seu interior, ela estará vivendo no período do Antigo Testamento. O esforço para purificar o coração envolve dispersar as nuvens do mal do espaço do coração, para que se torne visível o sol de justiça, Cristo, “e de tal maneira que os princípios de Sua majestade possam brilhar sobre nós”.

Mas o que é um coração puro? Que tipo de coração é puro? São Simeão o Novo Teólogo descreve o coração puro. Ele diz que o coração puro é aquele que não é perturbado pelas paixões; ele também inclui evitar toda inclinação da mente para qualquer coisa má ou profana, e ter em si apenas e tão somente uma coisa: a lembrança de Deus com um irrepreensível amor. Um coração puro é aquele que foi arrebatado e que “olha para as promessas dos bens penhorados aos santos e para os bens eternos, até onde a natureza humana é capaz”. Também outros Padres falam do coração puro. Um coração é aquele que não possui um impulso natural para nada e no qual Deus escreveu Suas leis como numa tábua. Um coração puro é o que não permite a nenhum pensamento maligno penetrar na alma. É puro de coração aquele cujo coração não o condena por ter rejeitado mandamento algum de Deus, por negligência ou por aceitar um pensamento hostil. Uma pessoa é pura de coração quando se esforça para não julgar as prostitutas, os pecadores ou as pessoas desregradas, mas olha para todos com um olhar puro: “nunca despreze, julgue ou abomine ninguém nem divida as pessoas em categorias”. São Macário estabelece o que indica um coração puro: “Se você vê um homem com um olho só, não faça nenhum julgamento em seu coração, mas enxergue-o como um todo. Se alguém possui uma mão aleijada, não o veja como aleijado. Veja o deficiente como direito, o paralítico como saudável”.

Como pode alguém obter a pureza de coração, que significa realmente a cura das paixões? São Gregório Palamas, analisando o ensinamento teológico de que a energia da alma está em seus pensamentos e que a essência da alma está no coração, diz que a energia do nous nos pensamentos pode ser facilmente purificada com a prece monológica. Mas nesse caso ninguém deve pensar que está completamente purificado a menos que todas as demais potências da alma tenham sido também purificadas, e a menos que a essência do nous, que está no coração, tenha sido também purificada. Se a pessoa pensar isso, ela estará se iludindo. Quando uma pessoa enxerga a impureza de seu coração, ela deve orar com todas as demais potências. Ela poderá limpar a parte ativa por meio da prática, a cognitiva por meio do conhecimento, a contemplativa por meio da prece, e, com tudo isso, alcançar “a verdadeira, perfeita e estável pureza do coração e da mente, que ninguém obtém se não for pela perfeição nas ações, na contrição constante, na theoria e na prece em theoria”. De acordo com São Simeão o Novo Teólogo, a pureza do coração não pode ser adquirida pela observância de um único mandamento, mas sim de todos os mandamentos. E o coração não pode ser purificado sem o trabalho do Espírito Santo. Assim como um ferreiro utiliza suas ferramentas, mas se vale também do fogo, porque sem ele não pode produzir nada, “do mesmo modo o homem pode fazer de tudo usando as ferramentas da virtude, mas essas não serão capazes de limpar a sujeira e a corrupção de sua alma. Sem a presença do fogo do Espírito, elas serão débeis e inúteis”.

O Abade Poêmio enfatiza em particular a ação da palavra de Deus. Assim como a água goteja sobre a pedra, também a palavra de Deus é suave para um coração endurecido. “Quando uma pessoa escuta a palavra de Deus constantemente, seu coração acaba por se abrir ao temor a Deus”.

Os santos Padres dão grande ênfase ao poder da oração, em especial da oração monológica, a Prece de Jesus. Por meio dessa prece a pessoa é purificada com a cooperação do Espírito Santo. Hesíquio o Presbítero diz que é impossível para nós limparmos nosso coração, livrá-lo dos pensamentos passionais e dos inimigos espirituais “sem a frequente invocação de Jesus Cristo”. A invocação do Nome de Jesus cria alegria e tranquilidade no coração. “Mas é Jesus Cristo, o Filho de Deus e ele próprio Deus, causa e criador de todas as bênçãos, quem purifica por completo o coração”. Muitos Padres enfatizam o valor da prece por transformar as paixões e purificar o coração. São Gregório Sinaíta diz que existem duas maneiras da prece interior e da união, “ou melhor, duas entradas, uma de cada lado da prece noética que é ativada pelo espírito no coração”. Em outras palavras existem dois modos da prece noética e da união do nous com o coração. Um acontece quando, por meio da constante invocação do Nome de Cristo e através do calor que surge, se produz a energia no coração e as paixões diminuem. O outro vem quando “o espírito guia o nous para si e o confina nas profundezas do coração, limitando seus movimentos usuais”. Seja como for, é um fato que quando o coração é purificado, começa nele uma perpétua e divina Liturgia, e então são cantados hinos a Deus. É aqui que aparece o que o Apóstolo Paulo enfatizava: “falando uns aos outros em salmos, hinos e melodias espirituais, cantando e compondo melodias em seus corações ao Senhor[70]”. Essa prece á a que mais agrada a Deus.

É claro que quando o coração de uma pessoa foi purificado ela não deve se orgulhar disso, porque nenhuma criatura é tão pura quando as que são incorpóreas, os anjos, e mesmo assim Lúcifer, exaltando a si mesmo, se tornou um demônio impuro. “Seu orgulho foi visto por Deus como impureza”. Portanto, a pureza do coração é algo de muito delicado e só pode ser adquirida com muito trabalho e, principalmente, com a ajuda e a energia de Deus. Um coração impuro, ainda que a impureza provenha de pensamentos arrogantes, é cego.

São muitos os resultados da pureza do coração. Vamos sublinhar apenas alguns poucos.

Aquele que está lutando para manter seu coração puro tem o próprio Cristo, o Legislador do coração, como seu mestre, que secretamente comunica Sua vontade a ele.

O coração puro experimenta aquilo que se chama de ‘hesíquia do coração’. Ele vive na paz de Deus. “Deixem que a paz de Deus governe seus corações[71]”. Ela conquista a pusilanimidade. “Se um homem adquire a pureza do coração, ele superou a covardia”. Ele nada teme, nem mesmo a morte, porque o medo da morte é a consequência da impureza do coração. Ele se liberta dos pensamentos malignos, das palavras e das ações. Ele possui um silêncio interior do coração, e uma hesíquia livre de todos os pensamentos. Seu coração se torna “inteiramente receptivo ao Espírito Santo”, e espelha a Deus claramente. A hesíquia diminui a congestão causada pelos cuidados corporais e abre o coração para a esperança em Deus. “Um amplo espaço no coração denota a esperança em Deus; o congestionamento denota preocupações com o corpo”. “Aquele que cultiva as plantas boas e imortais em seu coração adquire um semblante jovial e brilhante. Sua língua canta hinos e preces e é muito gentil em conversação”. O coração puro que se afastou das fantasias não peca mais. “É impossível ao pecado penetrar nu coração sem antes bater à sua porta na forma de uma fantasia provocada pelo demônio”.

A purificação do coração, tendo em vista os resultados que apresentamos antes, se confunde com a própria cura do coração. A doença, constituída pelas paixões, é expulsa. O coração se sente bem. Mas os Padres advertem que antes, durante e depois da purificação, são necessárias a atenção e a guarda de nossa parte. Deve haver uma vigilância constante e a guarda do coração. Devemos estar atentos ao nosso coração, porque se ele for ferido todo o corpo sofrerá, do mesmo modo como toda a planta sofre se ferimos seu coração.

Isaías o Solitário nos conclama a examinarmos a nós mesmos diariamente, a entender nosso coração e a manter afastado todo mal: “Examine diariamente sob os olhos de Deus, irmão, e descubra quais paixões existem em seu coração. Mande-as embora, e assim você escapará ao Seu julgamento. Esteja atento ao seu coração, irmão, e vigie seus inimigos, que estão tramando maliciosamente”. Essa atenção é necessária mesmo enquanto a pessoa ainda é pecadora. Porque quando ela abandonar os pecados e se voltar para Deus, “seu arrependimento a regenerará e a renovará inteiramente”. “A Santa Escritura, a velha e a nova, falam todo o tempo da guarda do coração”. E ele cita muitas passagens. “Aquele que habita continuamente dentro de seu próprio coração está desligado das atrações deste mundo, porque ele vive no Espírito e não conhece os desejos da carne”. Depois de tentar manter o nous puro e afastar os maus pensamentos e as fantasias, para mantermos o coração puro será preciso controlar a língua e o ventre. Porque o mundanismo e a glutoneria são coisas que corrompem o nous por via de nosso sopro, e então corrompem o coração, porque o nous é quem alimenta o coração. “Um irmão perguntou ao Abade Tito: ‘Como posso guardar meu coração?’. O ancião respondeu-lhe: ‘Como podemos guardar nosso coração quando nossas bocas e estômagos estão abertos?’”.

Creio que todas essas coisas mostraram claramente que, para buscar uma vida Cristã consciente e obter a salvação, devemos procurar o lugar do coração. Um asceta costumava dar a seguinte resposta às perguntas de diferentes pessoas: “Pergunte ao seu coração. O que o seu coração lhe diz?”. E, como explicamos, o coração não consiste apenas nos sentimentos, mas é o lugar que é revelado pela graça por meio do ascetismo, e no qual Deus é revelado.

Devemos adquirir o sentido disso. Toda a vida ascética em Cristo objetiva isso. E quando encontrarmos o coração, devemos fazer todos os esforços para curá-lo de sua enfermidade espiritual. Estamos todos doentes do coração. E precisamos ser curados. Encontrar a cura do coração é essencialmente encontrar a salvação.

1.1.3.        Inteligência e pensamentos

A inteligência (logiki) e os pensamentos (logismoi) desempenham um papel fundamental nas doenças e na cura da alma. É nesse campo que a pessoa recebe as provocações do mal, onde os pensamentos simples se tornam compostos e como resultado concebe-se um desejo que a leva a cometer o pecado. Por causa disso o método terapêutico Ortodoxo deve olhar para o objeto dos pensamentos e para o significado da inteligência. Por isso vamos agora examinar a inteligência de um lado e os pensamentos de outro, para ver de que modo a cura da alma pode se dar.

1.1.3.1.  A inteligência

Já dissemos que a alma do homem, criada por Deus, é inteligente e noética. São Thalassius escreve que Deus criou seres inteligentes e noéticos “com a capacidade de receber o Espírito e de atingir o Seu conhecimento; ele fez existir os sentidos e os objetos sensíveis para servir a esses seres”. Enquanto que os anjos possuem inteligência e nous, o homem possui a razão, o nous e os sentidos, uma vez que o homem é um microcosmo e o ápice de toda a criação. Portanto, é através do nous e da inteligência que o homem conhece a Deus. A energia inteligente da alma está ligada à energia noética, mas não existe identidade entre as duas, como veremos a seguir.

Quando falamos da alma vimos que ela foi criada à imagem de Deus. E que, uma vez que Deus é Trino – Nous, Verbo e Espírito – o mesmo é verdadeiro para a alma: ela possui nous, palavra e espírito. Ora, dizer que a alma possui nous, palavra e espírito implica estabelecer alguns pressupostos. O primeiro pressuposto é, segundo o ensinamento de São Gregório Palamas, que a representação do homem do mistério trinitário não é feita de modo a que a Trindade possa ser entendida antropomorficamente, mas que o homem pode ser interpretado de modo trinitário. Vale dizer, o Deus Trino não é interpretado com base no homem, mas o homem é interpretado com base no Deus Trino. E essa interpretação não é apenas psicológica e humana, mas reveladora. Isso significa que apenas quando uma pessoa está dentro da revelação, como viveram todos os santos, ela pode captar esse fato. O segundo pressuposto é que enquanto o homem possui um nous, palavra e espírito em harmonia com o modo trinitário de existência, o nous, a palavra e o espírito não são hipóstases, como no caso das Pessoas da Santíssima Trindade, mas energias da alma. Portanto, “esses três são ‘inseparáveis uns dos outros’ mas não possuem um caráter pessoal”.

O nous são os olhos da alma, que alguns Padres chamam de coração. A palavra consiste no conhecimento espiritual “implantado no nous e que sempre coexiste com ele”. Assim como Cristo, o Verbo, é aquele que revela o desejo do Nous, o Pai, também a palavra no homem é aquilo que revela o que o nous percebe e experimenta. E, assim como é impossível conceber a palavra sem o espírito, também no homem a palavra está ligada ao espírito. E assim como o Espírito, que é uma hipóstase em si, é “o amor inefável do Pai em relação ao inefável Verbo e Filho”, também o espírito no homem consiste num certo impulso do nous, “que envolve uma extensão no tempo, em conjunção com nossa palavra, e que requere os mesmos intervalor e procedimentos da incompletude para a completude”.

Dissemos essas coisas para mostra a posição e o valor da palavra na alma do homem. A palavra é aquilo que expressa a experiência e a vida do nous, e toma este lugar no espírito.

Em muitos Padres, como em São Máximo o Confessor, a palavra é chamada de ‘logistikon’, inteligência. A palavra, no homem, é dita interiormente, mas expressa exteriormente. Um silêncio exterior não significa que interiormente não existam palavras. Mas após um estudo das obras dos Padres, podemos afirmar com alguma cautela que a palavra existe tanto no interior como no exterior e que ela está unida ao nous, enquanto que a inteligência que está conectada com a mente é o órgão por meio do qual a palavra se expressa. Portanto, podemos colocar que existe uma sutil diferença entre a palavra e a inteligência, do mesmo moco como existe entre a palavra e a mente. São Thalassius ensina que “a inteligência está submetida ao Logos por sua natureza”. O homem inteligente deve estar submetido ao Verbo. A mente, de acordo com São Gregório Palamas, não é o olho da alma. O nous é o olho da alma, enquanto que a mente trata com o que é sensível e intelectual. Ele escreve: “Quando alguém fala em ‘olhos da alma’, que experimentam os tesouros celestiais, eles não devem ser confundidos com a mente. Esta exerce suas faculdades nas coisas sensíveis e intelectuais”. Vale dizer, não é a mente, mas o nous, que conhece os tesouros celestiais. A mente apenas torna pensáveis as coisas que o nous humano vive experimentalmente. Deus se revela ao nous, mas a mente relata sua experiência em sentenças inteligentes.

Diz-se usualmente que o homem é um ser inteligente (‘logiko’), no sentido de que ele possui uma inteligência e pensa. Mas na teologia patrística uma pessoa inteligente não é aquela que possui simplesmente inteligência ou discurso, mas aquela que, por meio da palavra e da inteligência busca encontrar a Deus e se unir a Ele. Uma pessoa que purificou seu nous, onde se revela Deus, e que depois, por intermédio de sua palavra e sua mente, expressa sua experiência interior, esta é inteligente. Fora disso o homem não possui palavra e não se distingue de um animal estúpido. Na verdade, ele possui inteligência e palavra, mas, por não estar conectado com Deus, ele está morto. A alma morta manifesta palavras mortas.

É assim que a palavra funcionava no homem antes da queda: o nous percebia a Deus e a palavra expressava a experiência do nous. “O nous puro enxerga as coisas corretamente. Uma inteligência esclarecida as coloca em ordem”. De acordo com a teologia de São Thalassius, que mencionamos antes, a inteligência, por natureza, se submete à palavra e disciplina e subjuga o corpo, e ao mesmo tempo é um insulto à inteligência submeter-se àquela que não possui inteligência, ou seja, ao corpo, “que só se interessa por desejos vergonhosos”.

Mas depois da queda veio a agonia e a morte da alma. Como resultado, se tornou impossível para o mundo interior da alma funcionar naturalmente, e para todas as funções harmônicas interiores existirem normalmente. O nous humano se tornou confuso, oculto pelas paixões e encoberto por uma treva impenetrável. A palavra, já não podendo expressar as experiências do nous, identificou-se com a mente. Então a inteligência foi colocada acima do nous e hoje mantém subjugada no homem decaído. De fato, tal é a enfermidade da palavra e a da inteligência. A inteligência foi supernutrida, assumiu uma posição acima do nous e capturou a palavra. A inteligência supernutrida é a fonte da grande anormalidade que se apoderou do organismo espiritual. A arrogância, com todas as energias do egoísmo, que é a fonte da anormalidade, domina.

O que o Arquimandrita Sofrônio escreve sobre os movimentos da inteligência no homem decaído e sobre a anormalidade que isso cria em todo o organismo espiritual é característico. Vou transcrevê-lo inteiramente, porque é muito expressivo. “A batalha espiritual é múltipla, mas a luta contra o orgulho é a que ataca mais fundo e é a mais cruel. O orgulho consiste no supremo antagonismo perante a lei divina, deformando a ordem divina da existência e trazendo a ruína e a morte em seu rastro. O orgulho manifesta-se parcialmente no plano físico, mas essencialmente no plano do pensamento e do espírito. Ele ab-roga prioridade para si próprio, lutando pelo completo domínio, e sua principal arma é a mente racional”.

“A inteligência, por exemplo, é instada a rejeitar o mandamento ‘Não julgueis, para não serdes julgados[72]’ como se fosse um contrassenso, argumentando que a faculdade de ser capaz de julgar é uma qualidade distintiva do homem, que o torna superior a todo o mundo e concede a ele o poder de dominar. Para garantir sua superioridade a inteligência aponta para suas aquisições, sua criatividade, produzindo muitas provas convincentes, pretendendo mostrar que na idade do ouro experimentada pela história o estabelecimento ou afirmação da verdade estava inteiramente debaixo de sua égide. A inteligência, funcionando impessoalmente, é, por natureza, a penas uma das manifestações de vida dentro da personalidade humana, uma das energias da personalidade. Quando ela é locada prioritariamente na existência espiritual do homem, ela começa a lutar contra sua fonte – ou seja, contra sua origem pessoal”.

“Elevando-se, como imagina, às maiores alturas; descendo, segundo acredita, às maiores profundidades, o homem aspira a contatar as fronteiras da existência, de modo, como pensa ser seu caminho, a defini-la; e quando ele não consegue alcançar seu objetivo e sucumbe, ele decide finalmente que ‘Deus não existe’. Então, continuando na luta pela predominância, tanto corporal como miseravelmente, ele diz a si mesmo: ‘Se não existe um Deus, como posso aceitar não ser eu este Deus?’. Não encontrando as fronteiras da existência, e atribuindo a si próprio essa infinitude, ele se ergue arrogantemente e declara: ‘Eu explorei tudo o que existe e em parte alguma encontrei algo que fosse maior do que eu; portanto, eu sou Deus’. E é um fato que quando a existência espiritual do homem se concentra na mente, a razão assume o controle e o homem se torna cego para qualquer coisa que o ultrapasse e termina por ver a si mesmo como se fosse o princípio divino. A imaginação intelectual chega aqui ao seu limite máximo e, ao mesmo tempo, despenca para a mais negra noite”.

Nenhuma pessoa sábia sem Deus pode ter uma palavra pura e uma inteligência pura. São Gregório do Sinai disse: “Apenas os santos, por meio da pureza, se tornaram inteligentes de acordo com a natureza. Nenhum dos pretensos sábios em palavras possui uma inteligência pura, porque a corromperam desde o começo com pensamentos vis”.

Para vermos a corrupção da inteligência no home decaído, e o que ela produz em nosso organismo espiritual como um todo, devemos examinar três níveis em que a inteligência decaída penetra.

Em primeiro lugar, em nossas relações com Deus. Enquanto que antes era o nous que obtinha a experiência de Deus, agora a inteligência decaída que se encarrega disso. Dessa forma, a inteligência tenta criar argumentos para demonstrar a existência de Deus, e isso naturalmente é absolutamente impossível de se fazer. Porque o único argumento para a existência de Deus é a pura experiência do nous. Assim, em sua tentativa de avançar sozinha pelos caminhos do conhecimento de Deus, a inteligência decaída falha, porque tanto ela não consegue encontrar a Deus, como ela acaba criando uma falsa imagem de Deus. Assim é que, de tempos em tempos várias teorias filosóficas sobre Deus e várias religiões vão sendo criadas. As heresias que sacudiram a Igreja de Cristo foram devidas a esse arrogante conceito de inteligência. Por isso os Padres enfatizam que os santos não teologizam de modo aristotélico, ou seja, por meio da inteligência e da filosofia, mas como pescadores, ou seja, através de uma experiência (como os Apóstolos, através do Espírito Santo), depois de uma purificação interior e da abertura do nous.

A esse respeito, é típico o diálogo que aconteceu entre São Gregório Palamas e o filósofo Barlaam. Barlaam afirmava que a inteligência humana é suficiente e digna para receber o conhecimento de Deus. Ela seria o mais nobre elemento do ser humano. Assim, ele proclamava que aquilo que os Profetas viram no Antigo Testamento e o que os Apóstolos viram no Monte Tabor eram símbolos, e que portanto os filósofos possuem um conhecimento mais autêntico sobre Deus do que profetas e apóstolos. Dessa forma, ele dizia que a visão da luz incriada era “inferior à nossa intelecção”. Em resposta, São Gregório disse que a theoria dos santos não provinha do exterior, mas do interior, através de uma transformação e de uma purificação interiores. Assim sendo, a luz não consistia simplesmente num símbolo externo e material, mas num símbolo natural, ou seja, numa energia da graça incriada. A luz incriada não consiste num fantasma e num símbolo que vem e vai, de modo que ela não é “inferior à energia da intelecção”, mas sim é “inefável, incriada, eterna, fora do tempo, inaproximável, deslumbrante, infinita, sem fronteiras, invisível aos anjos e ao homem, de uma beleza arquetipal, imutável, glória de Deus, de Cristo e do Espírito Santo, raio da divindade...”. Em resposta à visão de Barlaam de que essa luz seria inferior à nossa intelecção, ele escreveu: “Ó terra e céus, e todos os que veem neles a luz do Reino de Deus, a beleza do século futuro, a glória da natureza divina – serão eles todos menores do que a intelecção?”. A luz incriada é a glória da natureza divina, a beleza do século futuro.

A mentalidade de Barlaam de elevar a filosofia acima da visão de Deus, uma coisa que levou São Gregório Palamas a chamá-lo de filósofo, e não de alguém que viu a Deus, é a atitude de todos os heréticos que pretenderam substituir a revelação pela filosofia, e a visão de Deus pelo conhecimento proveniente do abuso do pensamento inteligente. Na verdade, quando a inteligência humana tem o domínio sobre o homem, ela o conduz a toda uma variedade de teorias heréticas. Aqui a diferença entre filósofos e teólogos se torna evidente. O primeiro filosofa a respeito de Deus. O segundo, depois de purificar o nous, contempla a Deus. O primeiro tem um nous obscurecido e interpreta tudo de forma parcial por meio da inteligência, enquanto que os santos Padres, os verdadeiros teólogos, adquiriram a experiência de Deus através de seu nous; a partir daí, a inteligência serviu ao seu nous para expressar essa experiência interna por meio de proposições.

O modo de conhecer a Deus na teologia patrística é diferente daquele dos filósofos. O verdadeiro conhecimento de Deus é fundamentado na humildade: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus[73]”. Sobre e pureza do coração: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus[74]”. Sobre guardar os mandamentos de Cristo: “Todo aquele que transgride e não cumpre com a doutrina de Cristo não tem Deus. Aquele que cumpre a doutrina de Cristo possui o Pai e o Filho[75]”. Sobre o amor: “Se alguém ama a Deus, por Ele será conhecido[76]”. Não é por meio da sabedoria humana, por meio da saúde mental ou da inteligência, que alguém pode conhecer a Deus. A sabedoria de Deus sempre foi desconhecida “dos governantes do século, pois se eles a tivessem, não teriam crucificado o Senhor de glória[77]”. De fato, “o homem que não é espiritual não recebe as coisas do Espírito de Deus[78]”.

Em segundo lugar, a inteligência decaída afeta nossa relação conosco mesmo, ou seja, nosso autoconhecimento. Muitas pessoas, influenciadas pelo autoconhecimento Pitagórico, tentam encontrar a si mesma e adquirir conhecimento sobre si mesmas por meio da inteligência. Mas de acordo com São Gregório Palamas, isso é uma heresia dos filósofos Pitagóricos e Estoicos. A tentativa de investigar a si próprio por meio da inteligência pode levar rapidamente à esquizofrenia, pois a pessoa atribuirá seus problemas internos a outras causas e cairá na melancolia e na angústia. O método do tratamento terapêutico e do autoconhecimento Ortodoxo consiste em tornar o nous humilde e sincero, não por meio de métodos silogísticos, analíticos e divisivos, mas por um doloroso arrependimento e um ascetismo assíduo, como disse São Gregório Palamas e tal como explicamos anteriormente. A partir daí torna-se possível adquirir o conhecimento de nosso mundo interior, não por meio da inteligência, mas por meio da vigilância, da purificação do nous, da vida ascética e do arrependimento. Na tentativa de manter seu nous puro o homem começa a se tornar consciente de seus problemas internos e descobre as paixões que o mantêm subjugado a eles.

Em terceiro lugar, os distúrbios da inteligência aparecem no modo como nos aproximamos de nossos companheiros. Normalmente os psiquiatras observam o modo de pensar de seus pacientes e trabalham sobre isso para poder identificar sua enfermidade. Assim emprega-se muita inteligência que pode conduzir a inferências errôneas. Quando isso se estende às relações interpessoais, leva à sua destruição, por causa do desenvolvimento de paixões de juízo e condenação, que não são agradáveis a Deus. Nosso próprio comportamento em relação aos nossos amigos não é caracterizado pela inteligência, mas pelo amor. Evitamos julgar os outros e classificá-los em categorias. Em especial, tentamos fazer o contrário do que a inteligência humana nos dita. Tentamos não ver os pecados e as más ações de nossos irmãos, mas demonstrarmos amor e compaixão para com ele. De acordo com São Macário do Egito, os Cristãos devem se esforçar para “não fazer julgamento algum de ninguém, nem de uma prostituta, nem de pessoas com desordens. Ao contrário, devem olhar para todas as pessoas com uma mente simples e um olhar puro”. Devemos nos comportar assim de tal modo que mesmo diante de uma pessoa que sofre de uma aflição física não a julguemos por isso.

Como pais espirituais, devemos encarar o próximo pessoalmente. Vale dizer, devemos nos despojar de toda imagem, caracterização ou ideia, e orar para que Deus possa nos revelar o verdadeiro problema da pessoa para que possamos lhe oferecer o tratamento terapêutico correto. Cada um deve nos interessar pessoalmente. Desta maneira evitamos julgar a alma de quem está enfermo, evitamos classificar as pessoas em categorias e tentamos oferecer um tratamento terapêutico verdadeiramente pessoal. Isso quer dizer que temos que nos colocar pessoalmente diante da pessoa que traz sua confissão.

Do que foi dito, fica claro que o homem decaído está possuído pelo poder e a autoridade da inteligência em suas relações, tanto com Deus, como com seu próximo. O “papel da razão”, que é base de toda a civilização Ocidental está na base de toda anomalia, seja interna ou externa. Nós que vivemos na Igreja Ortodoxa estamos tentando restaurar as coisas. Nosso objetivo é duplo. Por um lado, nós nos esforçamos para limitar a autoridade da inteligência, e, de outro, para descobrir o nous. Podemos ver, pelo fato de que no homem decaído o nous está obscurecido e a inteligência constitui a única fonte da existência, que, para alcançar a situação anterior à queda e para sermos guiados de volta a uma vida de acordo com a natureza, os termos devem ser invertidos, ou seja, o nous e a inteligência devem ser colocados nos seus lugares naturais, conforme já descrevemos. Em outras palavras, a inteligência deve ser restringida e o nous deve ser desenvolvido, a palavra deve nascer do nous iluminado, e a inteligência deve formular o conhecimento do nous em palavras e sentenças.

A obediência à vontade de Deus tem um importante papel na restrição da inteligência. Nós nos esforçamos por colocar a verdade não em nosso julgamento e em nossa própria opinião, que vêm da inteligência. O Abade Doroteus disse: “Em todas as coisas que chegam a mim, eu jamais procuro dar voltas para buscar a sabedoria humana, mas sempre ajo com o pequenino poder que eu tenho sobre aquilo que está ao meu alcance, e deixo o todo nas mãos de Deus”. De fato, este santo deixou escrito um capítulo que se intitula: “Porque um homem não deve confiar exclusivamente em seu próprio julgamento”. Quando o diabo encontra em alguém o menor traço de vontade própria e de autoindulgência “ele derrubará a pessoa por meio dessas coisas”. Da mesma forma, nos foi ordenado obedecer a vontade de Deus sem críticas, conforme expressa na Escritura e nas obras dos Padres da Igreja. Nossa inteligência certamente irá se rebelar e protestar, mas é preciso submetê-la à vontade de Deus. E, uma vez que possivelmente não cheguemos a conhecer a vontade de Deus em todos os detalhes de nossa vida cotidiana, somos instados a obedecer ao pai espiritual que nos guiará em nossa viagem espiritual. De acordo com o Abade Doroteus, “ninguém é mais desventurado, ninguém é mais facilmente pego despercebido, do que um homem que não possui a quem o oriente em sua estrada para Deus”. Assim sendo, a desobediência é a morte, a obediência, vida. São João Clímaco escreveu: “A obediência é a absoluta renúncia à nossa própria vida, expressa com clareza em nossas ações corpóreas. Ou inversamente, a obediência é a mortificação dos membros, enquanto a mente permanece viva. A obediência é um movimento que não questiona, que aceita a morte livremente, uma vida simples, que encara o perigo sem preocupações, uma viagem segura, uma jornada adormecida. A obediência é o enterro da vontade e a ressurreição da humildade. Obedecer é colocar de lado a capacidade de fazer seu próprio julgamento. A obediência é a desconfiança sobre o próprio declínio, em todos os assuntos, inclusive nos bons”.

A obediência é a mortificação do próprio desejo, do próprio entendimento, não no sentido da mortificação das paixões, mas no sentido de que eles devem ser transformados. A obediência, praticada da forma proposta pela Igreja, não destrói a inteligência, mas a cura, colocando-a em sua posição natural. A partir daí existe vida. A longa experiência da Igreja mostra que qualquer um que seja capaz de obedecer pode ser curado das moléstias interiores de sua alma, pode transformar todo o seu mundo interior. A obediência é um meio de progresso para o homem.

Ademais de restringir a inteligência, tentamos, por meio do arrependimento e da vida ascética na Igreja, purificar o nous de modo a que ele possa ser iluminado pela energia incriada de Deus. Isso se adquire por meio da vigilância, pela prece – em especial pela prece noética do coração – e por uma vida a um tempo ativa e contemplativa. Através dos meios colocados pela tradição Ortodoxa, o nous recebe a graça, é vitalizado, ergue-se à sua posição correta e então derrama a graça sobre a inteligência. Dessa forma, a inteligência se torna uma servidora do nous e é favorecida pela graça, e nós regressamos ao nosso estado natural.

A inteligência que não é submetida ao nous e dotada de graça, está doente e cria inúmeras anomalias em nossa vida, enquanto eu, quando ela se sujeita ao nous ela é saudável e natural. Esse é o objetivo da prática ascética terapêutica da Igreja.

1.1.3.2.  Pensamentos

É na parte inteligente da alma que os pensamentos malignos aperam de modo a excitar o desejo e tentar capturar o nous humano para que o pecado seja cometido. O desenvolvimento do pecado inicia com os pensamentos. Assim sendo, qualquer um que deseje purificar seu mundo interior, que queira livrar-se do pecado, libertar seu nous do cativeiro, deve conservar sua inteligência a salvo do impacto dos maus pensamentos. Nesta seção tentaremos analisar o que são esses pensamentos, o que os causa, que resultados eles produzem em nosso organismo espiritual, e finalmente quais os métodos de cura de que dispomos contra eles. Esse é um assunto crucial porque nossa morte ou vida espiritual depende deste confronto. Ademais, veremos a seguir as muitas anormalidades físicas e as moléstias que se original dos pensamentos desenfreados.

1.1.3.2.1.         O que são os pensamentos (logismoi)

Quando os Padres falam em ‘pensamentos’ (logismoi), eles não se referem simplesmente aos pensamentos, mas às imagens e representações por trás das quais sempre estão os correspondentes pensamentos. As imagens, junto com seus pensamentos, são chamadas de ‘logismoi’. “As imagens em alguns casos aparecem tomando formas visíveis, enquanto que em outros casos são apenas produtos da mente; o mais comum é que seja uma combinação das duas coisas. Como às vezes as imagens visíveis também geram pensamentos, os ascetas chamam todas as imagens de ‘pensamentos intrusos’. Os vários pensamentos satânicos às vezes utilizam como veículo aquilo que os sentidos levam ao nous, às vezes eles mobilizam fantasias e memórias aleatórias, e atacam a pessoa com o objetivo posterior de efetuar sua captura.

De acordo com Hesíquio o Sacerdote, a maior parte das pessoas não tem consciência de que esses pensamentos não passam de “imagens das coisas terrestres e materiais”. Conforme podemos deduzir desse texto, a imaginação desempenha um papel importante na formação das imagens em nós. Assim, pode-se dizer que esses logismoi são pintados com diferentes imagens e representações em nossa inteligência, sendo a maior parte de memórias do passado. Um irmão que estava sendo atacado por memórias do passado disse: “Meus pensamentos são antigos e novos pintores: as memórias me perturbam, com ídolos de mulheres”.

Todas as coisas têm seus princípios interiores (palavras, logoi) com os quais elas falam e se comunicam com o homem. De acordo com São Gregório do Sinai, a Sagrada Escritura também chama de ‘pensamentos’ essas ‘palavras’ das coisas. As palavras das coisas também são chamadas de imagens conceituais, e vice-versa. Sua ação “não é material em si, mas toma a forma das coisas materiais, e esta forma muda”. As palavras das coisas são utilizadas pelos demônios, e então também podem ser chamadas de palavras dos demônios. São Gregório do Sinai caracteriza os pensamentos demoníacos, ou melhor, seu ataque, como “um rio que corre”, o qual, por meio do assentimento ao pecado, se torna um dilúvio que inunda o coração.

Falando dos ‘pensamentos’ e tentando apontar exatamente o que são eles, penso que podemos nos referir à divisão feita por São Máximo. Ele diz que alguns pensamentos são simples, outros compostos. Os pensamentos que não estão ligados a paixões são simples; os que vêm carregados de paixões são compostos, e consistem em “imagens conceituais combinadas com paixões”. A memória de uma coisa, combinada com a paixão, forma o pensamento passional ou composto. Penso que neste ponto é bom sublinhar a distinção entre uma coisa, sua imagem conceitual e a paixão, como bem analisa São Máximo. O ouro, uma mulher, um homem, etc., são coisas. A memória simples do ouro, da mulher, do homem, são imagens conceituais. A paixão é “a afeição insensata ou o ódio indiscriminado por alguma dessas mesmas coisas”. Uma imagem conceitual passional é um pensamento composto por uma paixão e uma imagem conceitual. A partir daí devemos nos esforçar para separar a imagem conceitual da paixão, para que o pensamento volte a ser simples. E essa separação pode ser feita por meio do amor espiritual e do autocontrole.

Pensamentos passionais tanto estimulam o poder concupiscente da alma como perturbam o poder irascível, entenebrecendo sua inteligência.

Evagro enfatiza que existem pensamentos que cortam e pensamentos que são cortados. Os pensamentos maus cortam os bons, mas também são cortados por eles, ele oferece um exemplo: o pensamento de hospitalidade pela glória de Deus é cortado pelo tentador, que sugere um pensamento de hospitalidade com o objetivo de parecer hospitaleiro aos olhos dos outros. Da mesma forma, o pensamento de oferecer hospitalidade para ganhar reconhecimento humano é cortado “quando sobrevém um pensamento melhor” que nos prontifica a sermos hospitaleiros em nome de Deus e da virtude. Assim, é possível que um pensamento comece como maligno, mas que, por meio de nosso esforço e com a inspiração do Espírito Santo, seja transformado num bom pensamento – e vice-versa. Naturalmente, analisaremos mais profundamente isso mais adiante, quando tratarmos da cura dos maus pensamentos. Finalmente, pudemos ver que existem pensamentos que cortam e os que são cortados, sejam eles bons ou maus pensamentos.

1.1.3.2.2.         A causa dos maus pensamentos

Aquilo que escrevemos sobre a natureza dos pensamentos malignos também nos mostra suas causas. De acordo com São Gregório do Sinai, a origem e a causa dos maus pensamentos reside “na divisão, por causa da transgressão humana, de sua única e simples memória”. Antes da transgressão a memória do homem era simples, ou seja, ela não possuía paixões e estava inteiramente voltada para Deus. Todos os poderes da alma estavam centrados em Deus. Imediatamente depois da transgressão essa memória simples se dividiu. São Thalassius ensina que os maus pensamentos nascem de três fontes: os sentidos, a memória e os temperamentos do corpo. Os piores são os que provêm da memória.

Creio que Santo Isaac o Sírio nos fornece um ponto de partida para vermos com mais clareza as causas dos maus pensamentos e o que os provoca. Ele ensina que “o movimento dos pensamentos no homem se origina de suas causas. Primeiramente, da vontade natural da carne; depois, da imaginação de objetos sensíveis do mundo que o homem ouve e vê; em terceiro lugar, das predisposições mentais e das aberrações da alma; e em quarto lugar, dos assaltos dos demônios que lhe fazem guerra por meio das paixões. Dessa forma, tanto quanto uma pessoa permanece neste mundo, ela não conseguirá evitar os pensamentos e a luta”.

A causa fundamental dos pensamentos malignos está na guerra que nos faz o demônio. A maior parte desses pensamentos provém do demônio. O objetivo do demônio é levar o homem a pecar, tanto em pensamentos como em atos. Ele travou batalhas contra o próprio Cristo, naturalmente sem sucesso algum. Os demônios estão sempre tentando se apoderar de nossa alma por meio de pensamentos passionais, para que possam nos fazer pecar em pensamentos e ações. Quando um homem pensa o mal, ele peca em pensamento, mas quando ele faz a vontade do demônio e gratifica seu desejo, ele peca em ação. O cometimento do pecado é chamado de pecado em ato. Os demônios enviam constantemente pensamentos tentando capturar o nous. Os santos reconhecem “as sementes dos demônios”, e advertem as pessoas de acordo com isso.

São Gregório do Sinai diz que os pensamentos são as palavras do demônio e os precursores das paixões. Primeiro vem o pensamento, e então se comete o pecado. De acordo com Elias o Presbítero, os demônios guerreiam contra nossa alma primeiramente mediante pensamentos e não por meio das coisas, “Ouvir e ver são responsáveis pela guerra provocada pelas coisas, enquanto que os hábitos e os demônios o são por aquela causada pelos pensamentos”. Os demônios estão sempre a implantar pensamentos impuros e vergonhosos. Cada paixão tem seu correspondente demônio, e São João Clímaco enfatiza que os pensamentos vergonhosos e impuros do coração provêm dos demônios enganadores do coração. A astúcia desses demônios na guerra é grande, e apenas os santos cujo nous é puro e que possuem o dom da clarividência são capazes de distingui-los. São João Clímaco escreve que uma vez ele assistiu um demônio de vanglória realizar um duplo trabalho: para um irmão ele sussurrou pensamentos de vanglória e ao mesmo tempo ele revelou esses pensamentos a outro irmão, de modo que este pensou ter o dom de ler os pensamentos, caindo ele também na paixão da vanglória. Assim é que a guerra levada a cabo contra nós pelos pensamentos é mais violenta do que aquela que utiliza os meios materiais.

Mas normalmente o demônio utiliza a oportunidade fornecida pelas paixões que existem em nossa alma para desfechar o ataque de pensamentos mais apropriado. Ele conhece as paixões que estão ali e excita a alma nesses pontos. “A paixão que jaz oculta na alma provê o demônio com os meios para semear pensamentos passionais em nós”. E, uma vez que a paixão mais básica, a que engendra todas as demais, é o amor próprio, é nesta paixão que “as três formas de desejo mais comuns” têm sua origem. Quando o coração humano se inclina para a autoindulgência, ele se torna a fonte dos maus pensamentos. “Pensamentos e palavras doentias nascem de um coração inclinado ao amor pelos prazeres”. Uma vez que existem pensamentos voluntários e involuntários, ou seja, pensamentos que nos chegam sem que o queiramos e pensamentos que produzimos por nossa própria vontade – pois os involuntários nos chegam a partir de pecados anteriores, enquanto que os voluntários provêm de nossa vontade – podemos dizer que os pensamentos voluntários são as causas dos involuntários. As causas dos pensamentos são as paixões, e as causas das paixões estão nas ações pecaminosas.

De modo geral, podemos dizer que os pensamentos que vêm dos demônios capturam o nous e o levam a cometer pecados por pensamentos e ações. E quando esse pecado é repetido muitas vezes e o organismo lhe adquire o hábito, passa a existir uma paixão. A partir daí, será das paixões, que se tornam como que feridas da alma, que nascerão os correspondentes maus pensamentos. É o mesmo que acontece com as feridas do corpo. Algo causa um ferimento no corpo, e, como resultado desse ferimento surge uma infecção, em consequência da qual o problema continua e cresce cada vez mais.

Em muitos pontos de seu ensinamento o Senhor menciona que os maus pensamentos vêm do coração. “Do coração vêm os maus pensamentos, os assassinatos, o adultério, a fornicação, o roubo, o falso testemunho, a calúnia[79]”. Lucas o Evangelista menciona que uma disputa nasceu entre os discípulos de Cristo, “a respeito de qual deles seria o maior”. “Mas quando Jesus percebeu o pensamento de seus corações, ele tomou uma criança e a colocou ao seu lado[80]”. Quando o Senhor apareceu depois da Ressurreição, ele disse aos discípulos: “Por que estão perturbados? Por que as dúvidas surgem nos seus corações?[81]”. Todas essas passagens mostram questionamentos que surgem de dentro do coração do homem. Com efeito, o nous é o primeiro a ser atacado pelos pensamentos, mas quando as paixões operam no coração, por meio delas o diabo tem a oportunidade de colocar seus próprios pensamentos no jogo. A partir daí se diz que as questões surgem de dentro do coração.

O ensinamento de Diádoco de Foticéia está relacionado a isso. O coração produz bons e maus pensamentos. Naturalmente ele não produz maus pensamentos por natureza, mas pela lembrança do mal, daquele primeiro pecado cometido e que levou-o a criar o hábito. O coração concebe a maior parte de seus maus pensamentos como resultado da maldade dos demônios. Porém sentimos como se eles saíssem do coração. O nous do homem, por ser altamente receptivo, torna seus os pensamentos semeados nele pelos espíritos malignos. Uma vez que a carne se delicia em ser adulada com a fraude, e uma vez que existe uma união entre alma e corpo, os pensamentos semeados na alma pelos demônios parecem vir do coração. O nous alimenta o coração, seja o que for, bom ou mau, ele transmite diretamente ao coração. E como muitos de nós não temos experiência neste combate espiritual, e uma vez que essa transmissão se dá de forma muito rápida, temos a sensação de que os pensamentos foram produzidos pelo coração.

Paralelamente ao diabo e às paixões, as coisas em si também engendram pensamentos. Mas, como ensina São Gregório o Sinaíta, as coisas em si fazem nascer pensamentos simples, enquanto que as sugestões do demônio engendram pensamentos malignos. Portanto, a matéria não é ruim; o que é ruim são os vergonhosos desejos que abrigamos, as paixões que existem em nós e a provocação de parte dos demônios. “Assim como é impossível evitar que um moinho gire” e deixe de moer aquilo que lhe atiramos, também é a nossa mente: ela está em constante movimento. Depende de nós darmos a ela meditações espirituais ou obras da carne. Sendo assim, quando nos ocupamos com assuntos do mundo e com matérias da carne, quando nos dedicamos a conversas inúteis e fúteis, “esses pensamentos de base se multiplicam em nós”. Portanto, usar o mundo e ser do mundo não é ruim; o que é ruim é nossa própria disposição, nossa própria vontade.

Certamente, ao lado dos maus pensamentos existem os bons pensamentos, aqueles que provêm de Deus. Como podemos distinguir esses pensamentos? Aqueles de nós que são iniciantes na vida espiritual devem consultar pais espirituais experientes, e em especial aqueles que possuem o dom de discernir os espíritos. Em qualquer caso, um ensinamento geral é que quando um pensamento sugere algo a nós e ficamos alegres, é um sinal de que esse pensamento vem de Deus. Os pensamentos demoníacos são cheios de perturbação e depressão. São Barsanulfo ensina: “Quando um pensamento sugere a você algo que está de acordo com a vontade de Deus, e você encontra alegria nisso, e ao mesmo tempo uma tristeza que luta contra ele, saiba que esse pensamento vem de Deus. Os pensamentos que provêm do diabo estão cheios de perturbação e depressão, e nos atraem para si de modo secreto e sutil; pois os inimigos se fecham em peles de cordeiro, ou seja, instilam pensamentos com a aparência de serem corretos, mas no interior dos quais estão lobos à espera”. Devemos notar que um pensamento é capaz de evocar uma alegria que, por sua vez, provém da vaidade e de um coração autoindulgente. Sendo assim, os pensamentos só podem ser distinguidos por alguém que experimentou a graça do Espírito Santo e que foi lavado das paixões que estavam em sua alma. Aqueles que não possuem essa experiência devem consultar um pai espiritual experiente, porque o diabo sugere bons pensamentos, enquanto que ele próprio é mau.

Agora que já colocamos o que são os pensamentos e as causas que os fazem surgir, devemos nos deter brevemente sobre os tipos de pensamentos. Os pensamentos são análogos às paixões. Para cada paixão existe um pensamento. São Cassiano de Roma os divide em oito e analisa a extensão de cada um deles, que são: a gula, a luxúria, a avareza, o ódio, a acídia, a preguiça, a vanglória e o orgulho.

São Thalassius diz que existem três pensamentos básicos: a gula, a vanglória e a avareza. Todos os demais se seguem a estes. Esses três pensamentos correspondem às três grandes paixões gerais: autoindulgência, amor à glória e amor às posses, as três tentações referidas por Cristo.

Mas devemos mencionar ainda um dos maiores e mais vergonhosos pensamentos, o da blasfêmia. São João Clímaco, reconhecendo a perversidade e a gravidade dos pensamentos de blasfêmia, bem como o fato de que eles atacam principalmente aqueles que lutam por uma vida espiritual, devotou todo um capítulo para descrevê-los e apresentar métodos para se esquivar desses pensamentos. El escreveu que o pensamento de blasfêmia provém do orgulho. Ele ataca o homem mesmo durante a Liturgia, e até no momento da preparação para a Santa Comunhão. Ele ataca o nous e o distraídas palavras da prece. Ele faz com que muitos parem de rezar e afasta a muitos da Comunhão; ele faz com que os corpos de alguns sejam exauridos pela aflição. São João Clímaco nos adverte para que não nos vejamos como causa dos pensamentos de blasfêmia. Eles são as palavras do demônio que pretendem nos alienar de Deus e de sua Igreja.

Os maus pensamentos são apenas o começo da guerra que o demônio trava contra nós. Um pensamento plantado pelo demônio persiste e se desenvolve até que o pecado seja cometido e nos conduza à paixão. Veremos a seguir esse desenvolvimento dos pensamentos malignos à luz da experiência dos santos Padres.

São Máximo ensina que os pensamentos passionais que surgem das paixões ocultas na alma lutam contra o nous e o obrigam a consentir no pecado. Quando o nous é derrotado nessa luta, “eles o conduzem ao pecado na mente; e quando o conseguem, eles o induzem, cativo, a cometer o pecado em ato”. Depois da ação, os demônios que desolaram a alma por meio de tais pensamentos se retiram, mas o espectro ou ídolo do pecado permanece no nous. E assim os pensamentos mantêm o nous cativo, e cativo o levam a pecar. Se o ídolo do pecado não for afastado por um arrependimento intenso e duradouro, ele se torna uma fonte de anomalias no organismo espiritual.

Em linhas gerais, é assim que se dá o desenvolvimento de um pensamento intruso, e o caminho que ele faz. Mas veremos alguns detalhes a respeito disso, conforme descritos pelos santos Padres.

O pensamento que penetrou na inteligência da alma se esforça para capturar o nous. Com esse objetivo ele produz um sentimento de prazer a fim de predispor uma ou outra paixão existente na alma. Esse estágio é chamado de tentação e não é considerado pecado. O deleite prolongado produzido pela paixão atrai a atenção do nous. Se o nous não se afasta das delícias sugeridas, ele se sentirá atraído, e inicia uma conversação favorável, à qual se segue a união que desemboca no consentimento. O prazer crescente captura todo o nous, bem como a vontade, fazendo com que a resistência da pessoa se enfraqueça. Então o pecado é cometido. Quando essa captura se repete, forma-se o hábito da paixão, “colocando todas as forças naturais do homem a seu serviço”. A presença e o prolongamento do prazer são muito importantes para a captura do nous e a ativação da paixão. Sendo assim, os Padres advertem para que o prazer seja mortificado o mais depressa possível, ou melhor, que seja transformado ao capturar o nous da pessoa. O Abade Doroteus diz que quando um desejo passional reaparece na alma de alguém que luta contra ele, ele é imediatamente rejeitado.

Hesíquio escreve sobre a mistura e união dos pensamentos da alma com as provocações do demônio por meio da fantasia: “...seus pensamentos se enlaçam nas fantasias provocadas pelo demônio”, e se transformam em assentimento e ação. A fantasia desempenha um papel importante, especialmente quando o objeto ou a pessoas estão distantes de nós. Mas mesmo quando o objeto ou a pessoa são vistos, ou seja, quando se ligam aos sentidos, também a fantasia exagera as coisas e aumenta sua beleza de modo a capturar o nous e obter seu consentimento. Desse ponto de vista podemos dizer que os pensamentos passionais nublam e confundem o nous, enchendo-o com imagens impuras e conduzindo-o “forçosamente e contra sua vontade a cometer atos pecaminosos”.

Parece que a liberdade humana dá seu consentimento não apenas no momento em que recebe a tentação, a proposta do pensamento demoníaco, mas inclusive antes, quando, por um livre consentimento, os olhos e ouvidos da alma são obscurecidos. Como ensina Filoteu o Sinaíta, a razão pela qual uma pessoa olha as coisas de forma adulterada está em que “o olho interno se tornou adúltero e obscurecido”, e a razão para querer ouvir coisas tolas é que “o ouvido da alma escuta o que os demônios dentro de nós nos segredam”. Se uma pessoa está interiormente corrompida, o olho de seu coração está entenebrecido e desta forma os sentidos corporais exteriores também se corrompem. Por isso a luta deve começar sempre interiormente.

Da mesma forma, quando uma pessoa guarda pensamentos dentro de si e os elabora, surge um prazer e o nous parte para o consentimento e a ação. “Assim como ovos aquecidos no estrume incubam, maus pensamentos inconfessos incubam más ações”.

Daquilo que foi dito, podemos ver claramente as consequências dos pensamentos prolongados e elaborados. Na próxima seção apresentaremos essas consequências.

1.1.3.2.3.         Consequências dos maus pensamentos

Quando um pensamento se prolonga em nós acabamos por nos tornar escravos da atração. “Quando um pensamento persiste dentro de um homem, isso indica sua ligação com ele”. A atração é uma ligação da pessoa com as coisas criadas e seu desejo de realizá-las ou de adquirir essas coisas. Quando o nous é desligado do alimento celeste e da lembrança das coisas celestes, ele passa a se oferecer para as coisas sensoriais e criadas do mundo. Isso se chama atração. Ele é levado até aí pelo pensamento que persiste nele.

A pessoa se torna destemperada e já não pode se controlar. “A pessoa cuja mente enxameia de pensamentos perde seu autocontrole”.

“A pessoa que não combate em pensamento o pensamento do pecado, e nada diz contra ele, irá cometê-lo corporalmente a seguir”.

Quando um mau pensamento se demora em alguém e não recebe oposição, mas é posto em ação, ele reforça a paixão na pessoa, que continuará a lutar com ela e atormentá-la a seguir.

Os pensamentos nos esmagam e apodrecem, criando ainda problemas nas relações entre as pessoas. “Passamos todo o nosso tempo nos corrompendo por meio dos pensamentos que temos contra os outros e atormentando a nós mesmos”.

Maus pensamentos obscurecem e poluem nossa alma, eles a prejudicam e envenenam. “Esta é a artimanha do maligno, e com essas flechas ele envenena qualquer alma”.

“Um homem que é conduzido por seus pensamentos é cegado por eles. E mesmo que ele chegue a perceber o real trabalho do pecado, ele não consegue discernir suas causas”.  A aceitação dos pensamentos dá ao mal o domínio sobre ele e pode levá-lo até ao suicídio, uma vez que ele não consegue resistir ao poder do mal.

Um pensamento impuro rebaixa a alma, atirando-a ao solo.

Pensamentos passionais estimulam a potência concupiscente da alma; eles perturbam a potência irascível e a inteligência. “Dessa forma a capacidade do nous de contemplação espiritual e de êxtase na prece é ofuscada”. Sem Deus, o homem está morto.

Alguém que se sente continuamente perturbado por pensamentos e cujo baixo ventre está inflamado mostra com isso o quão longe está da fragrância do Espírito.

A intimidade com Deus está perdida. “Quando o nous se associa ao mal e aos pensamentos sórdidos, ele perde sua comunicação íntima com Deus”. Deus não pode se comunicar com alguém cujo nous está constantemente corrompido por pensamentos maus e impuros. E Deus se desgosta como homem que aceita pensamentos sujos enquanto ora, assim como um rei terreno detestaria um homem que em sua presença desviasse o rosto de si para conversar com o chefe dos seus inimigos.

O homem com pensamentos impuros não apenas perde sua intimidade com Deus e a fragrância do Espírito Santo, como ainda se separa por completo de Deus. “Pois os pensamentos impuros separam Deus do homem”. Deus não revela seus mistérios a alguém possuído por maus pensamentos. O Abade Doroteus diz isso claramente: “Um único pensamento mau pode afastar de Deus o homem quando é recebido e acolhido por este”.

Desde que os pensamentos separam a pessoa de Deus, eles são seguidos pelas anomalias corporais. Angústia, insegurança e moléstias físicas são causadas por pensamentos. Os médicos estão conscientes disso, e nos advertem para não ficarmos pensando em coisas e preocupações. Um único pensamento pode deixar uma pessoa insone por toda a noite. Por isso dizemos que os pensamentos perturbam o homem e chegam a estragar seus nervos. O Abade Teodoro dizia: “O pensamento chega e me aborrece”.

Os resultados dos maus pensamentos são verdadeiramente terríveis. Nós os apresentamos brevemente, mas poderíamos ter citado muitas outras passagens patrísticas. Procuramos indicar as anomalias gerais que eles produzem em nosso organismo psicossomático.

Um método psicoterapêutico deve, porém, descrever também os caminhos pelos quais as pessoas podem ser curadas dos pensamentos maus e demoníacos. É o que veremos a seguir.

1.1.3.2.4.         A cura dos maus pensamentos

Assim como para todas as doenças da alma e do corpo, também para os pensamentos existe um tratamento preventivo e um tratamento terapêutico para a pessoa doente. Veremos como ambos funcionam.

O trabalho preventivo consiste me tentar não deixar que um pensamento penetre em nós e capture o nous. Isso se consegue com a vigilância, a atenção, a hesíquia e também cortando os maus pensamentos. O Apóstolo Paulo instrui seu discípulo Timóteo para que esteja todo o tempo atento: “Quanto a você, esteja atento[82]”. Os escritos patrísticos contêm uma extensa análise dessa batalha.

 A vigilância também é chamada de guarda dos pensamentos. São João Clímaco ensina que uma coisa é guardar os pensamentos e outra é vigiar o nous. Vigiar o nous está acima da guarda dos pensamentos. Isso é verdade no sentido que definimos antes, que o nous é os olhos da alma, o coração, enquanto que um pensamento é algo que funciona na mente humana. Uma coisa é tentar manter a mente pura, e outra é tentar manter o nous, que é o coração, puro, embora seja sempre necessária a pureza de pensamentos, porque é impossível se manter interiormente livre do pecado se a pessoa possui maus pensamentos. O mandamento patrístico é de concentrar nosso nous (a energia da alma em sua essência), ser vigilante sobre os pensamentos e lutar contra os pensamentos passionais. É essencial prestar atenção às nossas reflexões, recordações e noções. Inclusive, na luta para manter o nous puro e possuir uma lembrança constante de Deus, devemos descartar também os pensamentos bons, porque até com bons pensamentos o nous gradualmente cria o hábito de se afastar de Deus. O monge Silouane disse: “Os santos aprenderam como batalhar contra o inimigo. Eles sabem que o inimigo utiliza pensamentos intrusos para nos corromper, e assim, por toda sua vida, eles declinaram desses pensamentos. À primeira vista podia parecer que nada houvesse de errado com um pensamento intruso, mas logo ele começava a distrair o nous da prece, e logo inicia uma confusão. A rejeição de todo tipo de pensamento intruso, ainda que pareça bom, é, portanto, essencial, tanto quanto é essencial possuir um nous puro em Deus”. Jamais deveríamos possuir sequer um simples pensamento no coração, seja sensível ou não. Devemos proteger o olho da alma de todo pensamento, assim como protegemos os olhos do corpo de qualquer objeto que possa feri-lo.

Quando a pessoa se acostuma com essa guerra santa de afastar os pensamentos, então o nous prova da bondade do Senhor e adquire a pureza, de modo que se torna capaz de distinguir pensamentos e “guardar nos tesouros de sua memória aqueles pensamentos que são bons e que foram enviados por Deus, ao mesmo tempo em que atira foram os que são maus e foram enviados pelo diabo”.

Essa vigilância da alma, essa guarda dos pensamentos, é chamada de hesíquia interior. Por isso no ensinamento Ortodoxo a hesíquia não consiste simplesmente num descanso dos estímulos exteriores (que constitui o começo da hesíquia, em especial para os iniciantes), mas é acima de tudo o descanso do coração. São Thalassius adverte: “Sele seus sentidos com a hesíquia e estabeleça um julgamento sobre os pensamentos que atacam seu coração”. De acordo com São João Clímaco, “o repouso do corpo consiste num conhecimento acurado e na administração dos sentimentos e percepções da pessoa, mas o repouso da alma consiste no conhecimento acurado dos pensamentos e numa mente inatacável”. Os amigos da hesíquia são, assim, um pensar bravo e determinado, a vigilância nas portas do coração, e matar ou expulsar as noções invasoras. Quando uma pessoa persevera nessa batalha, e em especial quando o nous se torna cativo do Reino de Deus, então os pensamentos se evanescem como as estrelas que se ocultam quando brilha o sol.

Ademais da vigilância e do repouso do nous, outro modo para prevenir o nous de ser irritado consiste em evitar as causas que evocam os pensamentos. São Máximo nos dá um exemplo de como lutar para manter a pureza do coração. Como sabemos, os demônios da paixão costumam estimular o poder concupiscente da alma ou perturbar o poder irascível e sua inteligência. Por isso o monge deve vigiar seus pensamentos e buscar e eliminar suas causas. “A potência concupiscente da alma é estimulada por pensamentos passionais de mulheres. Esses pensamentos são causados pela intemperança no comer e no beber e por conversas frequentes e sem sentido com as mulheres em questão; e eles são cortados por meio da fome, da sede, das vigílias e da retirada da sociedade. A potência irascível é perturbada pelos pensamentos passionais daqueles que nos ofenderam. Isso é causado pela autoindulgência, a autoestima e o amor às coisas materiais. É por conta desses vícios que a pessoa dominada pela paixão sente ressentimento, se frustra e falha em obter aquilo que deseja. Tais pensamentos são cortados quando os vícios que os provocam são rejeitados e anulados por meio do amor a Deus”.

Ademais, de modo a se livrar dos pensamentos, a pessoa deve lutar contra as paixões, pois é a partir destas que os demônios encontram ocasião para implantar seus pensamentos. Com relação à paixão da luxúria, São Máximo adverte: “Façam jejuns e vigílias, trabalhem e evitem encontrar pessoas”. Em relação ao ódio e ao ressentimento: “Sejam indiferentes à fama, à desonra e às coisas materiais”. Em relação ao rancor: “Ore por aquele que o ofendeu e você se libertará”.

Outra batalha consiste em reduzir o amor ao prazer, que reside no coração, porque os pensamentos tentam acalentar o prazer para atrair o nous. Juntamente com o amor ao prazer do coração, é preciso enfrentar o amor ao prazer do corpo. Tudo o que evoca o prazer e o conforto corporal deve ser afastado pelo atleta da luta interior. Porque se a pessoa concede prazer ao seu corpo, “ela necessariamente, ainda que não queira, será levada pelo exército Assírio para servir a Nabucodonosor”. Se uma pessoa não finca pé firmemente sobre si mesmo quando o assunto é prazer, ela não estará em condições de manter ou adquirir a liberdade interior.

Como mostramos há pouco, devemos evitar as coisas e as pessoas que evocam em nós maus pensamentos. Um asceta, respondendo à pergunta de um irmão que disse estar lutando contra as lembranças de mulheres e desejos do passado, disse: “Não tema os mortos, mas fuja dos vivos, e antes de tudo persista na oração”. Certamente não se exige de nós que evitemos as pessoas. Isso só é possível para uns poucos que buscam uma pureza perfeita para se entregarem inteiramente a Deus; mas devemos evitar essas pessoas que constituem uma tentação para nós, não porque elas sejam más, mas porque nós somos interiormente fracos e sujeitos a enfermidades. Quando uma pessoa estabelece como princípio vigiar seu nous e prestar atenção no que diz respeito a objetos e pessoas, ela poderá aprender por quais dessas coisas e pessoas ele sente paixão.

O temor a Deus nos ajuda a nos libertar da guerra com os pensamentos. O temor a Deus é um dom que Deus concede ao homem. Aquele que recebe esse dom batalha durante todo o dia para evitar fazer o que desagrada a Deus, ou antes, simplesmente não batalha, porque o fogo do temor a Deus derrete qualquer pensamento invasor. Mas ainda que não haja este temor carismático, devemos p0elo menos lutar para criarmos a sensação da presença de Deus e do Juízo que virá. “Assim como a cera derrete diante do fogo, também derrete o pensamento impuro diante do temor a Deus”. O temor a Deus é o pastor que conduz as ovelhas, ou seja, os pensamentos. Sem este temor que os pastoreia, os pensamentos se põem em confusão.

Paralelamente a essas coisas, trabalho duro e vida ascética são o método da terapia. Jejuns, vigílias e orações nos ajudam a evitar sermos capturados por pensamentos invasores. “Canse seu corpo com jejuns e vigílias, e você será capaz de repelir os letais pensamentos de prazer”. “Mantenha seu corpo sob controle, e ore constantemente; desse modo logo você se verá livre dos pensamentos que nascem de suas predisposições”. São Marcos o Asceta ensina que se não quisermos ser movidos por maus pensamentos, devemos aceitar a humilhação da alma e a aflição da carne. E isso não deve ser apenas em algumas ocasiões, mas “sempre, em todo lugar e em todas as coisas”.

Essas coisas que foram mencionadas podem ser usadas pelas pessoas para prevenir as doenças devidas aos pensamentos, mas, caso a pessoa já esteja enferma, elas são necessárias como um método para a cura dos pensamentos. Mas vamos nos deter mais analiticamente sobre como podemos curar a alma que foi afetada pelos pensamentos.

Em primeiro lugar, a pessoa não deve estar agitada. O demônio se esforça para criar agitação na pessoa, para então, em meio à confusão, interferir de modo mais ativo na alma e torna-la cativa. Assim é que São Máximo ensina: “Permaneça firme corajosamente contra os pensamentos que surgem em você, em especial aqueles de irritação e preguiça”. Encarar os pensamentos com coragem é um segundo martírio. O conselho de todos os Padres é no sentido de não ficarmos agitados quando somos atacados por pensamentos satânicos. São Barsanulfo diz: “Quando o pensamento chega, não fique alarmado, mas procure entender o que ele quer fazer e contra-ataque sem agitação, chamando pelo Senhor”. a pior coisa não é quando o ladrão entra na casa, mas quando ele leva o que encontra na casa.

Algumas pessoas permitem que o pensamento entre em seu nous e em seu coração de modo a sustentar um diálogo com ele e vencê-lo com o poder de Cristo. Isso pode ser feito por uns poucos que foram abundantemente abençoados com a graça de Cristo e que desejam entrar em combate corpo-a-corpo com o demônio para destruí-lo. Mas tal façanha não é possível para a maioria dos Cristãos, que são impotentes para sustentar um combate tão estressante e perigoso. Assim sendo, a maior parte de nós deve simplesmente desprezar os pensamentos intrusos.

Devemos dizer que quanto menos experimentado em matérias espirituais é um homem, mais devagar ele percebe a entrada do pensamento. Normalmente, aqueles que são atletas espirituais treinados percebem o pensamento ainda antes de ele entrar em sua inteligência e mesmo quando ele ainda prepara seu ataque. Outros percebem o pensamento somente quando ele começa a se acoplar o quando ele já foi assentido, ou no limiar da ação, ou ainda depois de haver sido cometido o pecado. “O homem espiritualmente inexperiente em geral só encontra o pensamento pecaminoso depois que este progrediu, sem ser notado, desde os primeiros estágios de desenvolvimento – ou seja, depois que este adquiriu certa força – e quando o perigo do pecado em ato se aproxima”. Em qualquer caso, onde quer que for encontrado, ele deve ser imediatamente combatido. E quanto mais um homem praticar esse santo jogo, mais perceptivo ele se tornará dos pensamentos em seus primeiros estágios de desenvolvimento.

Um meio melhor do que o diálogo é o desprezo e o corte dos pensamentos. O Arquimandrita Sofrônio apresenta o ensinamento de São Silouane sobre esse método melhor de combate aos pensamentos: “O Ancião disse que a experiência dos santos Padres mostra diversas maneiras de combater os pensamentos intrusos, mas que o melhor de todos é não discutir com eles. O nous que debate com um pensamento estará encarando seu desenvolvimento constante, e, confundido com a mudança, se distrairá da lembrança de Deus, que é exatamente aquilo que o demônio procura: distrair o nous de Deus, confundi-lo e não deixar que ele emerja limpo. Estevão o Eremita (que alimentava um leopardo com suas mãos), quando estava em seu leito de morte, disputou com pensamentos intrusos, conforme sua prática, e se viu mais uma vez lutando contra os demônios. São Marcos o Trácio, por ter tentado confortar sua alma antes da partida desta vida enumerando seus esforços, foi mantido flutuando no ar ‘por uma hora’ – o que sugere que poderia ter sido por todo o  tempo. Outros Padres foram ainda mais específicos em sua luta espiritual”.

Portanto, não é seguro, especialmente no começo da vida espiritual, deixar que pensamentos penetrem no coração. “Assim que os percebermos, devemos contra-atacar e expulsá-los”. Desprezar o pensamento é uma boa maneira, especialmente para os iniciantes na luta.

Sem entrar em diálogo com o pensamento, devemos recusar fazer o que ele nos diz e, desse modo, enfraquecer a própria paixão; assim, “lutando desse modo pouco a pouco, e com a ajuda de Deus, será possível vencer a própria paixão”. A isso se chama ‘resistir ao pensamento’.

Alguém disse ao Abade Poêmio: “Abba, eu tenho muitos pensamentos, e eles me colocam em perigo”. O velho conduziu-o pra fora e lhe disse: “Estufe o peito sem respirar”. Diante da resposta de que isso não seria possível, o Abade Poêmio replicou: “Se você não pode fazer isso, tampouco pode impedir os pensamentos de chegar até você, mas você pode resistir a eles”. E é verdade: não podemos impedir que os pensamentos cheguem até nós.

Mas precisamos nos opor a eles. E a oposição consiste, de um lado, num desprezo absoluto, e, de outro, em não fazer o que ele diz. “Se não fizermos nada com o pensamento, ele se deteriora e se desintegra com o tempo”. É como quando se prende uma cobra ou um escorpião numa garrafa e, com o tempo, eles morrem; “o mesmo acontece com os maus pensamentos: eles nos são sugeridos pelos demônios, mas, com paciência, podemos fazê-los desaparecer”. Quando um pensamento tentava conduzir o Abade Agatão à crítica, ele dizia: “Agatão, não faça isso”, e logo o pensamento se esvaía. Do mesmo modo os Abades Teodoro e Lúcio passaram quinze anos enganando suas tentações, dizendo ao pensamento de deixar o lugar de seu ascetismo: “Iremos logo depois do inverno”. Quando chegava o verão, eles diziam: “Passado o verão nos iremos daqui”. Assim passaram eles todo o tempo enganando os demônios; postergando o momento de satisfazer o pensamento, puderam evitar o que eles lhes propunham.

Outra maneira de cura é a luta para não deixar que o pensamento persista. A luta consiste em não deixar um pensamento simples provocar uma paixão e em não deixar um pensamento passional ter lugar. “Ambas essas formas de contra-ataque evitam que os pensamentos persistam”. Pois um pensamento que persiste irá gerar outros pensamentos e criar muitos problemas no mundo interior, acabando por capturar o nous contra nossa vontade.

Do mesmo modo, não devemos permitir que um pensamento simples se torne um pensamento composto ou passional; e, por sua vez, os pensamentos compostos devem ser reduzidos à simplicidade. Um pensamento composto é formado por uma paixão e uma imagem conceitual. É preciso, com autocontrole e amor espiritual, separar a paixão da imagem conceitual, e então o pensamento se tornará simples outra vez.

Uma vez que um pensamento intruso tenta aquecer um prazer sensual, que irá por sua vez tentar cativar o nous, este deve cortar de imediato o pretenso prazer. São Máximo ensina que  devemos nos tornar matadores não apenas das paixões corpóreas como também dos pensamentos passionais da alma.

Além de cortar e desprezar os pensamentos, é necessário expulsá-los, e isso é feito por meio da oração, em primeiro lugar. São Gregório o Sinaíta ensina que o iniciando não consegue expulsar um pensamento a menos que Deus o faça. Os mais fortes podem lutar contra os pensamentos e expulsá-los, mas também eles precisam da ajuda de Deus. “Quando chegarem os pensamentos, chame por nosso Senhor Jesus, repetida e pacientemente, e eles irão se retirar; pois eles não suportam o calor do coração produzido pela prece, e fogem como que escorraçados pelo fogo”. Na oração o nome de Jesus é pronunciado, o que açoita o diabo, e a presença da divina graça cria calor no coração. Essas coisas queimam os maus pensamentos e os colocam para fora do nous. Se a pessoa perder a energia para orar, que faça como Moisés: erga os braços e os olhos para o céu, e o próprio Deus afastará dela os pensamentos. Assim como a fumaça se dispersa no ar, os maus pensamentos se dispersam diante da invocação do Nome de Cristo.

Não podemos afastar de nós os pensamentos demoníacos por intermédio do pensamento humano. Devemos abandonar todo pensamento, mesmo os que são sábios, e colocar toda a nossa esperança em Deus, dizendo: “Senhor, lide com esse assunto como quiser e como só você sabe”. Esta passagem é significativa porque em tempos de tentação muitas pessoas tentam confrontá-las utilizando a inteligência humana. Por mais poderosa que esta seja, ela não será mais poderosa do que o pensamento demoníaco. Pois no combate contra os pensamentos estamos lutando contra o demônio e não contra um simples pensamento.

Orar com atenção limpa a mente de todas as imagens de maus pensamentos, e então nossa mente se torna consciente tanto das armadilhas de nossos inimigos como dos grandes benefícios da prece e da vigilância. Por meio da prece o atleta da vida espiritual se torna claramente consciente de todo o pensamento, realiza um sóbrio estudo sobre ele, e dessa maneira, sem deixar o pensamento agir, se conscientiza de suas consequências. Por isso os ascetas que têm prática nessas contendas espirituais, que não permitem a entrada de pensamentos, conhecem bem a vida do pecado e a do pecado, sem precisar ter uma experiência pessoal dessas coisas.

Se a semente do inimigo for fogo, a esperança em Deus será a água que apaga esse fogo. O Abade João o Anão disse: “Eu me sento em minha cela e estou consciente dos maus pensamentos que vêm a mim, e quando não tenho mais forças para lutar contra eles eu me refugio em Deus por meio da prece e me vejo a salvo do inimigo”.

Um método efetivo para se afastar dos pensamentos consistem em confessá-los a um pai espiritual experiente. São João Cassiano dizia que “assim como uma cobra que é trazida de sua cova escura para a luz se esforça para escapar e voltar a se esconder, também os pensamentos maliciosos que a pessoa coloca para fora numa confissão aberta e sincera procuram fugir dali e da pessoa”. Nada prejudica tanto o monge e traz tanta alegria ao diabo como esconder seus pensamentos de seu pai espiritual. Dessa forma toda a sua vida espiritual é revirada e se torna um joguete nas mãos do demônio, que pode fazer o que quiser com ela. Por isso São João Cassiano ensina que nada conduz com tanta certeza à salvação como confessar nossos pensamentos provados para o mais consciencioso dos padres e deixar-se guiar por ele, ao invés de por nossos próprios pensamentos e juízos. “Aquele que esconde seus pensamentos não pode ser curado”. Por isso ele deve confessar os pensamentos persistentes e levá-los ao pai espiritual que tem a responsabilidade pela sua salvação. “Revele ao seu Abba (pai) todo pensamento que tarda em você e que tenta levá-lo à luta, e ele, com a ajuda de Deus, poderá curá-lo”. Quando falamos em pensamentos persistentes estamos nos referindo àqueles que não se vão apesar de nossa objeção, de nosso desprezo, de nossas orações, e que continuam a lutar contra nós, como os pensamentos passionais que estão unidos a alguma paixão.

São João Clímaco cita o caso de um monge que ele encontrou no cenóbio. Ele tinha um pequeno livro preso ao cinto e escrevia nele todos os pensamentos, dia após dia, e os mostrava ao seu pastor.

O pastor consciente pode ser iletrado de acordo com o mundo e não conhecer a sabedoria do mundo, desde que conheça a sabedoria de Deus. O Abade Arsênio tinha o costume de levar seus pensamentos a um pai de grande discernimento, que, não obstante, era rude, iletrado e pouco educado. Outro irmão lhe perguntou: “Como é possível, Abade Arsênio, que você, com uma educação tão refinada em Latim e Grego, leve seus pensamentos a este camponês?”. Ele replicou: “Eu de fato falo bem mo Latim e o Grego, mas não chego sequer a conhecer o alfabeto deste camponês”.

Quando uma pessoa aprendeu a se abrir para Deus por intermédio de seu pai espiritual e a expor suas feridas criadas pelos pensamentos, bem como os próprios pensamentos, e, ao mesmo tempo, escuta seus conselhos, ele se liberta de cada uma dessas coisas, obtém a paz interior e conhece o que significa a paz de Cristo.

Conforme nos confessamos ao nosso pai espiritual, também devemos pedir por suas preces e bênçãos. São João Crisóstomo, referindo-se às palavras de Cristo aos Apóstolos para que entrassem nas casas desejando a paz, dizia que muitas vezes, sem que ninguém nos perturbe, ficamos agitados e em guerra com os pensamentos, e desejos ardilosos surgem em armas. Essa batalha chama pela palavra dos santos, por suas bênçãos, e essas trazem a calma para o nosso interior. “Diante dessas alocuções, todo desejo diabólico e todo pensamento oculto fogem de nossa alma”.

Conforme enfatizamos em outra parte, podemos nos afastar dos pensamentos cultivando diversas virtudes. O autocontrole e o amor afastam os pensamentos passionais. Controlando a raiva e o desejo rapidamente nos livramos dos pensamentos malignos. Também as vigílias contribuem para tanto: “O monge vigilante é como um pescador de pensamentos, e na calada da noite ele pode facilmente observá-los e capturá-los”.

A leitura das leis de Deus e das vidas dos santos corta os pensamentos. Pois as palavras dos Apóstolos e dos Padres, bem como suas vidas, possuem muito poder e trazem a paz à alma.

Outra maneira consiste em criar bons pensamentos. Realmente, observamos antes que devemos cortar e afastar todo tipo de pensamento, inclusive os bons, especialmente no momento da prece. Mas em outros momentos, particularmente se estivermos no começo de nossa vida espiritual, podemos cultivar pensamentos bons. Mas ainda assim devemos estar atentos para não cultivarmos fantasias através deles, porque desse modo iremos desenvolver um tipo de espiritualidade demoníaca. “Cultive bons pensamentos com cuidado para que você os possa encontrar futuramente”. Devemos receber a tudo com um bom pensamento. Mesmo que as coisas sejam ruins, devemos recebê-las com equanimidade e então Deus endireitará as anomalias das coisas. “Aceite com equanimidade e sem distinção de bem e de mal, e Deus resolverá todas as desigualdades”. E sempre poderemos transformar os maus pensamentos em bons.

Uma das melhores maneiras de curar e dispor os pensamentos consiste em manter nosso nous no inferno, queimando com as chamas. São Silouane disse: “São Macário o Grande, que voava pelos ares, jamais deixou de ser humilde, e, quando os demônios, distantes, gritavam de longe que ele lhes havia escapado, ele replicava que ainda não havia podido se evadir deles. Ele respondia dessa maneira, porque estava acostumado a manter sua mente no inferno, e dessa forma ele realmente iludia os demônios. São Poêmio o Grande, escolado pela longa experiência de combate contra os demônios, sabendo sobejamente que o mais perigoso e poderoso inimigo é o orgulho, lutou toda sua vida para adquirir a humildade, e dizia aos seus discípulos: ‘Estejam certos, crianças, que onde estiver Satanás, ali estarei eu’. Mas no fundo de seu coração, sabendo o quão bom e misericordioso é o Senhor, ele acreditava que Ele o salvaria. Tornar-se humilde na sabedoria é o melhor meio para manter a mente pura de todo pensamento passional”.

Pois para uma pessoa manter sua mente no inferno e para que todos os seus pensamentos queimem com as chamas infernais, é preciso um estado imbuído de arrependimento e especialmente com o grande e ardente arrependimento que é um dom da graça de Cristo. Se esta não está presente, pelo menos a pessoa deve manter na lembrança o pensamento da morte iminente e de seu julgamento no inferno. Esse pensamento basta para purificar o nous e libertar a pessoa da tirania dos pensamentos.

Quando uma pessoa se liberta por meio de todo esse método ascético da tirania dos pensamentos, e tanto o seu nous como o coração estão puros, então ela se enche com a energia do Espírito Santo e experimenta a cura de sua alma. A alma se livra de todas as suas feridas e se torna um templo para a Santíssima Trindade. A pessoa se torna um verdadeiro sacerdote da graça de Deus e recebe uma antecipação dos bens do Reino dos Céus. Este é o homem verdadeiro e natural, o homem tornado divino pela graça.




[1] Mateus 6: 23.
[2] I Coríntios 2: 16.
[3] Romanos 14: 5.
[4] Mateus 24: 15.
[5] I Timóteo 6: 5.
[6] II Timóteo 3: 8.
[7] Colossenses 3: 18.
[8] Romanos 1: 28.
[9] Efésios 4: 17.
[10] Tito 1: 5.
[11] II Coríntios 4: 10.
[12] Lucas 24: 45.
[13] Jó 26: 10.
[14] Lucas 11: 35.
[15] Lucas 17: 21.
[16] Salmo 64: 6.
[17] I Pedro 3: 4.
[18] I Pedro 3: 15.
[19] II Pedro 1: 19.
[20] I Pedro 3: 4.
[21] Lucas 17: 20.
[22] Mateus 15: 19.
[23] II Coríntios 3: 2-3.
[24] Atos 5: 3.
[25] João 13: 2.
[26] Mateus 15: 19.
[27] Gálatas 4: 6.
[28] Romanos 5: 5.
[29] Efésios 3: 7.
[30] Romanos 5: 5.
[31] Romanos 2: 15.
[32] I Coríntios 2: 16.
[33] I Pedro 3: 15.
[34] Efésios 5: 19.
[35] Lucas 24: 32.
[36] II Coríntios 1: 22.
[37] II Coríntios 3: 2-3.
[38] II Coríntios 4: 6.
[39] Gálatas 4: 6.
[40] Efésios 1: 17-18.
[41] Colossenses 3: 15.
[42] João 13: 2.
[43] II Coríntios 3: 15.
[44] Atos 7: 51.
[45] Romanos 2: 5.
[46] Hebreus 3: 8.
[47] Marcos 6: 52.
[48] Marcos 8: 17.
[49] Marcos 3: 5.
[50] Mateus 5: 28.
[51] Romanos 1: 21.
[52] Atos 8: 21.
[53] Mateus 5: 8.
[54] Salmo 51: 17.
[55] Mateus 26: 6-13.
[56] Mateus 25: 28.
[57] Mateus 11: 22.
[58] Atos 14: 22.
[59] Salmo 102: 4.
[60] Cf. João 11: 1-44.
[61] Lucas 12: 49.
[62] Lucas 24: 32.
[63] I Coríntios 4: 5.
[64] II Pedro 1: 19.
[65] Hebreus 12: 29.
[66] Lucas 8: 44.
[67] Mateus 5: 8.
[68] Tiago 4: 8.
[69] I Pedro 1: 22.
[70] Efésios 5: 19.
[71] Colossenses 3: 15.
[72] Mateus 7: 1.
[73] Mateus 5: 3.
[74] Mateus 5: 8.
[75] II João 9.
[76] I Coríntios 8: 3.
[77] I Coríntios 2: 8.
[78] I Coríntios 2: 14.
[79] Mateus 15: 19.
[80] Lucas 9: 46 ss.
[81] Lucas 24: 38.
[82] II Timóteo 4:5.