segunda-feira, 2 de julho de 2018

Orígenes - Tratado sobre os Princípios - Livro IV


LIVRO IV

1
AS SAGRADAS ESCRITURAS


1.       A superioridade de Moisés e Cristo

Como na discussão de assuntos de tal importância não basta confiar a decisão aos sentidos e ao entendimento humano, nem pronunciar-se sobre coisas invisíveis como se as tivéssemos visto, torna-se necessário, para estabelecer as posições que temos exposto, trazer o testemunho da Sagrada Escritura. Porque o testemunho bíblico pode produzir uma crença segura e imediata, seja com respeito ao que falta dizer, como em relação ao que já foi afirmado. Por isso é preciso mostrar, em primeiro lugar, que as próprias Escrituras são divinas, ou seja, que elas foram inspiradas pelo Espírito de Deus.

Com a maior brevidade possível vamos extrair dessas Santas Escrituras a evidência que possa produzir sobre nós uma impressão conveniente, escolhendo citações de Moisés, o primeiro legislador da nação hebraica, e palavras de Jesus Cristo, o autor e a cabeça do sistema religioso cristão. Já que, apesar de terem existido numerosos legisladores entre os gregos e os bárbaros, e também incontáveis mestres e filósofos que professaram declarar a verdade, não recordamos nenhum legislador que tenha sido capaz de produzir nas mentes de nações estrangeiras um afeto e um zelo em relação a ele que as conduzisse voluntariamente a adotar suas leis, ou a defendê-las com toda a força de sua mente. Ninguém, pois, foi capaz de introduzir e dar a conhecer o que lhe pareceu ser a verdade, entre, não digo muitas nações estrangeiras, mas inclusive entre os indivíduos de uma mesma nação, de tal maneira que seu conhecimento e sua crença pudesse estender-se a todos. E não há dúvida de que esse foi o desejo dos legisladores, de que suas leis fossem observadas, se possível, por todos os homens; e dos mestres, que fosse conhecido por todos aquilo que lhes parecia ser a verdade.

Mas, sabendo eles que de modo algum poderiam ter êxito em produzir tão grande poder a ponto de levar as nações estrangeiras a observar suas leis, ou a levar em conta suas declarações, sequer se aventuraram a ensaiar uma tentativa, para evitar que o fracasso da empresa selasse sua conduta com a marca da imprudência. Mas em todas as partes do mundo – em toda a Grécia e em todos os países estrangeiros – inúmeros indivíduos abandonaram as leis de seu país e os deuses nos quais acreditavam para prestar obediência à lei de Moisés e ao discipulado e à adoração de Cristo; e ao fazê-lo excitaram contra si o ódio imenso dos adoradores de imagens, de modo que com frequência foram expostos a torturas cruéis, e às vezes até à morte. E ainda assim abraçaram e perseveraram com todo afeto as palavras e os ensinamentos de Cristo.

2.       Extensão e aceitação universal da mensagem cristã

Podemos ver, ademais, como aquela religião cresceu num curto espaço de tempo, fazendo progressos em meio aos castigos e morte de seus adoradores, da pilhagem de seus bens e das torturas que tiveram que suportar. Esse resultado é o que mais surpreende, pois seus mestres não foram homens de engenho, nem muito numerosos; e ainda assim essas palavras foram predicadas em todas as partes do mundo, de modo que gregos e bárbaros, sábios e ignorantes, adotaram as doutrinas da religião cristã. Por conseguinte, não é uma referência duvidosa dizer que não foi pelo poder humano ou a fortaleza dos homens que as palavras de Jesus Cristo prevaleceram com toda fé e poder sobre o entendimento e as almas dos homens. Porque ambos os resultados foram previstos por Ele, e estabelecidos pelas respostas divinas que procederam Dele. Isso fica claro em Suas palavras: “Sereis levados diante de reis e príncipes por minha causa, para dar testemunho a eles e aos gentios[1]”. E outra vez: “Esse Evangelho do reino será predicado por todos os reinos do mundo, para testemunho de todos os gentios[2]”. Novamente: “Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós em Teu nome, e em Teu nome expulsamos demônios, e em Teu nome fizemos muitos milagres? E então eu lhes responderei: Não vos conheço; apartai-vos de mim, operários da maldade[3]”.

Se essas coisas tivessem sido pronunciadas por Ele e não tivessem se cumprido Suas predições, elas poderiam talvez parecer falsas e não possuir nenhuma autoridade. Mas agora, quando se cumpriram suas declarações, vendo que foram preditas com tal poder e autoridade, fica claro que Ele, quando se fez homem, entregou aos homens os preceitos da salvação.

3.       As profecias sobre o rei futuro

Que diremos, pois, disso, que os profetas haviam predito de antemão a respeito Dele, que os príncipes não cessariam em Judá, nem líderes de suas fileiras, antes que Ele viesse para aqueles a quem isso – o reino – havia sido reservado, e até que se cumprisse a expectativa dos gentios? Porque é claramente evidente a partir da própria história, e do que se vê hoje em dia, que desde os dias de Cristo em diante não existem reis entre os judeus. Sequer aqueles objetos de orgulho judaico, dos quais se jactavam tanto e com os quais se regozijavam, como a beleza do templo, os ornamentos do altar, todos aqueles adornos sacerdotais e os trajes dos sumos sacerdotes, tudo foi destruído junto. Porque se cumpriu a profecia que havia declarado: “Porque por muitos dias estarão os filhos de Israel sem rei, sem príncipe e sem sacrifício, sem estátua, sem efod, sem terafim[4]”. Utilizamos esses testemunhos contra os que parecem afirmar que são mencionados [reis e príncipes] por Jacó no Gênesis, referidos a Judá. E contra os que dizem que ainda permanece um príncipe da raça de Judá, príncipe de sua nação, a quem chamam Patriarca, e que não faltará um chefe a partir de sua semente, que permanecerá até o advento daquele Cristo que eles imaginam.

Mas, se são verdadeiras as palavras do profeta, quando diz que “por muitos dias estarão os filhos de Israel sem rei, sem príncipe e sem sacrifício”, e se, desde a destruição do templo, eles não oferecem mais vítimas, nem existe altar algum, nem sacerdócio, é bastante certo que os príncipes abandonaram Judá, assim como um líder de entre as suas fileiras, até a vinda Daquele para quem foi reservado o principado. Fica estabelecido, pois, que chegou aquele para quem isso havia sido reservado, aquele que era a expectativa dos gentios. E isso parece ter se cumprido na multidão dos que creram em Deus por Cristo, das diferentes nações.

4.       A eleição dos gentios

Na canção do Deuteronômio, também se declara profeticamente que, devido aos pecados da geração anterior, se daria a eleição de uma nação insensata, não outra, certamente, do que aquela que foi reunida por Cristo; porque seguem-se essas palavras comprovadas: “Eles me enciumaram com um falso Deus, irritaram-se com suas futilidades; eu também os hei de enciumar com um povo que não é um povo, eu os irritarei com gente insensata[5]”. Podemos ver de que modo os hebreus, de quem se diz que provocaram a cólera de Deus mediante deuses que não são deuses, excitando sua ira com suas imagens, também serão levados ao ciúme mediante uma nação insensata, que Deus escolheu com o advento de Jesus Cristo e seus discípulos. É a seguinte a linguagem do Apóstolo: “Portanto vede, irmãos, vossa vocação, que não sois muito sábios segundo a carne, nem muito poderosos, nem muito nobres; antes escolheu Deus os tolos do mundo, para envergonhar os sábios; e escolheu o fraco para envergonhar os fortes; e o vil e menosprezado escolheu Deus, e o que não é, para desfazer o que é[6]”. O Israel carnal, portanto, não deveria jactar-se, já que o termo utilizado pelo Apóstolo é: “Para que nenhuma carne se vanglorie em sua presença[7]”.

5.       A extensão universal do Evangelho: obra divina

E o que diremos, ademais, das profecias sobre Cristo contidas nos Salmos, especialmente naquele que leva o título de Canção para o Amado, no qual se declara que “minha língua é a pena ágil de um escriba; tu és o mais belo dos filhos dos homens. A graça se derramou de teus lábios[8]”. Ora, a descrição de que a graça se derramou de seus lábios significa que, depois de transcorrido um curto período, já que Ele só ensinou durante um ano e uns poucos meses, o mundo todo se encheu com Sua doutrina e de fé em Sua religião.

“Os mansos herdarão a terra. E se recrearam em abundância de paz[9]”. “Em seus dias florescerá a justiça e uma multidão de paz, até que não haja luz[10]”, ou seja, até o fim. Seu domínio se estenderá de mar a mar, desde os rios até os confins da terra.

Será dado um sinal à casa de Davi: “Eis que uma virgem conceberá, e parirá um filho, e dar-lhe-á o nome de Emanuel, que significa ‘Deus conosco’[11]”.  Que o saibam as nações, e se submetam. Porque nós fomos conquistados e vencidos; somos dos gentios e permanecemos como uma espécie de butim de Sua vitória, Daquele que submeteu nossa cerviz à Sua graça.

Até o local de seu nascimento foi predito nas profecias de Miqueias: “E tu, Belém, na terra de Judá, não serás a menor dentre os príncipes de Judá; porque de ti sairá um guia, que apascentará meu povo de Israel[12]”. Também o período em anos, predita pelo profeta Daniel, para o governo de Cristo, se cumpriram.

Ademais, Ele está ao alcance da mão, de quem foi dito no livro de Jó que está disposto a destruir a besta enorme, que também deu poder aos seus próprios discípulos para pisar sementes e escorpiões, e para superar todo poder do inimigo, sem ser prejudicados por ele. E se alguém quiser considerar as viagens dos apóstolos de Cristo aos diferentes lugares onde, como mensageiros, predicaram o Evangelho, descobrirá que eles se aventuraram em empreender o que está fora do poder do homem, e que o que foram capazes de conseguir procede apenas de Deus tão somente.

Se considerarmos de que modo os homens, ouvindo uma doutrina nova que era introduzida pelos apóstolos, foram capazes de recebe-los; ou antes, quando desejando destruí-los foram impedidos pelo poder divino que estava com eles, encontraremos que nada disso se efetuou pela força humana, mas que tudo foi resultado do poder divino e da providência: sinais e maravilhas, manifestados além de toda dúvida, dando testemunho de sua Palavra e doutrina.

6.       A vinda de Cristo certifica a inspiração das Escritura

Tendo estabelecido brevemente esses pontos, a saber, a divindade de Cristo e o cumprimento de tudo o que foi profetizado a Seu respeito, penso que também validamos essa posição, a saber, que as próprias Escrituras, que contém essas predições, foram inspiradas divinamente, quando profetizaram Seu advento, o poder de Sua doutrina, ou a submissão das nações à Sua obediência. A essa observação devemos acrescentar que a divindade e a inspiração das predições dos profetas e da lei de Moisés foram claramente reveladas e confirmada, em especial desde o advento de Cristo ao mundo. Já que, antes do cumprimento dos acontecimentos preditos, eles não poderiam prová-lo, ainda que verdadeiros e inspirados por Deus, porque ainda não haviam se cumprido como tais. Mas a vinda de Cristo foi uma declaração de que suas afirmações eram verdadeiras e inspiradas de forma divina, mesmo que fosse duvidosas antes de que se cumprisse o que fôra predito.

Ademais, se alguém estudar as palavras dos profetas com todo o zelo e a reverência que elas merecem, é certo que nesse exame cuidadoso e atento dos escritos proféticos sentirá, ao lê-los, um sopro divino, e que esse sentimento o convencerá de que aquilo que cremos ser as palavras de Deus não são escritos de homens, e, por suas próprias emoções sentirá que esses livros não foram compostos pela habilidade humana, nem pela eloquência mortal, mas que, por assim dizer, seu estilo é divino. O esplendor da vinda de Cristo, portanto, ao iluminar a lei de Moisés com a luz da verdade, retirou o véu que estava colocado sobre a letra (da lei), e revelou para todos os que Nele creem as bênçãos que estavam ocultas sob o manto da palavra.

7.       A Providência divina

É ademais uma questão que requer muito trabalho, indicar em cada caso o modo e o tempo das predições dos profetas se cumpriram, de maneira a convencer os que têm dúvidas, pois é possível a qualquer um que deseje familiarizar-se com essas coisas reunir provas abundantes dos mesmos registros da verdade. Mas se o sentido da letra, que está além do homem, não parece apresentar-se imediatamente, à primeira vista, aos que são menos versados na disciplina divina, não há porque surpreender-se: porque as coisas divinas não descem senão lentamente à compreensão dos homens, e eludem a vista na proporção do ceticismo ou da indignidade de cada um. E, ainda que seja certo que todas as coisas que existem ou se passam nesse mundo estão organizadas segundo a providência de Deus, temos que certos acontecimentos parecem claramente estar submetidos à disposição de Seu governo providencial, enquanto que outros se desenvolvem tão misteriosa e incompreensivelmente que o plano da divina providência a seu respeito fica completamente oculto, de modo que às vezes alguns possam crer que certos acontecimentos específicos não pertencem ao plano da providência, porque seu princípio elude sua compreensão, segundo a qual as obras da providência divina devem ser administradas com habilidade indescritível. Mas o princípio dessa administração não está igualmente oculto a todos. Porque, mesmo entre os homens, um indivíduo lhe dedica menos consideração, e outro mais. A natureza dos corpos nos é clara de um modo, a das árvores de outro, a dos animais de outro; por outro lado, a natureza das almas nos é oculta de modo diferente. E a maneira pela qual os diversos movimentos do entendimento racional estão ordenados pela providência, elude a visão do homem em maior grau e, na minha opinião, em não pequeno grau a dos anjos também.

Mas, como a existência da providência divina não é refutada pelos que estão certos de sua existência, mesmo que não compreendam seu proceder ou suas disposições com os poderes da mente humana, tampouco a inspiração divina da Santa Escritura, que es estende por todas as partes de seu corpo, poderá ser julgada inexistente apenas por causa da debilidade de nosso entendimento, incapaz de traçar o significado oculto e secreto em cada palavra individual: tal é o tesouro da sabedoria divina oculto em vasos vulgares sem refinamento. Como disse o Apóstolo: “Temos no entanto esse tesouro em vasos de barro”, com o propósito de que “a grandeza do poder seja de Deus, e não nossa[13]”, e para que o poder divino possa brilhar mais intensamente sem ser colorido pela eloquência humana entremeada com a verdade das doutrinas. Pois, se nossos livros induzissem os homens a crer por sua composição literária, ou pela arte retórica, ou pela sabedoria da filosofia, então indubitavelmente nossa fé seria baseada na arte das palavras ou na sabedoria humana, e não no poder de Deus. Ao contrário, é sabido por todos que a palavra dessa predicação foi aceita por muitos em todas as parte de quase todo o mundo, porque entenderam que sua crença não descansava sobre palavras persuasivas de sabedoria humana, mas sobre a manifestação do Espírito e do poder[14].

Em vista disso, somos conduzidos por um poder celestial, e mais do que celestial, à fé e à aceitação para podermos adorar apenas ao Criador de todas as coisas como nosso Deus. De nossa parte, façamos também um esforço supremo para abandonar a linguagem dos rudimentos de Cristo, que não passam dos começos da sabedoria, e continuarmos até a perfeição, para que aquela sabedoria que foi dada aos perfeitos possa nos ser dada também. Porque essa foi a promessa daquele a quem foi confiada a predicação dessa sabedoria: “Ensinamos a sabedoria de Deus entre os perfeitos; e sabedoria, não desse século, nem dos príncipes desse século, que se desmancham[15]”, com o que fica demonstrado que nossa sabedoria nada tem em comum, no que se refere à beleza da linguagem, com a sabedoria desse mundo. Essa sabedoria, pois, será mais clara e perfeitamente inscrita em nossos corações se se der a conhecer a nós segundo a revelação do mistério que ficou oculto desde a eternidade, mas que agora se tornou manifesto pelas Escrituras da profecia, e pelo advento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, a quem seja dada a glória para sempre. Amém.

Muitos, por não entender as Escrituras num sentido espiritual, mas incorretamente, caíram em heresias.

8.       A leitura incorreta da Bíblia

Uma vez que mencionamos esses detalhes quanto à inspiração das Sagradas Escrituras pelo Espírito Santo, parece necessário explicar mais esse ponto, a saber, como certas pessoas, que não sabem lê-las corretamente, formaram opiniões errôneas, posto que o procedimento que se deve seguir para alcançar o entendimento das Escrituras Santas e desconhecido de muitos. Justamente os judeus, devido à dureza dos seus corações e a um desejo de parecer sábios aos seus próprios olhos, não creram em nosso Senhor e Salvador, julgando que aquelas declarações que foram pronunciadas a respeito Dele deveriam ser entendidas literalmente, isso é, que Ele deveria ter predicado de uma maneira sensível e visível o resgate dos cativos, e primeiro construir uma cidade tal como eles realmente consideravam ser a cidade de Deus, e que também deveria comer manteiga e mel, para escolher o bom antes que soubesse como extrair o mal.

Eles também pensam que foi predito que o lobo, que é um animal quadrúpede, dormirá com o cordeiro quando da vinda de Cristo, e o leopardo se deitará com as crianças, e que o bezerro e o touro pastarão junto com os leões, e que todos serão conduzidos por um menino pequeno; que o boi e o urso se deitarão juntos nos campos verdes, e que suas crias se alimentarão juntas; também os leões frequentarão os pastos dos bois e se alimentarão de relva[16]. E vendo que, segundo a história, nada disso se cumpriu, coisas que eles acreditam ser os sinais da vinda de Cristo, que poderiam ser particularmente observados, rechaçam reconhecer a presença de nosso Senhor Jesus Cristo, como algo contrário a todos os princípio da lei divina, vale dizer, contrário à lei da profecia. E O crucificaram precisamente por assumir o título de Cristo, ou Messias.

9.       Dificuldades de alguns textos bíblicos

Por isso os hereges, lendo que está escrito na lei: “Porque o Senhor teu Deus é um fogo devorador, um Deus ciumento[17]”, e “Teu Deus, forte, ciumento, que estendeu a maldade dos pais sobre os filhos, até a terceira e a quarta geração[18]”, e que se arrependeu de ter ungido Saul como rei, o Deus que “fez a paz e criou o mal[19]”, do qual se disse: “Haverá algum mal dessa cidade que o Senhor não tenha feito?[20]”, que trará males sobre as portas de Jerusalém, e cujo espírito mau molestava a Saul[21], e lendo ainda muitas outras passagens similares a essas que se encontram nas Escrituras, não se aventuraram a afirmar que essas não eram as Escrituras de Deus, mas consideraram que se tratava das palavras desse Deus criador (demiurgo) a quem os judeus adoram, e que os hereges consideram que deve ser visto como justo, mas não bom, e que o Salvador veio ensinar-nos um Deus mais perfeito, mas que, alegam eles, não é o criador do mundo.

Existem opiniões diferentes e discordantes entre eles mesmo quanto a esse ponto, porque tão logo se afastaram da crença em Deus o Criador, que é o Senhor de tudo, se entregaram a várias invenções e fábulas, inventando certas ficções e afirmando que algumas coisas eram visíveis e feitas por um Deus, e que outras eram invisíveis e teriam sido criadas por outro, segundo as sugestões vãs e imaginárias de suas próprias mentes.

Em compensação, não poucos dentre os mais simples daqueles que estão contidos pela fé da Igreja, são de opinião de que não existe nenhum Deus maior do que o Criador, mantendo a esse respeito uma opinião correta e sã; mas, mesmo assim, guardam a respeito dele tais opiniões, que não teriam sobre o mais injusto e cruel dos homens.

10.   O sentido literal e o sentido espiritual

A razão da compreensão errônea de todos esses pontos, da parte de quem mencionamos acima, não é outra senão a de que a Santa Escritura não é entendida por eles segundo seu sentido espiritual, mas segundo seu significado literal. Portanto procuraremos, na medida em que o permita nossa moderada capacidade, indicar aos que creem que as Santas Escrituras não são composições humanas, mas que foram escritas pelo Espírito Santo, e que nos foram transmitidas e confiadas pela vontade de Deus Pai e por Seu Filho Unigênito Jesus Cristo, o que nos parece, a nós que observamos as coisas por meio de um modo correto de entendimento, que constitui o modelo e a disciplina que nos foram entregues pelos apóstolos de Jesus Cristo, que foram transmitidas à sua posteridade, na pessoa dos mestres da Igreja santa.

Que existem certas economias místicas indicadas na Escritura, todos o admitem, mesmo o mais simples dos crentes. Mais quais são, de que classe são, e quem será intelectualmente reto, não vencido pelo vício da vanglória, a ponto de escrupulosamente reconhecer-se ignorante? Por exemplo, se alguém trouxer à baila o caso das filhas de Lot, que parecem, contrariamente à lei de Deus, ter copulado com seu pai, ou das irmãs que estiveram casadas com Jacó, ou das criadas que aumentaram o número de seus filhos, que outra resposta se pode oferecer, senão que se trata de certos mistérios e formas de coisas espirituais, mas que ignoramos de que natureza são?

Mesmo quando lemos sobre a construção do tabernáculo, consideramos como certo que as descrições escritas são imagens de certas coisas ocultas; mas adaptar estas a suas normas apropriadas, e abrir e discutir cada ponto individualmente, penso ser sumamente difícil, para não dizer impossível. Não obstante, não escapa nem ao entendimento comum que esteja cheia de mistérios. Mas toda a parte da narrativa relacionada com matrimônios, ou com a geração de filhos, ou com as batalhas de diferentes classes, ou qualquer outra história, que mais podemos supor, senão que são imagens e formas de coisas ocultas e sagradas?

Como o homem faz muito pouco esforço para exercitar o intelecto, ou imagina que possui o conhecimento antes de aprendê-lo realmente, a consequência é que ele nunca começa a ter realmente um conhecimento. Ou, se não lhe faltar o desejo, ao menos de um instrutor, e se buscar o conhecimento divino como deve ser, com espírito religioso e santo, e com a esperança de que muitos pontos serão abertos pela revelação de Deus – já que eles são sumamente difíceis e obscuros ao sentido humano – então, talvez, aquele que busca encontrará o que lhe for permitido descobrir.

11.   O sentido profundo da Escritura

Mas suponhamos que essa dificuldade existe apenas na linguagem dos profetas, visto que o estilo profético é cheio de figuras e enigmas – que encontramos, então, quando chegamos aos Evangelhos? Não existe oculto ali também um sentido interno, vale dizer, divino, que só é revelado pela graça, recebida por quem é capaz de dizer: “Temos em nós a mente de Cristo[22]”, “para que conheçamos aquilo que Deus nos deu, o que também ensinamos, não com doutas palavras de humana sabedoria, mas com a doutrina do Espírito[23]”?

E, se alguém ler as revelações dadas a João, ficaria assombrado ao descobrir nelas uma quantidade enorme de mistérios ocultos e inefáveis, nos quais fica claro o entendimento, mesmo aos que não podem entender o que está oculto, que algo foi escondido ali. E mesmo as Epístolas dos apóstolos, que parecem mais simples, estão cheias de significados tão profundos, que, por meio deles, como se fossem um pequeno receptáculo, a claridade de uma luz incalculável parece se derramar nos que são capazes de entender o significado da sabedoria divina.

Portanto, e porque parece ser esse o caso, e porque existem muitos que se equivocam nessa vida, considero não ser fácil pronunciar-se sem perigo, pois ninguém sabe nem entende aquelas coisas que, para ser abertas, requerem a chave do conhecimento, chave que, disse o Salvador, está com os que são experientes na lei.

E aqui, ainda que isso seja uma digressão, penso que deveríamos nos informar sobre os que afirmam que antes do advento do Salvador não havia nenhuma verdade entre os que se dedicavam ao estudo da lei; ora, como pôde nosso Senhor Jesus Cristo dizer que as chaves do conhecimento estavam com eles, que tinham os livros dos profetas e da lei em suas mãos? Porque ele disse: “Ai de vocês, especialistas em leis, porque vocês se apoderaram da chave da ciência. Vocês mesmos não entraram, e impediram os que queriam entrar[24]”.

12.   O corpo, alma e espírito da Escritura

Mas, como começamos a observar o caminho que nos parece correto para o entendimento das Escrituras e para a investigação de seu significado, pensamos que seja do seguinte tipo: que somos instruídos pela própria Escritura a respeito das ideias que devemos formar sobre ela.

Nos Provérbios de Salomão encontramos a seguinte regra sobre a consideração da Santa Escritura: “Não te escrevi eu três vezes com conselhos e ciência, para fazer-te saber a incerteza das razões verdadeiras, para que possas responder com razões de verdade aos que a ti enviarem?[25]”.

Portanto, cada um deveria descrever o entendimento das letras divinas em sua própria mente, de maneira tríplice, vale dizer, para que todos os indivíduos mais simples possam ser edificados, por assim dizer, pelo corpo mesmo da Escritura (porque assim chamamos o sentido comum e histórico); enquanto que, se alguns começaram a fazer progressos consideráveis e se tornarem capazes de ver algo mais, esses possam ser edificados pela própria alma da Escritura. Por outro lado, aqueles que são perfeitos, e que se parecem com aqueles a quem se refere o apóstolo: “Falamos da sabedoria de Deus entre os perfeitos; sabedoria, não deste século, nem dos príncipes deste século, que se desfazem; mas falamos da sabedoria de Deus em mistério, da sabedoria oculta, que Deus predestinou antes dos séculos para nossa glória; daquela que nenhum dos príncipes deste século conheceu, porque, se a houvessem conhecido, nunca teriam crucificado do Senhor da glória[26]”, esses podem ser edificados pela própria lei espiritual, que é uma sombra das coisas boas por vir, como se o fossem pelo Espírito mesmo.

Porque, assim como se diz que o homem consiste de corpo, alma e espírito, também a Sagrada Escritura, que nos foi concedida pela divina generosidade para a salvação do homem, como vemos assinalado, aliás, no pequeno livro do Pastor de Hermas, que parece ser desprezado por alguns, e no qual Hermas recebe a ordem de escrever dois pequenos livros e depois anunciá-los aos presbíteros da Igreja com o que aprendeu do Espírito. Essas são as palavras que estão escritas: “Tirarás duas cópias e as enviarás, uma a Clemente e outra a Grapta. Clemente, por seu lado, as remeterá às cidades de fora, pois isso lhe foi encomendado, e Grapta ensinará as viúvas e os órfãos. Tu, enfim, os lerás nessa cidade entre os anciãos e que presidem a Igreja[27]”.

Grapta, portanto, a quem é ordenado que ensine os órfãos e as viúvas, constitui o entendimento puro da letra, por meio do qual as mentes jovens são ensinadas, aquelas que ainda não mereceram ter a Deus como seu Pai, e que por isso são chamadas de órfãs. Também as viúvas, que se separaram do homem injusto, ao qual haviam se unido contrariamente à lei, mas que ainda permanecem como viúvas, porque ainda não avançaram até a etapa de união com o Noivo celestial.

A Clemente se pede que envie que está escrito para as cidades que estão no estrangeiro, para aqueles indivíduos que já se separaram da letra, como sendo esse o significado dado às almas que, elevando-se por esse meio, tivessem começado a se elevar acima dos cuidados do corpo e dos desejos da carne. Finalmente, ele próprio, que havia aprendido do Espírito Santo, recebe a ordem de anunciar, não pela letra, nem pelo livro, mas de viva voz aos anciãos da Igreja de Cristo, isso é, aos que possuem uma faculdade madura de sabedoria, capaz de receber o ensinamento espiritual.

13.   O sentido corporal

Esse ponto não pode ser passado por alto sem notícia, a saber, que existem certas passagens da Escritura nas quais esse “corpo”, como nós o chamamos, nem sempre pode ser encontrado, como demonstraremos ser o caso nas páginas seguintes, nas quais só se pode entender o que chamamos de “alma” ou de “espírito”.

Penso que isso está indicado nos Evangelhos onde se diz que estão colocadas, segundo o modo de purificação dos judeus, seis vasilhas de água, contendo cada qual três medidas; com isso, como eu disse, a linguagem do Evangelho parece indicar, no que concerne aos que o Apóstolo chama secretamente de “judeus” os que são purificados pela palavra da Escritura, recebendo cada qual suas medidas, isso é, o entendimento da “alma” e o do “espírito”, segundo declaramos antes. Às vezes até três medidas, quando, para a edificação do povo pode ser conservado na leitura da Escritura o sentido “corporal”, que é o “histórico”.

Pois bem, seis vasilhas de água constitui uma maneira apropriada de falar a respeito dessas pessoas que são purificadas ao serem colocadas no mundo; porque lemos que em seis dias – número da perfeição – foram terminados esse mundo e todas as coisas que estão nele. A grande utilidade desse primeiro sentido “histórico” que mencionamos é atestada pela multidão de todos os que creem com a fé adequada e a simplicidade, não necessitando esse sentido de muito argumento, porque é abertamente manifesto a todos; quanto ao sentido a que chamamos de “alma”, o apóstolo Paulo nos deu numerosos exemplos na Primeira Epístola aos Coríntios, onde encontramos a expressão: “Não amordace o boi que debulha o grão[28]”.

Em seguida, explicando o preceito que deve ser entendido com isso, acrescenta essas palavras: “Tem Deus cuidado com os bois? Ou isso foi dito inteiramente por nós? Pois é por nós que está escrito: porque com esperança há de arar o que ara; e o que semeia, com esperança de receber o fruto[29]”. Existem também muitas outras passagens dessa natureza, onde a lei é explicada dessa maneira, e que contribuem para a informação extensiva dos ouvintes.

14.   O sentido espiritual

A interpretação “espiritual” é da seguinte natureza: quando alguém é capaz de especificar quais são as coisas celestiais que servem como modelos e sombra, quem são os judeus “segundo a carne”, de que coisas futuras a lei contém a sombra, e quaisquer outras expressões desse tipo que se podem encontrar na Santa Escritura; ou, em se tratando de tema de investigação, qual é a sabedoria oculta no mistério, aquela que “Deus ordenou desde antes da fundação do mundo para nossa glória, que nenhum dos príncipes desse mundo conhece”; ou qual é o significado da linguagem do Apóstolo quando, empregando certas ilustrações do Êxodo e de Números, diz: “Essas coisas lhes aconteceram como figuras; e foram escritas para nossa instrução, que vivemos no fim dos séculos[30]”. E ele nos oferece a oportunidade de entender quais são essas coisas, quando acrescenta: “E beberam da Rocha espiritual que os guiou, e essa Rocha era Cristo[31]”.

Também em outra Epístola, referindo-se ao tabernáculo, ele menciona a ordem dada a Moisés: “Veja e faça todas as coisas conforme o modelo que te foi mostrado no monte[32]”. E escrevendo aos Gálatas, repreendendo a certos indivíduos que pareciam ler a lei sem entendimento, devido à sua ignorância do fato de que seu significado alegórico é a base do que está escrito, ele lhes fala em tom de reprovação: “Vós que quereis ficar submetidos à Lei, me digam uma coisa: será que não ouvis o que diz a Lei? De fato, aí está escrito que Abraão teve dois filhos, um da escrava e outro da mulher livre. O filho da escrava nasceu de modo natural, enquanto o filho da mulher livre nasceu por causa da promessa. Simbolicamente isso quer dizer o seguinte: as duas mulheres representam as duas alianças[33]”. Esse ponto deve ser observado com cuidado, devido à precaução empregada pelo Apóstolo: “Vós que quereis ficar submetidos à Lei, me digam uma coisa: será que não ouvis o que diz a Lei?”.

Na Epístola aos Colossenses, resumindo e condensando brevemente o significado de toda a lei, ele diz: “Ninguém, pois, vos julgue pelo que comeis ou bebeis, ou por causa de festas anuais, mensais ou de sábados. Tudo isso é apenas sombra daquilo que devia vir[34]”. Escrevendo aos Hebreus e tratando dos que pertencem à circuncisão, ele diz: “Os quais servem de esboço e sombra das coisas celestiais[35]”.

Mediante essas ilustrações, talvez já não tenham dúvidas sobre os cinco livros de Moisés aqueles que sustentam que os escritos do Apóstolo são divinamente inspirados[36]. E, se eles perguntarem a respeito do resto da história, sobre se os acontecimentos que estão ali contidos devem ser entendidos como tendo ocorrido como exemplo para aqueles aos quais estão dirigidos, podemos observar que isso também está declarado na Epístola aos Romanos, onde o Apóstolo apresenta um caso do Terceiro Livro dos Reis, dizendo: “Deixei para mim sete mil homens, que não dobraram o joelho diante de Baal[37]”, expressão que Paulo entendeu como tendo sido dita em sentido figurado a respeito dos que são chamados de “israelitas segundo a eleição”, para mostrar que o advento de Cristo não foi benéfico apenas para os gentios, mas que muitos da raça de Israel foram também chamados à salvação.

15.   O Espírito Santo e a interpretação bíblica

Sendo assim, esboçaremos a modo de ilustração e o modelo o que nos ocorre a respeito da maneira como a Santa Escritura deve ser entendida sobre esses pontos. Em primeiro lugar, devemos considerar o objetivo do Espírito Santo, que, pela providência e a vontade de Deus, mediante o poder do Verbo Unigênito, que estava no princípio em Deus, iluminou os ministros da verdade, os profetas e os apóstolos, para que entendessem os mistérios inefáveis daquelas coisas ou causas que ocorrem entre os homens, ou que se referem aos homens. Por “homens”, refiro-me às almas que são colocadas em corpos, como se fossem uma espécie de transações humanas; [o Espírito iluminou os ministros da verdade, os profetas e os apóstolos] a respeito daqueles mistérios que são conhecidos por eles e revelados por Cristo, ou da transmissão de certas regras e prescrições legais, descritas naqueles mistérios em sentido figurado; para que ninguém que visse essas exposições pudesse pisoteá-las sob seus pés, mas que aquele que se dedicasse aos estudos dessa classe com toda castidade, moderação e vigilância, pudesse ser capaz por esse meio de traçar o significado do Espírito de Deus, talvez profundamente enterrado, e também traçar o contexto que pudesse assinalar outra direção que o uso ordinário da linguagem poderia apenas indicar.

Desse modo, o homem poderia se tornar partícipe do conhecimento do Espírito e do conselho divino, porque a alma não pode atingir a perfeição do conhecimento senão pela inspiração da verdade e da sabedoria divina. Por conseguinte, é de Deus, isso é, do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que esses homens, cheios do Espírito Divino, tratavam principalmente. Então, os mistérios que se relacionam com o Filho de Deus – como o Verbo se fez carne, e porque desceu até assumir a forma de um servo – são o tema de explicação daquelas pessoas que estão cheias do Espírito Divino.

Segue-se a partir daí necessariamente que eles deveriam instruir os mortais pelo ensinamento divino, quanto às criaturas racionais, as do céu e as mais felizes da terra; e explicar as diferenças entre as almas e a origem dessas diferenças; e então dizer o que é esse mundo, e porque foi criado; e de onde procede a grande e terrível maldade que se estende sobre a terra. Se essa maldade se encontra apenas sobre essa terra, ou se está em outros lugares, esse é um ponto que devemos aprender do ensinamento divino. Pois foi a intenção do Espírito Santo iluminar aqueles ministros santos sobre a verdade no que se refere a esses e outros temas similares.

Em segundo lugar, o objetivo em mente, por amor daqueles que eram incapazes de suportar a fadiga de investigar assuntos tão importantes, foi de envolver e ocultar a doutrina que se relaciona com os objetos antes mencionados em linguagem comum, sob a capa de algumas histórias e narrativas de coisas visíveis. Aqui, portanto, se introduz a narração da criação visível, e da criação e formação do primeiro homem; depois da descendência que seguiu-se a ele em sucessão, e de algumas boas ações feitas pelos bons em sua posteridade; e também se relatam certos crimes cometidos por eles enquanto humanos, de depois se relatam certos fatos impudicos e malvados dos pecadores e dos ímpios.

E o que é mais notável, é que pela história das guerras, dos vencedores e dos vencidos, são dados a conhecer certos mistérios inefáveis aos que sabem investigar declarações desse tipo.

E, mais maravilhoso ainda, as leis da verdades são preditas segundo a legislação escrita, cada uma das quais é tecida pela arte divina da sabedoria, como uma espécie de coberta e véu de verdades espirituais. E isso é o que chamamos de “corpo” da Escritura, para que também, desse modo, o que chamamos de “capa” ou “coberta” da letra, tecida pela arte da sabedoria, possa ser capaz de edificar a muitos, enquanto outros não extrairiam daí nenhum benefício.

16.   O mistério oculto nas narrativas históricas e legislativas

Se a utilidade da legislação e a sequência e beleza da história fossem universalmente evidentes por si, nós seguramente não creríamos que se pudesse entender outra coisa da Escritura que não aquilo que é óbvio, aquilo que está indicado na superfície.

Por essa razão, a sabedoria divina dispôs da introdução de certos obstáculos ou interrupções ao significado histórico, assim como certas impossibilidades e ofensas no meio da lei e da narração; para que desse modo a própria interrupção da narrativa, como pela interposição de um ferrolho, apresentasse um obstáculo ao leitor, pelo qual seria possível negar o reconhecimento do caminho que conduz ao significado ordinário da letra; e para que, sendo assim excluído e retirado dele, pudéssemos recordar o princípio de outro caminho, de modo a que, entrando num caminho estreito – como sendo indigno de Deus segundo a letra – e passando daí a um caminho mais alto e sublime, pudéssemos abrir a imensa amplidão da sabedoria divina.

Não obstante, não deve nos passar desapercebido que o objetivo principal do Espírito Santo é o de conservar a coerência do significado espiritual, seja naquelas coisas que deveriam ser feitas como naquelas que já foram realizadas, encontrando Ele em algum lugar o modo como esses eventos passados, segundo a história, possam ser adaptados a um significado espiritual, compondo uma textura de ambas as classes num estilo de narrativa que sempre vela o significado oculto mais profundamente. E onde a narrativa histórica não pôde ser apropriada à coerência espiritual – o significado místico – dos acontecimentos, Ele inseriu certas coisas que não tiveram lugar, ou que não puderam tê-lo, ou que poderiam ter ocorrido mas não ocorreram.

Às vezes Ele interpolou algumas poucas palavras, que, tomadas em sua acepção literal – o significado “corporal” – parecem incapazes de conter a verdades, e às vezes um número maior.

Encontramos com frequência uma prática similar nas partes legislativas, onde existem muitas coisas evidentemente úteis entre os preceitos “corporais”, e às vezes um grande número no qual nenhum princípio de utilidade é perceptível, e mesmo certas coisas que são consideradas impossíveis. Agora, tudo isso, como comentamos, foi feito pelo Espírito Santo para que, vendo aqueles acontecimentos que estão na superfície que não podem ser verdadeiros ou úteis, possamos ser levados à investigação da verdade que está oculta mais profundamente: a averiguação de um significado digno de Deus naquelas Escrituras que acreditamos terem sido inspiradas por Ele.

17.   A inspiração do Novo Testamento

Não é apenas daquelas Escrituras que foram compostas antes do advento de Cristo que o Espírito Santo trata, senão que, sendo Ele um só e mesmo Espírito, procedente do único Deus, tratou da mesma maneira os evangelistas e os apóstolos. Porque até as narrativas que Ele lhes inspirou para ser escritas não foram compostas sem a ajuda daquela sabedoria sua, cuja natureza já explicamos. Daí também que eles tenham entremeado não poucas coisas por meio das quais a ordem histórica da narrativa é interrompida e rompida, para chamar a atenção do leitor, pela impossibilidade do caso, a examinar o significado interior. Mas, para que nosso significado possa ser verificado pelos próprios fatos, examinemos as passagens da Escritura.

18.   As dificuldades do sentido literal

Pois bem, quem existe, que ore e possua entendimento, que considere apropriada a declaração de que o primeiro dia, o segundo e o terceiro, nos quais são mencionadas a manhã e a noite, tenham existido sem sol, sem lua e sem estrelas, sendo que o primeiro dia, inclusive, sem céu algum? E quem será tão ignorante para supor que Deus, como se fosse um grande lavrador, plantou árvores no paraíso, a leste do Éden, e neste a árvore da vida, isso é, uma árvore de madeira visível e palpável, de tal maneira que qualquer um que pudesse comer-lhe o fruto com seus dentes corporais obteria a vida, e, do mesmo modo, comendo de outra chegaria ao conhecimento do bem e do mal? Ninguém, penso eu, pode duvidar que a afirmação de que Deus andava ao entardecer pelo paraíso, e que Adão se escondeu atrás de um arbusto, é feita em sentido figurado na Escritura, e que algum significado místico pode ser extraído daí. A saída de Caim da presença do Senhor evidentemente fará com que o leitor cuidadoso pergunte no que consiste a presença de Deus, e de que modo alguém pode sair dela.

Para não estendermos a tarefa que temos diante de nós além dos limites devidos, é muito fácil, é muito fácil para quem se compraz em reunir da Santa Escritura aquilo que se registra como tendo acontecido, mas que não se pode considerar razoável e apropriado que tenha se passado segundo o relato histórico. E o mesmo estilo de narrativa escritural acontece abundantemente nos Evangelhos, como quando se diz que o diabo colocou Jesus sobre uma alta montanha para que pudesse lhe mostrar todos os reinos do mundo e sua glória. Como poderia isso ter acontecido literalmente, seja que Jesus fosse conduzido pelo diabo a uma alta montanha, ou que esse lhe mostrasse todos os reinos do mundo – como se estivessem debaixo de seus olhos corporais, adjacentes àquela montanha –, isso é, os reinos, dos persas, citas e hindus? Ou, como poderia mostrar a maneira como os reis desses reinos eram glorificados pelos homens? E muitos casos similares a esses serão encontrados nos Evangelhos por quem os leia com atenção, e será possível observar que aquelas narrativas que parecem ser registradas literalmente são coisas inseridas e entretecidas que não podem ser admitidas historicamente, para que possam ser aceitas em seu significado espiritual.

19.   Incoerências e impossibilidades da lei

Nas passagens que contêm os mandamentos também se encontram coisas similares. Porque na lei se ordena a Moisés que destrua cada varão que não tenha sido circuncidado no oitavo dia, o que é sumamente incoerente, já que seria necessário, se isso se relacionasse com a lei executada segundo a história, ordenar que fossem castigados os pais que não circuncidaram seus filhos, e também as amas encarregadas dos bebês. A declaração da Escritura diz: “E o varão incircunciso que não tenha circuncidado a carne de seu prepúcio será apagado do povo, pois violou o pacto[38]”.

A respeito da famosa observância do sábado, a lei afirma: “E se sentarão, cada qual em sua vivenda; e ninguém se moverá de seu lugar no dia do repouso”, preceito impossível de ser observado literalmente, já que nenhum homem pode passar um dia inteiro sem se mover do lugar onde se sentou.

Agora, os que pertencem à circuncisão, e todos os que creem que a Sagrada Escritura não tem outro significado do que o indicado na letra, consideram que nesses pontos não deve haver nenhuma investigação, e inventam contos vazios e insignificantes sobre o sábado, extraídos de algumas fontes tradicionais e outros lugares, alegando que o lugar de cada um é calculado dentro de dois mil cúbitos[39]. Outros, dentre os quais está Dositeu o Samaritano, censuram as exposições desse tipo, mas eles próprios colocam algo mais ridículo, a saber, que cada qual deve permanecer até a tarde na postura, lugar e posição em que se encontrava no dia do repouso; isso é, se estava sentado, deve permanecer sentado o dia todo, ou, se reclinado, estar reclinado o dia inteiro. Ademais, a prescrição seguinte: “Não levarás nenhuma carga no dia do repouso”, me parece uma impossibilidade. Os doutores judeus, em consequência dessas prescrições, se dedicaram, como o santo Apóstolo, a fábulas intermináveis, dizendo que não seria considerado uma carga se um homem usasse sapatos sem cravos, mas seria uma carga um sapato com cravos; e que, se alguém leva uma carga sobre um ombro, se considera uma carga, mas se for sobre os dois ombros, não é carga nenhuma.

20.   O absurdo do sentido literal

Se fizermos um exame similar dos Evangelhos, como não poderá parecer absurdo tomar literalmente a ordem: “Não saúdem ninguém pelo caminho[40]”? Mesmo assim, existem pessoas que pensam que nosso Salvador seu esse mandamento aos seus apóstolos! Como pode ser possível que se observe semelhante ordem, junto com aquelas que proíbe levar mantos e calçado, especialmente em países com inverno rigoroso, com gelo e neve? E essa outra: quando alguém te ferir na face direita, oferece também a esquerda[41], já que quem golpeia com a mão direita fere a face esquerda. Esse outro preceito do Evangelho também deve ser contado entre as impossibilidades: “se teu olho direito for para ti ocasião de queda, arranca-o e atira-o para longe de ti[42]”, porque, ainda que fôssemos supor que se refere ao olho corporal, como poderia ser apropriado, já que ambos os olhos têm a propriedade da visão, que a responsabilidade da “ofensa” recaia sobre um só, o direito?

O objeto de todas essas afirmações, de nossa parte, consiste em mostrar que o desígnio do Espírito Santo, que se dignou conceder-nos as Sagradas Escrituras, não é o de nos edificar apenas mediante a letra, ou por algo contido nela, coisa que é frequentemente impossível e inconsistente, porque dessa forma seus resultados seriam não só absurdos, como verdadeiras impossibilidades. Portanto, devemos entender que certas ocorrências foram entremeadas na história “visível”, as quais, quando consideradas e entendidas em seu significado interior, expressam uma lei que é benéfica para os homens e digna de Deus.

21.   A realidade da história sagrada

Ademais, que ninguém abrigue a suspeita de que nós acreditamos que nenhuma história das Escrituras seja real, apenas porque suspeitamos que alguns dos eventos relatados não tenham acontecido, ou que os preceitos da lei não devam ser tomados literalmente por considerarmos que alguns deles, pela natureza ou a possibilidade do caso, são impossíveis de serem observados, ou que cremos que as profecias que foram escritas sobre o Salvador não se cumpriram de forma palpável aos sentidos, ou que seus mandamentos não devam ser obedecidos de maneira literal.

Temos, portanto, que afirmar em resposta – já que manifestamente somos dessa opinião – que a verdade da história pode e deve ser preservada na maioria dos casos. Porque, quem poderá negar que Abrahão foi enterrado numa cova em Hebron, assim como Isaac e Jacó, cada qual com sua esposa? Ou quem há de duvidar que Siquém foi dada como uma porção a José? Ou que Jerusalém seja a metrópole da Judeia, ode foi construído o templo de Salomão? Como esses, existem inumeráveis outros exemplos.

As passagens históricas são muito mais numerosas do que aquelas que contêm um significado puramente espiritual. Portanto, quem poderá sustentar que o mandamento “Honrarás teu pai e tua mãe”, não seja suficiente por si só, sem que precise haver um significado espiritual além do que o que é necessário aos que o guardam? Especialmente quando o apóstolo Paulo confirma esse mandamento, repetindo-o com as mesmas palavras. Isso para não falarmos de proibições como “não cometerás adultério”, “não roubarás”, “não prestarás falso testemunho”, e outros do mesmo tipo.

Com respeito aos preceitos dados nos Evangelhos, não cabe dúvida que muitos deles devem ser observados literalmente, como, por exemplo, quando o Senhor diz: “Eu vos digo: não jureis de maneira nenhuma[43]”. E quando diz: “Quem quer que olhe para uma mulher para cobiçá-la, já adulterou com ela em seu coração[44]”. Essas admoestações também se encontram nos escritos do apóstolo Paulo: “Também vos rogamos, irmãos, que admoesteis aos que andam desordenadamente, que consoleis os que têm pouco ânimo, que suporteis dos fracos, que sejais pacientes para com todos[45]”, e muitas outras. E ainda assim, não tenho dúvidas de que um leitor atento não ficará indeciso de tal ou qual preceito deva ser observado segundo a letra ou não. Portanto, é preciso dedicar muito trabalho e fadiga até que cada leitor entenda reverentemente que está tratando com palavras divinas e não humanas, inseridas nos livros sagrados.

22.   Princípios de interpretação

O entendimento da Santa Escritura que nós consideramos que deve ser observado e mantido consistentemente, é o seguinte. Certa nação é chamada pela Santa Escritura de “povo eleito por Deus sobre a terra”; essa nação recebeu vários nomes, porque às vezes a totalidade dela foi chamada de Israel, às vezes Jacó; e ela foi dividida por Jeroboão, filho de Nebat, em duas partes, e as dez tribos que se formaram foram chamadas de Israel, enquanto que as duas restantes (às quais estavam unidas a tribo de Levi e a que descendia da família real de Davi) foram chamadas de Judá. A totalidade do país possuído por essa nação, que havia recebido de Deus, foi chamada de Judéia, onde estava localizada a cidade de Jerusalém, que foi chamada de metrópole, por ter sido a mãe de muitas cidades. Todos esses são mencionados com frequência aqui e ali nos livros da Escritura, e são postos juntos numa lista no livro de Josué, filho de Nun.

Sendo essa a natureza do caso, o santo Apóstolo, desejando elevar e levantar nosso entendimento acima da terra, diz a certa altura: “Vede Israel segundo a carne[46]”, com o que ele quer certamente dizer que existe outro Israel que não é segundo a carne, mas segundo o Espírito, coisa que ele reforça em outra passagem: “Nem todos os que são de Israel são israelitas[47]”.

23.   O Israel espiritual e o carnal

Tendo sido ensinado por ele, então, que existem um Israel segundo a carne e outro segundo o Espírito, quando o Salvador diz: “Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel[48]”, não entendemos essas palavras como aqueles que se apegam às coisas terrenas, ou seja, os ebionitas (que derivam sua denominação de “pobres”, porque Ebion significa “pobres” em hebraico), mas entendemos que existe uma raça de almas que é chamada de “Israel”, como o indica a interpretação desse próprio nome: porque Israel se interpreta como “mente”, ou “homem que vê a Deus”.

O Apóstolo faz uma revelação similar a respeito de Jerusalém, dizendo: “Mas a Jerusalém do alto é livre, e ela é a mãe de todos nós[49]”. Em outra de suas epístolas, ele diz: “Chegastes ao monte de Sião e à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celeste, e à companhia de muitos milhares de anjos, e à congregação dos primogênitos que estão inscritos nos céus[50]”. Portanto, se existem almas nesse mundo chamadas de Israel, e uma cidade nos céus denominada Jerusalém, deduz-se que as cidades mencionadas como pertencentes a nação de Israel têm a Jerusalém celestial como metrópole, e entendemos isso como se referindo à totalidade de Judá – a qual também opinamos ter sido referida pelos profetas em certas narrativas místicas – e a quaisquer predições dadas sobre a Judeia ou Jerusalém, ou a invasões de qualquer tipo que a história sagrada declara ter ocorrido na Judeia ou em Jerusalém. Qualquer coisa que se narre ou prediga de Jerusalém deve, se aceitarmos as palavras de Paulo como próprias de Cristo falando por ele, ser entendida como tendo sido pronunciadas em conformidade com sua opinião no tocante à cidade que ele chama de Jerusalém celeste, bem como todos os lugares ou cidades que são descritos como sendo da terra santa, da qual Jerusalém é a metrópole. Porque devemos supor que são essas cidades aquelas que o Salvador, desejando elevar-nos a um grau maior de inteligência, prometeu aos que administraram bem o dinheiro confiado a eles por Ele, de modo a que terão poder sobre cinco ou dez cidades[51].

Se as profecias dadas a respeito da Judeia e Jerusalém, Judá, Israel e Jacó, não forem entendidas no sentido carnal, mas como significando certos mistérios divinos, certamente o mesmo se aplicará às profecias que foram ditas sobre o Egito e os egípcios, como as setenta almas que marcharam ao Egito, e que nessa terra se converteram numa multidão tão grande quanto as estrelas do céu. Mas, como nem todas se tornaram a luz desse mundo – porque nem todos os israelitas são de Israel – cresceram de setenta almas até um povo importante, incontável como a areia do mar.

24.   O tesouro oculto e escondido da Escritura

Talvez, como os que aqui morrem segundo a morte comum a todos, em consequência das obras realizadas aqui, ordenadas para a obtenção de diferentes lugares na proporção de seus pecados (se forem considerados dignos desse lugar chamado Hades), todos os que aí morrem, dissemos, descem, por assim dizer, ao Hades, onde serão julgados merecedores de diferentes moradas – melhores ou piores – em todo o espaço da terra, e irão descender de pais de diferentes classes, de modo que um israelita pode às vezes cair entre os citas, e um egípcio descender da Judeia. Assim é que o Salvador veio reunir as ovelhas perdidas da casa de Israel, mas muitos dos israelitas não aceitaram seu ensinamento, enquanto que muitos gentios foram chamados ao Evangelho. Daí se deduz que as profecias referentes às nações individuais deveriam se referir às almas e às suas diferentes moradas celestiais.

A narrativa dos eventos que ocorreram à nação de Israel, ou Jerusalém, ou Judeia, quando foram assaltados por essa ou aquela nação, não poder ser entendida, em muitos casos, como tendo realmente ocorrido, e são mais apropriadas a essas nações de almas que habitam esse céu do qual se diz que passará.

Se alguém pedir de nós afirmações claras e evidentes da Santa Escritura a respeito desses pontos, teremos que responder que foi o desígnio do Espírito Santo – nas partes que parecem relatar a história de certos acontecimentos – cobrir ou ocultar seu significado. Por exemplo, onde se diz que desceram ao Egito, ou que foram levados em cativeiro à Babilônia, e quando se diz que nesses países muitos sofreram humilhações e foram submetidos à escravidão por seus senhores, enquanto que outros, nos mesmos países do cativeiro, foram tido em honra e estima, a ponto de ocupar altos cargos de poder, sendo designados como governadores de províncias; todas essas coisas, como dissemos, são mantidas ocultas e cobertas pelas narrações da Santa Escritura, porque ademais “o reino dos céus é semelhante a um tesouro escondido no campo; se um homem o descobre, feliz com a descoberta, vende tudo o que possui e adquire aquele campo[52]”. Com essa comparação consideramos se não é melhor entender que o solo e a superfície da Escritura – isso é, seu sentido literal – constituem o campo, cheio de plantas de flores de toda espécie, enquanto que o significado “espiritual”, enterrado e profundo, é o tesouro escondido da sabedoria e do conhecimento, que é chamado pelo Espírito Santo em Isaías de “tesouros escondidos e segredos muito bem guardados[53]”, sendo necessária a ajuda divina para encontrá-los, porque somente Deus pode descerrar as portas de bronze que os mantêm fechados e ocultos, e quebrar os cadeados de ferro quem impedem o acesso às coisas que estão escritas e ocultas no Gênesis, a respeito das diferentes classes de almas e dessas sementes e gerações que possuem uma conexão direta com Israel, ou que estão totalmente separadas de seus descendentes, bem como a respeito dessa descida.

25.   O sentido místico do povo de Israel no deserto

A descida dos santos primeiros pais ao Egito aparece como tendo sido concedida a esse mundo pela providência de Deus para a iluminação de outros, e para a instrução da raça humana, e por isso significa – penso eu – que eles poderão assistir aos demais com o trabalho de esclarecimento. Porque a eles foi primeiramente concedido o privilégio de conversar com Deus, porque a sua raça era a única da qual se diz que vê a Deus; esse é o significado, por interpretação, da palavra “Israel[54]”. Daí segue-se que, conforme essa opinião, deve-se aceitar e explicar a declaração de que o Egito foi castigado com dez pragas, para permitir a saída do povo de Deus, ou a narrativa do que fez o povo no deserto, ou a construção do tabernáculo mediante as contribuições de todo o povo, ou as vestes dos trajes sacerdotais, ou os vasos do serviço público (porque, como está escrito, eles contêm realmente dentro de si “a sombra e a forma das coisas divinas”, conforme disse Paulo abertamente, que “eles servem de esboço e sombra das coisas divinas[55]”).

Na mesma lei, ademais, estão contidos preceitos e instruções, de acordo com os quais devem os homens viver na terra santa. Também foram lançadas ameaças para impedir a transgressão da lei, e foram prescritas diferentes classes de purificação para os que a requerem, tratando-se de pessoas susceptíveis de contaminação frequente, para que através dessas purificações possam chegar àquela purificação depois da qual já não existe mais contaminação.

O mesmo povo foi contado, ainda que não todos, porque as almas dos filhos não eram ainda suficientemente velhas para ser numeradas segundo o mandato divino; também não foram contadas aquelas almas que não podem se converter em líderes de outras, mas que permanecem subordinadas a outras como a uma cabeça, e que são chamadas de “mulheres”, e que certamente não estão incluídas naquela numeração imposta por Deus. Só são contadas as almas chamadas de “homens”, e com isso pode-se mostrar que as mulheres não podiam ser contadas separadamente, mas que foram incluídas nos chamados “homens”. Essas almas pertencem especialmente ao número sagrado preparado para ir à frente nas batalhas dos israelitas, capazes de lutar contra os inimigos públicos e privados, que o Pai sujeitou ao Filho assentado à sua direita, para que possa destruir todo principado e poder, por meio dessas fileiras de soldados que estão em guerra por Deus e que não se enredam em assuntos seculares. Só o Filho pode derrotar o reino de seu adversário; por ele são portam seus soldados os escudos da fé, e brandem as armas da sabedoria, lançando faíscas de salvação com seus elmos e couraças resplendentes que fortificam seu peito cheio de Deus. Esses soldados me parece estarem indicados e preparados para as guerras desse tipo, naquelas pessoas que nos livros sagrados recebem a ordem de ser contados pelo mandamento de Deus. Mas dessas, de longe os mais perfeitos e distinguidos são os que até os fios de seus cabelos foram contados; aqueles cujos corpos caíram no deserto e foram castigados por seus pecados parecem assemelhar-se aos que, tendo feito não pequeno progresso não puderam, por vários motivos, alcançar o final da perfeição, porque se relata que murmuraram ou que adoraram ídolos, ou cometeram fornicação, ou alguma outra má obra que nem a mente pode conceber.

Considero também que não pode carecer de sentido místico o seguinte, a saber, que certos israelitas, que possuíam muitos rebanhos e animais, tomaram posse por antecipado do país adaptado para pasto e alimento de seu gado, que foi a primeira coisa que a mão direita dos hebreus assegurou com a guerra. Porque, tendo feito uma petição a Moisés para receber essa região[56], eles foram separados pelas águas do Jordão e separados de qualquer possessão na terra santa. E esse Jordão, segundo a forma das coisas celestiais, pode parecer a água que irriga as almas sedentas e os sentidos que lhes são adjacentes. Em conexão com isso, a declaração de Moisés não parece supérflua, de que Moisés em verdade ouviu de Deus o que está descrito no Livro do Levítico, enquanto que no Deuteronômio foi o povo que ouviu de Moisés, aprendendo dele o que não podiam ouvir de Deus. Como o Deuteronômio é chamado de segunda lei, parece a alguns que signifique isso, a saber, que quando chegou ao fim a primeira lei dada por Moisés, parece ter sido promulgada uma segunda legislação, especialmente transmitida por Moisés ao seu sucessor Josué, a qual, certamente (como se crê) prefigura o tipo de nosso Salvador, por cuja segunda lei – isso é, os preceitos do Evangelho – todas as coisas são levadas à perfeição.

26.   As duas vindas de Cristo no Deuteronômio

Temos que ver, não obstante, se não pode esse significado mais profundo estar indicado, talvez, pelo fato de que no Deuteronômio a legislação é dada a conhecer com maior clareza e distinção do que nos livros que foram escritos primeiro, de modo que se pode assinalar também que, depois do advento do Salvador, que Ele realizou em estado de humilhação ao assumir a forma do servo, seguir-se-á o segundo advento mais famoso e renomado na glória de Seu Pai, no qual poderão se cumprir os tipos do Deuteronômio, quando no reino doe céus todos os santos viverão segundo as leis do Evangelho eterno.

E assim como na sua vinda se cumpriu a lei que era uma sombra das coisas boas por vir, também por seu futuro advento glorioso serão realizadas e levadas à perfeição as sombras do advento presente. Porque assim falou o profeta: “O sopro de nossas narinas, o Ungido do Senhor, de quem havíamos dito: à sua sombra teremos vida entre os povos[57]”, a respeito do dia em que Ele irá transferir dignamente a todos os santos, do Evangelho temporal ao eterno, segundo a designação usada por João no Apocalipse[58].

27.   As Inescrutáveis riquezas de Deus

Mas talvez seja suficiente para nós, em todos esses assuntos, adaptar nosso entendimento à regra da religião, e assim pensar as palavras do Espírito Santo não como uma composição adornada de frágil eloquência humana, mas sustentar, de acordo com a declaração bíblica, que “toda a glória do rei vem de dentro[59]”. O tesouro do significado divino está encerrado dentro do agitado vaso da letra comum. E, se algum leitor curioso queria ainda pedir uma explicação sobre pontos específicos, deixemos que venha e ouça conosco como o apóstolo Paulo, buscando penetrar com a ajuda do Espírito Santo – que escrutina mesmo o mais profundo de Deus[60] – as profundidades da sabedoria divina e do conhecimento, e sendo ainda assim incapaz de alcançar o final e chegar a um conhecimento cuidadoso, exclama com desespero e assombro: “Oh, profundidades das riquezas da sabedoria e da ciência de Deus![61]”. Ele não disse que os juízos de Deus são difíceis de descobrir, mas que são totalmente inescrutáveis; nem que sejam difíceis de traçar, mas que está mais além de toda averiguação. Porque, por muito que um homem possa avançar em suas investigações, e por maior que seja o progresso que possa fazer mediante um estudo constante, mesmo assistido pela graça de Deus e tendo a mente iluminada, ele não será capaz de alcançar o final daquelas coisas que são objeto de suas perguntas.

28.   O caráter progressivo do conhecimento e do mistério

Nenhuma mente criada por considerar que seja possível obter de modo algum uma compreensão total das coisas, senão que, depois de ter descoberto certos objetos de sua investigação, volta a ver outros que devem ainda ser buscados. E ainda que tenha êxito em dominar a esses, verá a seguir muitos outros que se seguem e que são ainda objeto da mesma investigação. Por essa razão, Salomão, o mais sábio dos homens, contemplando com sua sabedoria a natureza das coisas, disse: “A todas essas coisas experimentei com sabedoria, dizendo: Hei de me tornar sábio; mas ela se afastou de mim, e de foi longe; quem poderá encontrar o mais profundo?[62]”.

Também Isaías, sabendo que os princípios das coisas não podem ser descobertos pela natureza corporal, nem pelas naturezas que, ainda que mais divinas do que humanas, foram entretanto criadas ou formadas, sabendo, pois, que por nenhuma dessas é possível que se descubra o princípio e o final, disse: “Trazei-nos, e anunciai-nos o que há de vir; dizei-nos o que se passou desde o princípio, e colocaremos aí nosso coração; fazei-nos saber também dos últimos tempos, e entender o que há de vir. Trazei-nos novas do que há de ser depois, para que saibamos que sois deuses; fazei-nos o bem ou o mal, para que tenhamos o que contar, e nos maravilhemos[63]”.

Meu mestre hebreu também usou isso para nos ensinar que, como o princípio e o fim não podem ser conhecidos por ninguém, exceto por nosso Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito Santo, sendo assim, soba forma de uma visão Isaías falou apenas dos serafins, que com duas asas cobrem o semblante de Deus, com outras duas seus pés, e com duas voam, chamando uns aos outros e dizendo: “Santo, santo, santo é o Senhor, Deus de Sabaó; os céus e a terra estão cheios de Sua glória[64]”. Que os serafins cubram com suas asas o rosto e os pés de Deus, nos arriscaremos a declarar seu significado como sendo que nem sequer as hostes dos santos anjos, nem os “tronos”, nem os “domínios”, nem os “principados”, nem as “potestades”, são capazes de entender totalmente o princípio das coisas e os limites do universo.

Devemos entender que aqueles “santos” arrolados pelo Espírito Santo, e as “virtudes”, se aproximam estreitamente dos mesmos princípios, e alcançam uma altura que outros não podem alcançar; e ainda assim, quaisquer que sejam as coisas que as “virtudes” possam ter aprendido pela revelação do Filho de Deus e o Espírito Santo – e, seguramente, elas são capazes de aprender muitíssimo, e os de classe superior ainda mais que os de classe inferior – é ainda impossível para elas compreender todas as coisas, conforme a declaração: “A maioria de suas obras são feitas em segredo[65]”. Portanto, é desejável que cada qual, na medida de suas forças, prossiga adiante, esquecendo o que ficou para trás, para realizar melhores obras e uma apreensão mais clara e um melhor entendimento de tudo, por meio de Jesus Cristo nosso Salvador, a que se deve toda glória pelos séculos dos séculos.

29.   A questão das “substâncias” e da Trindade

Que quem se interesse pela verdade não se preocupe muito com as palavras e a linguagem, visto que em cada nação prevalece um uso diferente do idioma, mas que dirija sua atenção ao significado apontado pelas palavras, mais do que à natureza das palavras que trazem tais significados, sobretudo em assuntos de grande importância e dificuldade, como, por exemplo, quando o objeto de investigação é sobre se existe alguma “substância” na qual nem a forma, nem a cor, nem o tato, nem a magnitude devam ser entendidas como existindo visivelmente apenas para a mente (que cada qual denomina como lhe agrade); os gregos a denominam asoomaton, isso é, “incorpóreo”, enquanto que a Escritura Santa declara que se trata do “invisível”, porque Paulo chama a Cristo de “a imagem do Deus invisível”, e diz que por Cristo foram criadas todas as coisas “visíveis e invisíveis[66]”. Mediante isso se declara que existem, entre as coisas criadas, certas “substâncias” que são, segundo sua natureza peculiar, invisíveis. Porém, ainda que não sejam “corpóreas” em si mesmas, utilizam corpos, sendo ao mesmo tempo melhores do que as substâncias corporais.

Mas a “substância” da Trindade, que é o princípio e a causa de todas as coisas, da qual saíram todas as coisas – “porque por Ele foram criadas todas as coisas, e todas as coisas subsistem[67]” – não se pode crer que seja um corpo ou que esteja num corpo, mas que é totalmente incorpórea.

Mas por ora, seja suficiente o que foi dito brevemente até aqui sobre esses pontos – ainda que numa digressão causada pela natureza do tema – para mostrar que existem certas coisas cujo significado não pode ser revelado a todos mediante palavras da linguagem humana, mas que são dadas a conhecer mediante a simples apreensão, mais do que por qualquer propriedade das palavras. E sob essa regra deve também ser considerado o entendimento da Escritura Sagrada, para que suas declarações possam ser julgadas não segundo a indignidade da letra, mas segundo a divindade do Espírito Santo, por cuja inspiração ela foi escrita.



2
RECAPITULAÇÃO: DO PAI, DO FILHO E DO ESPÍRITO SANTO,
E DE OUTRAS COISAS QUE NÃO FORAM DITAS ANTES

1.       A eternidade do Filho

Agora é o momento, segundo a medida de nossa capacidade, de recapitularmos por via de um resumo, o q eu dissemos em lugares diferentes sobre pontos específicos, e antes de tudo recolocar nossas conclusões quanto ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.

Tendo em vista que Deus Pai é invisível e inseparável do Filho, que o Filho não foi gerado por Ele por “produção” (como creem alguns), se o Filho fosse uma produção e nascesse Dele como as criaturas dos animais, forçosamente seriam um corpo, tanto o que produz quanto o que foi produzido.

Por conseguinte não dizemos, como creem os hereges, que uma parte da substância de Deus se tenha convertido na substância do Filho, nem que o Filho foi criado pelo Pai a partir do nada, isso é, fora de sua própria substância (de sorte que haveria um tempo no qual Ele não teria existido), senão que, prescindindo de todo sentido corpóreo no indivisível e no incorpóreo, dizemos que o Verbo e a sabedoria foram gerados sem paixão corporal alguma, do mesmo modo como a vontade procede da mente. Mas além disso, João indica que Deus é luz[68], e Paulo que o Filho é o resplendor da Luz eterna[69]. Logo, assim como nunca pode haver luz sem esplendor, tampouco se pode entender o Pai sem o Filho, chamando-se a esse “imagem mesma de Sua substância[70]”, daquele Verbo e Sabedoria Seus. Como, pois, se pode dizer que houve um tempo em que o Filho não tenha existido? Porque dizer isso equivale a afirmar que houve um tempo em que não existia a verdade, em que não existia a sabedoria, em que não existia vida, sendo que nessas coisas se estima que consiste de modo perfeito a substância do Pai e, com efeito, essas coisas jamais podem ser separadas Dele ou de sua substância, coisas que embora possam parecer múltiplas no intelecto, são, em realidade e em sua substancia uma só, estando nelas a plenitude da divindade.

Não obstante, mesmo isso que dissemos (que nunca houve um tempo quando não existiu), deve ser ouvido com perdão da expressão, porque os termos “nunca” e “quando” têm por si um sentido temporal, e tudo o que se diz do Pai, bem como do Filho e do Espírito Santo, deve ser entendido como estando acima do tempo, de todos os séculos e de toda eternidade. Porque somente essa Trindade excede a todo sentido da inteligência, não apenas temporal, como também eterna, enquanto que tudo o que existe fora da trindade pode ser medido em séculos e tempos. Assim sendo, esse Filho de Deus, enquanto Verbo de Deus que estava no princípio com Deus, dele ninguém crerá que esteja contido em parte alguma, nem enquanto sabedoria, nem enquanto verdade, nem enquanto vida, ou justiça, santificação ou redenção; pois nenhuma dessas coisas necessita de um lugar para atuar ou operar, entendendo-se assim somente a respeito dos que participam dessa virtude ou operação.

2.       Cristo formado nos fieis

E se alguém disser que, por intermédio daqueles que participam do Verbo de Deus, ou de Sua sabedoria, ou de Sua verdade, ou de Sua vida, o próprio Verbo e sabedoria de Deus parece estar em um lugar, devemos responder que não há dúvida de que Cristo, enquanto Verbo, sabedoria e todo o demais, estava em Paulo como este dizia: “Buscai uma prova de que Cristo fala em mim[71]”, e também: “Já não vivo eu, mas Cristo vive em mim[72]”. E, estando em Paulo, quem duvidará que estava igualmente em Pedro e João, e em cada um dos santos, e não só nos que estão na terra, como também nos que estão no céu? Porque é absurdo dizer que Cristo estava em Pedro e Paulo, mas não no arcanjo Miguel, ou em Gabriel. Daí se deduz claramente que a divindade do Filho de Deus não estava encerrada em lugar algum; caso contrário, teria estado apenas em um e não em outro; mas, de acordo com a majestade da natureza incorpórea, não estando encerrado em nenhum lugar, está implícito que tampouco falta em parte alguma, com essa única limitação, de que, ainda que esteja em muitos, como dissemos – em Pedro, Paulo, Miguel ou Gabriel – não está, porém, da mesma maneira em todos. Com efeito, Ele está de uma forma mais plena e mais clara, e, por assim dizer, mais abertamente, nos arcanjos do que nos demais homens santos. E isso fica evidente pela declaração de que os santos, quando alcançam a mais alta perfeição, se tornam semelhantes aos anjos, conforme a frase do Evangelho[73], donde se conclui que Cristo se forma em cada um na medida em que o permitam seus méritos.

3.       A obra e a encarnação do Filho

Expostas brevemente essas questões acerca da Trindade, devemos considerar em seguida, brevemente também, aquilo que se diz sobre tudo ter sido feito pelo Filho: “Todas as coisas do céu e da terra, as visíveis e as invisíveis, os tronos, as dominações, os principados, as potestades, tudo foi criado por Ele e para Ele. E Ele existe antes de todas as coisas, e todas as coisas Nele subsistem, e Ele é a cabeça[74]”. Com isso concorda o que diz João no Evangelho: “Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito teria sido feito[75]”. E Davi, assinalando o mistério da Trindade inteira na criação do universo, diz: “Pela Palavra do Senhor foram feitos os céus, e todo o exército deles pelo Espírito de sua boca[76]”.

Depois desses pontos, devemos considerar apropriadamente a vinda corporal e a encarnação do Filho Unigênito de Deus, na qual não devemos crer que a majestade de toda Sua divindade foi encerrada na prisão de um corpo limitadíssimo, de tal sorte que todo o Verbo de Deus, Sua sabedoria, Sua verdade substancial e Sua vida tivessem sido arrancadas do Pai, ou constrangidas e circunscritas dentro da estreiteza desse corpo, sem que pudesse opera em qualquer outro lugar, senão que, entre um e outro extremo o reconhecimento cauteloso da piedade deve ser de tal natureza que se creia que a Cristo nada faltou da divindade, nem se pense que alguma divisão tenha sido feita em relação à substância do Pai, que está em todas as partes. É algo assim que João Batista indica ao falar à multidão, estando Jesus corporalmente ausente: “No meio de vós está alguém a quem não conheceis, que veio depois de mim, de quem não sou digno de desatar a correia da sandália[77]”, pois não se poderia dizer, certamente, Daquele que se achava ausente do ponto de vista de sua presença corporal, que o Filho de Deus se achava no meio daqueles entre os quais não se achava corporalmente.

4.       Não existem partes em Cristo

Que ninguém creia, entretanto, que nós afirmamos com isso que uma parte da divindade do Filho de Deus estava em Cristo e o resto em outro lugar, ou em todas as partes, coisa que só podem crer os que desconhecem a natureza da substância incorpórea e invisível. Com efeito, é impossível falar de partes quando se trata do incorpóreo, ou fazer qualquer tipo de divisão, senão que ele está em todas as coisas, por todas as coisas e sobre todas as coisas, do modo como dissemos antes, isso é, como se entende a sabedoria, ou o Verbo, ou a vida, ou a verdade, modo de entender que exclui, sem dúvida, toda e qualquer limitação local.

5.       Cristo assumiu um corpo e uma alma humana

Querendo pois, o Filho de Deus, que deseja a salvação do gênero humano, aparecer aos homens e conversar com eles, tomou não apenas um corpo humano, como alguns creem, mas também uma alma humana, semelhante por natureza às nossas almas, mas por seu propósito e sua virtude semelhante a Ele, e tal que pudesse cumprir indefectivelmente todos os desejos e disposições do Verbo. Que Ele teve uma alma fica manifestamente indicado pelo que o próprio Salvador no Evangelho, ao dizer: “Ninguém tora minha alma, mas eu mesmo a dou. Tenho poder para dá-la e poder para tomá-la[78]”, e também: “Minha alma está triste até a morte[79]”, e ainda: “Agora minha alma está perturbada[80]”. Não se deve entender que a alma triste e perturbada seja o Verbo de Deus, que disse, com sua autoridade de divindade: “tenho poder para dar minha alma”; tampouco se diz que o Filho de Deus esteve naquela alma do mesmo modo como esteve na alma de Paulo, ou de Pedro, ou dos demais santos nos quais se crê que Cristo fala do mesmo modo como em Paulo; de todos esses devemos crer no que disse a Escritura, segundo a qual ninguém está livre de maldade, ainda que sua vida dure um só dia. Por seu vez, a alma que esteve em Jesus, antes de conhecer o mal, elegeu o bem[81], e “porque amou a justiça e odiou a iniquidade, Deus a ungiu com o óleo da alegria mais do que a seus companheiros[82]”. Assim, pois, ela foi ungida com o óleo da alegria quando, em virtude de uma associação imaculada, uniu-se ao Verbo de Deus; e por esse motivo, somente ela, dentre todas as almas, foi incapaz de pecado, porque foi perfeitamente capaz do Filho de Deus. Por isso também ela constitui uma só coisa com Ele, e ao mesmo tempo em que recebe os nomes do Verbo, se chama Jesus Cristo, por quem se diz que todas as coisas foram feitas.

E creio que é dessa alma, que havia acolhido em si a sabedoria, a verdade e a vida de Deus, que falou o Apóstolo, ao dizer: “Vossa vida está oculta com Cristo em Deus. Quando Cristo, vossa vida, se manifestar, também vós vos manifestareis com Ele em glória[83]”. Pois o que mais havemos de entender aqui como Cristo – de quem se diz que está oculto em Deus e que depois se manifestará – senão Aquele de quem se diz que foi ungido com o óleo da alegria, isso é, que está substancialmente cheio de Deus, no qual se encontra por ora oculto? Porque é por essa razão que Cristo é proposto como exemplo para todos os fiéis, para que, assim como Ele sempre (e antes de cometer qualquer mal) elegeu o bem e amou a justiça e odiou a iniquidade – e por isso foi ungido por Deus com o óleo da alegria – assim também cada um de nós, depois de sua queda ou de seu erro, deve se limpar de suas manchas, pois lhe foi proposto um exemplo, e que a seguir empreenda o caminho árduo da virtude tendo um guia em sua rota, a fim de que assim, por esse meio e na medida em que isso pode ser alcançado por sua imitação, sejamos feitos partícipes da natureza divina, como está escrito: “Quem diz que permanece Nele deve nadar como Ele andou[84]”.

Por conseguinte, esse Verbo e essa sabedoria pela qual somos chamados de sábios ou racionais, se torna tudo em todos para ganhar a todos; se faz débil para os fracos, para ganhar os fracos, e pelo fato de se fazer fraco se diz dele: “Ainda que crucificado em sua fraqueza vive pelo poder de Deus[85]”. E as coríntios, que eram fracos, declara Paulo que ele não conhece senão Jesus Cristo, e este, crucificado[86].

6.       Participantes da Trindade

Alguns opinam que dessa mesma alma, quando tomou corpo a partir de Maria, se diz o que disse o Apóstolo: “Quem, sendo Deus na forma, não reputou como invejável tesouro manter-se igual a Deus, antes se apequenou, tomando a forma de servo[87]”, e que, sem dúvida, foi restabelecida na forma de Deus de modo mais exemplar e devolvida à plenitude da qual havia se esvaziado.

E como pela participação no Filho de Deus somos adotados como filhos, e pela participação na sabedoria de Deus somos feitos santos, também pela participação no Espírito Santo somos tornados santos e espirituais. Pois é uma só e mesma coisa participar do Espírito Santo e participar do Pai e do Filho, posto que a Trindade tem uma só natureza incorpórea. E o mesmo que dissemos da participação da alma, devemos entender também das almas do anjos e das virtudes celestes, já que toda criatura racional tem necessidade da participação da Trindade.

Sobre a índole do mundo visível, questão que costuma ser muito discutida, já discorri anteriormente, na medida de minha capacidade, tanto para os que costumam buscar também em nossa fé razões para crer, como também para os que suscitam contra nós controvérsias heréticas, trazendo à baila com muita frequência o nome de “matéria”, que nem sequer chegaram a entender. Sobre esse ponto creio conveniente tratar agora rapidamente.

7.       A natureza da matéria

Em primeiro lugar, é preciso notar que até agora não encontramos em nenhuma passagem das Escrituras canônicas o nome de “matéria” para designar a substância que se encontra na base dos corpos. Porque na passagem de Isaías: “e Ele consumirá seus espinhos como o feno[88]”, onde aparece a palavra hyle, isso é, matéria, o termo matéria foi usado em lugar de “pecados”. E, se em algum outro lugar se encontra por casualidade esse nome de “matéria”, em nenhum, em minha opinião, se encontrará que significa isso de que agora tratamos, a não ser unicamente no livro da Sabedoria, que é atribuído a Salomão, livro ao qual, certamente, nem todos concedem autoridade. Ali, não obstante, encontramos o seguinte: “Pois não era difícil à Tua mão onipotente, que criou o mundo da matéria informe, enviar-lhes uma multidão de ursos ou de ferozes leões[89]”.

Muitos creem, sem dúvida, que existe uma alusão à própria matéria das coisas naquilo que está escrito por Moisés no princípio do Gênesis: “No princípio criou Deus os céus e a terra. E a terra estava informe e vazia[90]”, parecendo-lhes que com a expressão “terra informe e vazia”, Moisés não indica outra coisa do que a matéria informe. Mas, se for verdadeiramente essa matéria, conclui-se daí que os princípios dos corpos não são incapazes de mudança, pois aqueles que puseram como princípio das coisas corporais, seja os átomos e o indivisível, seja algo que possa ser dividido em partes iguais, seja um elemento qualquer, não puderam colocar entre esses princípios o nome de matéria com o significado principal de matéria. Já que, ao colocar a matéria na base de todo corpo (refiro-me à matéria entendida como uma substância que pode ser convertida em todas as coisas, mutável e divisível), abstraem suas qualidades e a colocam essa matéria em si naquela base. Com isso concordamos nós, que negamos que se deva dizer que a matéria seja ingênita ou incriada em cada gênero, como mostramos anteriormente, na medida do possível, ao demonstrar que também da água, da terra, do ar e do calor as diversas espécies de árvores extraem seus frutos, ou quando ensinamos que o fogo, o ar, a água e a terra mudam alternadamente, resolvendo-se cada elemento no outro em virtude de certa consanguinidade mútua; ou quando provamos que dos alimentos resulta a substância da carne dos homens e dos animais, ou que a umidade do germe natural se converte e carne sólida e ossos. Tudo isso é uma prova de que a substância corporal é mutável e que de qualquer qualidade pode chegar a qualquer outra.

8.       A matéria e suas qualidades

Não obstante, não devemos esquecer que uma substância nunca existe sem a qualidade, e que é somente pelo intelecto que se discerne a matéria como a que está na base dos corpos e que é capaz de qualidade. Alguns, então, querendo indagar demasiado profundamente essas coisas, se atreveram a dizer que a natureza corpórea não consiste senão em qualidades. Com efeito, a dureza e a maciez, o quente e o frio, o úmido e o seco são qualidades e, suprimindo-se a estas e a todas as demais coisas do gênero, entendendo-se que na base não haja coisa alguma, tudo parecerá consistir em qualidades. Daí, os que afirmam essa noção, tentam sustentar que, uma vez que todos os que dizem que a matéria é incriada confessam que as qualidades foram criadas por Deus, resulta disso (segundo eles) que a matéria não pode ser incriada, posto que todas as coisas são qualidades e que todos declaram, sem contradição, que estas foram criadas por Deus.

Os que, ao contrário, querem mostrar que as qualidades são acrescentadas desde fora a uma certa matéria subjacente, empregam exemplos de outra espécie: Paulo, sem dúvida, ou está calado ou fala, ou vela ou dorme, ou permanece em alguma posição corporal, visto que está, ou sentado, ou de pé, ou recostado. Com efeito, todas essas coisas são acidentes em relação aos homens, sem os quais elas não podem ser encontradas. E no entanto nossa inteligência não define manifestamente dele (o homem) nenhuma dessas coisas, mas o entendemos ou consideramos por meio delas sem de modo algum abarcar ao mesmo tempo a razão de seu estado, quer vele, durma, fale ou cale, ou seja afetado pelos demais acidentes que se dão entre os homens necessariamente. Logo, se considerarmos Paulo sem todas essas coisas que podem lhe acontecer, também podermos entender sem as qualidades aquilo que está na base dos corpos. Por conseguinte, quando nosso sentido, separando de sua intelecção toda qualidade, considera, por assim dizer, o próprio ponto do que é subjacente, e se concentra nele, sem ter em mira o mole, o duro, o quente, o frio, o úmido ou o seco da substância, somente então, com um pensamento de certo modo simulado, lhe parecerá que contempla a matéria despida de todas essas qualidades.

9.       Argumentação bíblica

Mas talvez alguém poderá perguntar se podemos achar nas Escrituras algum ponto de apoio a essa teoria. Algo desse tipo me parece que está indicado nos Salmos, quando o profeta diz: “Meus olhos viram a tua imperfeição[91]”, onde parece que a mente do profeta, penetrando com um olhar sumamente perspicaz os princípios das coisas e com sua razão a matéria das qualidades, compreendeu a imperfeição de Deus, que se entende como consumada pela adição das qualidades. E também diz Enoch em seu livro: “Cheguei até a imperfeição[92]”, que, creio, pode ser entendido da mesma maneira no sentido de que a mente do profeta percorreu todas as coisas sensíveis perscrutando-as e considerando-as, até chegar àquele princípio no qual viu a matéria imperfeita e sem qualidades; e, com efeito, no mesmo livro encontramos isso, na boca do profeta Enoch: “Contemplei todas as matérias”, que pode ser entendido como se ele dissesse ter visto todas as divisões da matéria, que se encontra rompida (rota), de uma só que era, em todas e cada uma das espécies: nos homens, nos animais, no céu, no sol e em todos os lugares que existem no mundo. E já demonstramos anteriormente, tanto quando pudemos, que todas as coisas que existem foram feitas por Deus e que nada há que não tenha sido feito, exceto a natureza do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e que, querendo Deus, que é bom por natureza, ter criaturas às quais fazer o bem e que pudessem receber seus benefícios, fez criaturas dignas, isso é, que pudessem recebê-lo dignamente, das quais se diz que são os filhos que Ele gerou.

Tudo, não obstante, Ele fez com número e medida, porque Deus não contém nada sem fim e sem medida, já que a tudo abarca com seu poder, sendo que Ele próprio não é abarcado pelo sentido de nenhuma criatura, pois Sua natureza só é conhecida por Ele. Com efeito, só o Pai conhece o Filho, e só o Filho conhece o Pai, e só o Espírito Santo perscruta as profundezas de Deus[93].

Assim, pois, toda criatura se distingue por certo número e medida: o número nos seres racionais, a medida na matéria corporal, se sorte que, como era necessário que se servisse de corpos, a natureza intelectual – que aparece como mutável e transformável pela própria condição em que foi criada (já que aquilo que não era e que passou a ser é chamado, por isso mesmo, de natureza mutável) – não possui virtude nem malícia substancial, mas apenas acidental. E posto que, como dissemos, a natureza racional é mutável e transformável, para que tenha uma roupagem corporal diversa, a partir dessa ou daquela qualidade, segundo seus méritos, foi preciso que Deus, que conhecia de antemão a diversidade que iria se produzir nas almas ou poderes espirituais, criasse, se acordo com essa diversidade, a natureza corpórea que, pela mudança das qualidades, se tornasse tudo aquilo que as circunstâncias exigissem segundo a vontade do Criador. E essa natureza corpórea permanecerá necessariamente enquanto existirem seres que necessitem de uma roupagem corpórea; logo, sempre existirá a natureza corpórea, cuja roupagem têm que usar necessariamente as criaturas racionais; a não ser que alguém acredite poder demostrar que a natureza racional pode viver sem um corpo. Mas no que precede já mostramos o quanto é difícil que seja assim, e, em nosso entender, quase impossível.

10.   A imortalidade das criaturas racionais

Creio certamente que não parecerá contrário à nossa obra tratar também, em poucas palavras e na medida do possível, da imortalidade das criaturas racionais. Todo aquele que participa de algo, constitui, sem dúvida, uma só substância e uma só natureza com aquele que participa da mesma coisa. Por exemplo, todos os olhos participam da luz, e por essa razão todos os olhos que participam da luz são de mesma natureza. Mas ainda que todos os olhos participem da luz, como alguns veem mais agudamente e outros mais confusamente, nem todos participam igualmente da luz. Da mesma forma, todo ouvido recebe a voz e o som, e por isso todos os ouvidos são de mesma natureza. Mas, segundo a qualidade de pureza do ouvido, cada qual ouve melhor ou pior. Passemos agora desses exemplos sensíveis à consideração das coisas intelectuais: toda mente que participa da luz intelectual deve ser, sem dúvida, de mesma natureza que qualquer outra mente que participe do mesmo modo da luz intelectual[94].

Se as virtudes celestes, então, participam da luz intelectual, isso é, da natureza divina, por participarem da sabedoria e da santificação, e se as almas humanas participam também dessa mesma luz e sabedoria, serão elas da mesma natureza que aquelas, e da mesma substância. Mas as virtudes celestes são incorruptíveis e imortais; logo, imortal, sem dúvida, e incorruptível, será também a substância da alma humana. E não só isso, como ainda, sendo a própria natureza do Pai, do Filho e do Espírito Santo (que é a única luz espiritual da qual participa toda criatura) incorruptível e eterna, é consequente e necessário que também toda substância que participe daquela natureza eterna perdure para sempre e seja incorruptível e eterna, de sorte que a eternidade da bondade divina seja também entendida por ela, sendo eternos os que alcançam seus benefícios. Mas assim como ressalvamos, no exemplo das diferenças na percepção da luz, que pode ser mais aguda ou obtusa a visão daquele que olha, devemos também ressalvar aqui a diferença de capacidade, conforme a intensidade do sentido da mente de cada qual. Ademais, consideremos senão parece ímpio que uma mente que é capaz de Deus sofra a morte substancial, como se o próprio fato de poder entender e sentir a Deus não fosse suficiente para sua perpetuação; sobretudo se nos lembrarmos que, mesmo quando, por sua negligência, a mente cai ao ponto de não poder acolher em si a Deus pura e integralmente, ela ainda conserva em si como que uma espécie de germe de reparação e renovação de um intelecto melhor, capaz de renovar o homem interior, que também e chamado de racional, conforme a imagem e a semelhança do Deus que o criou. É por isso que também diz o profeta: “Lembrar-se-ão e se converterão a Ele todos os confins da terra, e todas as famílias dos povos o adorarão[95]”.

11.   A imagem de Deus no homem

Mas se alguém se atrever a atribuir a corrupção substancial ao que foi feito à imagem e semelhança de Deus, estenderá, em minha opinião, também a causa da impiedade ao próprio Filho de Deus. Porque também Ele é chamado nas Escrituras de imagem de Deus[96]; ou, no mínimo, quem pensa assim impugna a autoridade da Escritura que diz que o homem foi feito à imagem de Deus. E nele (no homem) podem ser manifestamente reconhecidos os indícios da imagem divina, não na imagem do corpo que se corrompe, mas na prudência do ânimo, na justiça, na moderação, na virtude, na sabedoria, na disciplina, em suma, em todo o coro das virtudes que, achando-se em Deus inatas em razão de sua substância, podem estar no homem mediante a diligência e a imitação de Deus, como o próprio Senhor indica no Evangelho, dizendo: “Sede misericordiosos, como vosso Pai é misericordioso[97]”, e “Sede perfeitos, como vosso Pai Celestial é perfeito[98]”; nessas passagens fica evidente que em Deus estão sempre todas essas virtudes, sem que se lhe possa acrescentar ou retirar nada, enquanto que os homens as devem conquistar uma a uma e pouco a pouco. Por isso os homens têm um certo parentesco com Deus, e como Deus conhece todas as coisas e nenhuma dessas coisas intelectuais pode ser-Lhe oculta (com efeito, somente Deus Pai, seu Filho Unigênito e o Espírito Santo possuem o conhecimento, não só das coisas que criaram, como de si próprios), a mente racional pode também, partindo do menor ao maior e do visível ao invisível, alcançar uma inteligência mais perfeita. Porque ela está colocada no corpo, e assim procede das coisas sensíveis, que são corpóreas, às intelectuais.

Mas para que não pareça a ninguém que dizemos impropriamente que as coisas intelectuais são insensíveis, citaremos como exemplo uma frase de Salomão que diz: “Encontrarás o sentido divino”. Nela se mostra que as coisas intelectuais devem ser buscadas não com o sentido corporal, mas com outro, que se chama divino. Com esse sentido, pois, devemos nós contemplar todas as coisas de que falamos anteriormente, que são racionais, e com esse sentido devemos ouvir aquilo de que falamos e considerar aquilo que escrevemos. Porque a natureza divina conhece inclusive aqueles pensamentos que resolvemos em nosso interior quando estamos calados. Assim, tudo o que dissemos e todo o demais que segue deve ser entendido da maneira como expusemos.



[1] Mateus 10: 18.
[2] Mateus 24: 14.
[3] Mateus 7: 22-23.
[4] Oseias 3: 4.
[5] Deuteronômio 32: 21.
[6] I Coríntios 1: 26-28.
[7] I Coríntios 1: 29.
[8] Salmo 45: 1-2.
[9] Salmo 37: 11.
[10] Salmo 72: 7.
[11] Isaías 7: 14.
[12] Miqueias 5: 2; Mateus 2: 6.
[13] II Coríntios 4: 7.
[14] Cf. I Coríntios 2: 4.
[15] I Coríntios 2: 6.
[16] Cf. Isaías 11: 6.
[17] Deuteronômio 4: 24.
[18] Êxodo 20: 5; Deuteronômio 5: 9.
[19] Isaías 45: 7.
[20] Amós 3: 6.
[21] I Samuel 16: 14.
[22] I Coríntios 2: 16.
[23] I Coríntios 2: 12-13.
[24] Cf. Lucas 11: 52.
[25] Provérbios 22: 20-21.
[26] I Coríntios 2: 6-8.
[27] O Pastor de Hermas, segunda visão.
[28] I Coríntios 9: 9.
[29] I Coríntios 9: 10.
[30] I Coríntios 10: 11.
[31] I Coríntios 10: 4.
[32] Hebreus 8: 5.
[33] Gálatas 4: 21-24.
[34] Colossenses 2: 16.
[35] Hebreus 8: 5.
[36] Referência a Marcion, que negava a inspiração divina do Antigo Testamento, mas afirmava a inspiração de algumas cartas de Paulo.
[37] Romanos 11: 4.
[38] Gênesis 17: 14.
[39] Medida egípcia equivalente a 0,50 metro.
[40] Lucas 10: 4.
[41] Mateus 5: 39.
[42] Mateus 5: 29.
[43] Mateus 5: 34.
[44] Mateus 5: 28.
[45] I Tessalonicenses 5: 14.
[46] I Coríntios 10: 18.
[47] Romanos 9: 6.
[48] Mateus 15: 24.
[49] Gálatas 4: 26.
[50] Hebreus 12: 22.
[51] Cf. Lucas 19: 17-19. “Muito bem, servo bom e fiel; como foste fiel no pouco, terás poder sobre dez cidades (...) Tu também, sobre cinco cidades”.
[52] Mateus 13: 44.
[53] Isaías 45: 3.
[54] Gênesis 32: 28-30.
[55] Hebreus 8: 5.
[56] Números 32.
[57] Lamentações 4: 20.
[58] Apocalipse 14: 6.
[59] Salmo 45: 13.
[60] I Coríntios 2: 10.
[61] Romanos 11: 3.
[62] Eclesiastes 7: 23-24.
[63] Isaías 41: 22-23.
[64] Isaías 6: 3.
[65] Eclesiastes 16: 21.
[66] Colossenses 1: 15.
[67] Colossenses 1: 16-18; João 1: 3.
[68] João 1: 5.
[69] Hebreus 1: 3.
[70] Ibidem.
[71] II Coríntios 13: 3.
[72] Gálatas 2: 20.
[73] Mateus 22: 30.
[74] Colossenses 1: 16-18.
[75] João 1: 3.
[76] Salmo 33: 6.
[77] João 1: 26-27.
[78] João 10: 18.
[79] Mateus 26: 38.
[80] João 12: 27.
[81] Isaías 7: 16.
[82] Salmo 45: 7.
[83] Colossenses 3: 3-4.
[84] I João 2: 6.
[85] II Coríntios 13: 4.
[86] I Coríntios 2: 2.
[87] Filipenses 2: 6.
[88] Isaías 10: 17.
[89] Sabedoria 11: 18.
[90] Gênesis 1: 1-2.
[91] Salmo 139: 16. (N.T.: Referência não encontrada)
[92] Livro de Enoch, 17.
[93] I Coríntios 2: 10. Existe uma passagem omitida pelo tradutor ao latim Rufino, por considerá-la contrária à fé católica, mas traduzida por Jerônimo (Epístola 94 ad Avitum), que diz: “Com efeito, se o Filho conhece o Pai, parece que pode compreendê-lo no sentido de que O conhece como quando dizemos que a alma de um artífice sabe a medida de sua arte. E não cabe dúvida de que se o Pai está no Filho, é também compreendido por Aquele em quem está. Mas, se com a palavra compreensão não queremos dizer apenas que não compreende com Seu sentir e Sua sabedoria, mas que o que conhece o contém [o objeto de seu conhecimento] todo com sua virtude e potência, não poderemos então dizer que o Filho compreende o Pai. Por outro lado, o Pai compreende todas as coisas e o Filho está entre todas as coisas; logo, Ele também compreende o Filho. E, se investigarmos se verdadeiramente Deus é conhecido por si mesmo da mesma maneira que é conhecido pelo Unigênito, também ficará manifesto que as palavras “o Pai que me enviou é maior do que eu” são verdadeiras em todos os casos; portanto, quando se trata de seu conhecimento, o Pai é conhecido por Si mesmo de modo mais extenso e perfeito do que pelo Filho”.
[94] Outra passagem omitida por Rufino diz: “Deus, seu Filho Unigênito e o Espírito Santo, conhecem a natureza intelectual e racional. Também a conhecem os anjos, as potestades e as demais virtudes; e a conhece o homem interior, que foi criado à imagem e semelhança de Deus. Daí se conclui que Deus, e todos esses seres, são de certo modo de mesma substância”.
[95] Salmo 22: 27.
[96] Colossenses 1: 15; II Coríntios 4: 4.
[97] Lucas 6: 36.
[98] Mateus 5: 48.