sexta-feira, 10 de junho de 2022

Jean Romanides - Teologia Empírica - Capítulo V: A Franco-Latinização da Ortodoxia

 


 

“Uma refutação franca é uma oferta de paz.”

(São Gregório Palamas – Primeira carta a Barlaam)

 

PREFÁCIO AO PECADO ANCESTRAL

 

Nosso livro O Pecado Ancestral foi escrito na época em que nos esforçávamos por especificar as influências heterodoxas sobre a teologia ortodoxa, quando os desvios da tradição patrística eram suficientemente perceptíveis. Hoje em dia, estamos em condições de descrever os cenários dentro dos quais foram forjadas as diferentes intervenções heterodoxas, cenários políticos e teológicos que objetivaram a supressão da Romanidade, empreita que caracterizou a franco-latinização da ortodoxia.

 

1.       OS CENÁRIOS POLÍTICOS

 

Quando escrevemos esse livro, ainda não estava claro para nós ter sido nos centros de decisão estrangeiros que foram projetadas, não apenas s supressão da Romanidade, como também a transformação da ortodoxia segundo “modelos ocidentais”. Hoje nossa pesquisa chegou a Napoleão e seu Estado Maior, que foram os arquitetos desses planos.

 

Napoleão tinha entre os que o rodeavam em seu Estado Maior Righas Vélestinlis e Adamantios Korais. Righas propôs um projeto de revolução e de fundação de uma Romélia[1]/Romania livre, que teria em Constantinopla a capital de todos os cristãos ortodoxos e também dos muçulmanos. Porém, sob as ordens de Napoleão, Korais se dedicou a derrubar todos os projetos de Righas, e seu trabalho foi reconhecido em 1827 por um voto da Terceira Assembleia Nacional, que aprovou sem restrições seus Les Oeuvres Excellentes, Discours e Recommendations.

 

Poucos mandatários conheciam essas “recomendações”, e, com seu voto, aprovaram:

 

a.       Que a nação teria sido vassala Constantinopla desde a época de Constantino o Grande até Constantino o Paleólogo e, por conseguinte, do patriarcado de Constantinopla;

b.       Que seria preciso alterar a r3eligião sem alterar os dogmas.

 

Hoje é evidente que o Estado Maior de Napoleão se ocupara da edição, em 1806, de La Nomarchie Hellénique ou Discours sur la Liberté, cujo redator se apresentava como “Heleno anônimo”. Embora seu livro fosse dedicado “a Righas”, com sua redação ele demolia o projeto de Righas. Substituindo-o por um projeto de Napoleão – que mais tarde irá surgir como um projeto de Korais. Para mascarar a origem desse projeto, o redator atacava o potentado da França e os tronos, ao mesmo tempo em que sustentava a aristocracia e a desigualdade natural dos homens, que dava fundamento aos tronos. Ele recomendava à nação helênica que se fundava então que recebesse Korais como um novo Hipócrates e filósofo, embora ele se consagrasse a Napoleão e seus projetos. Por outro lado, ele recomendava a todos os que ignoravam ser Helenos que se libertassem, dado que, se o fossem pelas mãos de outros, não fariam mais do que mudar de senhor. Esse último conselho revela que o redator era um zelote da independência absoluta e incondicional, ou seja, que ele não seria agente de ninguém. Mas nos perguntamos por que ele não revelaria seu nome, e por que ele recomendaria o agente Korais, uma vez que afirmava não ser agente de ninguém.

 

A redação e a edição desse livro foi obra do Estado Maior de Napoleão; isso aparece claramente na polêmica que o “autor” do livro lança contra a igualdade dos homens, sustentando que a liberdade pode existir mesmo sob um regime aristocrático, e que “entre essas duas formas de governo, a democracia e a aristocracia, a liberdade é salvaguardada, e a escolha é indiferente”.

 

Para o redator, a liberdade, ou a Nomarquia, “sem pretender, em vão, fazer fortes, instruídos e ricos (ou o contrário) a todos os homens, atenua, com suas leis, a desigualdade natural; com tanto sucesso ela nivelou todo o resto, que ela conseguiu que todos os homens desfrutassem de uma perfeita igualdade, embora totalmente desiguais por natureza”. Consequentemente, a igualdade de todos seria obtida pela obediência às leis que tornavam livres à igualdade o aristocrata e o não aristocrata, ainda que subsistisse uma certa desigualdade entre eles”. “Todos os homens são diferentes entre si, mas segundo um modo natural”. Essencialmente, trata-se aqui de uma destruição dos fundamentos da democracia e da liberdade, e de um retorno evidente à filosofia-teologia racista medieval da nobreza teutônica da Europa, que gerou Carlos Magno, Napoleão e Hitler.

 

A irritação do redator aristocrático do livro é cômica, indignado com a possibilidade de que qualquer cidadão pudesse chegar até a dignidade de patriarca. Também cômicos, mas graves, são os erros que ele comete sobre a organização e o funcionamento da Igreja ortodoxa sob o Império Otomano, que ele pensa assemelhar-se ao papismo. Ignorando o sistema sinodal, ele vê os patriarcas de Alexandria, de Antioquia e de Jerusalém como “submissos” ao patriarca ecumênico, e chega a escrever: “Esse título ridículo de “ecumênico” é revelador de que os outros três patriarcas lhe são submissos. É ele quem reparte a eles todas as províncias do Estado otomano...”.

 

Esse redator nem suspeita que, na área desse Império, existem Igrejas autocéfalas e autônomas, que cada uma possui seu próprio sínodo presidido por um patriarca, metropolita ou arcebispo, e que elege, com toda soberania, seus bispos.

 

Por outro lado, o autor afirma que o patriarca ecumênico “envia com frequência, por todo Império otomano, mesmo onde não existem cristãos, centenas de arcebispos, cada qual possuindo quatro a cinco bispados, aos quais ele envia, por sua vez, outros tantos bispos”. Esse Franco crê que somente Constantinopla possui um sínodo, cujo patriarca seria cativo, como acontece com o papa de Roma e a cúria. Uma única vez ele menciona no nome de “metrópole”, mas jamais o de “metropolita”, enquanto que se sabe que, nessa época, o metropolita presidia, habitualmente, o sínodo, enquanto o arcebispo, membro de um sínodo, era o primeiro bispo segundo a antiguidade, assim como o arquidiácono é o primeiro dentre os diáconos.

 

A confusão do redator sobre a Igreja ortodoxa se deve certamente às fontes de onde ele extraiu suas informações, e que se encontravam nos arquivos de espionagem. Nesses arquivos ficavam guardados os relatórios de “viajantes” e as informações que eles recolhiam em suas viagens; mas eles eram incapazes de compreender corretamente tudo o que viam e ouviam. Devemos notar que quando o autor emprega a expressão “classe sacerdotal” – que nunca é utilizada em grego – o que ele tem em mente é sua própria tradição franca, para a qual o clero forma uma ordem particular, dirigida por bispos francos, diferente da ordem dos nobres à qual pertenciam os Francos, e da ordem do Terceiro Estado ao qual pertenciam os Galo-Romanos.

 

O redator afirma também que o presbítero de uma cidade, que veste o “forema sacerdotal” é proclamado Arquimandrita “pelo dinheiro”, e que, com o mesmo procedimento, ele pode chegar ao trono patriarcal. Ele ignora, evidentemente, que os presbíteros das cidades, mesmo hoje em dia, são casados, e, por isso, não podem aceder a esses graus. Ele imagina, inteiramente errado, que os padres e os bispos de todos os graus começam sua carreira como presbíteros das cidades, e isso por causa de suas informações, de origens leigas. Ele confunde os presbíteros das cidades com o clero celibatário e ignora que somente os celibatários chegam aos graus superiores. A origem urbana dos monges que chegam à dignidade sacerdotal o leva a concluir, erroneamente, que eles seriam incultos, e isso porque, em seu próprio país, somente os aristocratas estudavam em escolas superiores para obter os postos-chave na Igreja, dado que a Igreja era governada, sobretudo, por nobres Francos, assim como o Estado. O redator ignora igualmente que, desses citadinos, saíram grandes figuras da teologia ortodoxa, precisamente porque eles estudaram os próprios manuscritos existentes nas imensas bibliotecas dos santos mosteiros. Eles conheciam muito melhor os Padres e a história do Império do que os latinos que os estudavam, sem ter, como chave para interpretação, mais do que Agostinhos e seus escolásticos.

 

Sabemos que o aristocrata de nascimento não pode esconder seu desdém pelo não aristocrata que se torna chefe. É por isso que o redat9or da Nomarchie Hellénique escreve: “Assim, todos os chefes da Igreja saem da mesma baixa extração, e muitos dentre eles são ignorantes”. Esse aristocrata parece ignorar que os próprios apóstolos eram de “baixa extração”, e que Pedro, o Corifeu, era “iletrado”.

 

Retomando as teses de Napoleão e de Korais, o redator sustenta ainda que os Heládicos – os Romanos cristãos da província de Heladikon, diferentes dos pagãos quem se denominavam Helênicos – depois de muitos séculos de submissão a Constantinopla, haviam esquecido que eram Helênicos e que receberam a apelação de Romanos. Por que motivo o autor utiliza esse nome de Helenos? No Ocidente, nós éramos conhecidos como Gregos, Greci, enquanto em grego, “Heleno” significava pagão. Todos os cristãos que habitavam a província heládica eram chamados Heládicos; muitos Romanos adquiriram o hábito, a partir da dominação franca, de serem chamados de Greci pelos Francos.

 

Assim, em 1801, Napoleão endereçou à Hélade seu Appel au Combat, cujo verdadeiro autor era Korais, a fim de provocar uma revolta contra os Turcos e os Ingleses no Egito. Esse Appel tentava convencer os Heládicos que eles não eram Romanos, mas Helenos que, depois de tantos séculos submetidos a Constantinopla, haviam esquecido seu nome.

 

Antes de 794, os Francos nos chamavam de Romanos. Mas desde 794, depois de nossa condenação com heréticos no Concílio de Frankfurt, eles começaram a utilizar o nome de Gregos, sob pretexto de que somente os ortodoxos poderiam ser chamados de Romanos. A questão que se coloca é: por que, depois de tantos séculos de utilização do nome de Gregos pelos Francos, Napoleão resolveu chamar os Heládicos pelo nome de Helenos?

 

Em 1805, um ano antes de publicar a Nomarchie Hellénique, Korais publicou sua obra Dialogue de Deus Grecs sur les Victoires de Napoléon. Ele tantava convencer o leitor da necessidade de abandonar o nome de Romanos e de preferir, doravante, o de Gregos, “porque é assim que as nações esclarecidas da Europa nos chamam”, passando em silêncio a causa e se mostrando indiferente ao fato de que todos os não Europeus nos chamavam de Romanos.

 

É manifesto que os únicos que tinham uma razão precisa para suprimir os nomes de Grego e Romano na Hélade, conservando-os provisoriamente para os demais membros da nação, eram os reis e os nobres da Europa.

 

Righas sabia que a Revolução Francesa de 1789 era a revolução dos Galo-Romanos submetidos contra os Francos que formavam a classe dos nobres da Francia (chamada de Gália em Grego), e que representavam 2% da população; mas ele ignorava que Napoleão, tão hábil em política e em “duas caras”, não se interessava senão pela preponderância da classe dos Francos e não da dos Galo-Romanos; ele próprio era um Franco da pequena nobreza da Toscana, tendo tido o direito de se inscrever numa escola militar para se tornar oficial.

 

Cerca de nove mil oficiais Francos, originários notadamente da peq1uena nobreza pertencentes a vinte e cinco lojas militares da franco-maçonaria, tomaram parte da Revolução Francesa ao lado dos Galo-Romanos. Exigindo ser iguais aos seus concidadãos da alta nobreza, eram oficiais pagos com o dinheiro do imposto que o rei cobrava especialmente da classe média, e não da tributação dos feudos, como era feito até o século IV. Todos os nobres da alta nobreza que, com a realeza, possuíam feudos, eram grandes proprietários de terras. Os oficiais, assim empurrados para uma pobreza relativa e sem poder se tornar iguais aos seus riquíssimos concidadãos, se revoltaram ao lado dos Galo-Romanos: Napoleão era um desses. Um bom número desses oficiais já tomara parte na revolução norte-americana e influenciaram seus companheiros com suas ideias democráticas.

 

Depois da condenação e execução de Luís XVI, em 21 de Janeiro de 1793, a maior parte dos oficiais francos abandonou a revolução, que evoluía para uma guerra entre Romanos e Francos. Parte dessa guerra constituiu o “reinado do Terror”, do qual um dos chefes, Danton, fez abençoar seu casamento por um padre romano – mas ele havia decapitado cem padres francos em Carmes, e ocultado esse massacre.

 

Entretanto, cerca de três mil oficiais francos permaneceram nas forças da Revolução, alguns por lealdade, como o general Barras, outros por felonia, como Napoleão. Todos os desleais se uniram a Napoleão, através de seus irmãos e da franco-maçonaria, e aguardaram a ocasião propícia para se apoderar do poder e derrubar a Revolução.

 

A ocasião se apresentou quando Napoleão retornou do Egito em 1799. Ele aceitou cumprir a nova constituição, concebida pelo abade Emmanuel-Joseph Siéyès, o principal teórico da Revolução Francesa. Napoleão foi nomeado Primeiro Cônsul, e Siéyès e Roger Ducos Vice-cônsules. Firme em sua posição, Napoleão conseguiu, com a cooperação tolerante do exército, abolir todas as garantias democráticas previstas pela constituição do abade Siéyès e se tornar ditador num cenário de aparente democracia.

 

Depois desse parêntese indispensável para compreender os desígnios de Napoleão, voltemos a Righas Vélestinlis. Ela sabia que a Revolução Francesa havia sido feita pelos Galo-Romanos contra os Francos, e por isso ele se uniu ao Estado Maior de Napoleão, acreditando que esse representava a verdadeira expressão do espírito da Revolução. Ele certamente não sabia que Napoleão era um dissimulado, e que ele tinha em vista a dominação da classe franca. Ele associou-se a Righas, simulando interesse, porque queria que seu projeto fosse o mais eficaz possível para reprimir a Revolução e dizimar a Romanidade no Ocidente e no Oriente.

 

Isso que precede mostra os interesses imperiosos que exigiram a morte de Righas, a fim de substituir, a todo custo, seu projeto pelo exigido por Napoleão. Coloca-se assim a questão: a quem obedecia o agente que o traiu? Pois a morte de Righas não acomodou apenas os interesses da Áustria e da Turquia, como também os de Napoleão e da classe que ele representava. O que mostra a dissimulação das verdadeiras causas do morte de Righas é o fato de que o redator da Nomarchie Hellénique consagrou sete parágrafos a essa traição, sublinhando, em cada um deles, a causa do destino. Mas o acaso não pode absolutamente justificar uma morte que atendeu aos altos interesses de Napoleão e de outros reis e nobres da Europa.

 

Sabemos, depois de séculos, que os reis e nobres da Europa, assim como os Otomanos, governavam multidões de Romanos submetidos, e temiam uma revolta geral da Romanidade, tanto no Ocidente como no Oriente. Daí sua benevolência em relação à revolução “helênica”, depois de, bem entendido, orientá-la para a antiguidade grega, e de tê-la oposto à Romanidade e a Constantinopla, sua capital. A atitude benevolente do czar se explica igualmente pelo fato de que essa revolução “helênica” favorecia suas pretensões sobre Constantinopla, e que ele não encontraria ali mais obstáculos, pois os Helenos não seriam um impedimento aos seus desígnios. Napoleão lhes havia explicado, muito a propósito, que, enquanto Helenos, eles deveriam se rebelar contra os Turcos e contra o patriarcado ecumênico dos Romanos.

 

Numerosos subjugados, convencidos de que, por serem Romanos, não seriam sustentados pelas grandes potências, mas que só obteriam ajuda como antigos Helenos, preferiram se inclinar. É o que Costis Palamas diz, ao escrever: “Helenos para jogar areia nos olhos do mundo, mas na verdade Romanos”.

 

Napoleão e seu Estado Maior escolheram, a partir de 1801, o nome de Helenos para a nação em formação, e o confirmaram em 1806. O nome de “Gregos” – dado, desde 794, pelos Francos aos Romanos do Oriente, para distingui-los daqueles do Ocidente – foi reservado aos Romanos assimilados aos tiranos. Os “Helenos” da nação em formação apareceriam assim desejosos de ser libertados dos Romanos de Constantinopla.

 

Korais não compreendeu a pérfida sinuosidade dos dois nomes e continuou a discorrer em sua obra Dialogue entre Deux Grecs. Seu desejo de ver os Romanos aceitarem a mudança de seu nome nacional para “Gregos” teria significado, para os Europeus e as línguas europeias, a submissão de Gregos por Gregos e as duas nações trazerem o mesmo nome, e é por isso que sua escolha não se sustentou.

 

No protocolo de Londres, de 31 de Janeiro de 1836, sobre a mudança das populações, são enumerados os Gregos que, tendo o direito de emigrar para a Hélade, passavam a ser considerados Helenos a partir desse instante. É conveniente notar que, na íngua Turca, os Gregos são chamados de Roumlar, ou seja, Romanos, e os Helenos de Younanlar. Para o direito internacional, os Cipriotas e os Constantinopolitanos são Gregos – Roumlar – mas não Helenos – Younanlar. Os Cipriotas, que se afirmavam insistentemente como Younanlar e não Roumlar. Passaram a ser aceitos pelos Turcos, como prova legal de que essa população não era indígena mas descendentes de colonos enviados da Hélade (Grécia) para unir Chipre ao Younanistão (Grécia).

 

De acordo com a ambição e a concepção dos Francos, retomou-se a consagração de “Bizantino”, substituindo a de “Gregos”, porque Grego e Heleno passaram a ser sinônimos. A denominação de “Bizantino” passou a ser empregada nos livros de história e nas brochuras para viajantes, a fim de apresentar os Helenos como estando sob o jugo dos Bizantinos. A maior parte das brochuras para viajantes contém essa tese, e numerosos guias helênicos a propunham aos viajantes estrangeiros. O fato de que os historiadores helênicos – ou escritores como Nikos Tsiphoros – sustentavam, não sem fanatismo, a tese da submissão dos Helenos a Constantinopla, romana ou bizantina, não é indiferente.

 

Já em 5 de Fevereiro de 1801, quarenta e seis meses antes da consagração de Napoleão como Imperador, Korais revelava numa carta o nome de código de seu mestre: “Karaosmanoglou, com a esperança de ele conquistar a Jônia, destituir o trono de Bizâncio e se tornar basileus, ou seja, imperador”. Para Korais, essa esperança era uma certeza. Esse é o único testemunho, anterior a 1804, da decisão de Napoleão de aparecer como sucessor de Carlos Magno. Aquando de sua coroação, em 2 de Dezembro de 1804, ele utilizará as honras de Carlos Magno: coroa, cetro, espada, globo. Na entrada de Notre Dame, vemos as estátuas de Clóvis (481-511) e de Carlos Magno (768-814), os fundadores do império e da monarquia dos Francos. Em sua carta ao cardeal Fesch, em 6 de Janeiro de 1806, Napoleão escreveu: “Eu não sucedi a Luís XVI, mas a Carlos Magno. Eu sou Carlos Magno, porque eu uni as coroas de França e da Lombardia, e meu império chega às fronteiras do Oriente”.

 

O primeiro imperador Carlos Magno nos havia batizado de Gregos, e o segundo batizou alguns de nós como Helenos e deixou os demais como Gregos. O primeiro pretendia ocultar a existência dos Romanos do Leste aos Romanos ocidentais, aliados prestes às revoltas constantes contra Godos e Francos. O segundo reprimiu a Revolução Francesa e quis derrubar os projetos de Righas – que eram prolongamentos da revolução galo-romana – impondo seu próprio plano por intermédio de Korais e de seus adeptos neo-helênicos.

 

Esse segundo Carlos Magno talvez não tenha vivido para ver o extraordinário sucesso de seu desígnio pela dissolução e desaparição da Romanidade do Leste e sua substituição por um Estado que falasse das “pátrias perdidas”, às quais ele próprio seria submisso!

 

A vitória mais cômica de Napoleão pode ser encontrada nos historiadores helênicos que suspiram pelo dia em que já não restará traço da Romanidade, e quando já não correrá, em suas veias, senão o antigo sangue helênico. Paradoxalmente, os revolucionários de 1789 era muito fiéis às suas origens, de Roma e do Peloponeso. Os primeiros historiadores romanos, escrevendo em grego, testemunharam que Roma fôra fundada pelos Peloponesos. Heráclito o Pôntico, discípulo de Platão, chamava Roma de “Cidade Helênica”, e Georges Pléthon escreveu: “Nós somos helênicos de raça”, para ressaltar que os Peloponesos haviam fundado a Roma antiga e os habitantes de Megara a nova Roma, ou seja, a cidade de Bizâncio.

 

***

 

2.       OS CENÁRIOS TEOLÓGICOS

 

2.1. A franco-latinização da Ortodoxia

 

O monaquismo foi o maior obstáculo à franco-latinização da Ortodoxia. Com efeito, não era ele o guardião da tradição bíblica dos profetas e dos apóstolos, o próprio coração da tradição patrística?

 

Os Francos conheciam a força do monaquismo, porque quando eles conquistaram a Galo-Romania no século V, o monaquismo ortodoxo havia atingido seu mais alto ponto. Eles deixaram de escolher os bispos dentre os monges, e transformaram os bispos em administradores responsáveis pelo povo subjugado. Ao final, os Carolíngios francos expulsaram os bispos romanos. Eles instituíram seus próprios bispos e abades, em cooperação com seus concidadãos francos, e se transformaram em policiais opressor do povo, o qual mantinham numa obediência servil pela instituição de uma religião de medo. Sem dúvida foi por esse motivo que tantos clérigos francos foram massacrados pelos Galo-Romanos durante a Revolução.

 

Os Francos haviam agido da mesma forma ao conquistar a antiga Roma: eles expulsaram definitivamente os Romanos de seu patriarcado (1014-1046) para fundar o papismo franco. Tendo Agostinho como único guia patrístico, eles desconheceram a teologia empírica da purificação, da iluminação e da glorificação; e, com isso, eles ignoraram que “exprimir a Deus era impossível, e concebê-lo mais impossível ainda, condição fundamental formulada por Gregório o Teólogo, no Segundo Concílio ecumênico romano – que é a base da tradição da Romanidade cristã.

 

A decisão de franco-latinizar a ortodoxia heládica constituiu uma aplicação parcial da teologia agostiniana dos Francos. Sendo incapazes de controlar quem poderia se tornar bispo e governador da Igreja, eles decidiram e chegaram a controlar quem não poderia se tornar, tática que continua a ser empregada hoje em dia. Os monges da tradição, que tinham como fundamento a purificação, a iluminação do coração e a glorificação, foram substituídos pelos diplomados das escolas de teologia nas quais aprendiam que o fundamento da tradição patrística era a Santa Escritura e a filosofia de “nossos antigos ancestrais”. Eis uma prova característica: em 1803, diante de um auditório devoto em Paris, Korais poderia se vangloriar e dizer que a filosofia “desceu sobre o altar, e dele saiu agora pelos caminhos, em companhia da religião esclarecida, a fim de ensinar a nação”. Essa estupidez de Korais basta para demonstrar que ele não tinha nenhuma relação com o século das Luzes que combatia também a metafísica, como o haviam feito os Padres ortodoxos. Ao negar a metafísica, os monges eram mais “iluminadores” do que Korais e os neo-helênicos que viviam no passado distante da imaginação filosófica.

 

A erradicação do monaquismo, sob o reinado de Othon, não foi casual. Os nobres francos e os reis que, como Othon, eram papistas, não foram simplesmente fiéis, mas colaboradores estreitos. Othon encontrou, para sua obra, colaboradores entusiastas entre os adeptos de Korais, que deixaram para trás a nação, com a filosofia e a metafísica franco-latina, já em pleno caminho da bancarrota, como ficou evidente depois. Eles recusaram a prioridade às ciências empíricas, dentre as quais a ortodoxia dos Padres da Igreja, que é verdadeiramente empírica.

 

 

2.2. Os fundamentos da teologia empírica

 

A pessoa humana é construída em torno de dois centros, que correspondem a dois corações. Um é conhecido, é por ele que circula o sangue que faz o corpo viver; o outro, recentemente localizado pelos Russos na coluna vertebral, faz circular o líquido cérebro-espinhal, para nutrir o sistema nervoso que desemboca no cérebro. Ora, é pelo cérebro que o homem se adapta ao seu meio, mas é pelo espírito no interior do coração que ele se adapta a Deus.

 

A queda de todo homem provém de que “todos pecaram e foram privados da glória de Deus[2]”. Devido à perda da glória de Deus, ou seja, da deificação, “seu coração, desprovido de inteligência, foi entenebrecido” e “Deus os entregou à concupiscência de seus corações[3]”. Para o coração, a consequência de seu distanciamento da comunhão com a glória de Deus significou a morte espiritual, que precede a do corpo.

 

Os que se encontram em estado de glorificação são livres, na visão em Cristo, das paixões não culposas – a corrupção, o sono, a fadiga, a fome, a sede e o instinto de autoconservação – como foi o caso de Moisés e de Paulo, e de muitos outros santos. Daniel o Estilita passava todo o inverno coberto de gelo e de neve. Essa deificação é um estado de incorruptibilidade provisória, uma prefiguração da ressurreição final e da incorruptibilidade. Assim, a vivificação do corpo mortal, segundo a Escritura, se refere igualmente ao estado de glória que precede a morte do corpo. Os membros do Corpo de Cristo, que estarão vivos quando da futura ressurreição geral dos corpos, serão transformados, revestindo-se de incorruptibilidade e de imortalidade, sem passar pela morte do corpo[4]. É por isso que só os deificados legam relíquias sagradas.

 

Esses pressupostos são a base para a interpretação dos Padres sobre a queda da humanidade. É a deificação de fato, conforme vivida em cada época, e não a imaginação de comentadores estranhos a essa tradição, que constitui a chave interpretativa da história das deificações, de Abrahão até hoje.

 

A deificação é a glorificação com Cristo e em Cristo[5], e o reino com Ele[6]; em outras palavras, a libertação de nossa escravidão à criação e nossa dominação sobre ela[7]. O entenebrecimento do coração pelos pensamentos sob a dependência de nosso meio constitui uma submissão à criação.

 

A consequência da queda foi o aparecimento das paixões não culposas, voluntariamente assumidas pelo Verbo de Deus em Sua humanidade para libertar os homens dessas paixões. As paixões não culposas se tornam culposas nos indivíduos cujo coração está entenebrecido pelos pensamentos da inteligência, que tomam o lugar da iluminação operada pelo Espírito Santo no homem interior e que transformam o amor desinteressado em amor interessado. No estado de queda, os homens “se vangloriam de ser sábios, mas se tornam tolos, transformando a glória incorruptível de Deus em imagens que representam o homem corruptível, os pássaros, os quadrúpedes e os répteis[8]”. Quem ignora a doença de seu coração transforma Deus na imagem de sua enfermidade, que é o amor interessado. Ele imagina a Deus, não como o terapeuta de seu amor interessado, mas como alguém que pode satisfazê-lo concedendo-lhe a felicidade nesse mundo ou em algum outro, tese da tradição franco-latina seguidora de Agostinho.

 

A terapia do homem consiste em purificar seu coração dos pensamentos da inteligência, tanto bons como ruins, para limitá-los ao interior do cérebro, a fim de permitir ao Espírito de Deus transferir a razão ao espírito do homem – do homem interior – ou seja, para dentro do coração, as preces e os salmos. É isso que significam as palavras: “Orarei pelo espírito, e também pela inteligência; recitarei os salmos pelo espírito, mas também recitarei os salmos pela inteligência[9]”. Essa é a verdadeira penitência, o começo da conversão das paixões culposas em não culposas, que conduz à supressão das paixões, à deificação.

 

Templos do Espírito Santo e membros do Corpo de Cristo, são aqueles que o apóstolo Paulo enumera em I Coríntios 12: 28. Os apóstolos e os profetas obtiveram a visão de Deus em Cristo. Eles chegaram à revelação. São eles que Paulo descreve em seu preâmbulo à classificação por ordem dos membros da Igreja. “E, se um membro é glorificado, todos os membros se regozijam[10]”. O “glorificado” é o “deificado” da tradição patrística, vale dizer, aquele que viu a Deus em Cristo, tornando-se Deus pela graça. O mistério “que se manifestou por revelação” a Paulo, “não foi revelado a todos os filhos dos homens, em outras gerações, como o Espírito o revelou aos santos apóstolos e aos profetas[11]”.

 

Os demais membros da Igreja[12] são os esclarecidos – chamados de iluminados – que não chegaram à deificação. Os carismas mais baixos dos membros da Igreja são “as diversas línguas” comuns a todos os membros. Assim, Paulo, colocando-se no primeiro lugar dentre os apóstolos, escreve: “Dou graças a Deus por falar em línguas mais do que vocês[13]”. Paulo possuía as diversas línguas, como todos os membros da Igreja. O fato de que ele recita os salmos pelo Espírito no coração, e também com a inteligência – ou seja, pela razão – indica que se trata dos salmos do Antigo Testamento, conhecidos por todos e sem nenhuma relação com os balbucios sem sentido da glossolalia contemporânea dos protestantes, dos latinos e de certos “ortodoxos” da América.

 

Paulo estava ocupado em Corinto com a questão dos iluminados que possuíam apenas o dom das “diversas línguas” e que haviam introduzido a inovação de fazer os ofícios – que se lhes tinham tornado audíveis graças a esse dom – no coração pelo Espírito. Eles edificavam a si próprios, mas não os idiotes (os simples leigos) que ainda não possuíam esse dom e que por isso não sabiam em que momento dizer “Amém”.

 

Quem ora e recita os salmos pelas línguas do Espírito no coração rende graças, “mas o outro não é edificado[14]”, porque “ninguém o entende[15]”; ele não é útil – “que utilidade eu teria para vocês, se já não lhes falasse[16]”. Numerosas são “as espécies de vozes do mundo, e não há quem não tenha voz[17]”. Se alguém utiliza “um som inaudível”, ele não provocará nenhuma reação no outro, que não terá escutado nada[18]. Assim sendo, aquele que ainda não possui as orações e os salmos em seu homem interior necessita ouvir à força da linguagem[19], para participar pelo Amém e ser edificado.

 

Os idiotes são aqueles que receberam o batismo da água para a remissão dos pecados e que estão no caminho da purificação; eles ainda não receberam o Espírito Santo que ora no coração e, por isso, ainda não são membros do Corpo de Cristo; já os apistoi, ou não-crentes[20], ainda não se encontram no caminho da purificação.

 

A iluminação do homem interior não constitui mais do que o começo da terapia; a conclusão dessa terapia é a visão de Deus em Cristo, a glorificação ou deificação. Isso é perfeitamente indicado por essas palavras: “Busquem o amor, aspirem aos dons espirituais superiores, a fim de que possam finalmente profetizar[21]”. E também: “Eu gostaria que todos vocês falassem mais em línguas para poder profetizar[22]”, o que significa que todos deveriam chegar à visão de Deus em Cristo, visão que guia para a Verdade. A glorificação é a conclusão do estado de iluminação, estado provisório, porque depois da visão de Deus em Cristo o glorificado retorna à iluminação. Durante a duração da glorificação as profecias são abolidas, as línguas cessam e o próprio conhecimento é abolido, enquanto que o amor “não cai jamais[23]”.

 

Segundo a classificação, os iluminados são caracterizados como os que “conhecem em parte”, e os glorificados retornados à iluminação como os que “profetizam em parte[24]”, enquanto os que estão no estado de visão de Deus em Cristo, ou seja, de glorificação, são indicados como “quando o Perfeito vem, o ‘em parte’ é abolido[25]”.

 

O iluminado é uma criança, ele fala como uma criança e pensa como uma criança. O glorificado que, depois da experiência da glória divina, retorna à iluminação, se tornou homem e “aboliu as coisas de criança[26]”. Os que se encontram em estado de iluminação veem “por meio de um espelho em enigma”, mas, na glorificação, “veem face a face[27]”.

 

Paulo prossegue, referindo-se a si mesmo: “Hoje (na iluminação) eu conheço em parte, mas então (na glorificação) eu serei conhecido como fui conhecido”. Paulo será novamente conhecido por Deus como ele já fôra conhecido. “Agora (na iluminação), essas três coisas permanecem: a fé, a esperança e o amor, mas a maior das três é o amor”. Aquele que ora pelo Espírito vê a Cristo “por meio de um espelho em enigma”, enquanto o glorificado vê “face a face”. É por isso que os dois estados são chamados de visão de Deus em Cristo pelo Espírito Santo.

 

Assim, fica claro que a ressurreição de Cristo e Sua manifestação em glória não aconteceram e não acontecem senão pela glorificação daqueles que se prepararam adequadamente. Essa aparição não aconteceu somente para alguns “felizardos” presentes em Jerusalém durante os acontecimentos da Paixão, da Ressurreição, da Ascensão e do Pentecostes: mas ela se faz para todos os que desejam seguir a mesma via de cura da doença do interesse pessoal, via que conduz à aquisição da saúde e do desprendimento. Portanto, a deificação não se refere apenas aos que faziam parte da comitiva de Cristo, mas a todos os homens, do mundo inteiro. É isso que justifica a presença de profetas nas comunidades fundadas pelos apóstolos, distantes de Jerusalém. Se Cristo apareceu após a Ressurreição, foi para a deificação e a perfeição de seus discípulos, e não do mundo. “Ainda pouco tempo, e o mundo não me verá mais; mas vocês me verão[28]”. Para o mundo, resta o sepulcro vazio.

 

Por intermédio de Paulo, aprendemos que Deus designa os membros do Corpo de Cristo; é assim que se explica essa frase: “Aqueles que Deus estabeleceu em Sua Igreja[29]”. O sinal sensível da participação desses membro no Corpo de Cristo são as preces e os salmos no coração, ou, dito de outra maneira, “as diversas línguas” a que Paulo se refere em Efésios[30]. O mistério do crisma é o selo do dom do Espírito Santo, chamado no Ocidente confirmatio, “o amor de Deus distribuído nos seus corações pelo Espírito Santo que lhes foi dado[31]”. Quem está privado do Espírito de Deus não pode se submeter à lei de Deus[32] e suas paixões permanecem culposas. O Espírito de Deus “dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus[33]”. Paulo fala das preces reais e incessantes do Espírito Santo no coração, e não de sentimentos.

 

As três etapas da salvação, a purificação, a iluminação e a glorificação estão indissoluvelmente ligadas. É o que Paulo quer dizer: “Aqueles a quem Ele predestinou, também chamou (à purificação); e a quem chamou, também justificou (pela iluminação); e também glorificou (pela deificação)[34]”. Os glorificados, apóstolos e profetas, formam juntos um único “fundamento” da Igreja em geral, e da comunidade em particular. A obra terapêutica da Igreja não poderia se realizar sem os deificados e os iluminados.

 

Paulo, escrevendo à Igreja de Éfeso de sua época, e não às paróquias de hoje, sublinha: “Vocês já não são estrangeiros, nem gente de fora; mas são concidadãos dos santos, membros da família de Deus, que foram edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que o próprio Jesus Cristo é a pedra angular. Nele, todo o edifício perfeitamente coordenado para se ergue para ser um templo santo no Senhor. É nele que também vocês são edificados para se tornarem uma habitação de Deus no Espírito[35]”.

 

Entre os profetas contavam-se mulheres[36], porque, “na nação santa e no sacerdócio real[37]” “não existe homem ou mulher[38]”. Na passagem de I Coríntios 14: 24-37, Paulo fala provavelmente de simples leigos, de mulheres, talvez mesmo iluminadas, mas não fala de profetizas. Tudo isso diz respeito aos carismas, com os quais Deus classifica, pela ordem, os membros da Igreja. O sacerdócio específico dos bispos e dos presbíteros escolhidos dentre os profetas é reservado aos homens, segundo o testemunho da Igreja apostólica.

 

 

2.3. A verdade incriada e a sabedoria profana

 

Os conhecimentos sobre a verdade do mundo criado são obra da razão humana. Eles podem levar alguns a afirmarem que Deus existe, e mesmo que Ele criou o mundo, mas não podem estabelecer logicamente a distinção entre o criado e o incriado – pois essa distinção provém da experiência da glorificação que estabelece que não existe nenhuma semelhança entre as verdades criadas e as incriadas. É por essa razão que é “impossível exprimir a Deus, e mais impossível ainda concebê-lo”, segundo o presidente do Segundo Concílio ecumênico, Gregório o Teólogo. Essa é também a razão pela qual Paulo nos diz que, durante a glorificação, o conhecimento e a profecia são abolidos e as línguas cessam[39].

 

Assim é que o homem, conhecedor das verdades criadas, e que chega à deificação, em nada difere, no conhecimento do incriado, do iletrado que alcançou também a deificação. Os Francos, que seguiram Agostinho, persuadiram-se que o verdadeiro teólogo era o erudito que, ajudado pela filosofia, estudava Deus na Bíblia, a fim de elevar até o conhecimento a fé simples dos iletrados. A Hélade contemporânea está cheia de obras de teólogos e de filósofos que, como Korais, repetem essa estupidez. Eles imaginam compreender a Deus e o exprimem com seus pensamentos, mas estão tão distantes da tradição bíblica e da patrística quanto do pensamento contemporâneo para o qual esses teólogos e filósofos são como retardados.

 

O santo glorificado vê o Logos sem a carne no Antigo Testamento e encarnado no Novo Testamento; no mesmo Logos, ele vê o Pai no Espírito, para além da razão e dos sentidos, embora deificado em alma e corpo.

 

Em Sua revelação, Deus permanece um mistério. Os conceitos aplicados a Deus são abolidos quando da visão de Cristo na glória de Seu Pai.

 

O santo glorificado utiliza, por inspiração e sem erro, termos e conceitos referentes a Deus, conduzindo seus pacientes à purificação e à iluminação do coração. Ele não procura substituir a deificação por meio desses termos e conceitos, porque eles cessarão no momento da deificação; em outras palavras, o objetivo dos termos e conceitos utilizados pela Santa Escritura e pelo próprio Cristo, não é o de substituir, com eles, a deificação que é a revelação. A Santa Escritura não é outra coisa do que o guia que conduz à comunhão dos santos na glória de Cristo, e não um meio de edificação metafísica.

 

O próprio Antigo Testamento é cristocêntrico, porque os profetas viram, também eles, a Cristo antes de Seu nascimento da Virgem, como Senhor da Glória e Anjo do Grande Conselho. Ele Se manifestou a Moisés como “Aquele que é”, e como o Deus de Abrahão, Isaac e Jacó; Nele os profetas viram a Deus pelo Espírito Santo. Assim Cristo revela Deus, não apenas no Novo Testamento, como no Antigo. As palavras: “quem me viu, viu o Pai[40]” são válidas antes e depois da encarnação.

 

O glorificado conhece empiricamente:

a.       A co-interpenetração mútua e a incomunicabilidade (perichoresis e akoinometon) das pessoas da Santa Trindade;

b.       A existência de Deus a partir (ek) do Um;

c.       A identidade das Três Pessoas em termos da essência incriada e de seus próprios reino, glórias, poderes e vontades incriadas;

d.       A imparticipabilidade à essência divina e a participabilidade à sua glória, seu reino e sua energia naturais;

e.       Que, não somente a essência divina, como também a glória, o reino e a energia incriadas ultrapassam a capacidade natural do conhecimento humano;

f.        Que não apenas a essência divina, como também a energia divina não possuem nenhuma similaridade com as criaturas;

g.       Que o Verbo, consubstancial ao Pai, se tornou consubstancial a nós pela Virgem, e o Filho, Deus por natureza, se fez homem por natureza e Messias, fonte de purificação dos purificados, de iluminação dos iluminados, de glorificação para os glorificados, e força criativa, coesiva e previdente do universo.

 

Todas essas expressões e conceitos são inspirados pela glorificação. Mas, como diz São Paulo, eles são abolidos pela mesma glorificação, na qual Deus não é nem Unidade, nem Trindade – não porque Ele não o seja, mas porque Ele está acima de todos os conceitos e expressões da criação.

 

Não se pode filosofar especulativamente sobre Deus na Bíblia. O único objetivo dessas expressões e conceitos é o de conduzir à cura pela iluminação, antes de serem abolidos pela glorificação.

 

Sabemos, pela deificação, que todo incriado em Deus é, ou comum às três Pessoas – a essência divina, a glória eterna, o reino, a energia, a vontade – ou não-comum (incomunicável), como:

a.       Nenhuma causa de existência do Pai;

b.       A causa da existência do Filho no Pai por geração;

c.       Enfim, a causa de existência do Espírito Santo no Pai, não por geração, mas por processão.

 

Somente o Logos difere das Duas outras Pessoas em Sua natureza humana, criada com Sua energia e vontade naturais. O Espírito Santo não possui energia própria, como a natureza criada de Cristo; sua energia é absolutamente idêntica à do Pai e do Filho, e por isso Ele “não fala por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido[41]”.

 

 

2.4. Distinção entre a essência e as energias em Deus

 

Fora da distinção bíblica e patrística entre essência divina imparticipável e energia divina participável, surgiu a interpretação filosófica que levou às heresias de Paulo de Samosate, dos arianos e dos nestorianos. Tendo aceitado a identificação da energia natural – ou da relação por natureza – com a necessidade, e desejando salvaguardar a liberdade de Deus contra todos os argumentos dos aristotélicos de Antioquia, esses haviam transformado a distinção entre essência divina imparticipável e a glória divina participável, de tal maneira que Deus já não possuía senão relações por vontade, jamais por natureza. Paulo de Samosate identificou a essência e a hipóstase em Deus, para evitar uma relação por natureza entre as três hipóstases; pela mesma razão, ele rejeitou a união hipostática das duas naturezas de Cristo, que significava, para ele, uma relação de necessidade. Ele era assim herético, tanto sobre a Santa Trindade como sobre as duas naturezas.

 

Depois da condenação de Paulo de Samosate, seu discípulo Luciano e seus discípulos arianos pareceram seguir a doutrina da Igreja. Arius ensinava a existência de um Logos hipostático, distinto da hipóstase de Deus, que se unira por natureza com Sua humanidade. Ele pretendia que nesse Logos hipostático teria sido criado a partir do não-ser pela vontade de Deus, constituindo assim a primeira criatura antes dos séculos, e diferente do Logos incriado – a verdadeira energia de Deus. O Logos hipostático criado teria se unido, segundo sua própria vontade e por ordem de Deus, à Sua humanidade por natureza. Deus manteria assim suas relações por vontade criativa e livre, sem se misturar nas relações naturais, vale dizer, necessárias, nem no caso da criação, nem no caso da encarnação.

 

Teodoro de Mopsueste aceitou a condenação de Arius, assim como os arianos haviam aceito a condenação de Paulo de Samosate, sem no entanto abandonar seus pressupostos filosóficos comuns. Mopsueste admitia que poderia haver, entre consubstanciais, uma relação por essência ou por natureza, mas não entre o incriado e o criado. As três Pessoas da Santa Trindade tinham umas com as outras uma relação de natureza. O Verbo não se tornara consubstancial a nós por natureza, mas pela benevolência e pela vontade. Partindo desses pressupostos, os nestorianos rejeitaram o fato de que a Mãe de Cristo era a Mãe de Deus (Theotokos).

 

Os eunômios, por terem identificado a essência incriada com a energia incriada, reconheciam a energia de Deus em relação ao Verbo criado como sendo criada, e a energia do Verbo criado em relação ao Espírito criado como criada; e, também, cada energia nas espécies (gêneros criados) como criada, porque para cada espécie (gênero), existe uma energia que lhe corresponde (análoga).

 

Para todos os Padres da Igreja, Deus transcende todas as categorias do pensamento humano. A energia natural e a vontade natural de Deus, assim como a geração do Filho e a processão do Espírito Santo a partir da Pessoa do Pai, a união hipostática ou natural das duas naturezas em Cristo, a energia natural e a vontade criadas da natureza humana de Cristo, tudo isso não possui relação alguma com a necessidade.

 

 

2.5. Mudança de religião com os mesmos dogmas

 

Esse estudo mostrou a falsificação e a desnaturalização do conteúdo dos dogmas da ortodoxia, despojados de seu sentido original e de sua finalidade.

 

Nas suas Recommandations à la Nation, Korais se mostrou incapaz de assimilar a lógica dos Padre que formularam esses dogmas. Ele tentou introduzir, anticientificamente, uma visão metafísica de suas verdades. Korais e seus adeptos ignoraram que os dogmas possuem por gnomon – ou esquadro – a deificação e, por objetivo, a guarda da tradição terapêutica da purificação e da iluminação do coração, a aquisição do amor pela visão de Deus em Cristo.

 

A “ortodoxia” de KOrais substituiu:

a.       A purificação do coração pela moral filosófica evanescente;

b.       A iluminação do coração pela iluminação metafísica agonizante do pensamento; e

c.       A deificação antes da morte, por absolutamente nada.

 

Ele ligou a ortodoxia à idolatria dos antigos Helenos, para que ali ela pudesse encontrar as bases destruídas que os Francos já haviam encontrado ao seguir Agostinho.

 

A teologia neo-helênica, tal como foi desenvolvida após a fundação do Estado neo-helênico e da Igreja autocéfala da Grécia, não consistiu numa evolução interior normal, saída da tradição patrística, mas num desenraizamento violento provocado por um centro de decisão estrangeiro, fora dos fundamentos autênticos, que tentaram substituir a filosofia e a ética impostas em alta posição.

 

Desde sua época, os princípios éticos e filosóficos de Korais já haviam começado a ser abandonados no Ocidente, e considerados como detritos descartados. A questão que se coloca, é a de saber se os neo-helênicos vão continuar a se alimentar desses detritos, ou se vão retornar à teologia experimental da ortodoxia, reencontrando assim a regra da purificação e da iluminação segundo a qual letrados e iletrados segundo esse mundo, participam em igualdade da verdade.



[1] Região do sudeste da Europa administrada pelo Império Otomano, na área correspondente aos Balcãs.

[2] Romanos 3: 23.

[3] Romanos 1: 24.

[4] I Coríntios 15: 52.

[5] Romanos 8: 17.

[6] I Coríntios 4: 8; 2 Timóteo 2: 12.

[7] Gênesis 1: 28.

[8] Romanos 1: 22.

[9] I Coríntios 14: 15.

[10] I Coríntios 12: 26.

[11] Efésios 3: 5.

[12] I Coríntios 12: 28.

[13] I Coríntios 14: 18.

[14] I Coríntios 14: 17.

[15] I Coríntios 14: 7.

[16] I Coríntios 14: 6.

[17] I Coríntios 14: 10.

[18] I Coríntios 14: 17.

[19] I Coríntios 14: 11.

[20] I Coríntios 14: 22.

[21] I Coríntios 14: 1.

[22] I Coríntios 14: 5.

[23] I Coríntios 13: 8.

[24] I Coríntios 13: 9.

 

[25] I Coríntios 13: 10.

[26] I Coríntios 13: 11.

[27] I Coríntios 13: 12.

[28] João 14: 19.

[29] I Coríntios 12: 28.

[30] Efésios 5: 19.

[31] Romanos 5: 5.

[32] Romanos 8: 7.

[33] Romanos 8: 16; Gálatas 4: 6; I Tiago 5: 17.

[34] Romanos 8: 30.

[35] Efésios 2: 19.

[36] Atos 2: 17, 21; I Coríntios 11: 5.

[37] Êxodo 19: 6; I Pedro 2: 9.

[38] Gálatas 3: 28.

[39] I Coríntios 13: 8.

[40] João 14: 9.

[41] João 16: 15.