segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Evagro o Pôntico - Kephalaia Gnostika

 

EVAGRO O PÔNTICO

KEPHALAIA GNOSTIKA

 

PRIMEIRA CENTÚRIA

 

CAPÍTULOS DE CONHECIMENTO

PARA A INSTRUÇÃO E O PROGRESSO DOS MONGES

 

1.       Nada se opõe ao Bem primeiro, porque ele é o Bem em sua essência, e nada existe que se oponha à essência.

2.       A oposição existe nas qualidades, e as qualidades pertencem aos corpos; portanto, a oposição se encontra nas criaturas.

3.       Toda natureza racional é uma essência cognoscente, e nosso Deus é cognoscível; ele reside de modo indiviso naqueles em quem reside, como a arte terrestre, mas ele é superior a esta, na qual ele existe substancialmente.

Toda natureza é cognoscente, e somente Deus é cognoscível, não sendo dividido por aqueles nos quais ele reside. Mas como é Deus conhecido naqueles nos quais ele reside? É como a arte nos artistas, mas ele é distinto disso, na medida em que ele reside substancialmente naqueles nos quais ele reside.

4.       Tudo o que foi produzido, ou bem é susceptível de uma oposição, ou bem é constituído por uma oposição. Mas nem tudo o que é susceptível de oposição está também unido com as coisas que são constituídas por uma oposição.

5.       Os princípios não engendram e não são engendrados; apenas o que é intermediário engendra e é engendrado.

6.       Por comparação, somos uma coisa diferente daquilo que está em nós; mas aquilo em que estamos e aquilo no qual está aquilo onde estamos, formam uma só coisa.

7.       Quando forem levantados os que estão unidos, também o número será elevado; e, quando esse for elevado, serão uma só coisa aquilo que está em nós e aquilo no que devemos ser.

8.       Quando foi separado aquilo no que devemos ser, foi gerado aquilo em que somos; e quando for misturado aquilo que está em nós, será elevado aquilo que for elevado com o número.

9.       Quando estamos naquilo que é, podemos ver aquilo que é. Por outro lado, quando estamos naquilo que não é, geramos o que não é. Mas quando aquelas coisas nas quais estamos são removidas, aquilo que não é deixará de existir.

10.   Entre os demônios, existem aqueles que se opõem à realização dos mandamentos, outros que se opõem aos atos que conduzem ao entendimento da natureza, e outros que se opõem a que se fale ou se discuta a respeito da divindade. Porque também o conhecimento que conduz à nossa salvação é constituído por esses três aspectos.

11.   Todos aqueles que possuem agora corpos espirituais exercitam sua função real sobre os mundos/éons que vêm à existência, enquanto que aqueles que estão ligados aos corpos carnais, e que praticam os mandamentos, ou que se opõ0em, exercitarão sua função real sobre os mundos/éons por vir.

12.   O que existe sem mediação é o Um. E esse Um, para os intermediários, está em tudo.

13.   Dentre os lógicos [logika], alguns recebem a contemplação espiritual e a praktiké; outros dentre eles, por outro lado, recebem a praktiké e a contemplação; e outros dentre eles recebem os obstáculos e o discernimento.

14.   Em cada uma das artes podemos ver a pessoa que é competente nelas, ao mesmo tempo em que se encontra em todas essas coisas o conhecimento do Um que é, uma vez que o Senhor “a tudo fez com Sabedoria”.

15.   Quando o quatro é eliminado, também o cinco o é. Mas quando o cinco é eliminado, o quatro não é eliminado junto com ele.

16.   O que foi separado do cinco não foi separado do quatro, enquanto que o que é separado do quatro é também liberado do cinco.

17.   Quando aquilo que está em nós tenha mudado, aqueles em quem estamos também mudarão, e isso por muitas vezes, até que o que existe já não possa ser nomeado por meios, modos ou maneiras.

18.   O telos da praktiké e do tormento é a herança dos santos. Agora, o que se opõe ao primeiro é a causa do segundo. E o telos desse é a herança do que estão postos.

19.   O conhecimento que reside no quatro é o conhecimento da intelecção das criaturas, mas o conhecimento do Um é o conhecimento daquele que somente ele é.

20.   Quando apenas o conhecimento das coisas que vieram à existência por acidente permanecer em nós, então somente o Um que é conhecido será conhecido, apenas ele, pelo sujeito que conhece.

21.   O bem e o mal, que são considerados como não tendo necessidade, alguns são encontrados dentro da alma, e outros dentre eles fora dela. Mas aqueles de que se diz serem maus por natureza, é impossível que venham à existência fora dela.

22.   Os corpos dos demônios possuem cor e forma, mas escapam à percepção dos nossos sentidos, porque sua composição (organização) não é similar à composição (organização) dos corpos que caem sob nossos sentidos. De fato, quando eles desejam aparecer aos seres humanos, eles se transformam em completa semelhança dos nossos corpos, sem nos mostrar seus verdadeiros corpos.

23.   As intelecções das coisas que estão sobre a terra são “os bens da terra”. Mas, se os santos anjos as “conhecem”, segundo a palavra da Tecuita[1], os anjos de Deus comem os bens da terra. Mas se diz que “O homem comeu o pão dos anjos[2]”; fica assim evidente que alguns dentre os homens conheceram as intelecções daquilo que está sobre a terra.

24.   Se a espiga está em potência contida no grão, também a perfeição está em potência naquilo que é susceptível de perfeição. E, se é assim, não é a mesma coisa que o grão e o que está contido nele, nem a espiga e o que está contido no grão; mas a mesma coisa é o grão daquilo que está contido na espiga e a espiga desse grão. Embora, com efeito, o grão se torne espiga, o grão daquilo que está na espiga ainda não recebeu a espiga. Mas, quando ele for libertado da espiga e do grão, ele possuirá a espiga desse primeiro grão.

25.   Aqueles que pretendem nos submeter a uma crítica impiedosa, ou bem questionam a potência racional da alma, ou bem se esforçam por capturar a parte passiva que nela existe, ou ainda o corpo e tudo o que envolve o corpo.

26.   Se o corpo humano é parte desse mundo, e que “a forma desse mundo passará”, é evidente que a forma do corpo também passará.

27.   São cinco as principais contemplações sob cujo signo todas as contemplações são compreendidas. A primeira, como dizem os Padres, é a contemplação da Trindade adorável; a segunda e a terceira, a contemplação dos incorpóreos e dos corpos; a quarta e a quinta, a contemplação do juízo e da providência de Deus.

28.   Dentre as muitas vias que existem, três são vias de salvação, que possuem em comum o fato de que destroem os pecados; mas duas delas tem como característica que libertam das paixões, e a virtude da terceira é que ela será sempre causa de glória. A glória da salmodia[3] acompanha a primeira, o canto da salmodia a segunda, e a glória da exaltação a terceira.

29.   Assim como por meio do corpo vemos as cores, as formas e os números, por meio dos quatro elementos a matéria é destruída; por meio deles, de fato, ela adquire o fato de que ela era o que ela foi.

30.   O fogo só se distingue dos quatro elementos pelo que há de vivo ele.

31.   Assim com entre os homens está Israel, entre os países está Judá e entre as cidades está Jerusalém, que foram chamados “a parte do Senhor”, também o signo dos símbolos das intelecções em todos os logoi é “a parte do Senhor”.

32.   Os homens que viram qualquer coisa daquilo que está nas naturezas, captaram apenas sua contemplação (visão) comum; com efeito, somente os justos receberam a ciência espiritual das naturezas. E quem discute a esse respeito parece alguém que diz: Eu estava na companhia de Abrahão quando ele avançava no caminho com suas duas esposas. O que ele diz é verdade, mas ele não viu as “duas alianças”, e não compreendeu quem são os que nasceram delas.

33.   Assim como cada uma das artes necessita de um sentido aguçado que lhe convenha, também o nous precisa de um sentido espiritual para distinguir as coisas espirituais.

34.   Os sentidos são naturalmente feitos para sentir as coisas comuns; mas o nous sempre se dirige e espera [ver] qual contemplação espiritual se apresentará espontaneamente à sua visão.

35.   Assim como a luz, uma vez que nos permite ver, não necessita de outra luz por meio da qual ela seria vista, também Deus, uma vez que nos faz ver todas as coisas, não necessita de uma luz com a qual seja visto; com efeito, “Ele é luz” em sua essência.

36.   Não são a mesma coisa o sentido e o órgão do sentido, e o sensitivo e o sensível. Com efeito, o sentido é a potência por meio da qual costumamos sentir as matérias; os órgãos dos sentidos são os membros nos quais residem os sentidos; o sensitivo é o ser vivo que possui os órgãos dos sentidos; o sensível é o que se apresenta aos órgãos dos sentidos. Mas não é assim o nous, pois ele é privado de um desses quatro.

37.   O sentido espiritual é a impassibilidade da alma racional, que é produzida pela graça de Deus.

38.   Assim como, quando estamos acordados, dizemos muita coisa sobre os sonhos, e que, quando dormimos, os aprendemos pela experiência, também tudo o que compreendemos a respeito de Deus, estando nós fora dele, somente quando estivermos nele receberemos por experiência sua demonstração.

39.   Quando fomos produzidos no princípio, sementes de virtude se encontravam naturalmente em nós, e nenhuma malícia. Com efeito, não se trata de que aquilo de que somos susceptíveis possua uma potência em nós, porque, enquanto que nós poderíamos não ser [bons], a potência daquilo que não seríamos não está em nós, dado que as potências são qualidades, e que aquilo que não é não é uma qualidade.

40.   Houve um tempo em que a malícia não existiu, e haverá um tempo em que ela não existirá mais; mas não existiu um tempo em que não houvesse virtude, nem haverá um tempo em que ela não existirá mais. Com efeito, as sementes da virtude são indestrutíveis. Convenço-me disso com a história do rico condenado ao Sheol por causa de sua malícia, e que sentia piedade por seus irmãos; ora, sentir piedade é uma bela semente de virtude.

41.   Se a morte é secundária em relação à vida, e a doença é secundária em relação à saúde, é evidente que a malícia é secundária em relação à virtude. A morte e a doença da alma, com efeito isso é e malícia, mas a virtude é mais antiga que o justo meio[4].

42.   Onde se diz que Deus age, e onde ele mais age, é onde ele está mais presente; ora, onde ele mais age é nas naturezas racionais e santas. É, portanto, nas potências celestes que ele está mais presente.

43.   Deus está em toda parte, mas ele não é parte; ele está em toda parte, porque em tudo o que foi produzido ele está por sua “sabedoria plena de verdades”; mas ele não é parte, porque ele não se conta entre os seres.

44.   Se o reino dos céus é conhecido pelo que é anterior a tudo e contém tudo, também o tormento dos que serão julgados será conhecido como os eu oposto.

45.   Não existe nada nos incorpóreos que esteja em potência nos corpos; o incorpóreo é o nosso nous, quando ele se torna semelhante a Deus.

46.   Eles possuem em ato tudo o que está em potência nos corpos, e são conaturais em relação àqueles de que procedem. Mas o nous que conhece a Deus está liberto da forma e da matéria.

47.   Não existe nada que esteja em potência na alma e que nela esteja naturalmente também em ato; com efeito, é pela liberdade que ela cresce e é a potência de Deus que a torna perfeita[5].

48.   As marcas que estão nos corpos existem também naqueles que as geraram. Massa alma, pela liberdade que lhe foi dada por Deus, imprime seu ser como quer, seja para se tornar semelhante a Deus, seja para se tornar semelhante aos animais[6].

49.   Não é a Unidade que se coloca em movimento à parte de si; ela é colocada em movimento pela receptividade do nous, o qual, por sua negligência, dela desvia seu olhar e, por se privar dela, gera a ignorância.

50.   Tudo o que foi produzido, o foi pela ciência de Deus; mas, dentre os seres, alguns vêm primeiro, outros depois. Mais antiga do que os primeiros é a ciência, e mais antiga que os demais é o movimento.

51.   O movimento é a causa da malícia, e a virtude é sua destruidora. Mas virtude é filha dos nomes e dos modos, e a causa desses é o movimento.

52.   Quando a ciência verdadeira estiver naqueles que são os primeiros por sua gênese, esses obterão pela graça também a ciência da Trindade santa.

53.   Os demônios que lutam com o nous são chamados pássaros, os que perturbam o thymos são chamados animais, e os que excitam a epithymia são chamados feras.

54.   A plenitude dos que são os primeiros por sua gênese é sem fim, e num termo está contida a vacuidade. Os seres secundários são co0065tensíveis com a vacuidade e eles repousarão quando a plenitude perfeita conduzir os que dela são susceptíveis para a ciência da Unidade da Trindade santa.

55.   Os que são os primeiros por sua gênese serão naturalmente libertos somente do ato da corrupção; mas a libertação de todos será completa quando for feita a vontade do Senhor de tudo.[7]

56.   Os bons serão causa de ciência e de tormento, e os maus, apenas de tormentos.

57.   Os homens temem o Sheol, e os demônios, o abismo.[8]

58.   Dentre os mortos, uns têm como causa a condenação primeva; para outros, essa causa é a graça libertadora; e a causa da terceira morte é a remissão que se faz pela misericórdia. Mas é imortal aquele para quem nenhuma dessas três chega[9].

59.   Assim como aluz e as trevas são coisas acidentais para o ar, também para a alma racional a virtude e a malícia, a ciência e a ignorância, a virtude e a ciência, estando as duas primeiras nela.

60.   Se hoje em dia eles recebem a prudente economia em suas casas, é evidente que ontem eles se sentaram a cumprir com suas obrigações. Porém, foi chamado “prudente” o que remiu a seus colegas uma parte dos bens sob seu domínio.

61.   Não existe nenhum dos seres secundários que não seja susceptível de ciência, e nenhum dos primeiros que esteja contido [antes] em um lugar.

62.   Diz-se que a ciência ocupa um lugar, quando ela frequenta as intelecções das criaturas, mas que está em parte alguma quando contempla a Trindade santa.

63.   Que os logikoi estejam ou não estejam, isso é da vontade do Criador; mas que eles sejam mortais ou imortais, isso é da sua própria vontade [e também que eles estejam ou não unidos a tal ou qual].

64.   A verdadeira vida dos logikoi é sua atividade em espírito, e sua morte é a atividade contra a natureza. [Mas se é mortal de tal morte aquilo que é naturalmente feito para expulsar a vida verdadeira, qual ser poderá ser imortal? Com efeito, toda natureza é passível de oposição.]

65.   Na ciência dos que são secundários por sua gênese, diversos mundos se constituem e combates indizíveis acontecem. Mas nada disso acontece na Unidade; aí existe uma paz indizível e só existem os nous que se saciam de sua insaciabilidade, na medida em que, segundo as palavras de nosso Salvador, “o Pai não julga ninguém, mas entregou todo o julgamento a Cristo”.

66.   Diz-se que as virtudes estão diante de nós, diante dos sentidos que as veem; mas as más ações estão atrás de nós [do lado que não possuímos sentidos], porque são cumpridas nas trevas. De fato, nos foi ordenado “fugir da fornicação” e “perseguir a hospitalidade”.

67.   Quem conhecerá a sustasis[10] do mundo a e atividade dos elementos? Quem compreenderá a composição desse órgão da alma? Ou então, quem perscrutará como tal coisa foi unida a tal outra, quais são seu domínio e sua participação uma na outra, de sorte a que a praktiké se torne um carro para a alma racional que se aplica em alcançar a ciência de Deus?

68.   Entre os anjos predomina o nous, entre os homens a epithymia, e entre os demônios o thymos. Os Padres dizem que os primeiros se aproximam dos intermediários pela boca, e os últimos pelas narinas.

69.   Aquele que lidera a ciência tem outros atrás de si; mas o que lidera a ignorância não tem.

70.   A imagem perfeita de Deus é obtida perla ciência da Trindade santa; depois dela, é a que possui a ciência dos incorpóreos; depois a que tem a contemplação dos corpos; depois a que tem a intelecção dos mundos, e, por último, a que possui a saúde da alma.

71.   O fim da ciência natural é a Unidade santa; mas não existe termos para a incompreensão, dizem os Padres, como está escrito: “Não há limite para a sua inteligência”.

72.   O Senhor tem piedade daquele a quem concedeu a ciência espiritual, porque está escrito: “O justo caminha na luz e o insensato nas trevas”. Mas o Senhor tenha também piedade do insensato, na medida em que não o atormenta imediatamente, mas fixa para ele um modelo para que ele se converta e viva.

73.   A vida do homem é a ciência da Trindade santa, e o sinal da misericórdia de Deus é a contemplação dos seres; e muitos sábios desse mundo prometeram a ciência, mas “melhor do que a vida é a misericórdia de Deus”.

74.   A luz do nous se divide em três, a saber: na ciência da Trindade adorável e santa, na natureza corporal e incorporal, e na intelecção das criaturas.

75.   Se a “coroa da justiça” é a ciência da Trindade santa, é evidente que no final de sua carreira os santos serão coroados com ela.[11]

76.   Não é à ciência verdadeira, oculta nas naturezas, que a ignorância é oposta, mas à ciência das crianças [a ciência dos inteligíveis dos objetos]. Mas quando as crianças crescerem, elas ultrapassarão a ignorância. [A ignorância não é naturalmente feita para estar numa natureza corporal].

77.   O nous de todos os logikoi impressos à semelhança de seu Criador é Cristo nosso Salvador; é ele que as torna perfeitas na ciência da Trindade santa.[12]

78.   A primeira renúncia do mundo, que se faz na alma. É essa: que abandonemos com boa vontade as coisas desse mundo pela ciência de Deus.

79.   A segunda renúncia é o afastamento do mal, que se produz pela aplicação do homem e a graça de Deus.

80.   A terceira renúncia é a separação da ignorância, que costuma aparecer aos homens como fantasmas no combate, segundo o grau de seu crescimento.

81.   A ciência espiritual é a glória e a luz do nous, e a glória e a luz da alma são sua impassibilidade.

82.   O que a morte sensível costuma fazer em nós, semelhantemente o “julgamento justo de Deus” realizará para todos os demais logikoi, quando chegar o tempo em que vier para julgar os vivos e os mortos, pagando a cada um conforme suas obras.

83.   Se o Gihon é o rio egípcio que contorna a terra de Cousch, de que Israel recebeu a ordem de não beber, de um de seus profetas, nós conhecemos seus outros três braços, e o rio a partir do qual se separaram os quatro braços[13].

84.   O nous dos logikoi é susceptível de ciência e de ignorância, a epithymia é susceptível de castidade e de luxúria, e o thymnos, de amor e ódio. O que é primeiro entre os primeiros é acompanhado pelo que é primeiro entre os segundos, e o que é primeiro entre os segundos, pelo que é primeiro entre os terceiros.

85.   O nous vagabundeia quando se torna aprazível, ou seja, ele e incoercível quando realiza diversos desejos. Mas ele se detém em seu impulso e renuncia a se perder quando se torna impassível e chega à companhia dos incorpóreos, que o cumulam com os prazeres espirituais.

86.   O amor é o estado excelente da alma racional, e quem o alcança não pode amar mais nada que seja desse mundo, senão a ciência de Deus.

87.   Tudo o que foi produzido o foi pela ciência de Deus; ora, tudo o que foi produzido por outra coisa é menor do que o que foi produzido; por causa disso a ciência de Deus é superior a tudo, pois é por ela que tudo foi produzido.

88.   A ciência natural é a compreensão verdadeira dos que foram produzidos pela ciência da Trindade santa.

89.   Toda natureza racional é naturalmente feita para aprender a ciência verdadeira, e Deus é a ciência essencial. A natureza racional que foi criada tem como oposição o fato de não ter sido criada, e em oposição à sua liberdade estão a malícia e a ignorância; mas ela não é uma dessas coisas que se opõem a Deus.

90.   Se hoje é sexta-feira, nosso Salvador foi crucificado, e todos os que morreram em Cristo são o símbolo de seu sepulcro, porque com eles foi enterrada a justiça de Deus, que ressuscitará ao terceiro dia, revestida de um corpo espiritual. Com efeito, é verdadeira a palavra do nosso Salvador, de que “hoje e amanhã ele operará milagres, e ao terceiro dia tudo será cumprido”.

 

A Primeira Centúria, da qual faltam dez capítulos, está encerrada.

 


 

SEGUNDA CENTÚRIA

 

 

1.       O espelho da bondade de Deus, de seu poder e de sua sabedoria, é sua criação, que, de nada, se tornou alguma coisa.

2.       Na contemplação natural secundária vemos a “sabedoria cheia de variedades” de Cristo, aquela de que ele se serviu ao criar os mundos; mas na ciência que se refere às coisas racionais, somos instruídos a respeito da substância.

3.       A primeira de todas as ciências é a ciência única da Unidade, e mais antiga do que toda contemplação natural é a ciência espiritual; com efeito, esta saiu antes do Criador, e surgiu com a natureza que a acompanha.

4.       Enquanto que as transformações são numerosas, nós conhecemos apenas a distinção de quatro transformações. A primeira, como dizem os Padres, é a passagem da malícia para a virtude; a segunda, da desobediência para a contemplação natural; a terceira é a ascensão desta à ciência das naturezas racionais (logikoi); a quarta é a passagem de todas essas coisas à Trindade santa.

5.       O corpo espiritual das naturezas racionais consiste na contemplação dos seres; e sua vida verdadeira é a ciência da Unidade santa.

6.       A alma praktiké que, pela graça de Deus, triunfou e se tornou parte do corpo permanecerá nessas regiões da ciência onde as asas de sua impassibilidade permitiram que chegasse.

7.       Herdarão a alma após a morte aqueles que, seja na virtude, seja no vício, foram para ela treinadores e auxílio.

8.       A riqueza da alma é a ciência espiritual, e sua pobreza é a ignorância; mas, se a ignorância é a privação da ciência, é evidente que a riqueza é anterior à pobreza, e a saúde da alma é anterior à sua enfermidade.

9.       Quem conhece a atividade dos mandamentos de Deus? Quem compreende as potências da alma, e como aqueles curam a estes e os fazem se aproximar da contemplação verdadeira?

10.   São desejáveis as coisas conhecidas pelos órgãos dos sentidos, mas mais desejáveis são aquelas que constituem a contemplação da ciência verdadeira. Mas, como os sentidos não alcançam a ciência, devido à sua enfermidade, eles são considerados superiores a essa, que, embora superior a eles, ainda não foi alcançada.

11.   Podemos receber uma contemplação, pela graça de Nosso Senhor, de tudo o que é constituído de quatro elementos, quer esteja próximo, quer distante. Mas nosso nous né incompreensível para nós, e Deus, seu autor, mais ainda, porque, de fato, Deus não é compreensível, e tampouco o lugar onde ele habita.

12.   A direita de Cristo também é chamada de mão, mas sua mão não é chamada de sua direita, porque o signo de uma está no dom, e o signo da outra, na correção. [Sua mão é passível de crescimento de diminuição, o que não acontece com sua direita].

13.   A contemplação espiritual primeira é suficiente para a gênese das naturezas racionais, e a segunda bastará para sua ascensão até a perfeição.

14.   Os que são iguais na perfeição de suas condutas serão iguais também na recompensa de seus trabalhos, e os que são iguais na sua ciência espiritual serão iguais também na glória de sua herança.

15.   Quando a natureza racional receber a contemplação de si mesma, então a potência do nous será plenamente perfeita.

16.   Tal é a ciência de tudo o que foi produzido, que é fazer a alma que dela participa chegar até a ciência da Trindade santa.

17.   Pelo crescimento da ciência dos logikoi os mundos mudam e os nomes [e os corpos] são destruídos, enquanto que permanece a igualdade da ciência segundo a igualdade das substâncias.

18.   Assim como os corpos são ocultos, seja pelas qualidades, seja pelas cores que são transmitidas por eles, também as naturezas racionais são ocultas pela virtude e a ciência, ou pela malícia e a ignorância.

19.   A ciência espiritual que é anterior ao corpo, a essa o Criador, depois da gênese no corpo, ensina a natureza racional.

20.   A ciência espiritual que é anterior ao corpo, o Criador, posteriormente à sua gênese no corpo, a ensina a natureza racional.

21.   Tudo o que foi produzido é a herança da “sabedoria cheia de variedades de Deus”; mas não há nada, de tudo o que foi produzido, que seja compreensível por sua natureza.

22.   Assim como a semelhança do Pai aparece e é mostrada em sua natureza racional pelo Verbo verdadeiro, Seu Filho e Nosso Senhor Jesus Cristo, o mesmo acontece com sua semelhança, que é mostrada pela natureza racional. [Assim como o Verbo permite conhecer a natureza do Pai, também a natureza racional permite conhecer a de Cristo].

23.   A imagem da essência de Deus conhece também a contemplação das coisas que existem; mas o que conhece a contemplação do seres não é o mesmo que é à imagem de Deus. [Aquele que é feito “à semelhança de Deus”, esse é doutor na ciência que lhe concerne, vale dizer, próximo de toda a natureza racional que foi produzida à sua imagem.]

24.   Existe somente um que, em sua bondade, tomou para si a aquisição dos nomes emprestados com suas denominações.

25.   Assim como é chamado de grão da futura espiga, o corpo daquele que foi semeado, também esse mundo presente será chamado grão do mundo por vir.

26.   Se “o trigo” é o sinal da virtude, e “a palha” é o sinal do vício, o mundo futuro traz em si o signo da peneira separadora que fará a divisão entre o trigo e a palha.

27.   O nous espiritual que considera os inteligíveis, tanto recebe sua visão separadamente, como se torna um observador iluminado.

28.   O olho sensível, ao olhar qualquer coisa visível, não vê a sua totalidade; mas o olho inteligível, ou não vê, ou, se vê, envolve de todos os lados aquilo que vê.]

29.   Assim como o fogo possui seu corpo em potência, também o nous, em potência, possui a alma, na medida em que se mistura inteiramente à luz da Santa Trindade.

30.   De todos aqueles que receberam o governo das potências santas, conhecem elas a intelecção de sua ciência; mas nem de todos aqueles de quem elas conhecem a intelecção, lhes foi confiado também o governo.

31.   Os homens vivem três vidas distintas: naturalmente, acima da natureza e contra a natureza; duas são segundo a vontade de Deus, e uma reflete a negligência de sua vontade. [Os homens vivem três vidas: a primeira, a segunda e a terceira. A primeira e a segunda vidas recebem aqueles que pertencem à primeira natureza; mas a terceira vida recebem os que pertencem à natureza segunda. E dizemos que a primeira vida provém do que é, mas que a segunda e a terceira provêm do que não é.]

32.   Assim como não são as matérias que alimentam os corpos, mas sua potência, também não são os objetos que fazem crescer a alma, mas sua contemplação.

33.   O crescimento da ciência dos logikoi está na visão dos corruptíveis e dos incorruptíveis; sua aprendizagem, nos corruptíveis e sua perfeição nos incorruptíveis.

34.   Assim como a pedra de magnésio, pela potência natural oculta nela, atrai o ferro, também a ciência santa atrai para si o nous puro.

35.   Também o nous possui cinco órgãos de sentido espirituais, com os quais ele vê e sente as intelecções das criaturas. A visão lhe mostra o ser das coisas enquanto objetos; com o ouvido ele recebe os logoi que lhes concernem; pelo olfato ele se deleita com seu odor santo, no qual não existe mistura enganadora; pelo paladar ele se deleita com seu sabor; pelo tato ele recebe com exatidão a certeza verdadeira que neles existe.

36.   Não é a todos os videntes dos objetos inteligíveis, que foi, desde logo, confiado o logos verdadeiro que lhes concerne; e tampouco aos que foram confiados seus logoi para que vejam, que vejam também seus objetos. Mas existem alguns que obtêm essas duas distinções, e que são chamados de “primogênitos entre seus irmãos”.

37.   Existe apenas um, dentre todos os seres, que não tem nome e cuja região não é conhecida.

38.   Uma parte da intelecção da oikonomia está nos dias anteriores à Páscoa, e uma parte é representada no santo Pentecostes.

39.   Os cinco são aparentados aos cinquenta, e esses são a causa da intelecção.

40.   O número dos quatro participa do mistério dos quarenta, e esses de sua contemplação.

41.   Existe um que, sem o quatro e o cinco, pode conhecer o mistério dos quarenta e dos cinquenta.

42.   Quem virá para a santa Páscoa, e quem conhecerá o santo Pentecostes?

43.   Existe um que lá foi deixado, que lá mesmo será encontrado.

44.   Não são todos os santos que comem o pão, mas todos bebem do cálice.

45.   Os órgãos dos sentidos e o nous partilham dos sensíveis; mas somente o nous tem a intelecção dos inteligíveis; com efeito, ele se torna um vidente dos objetos e dos logoi dos objetos.

46.   A arte do artesão contém sua obra, e a sabedoria de Deus contém tudo. E, assim como alguém que separa a arte do artesão dele próprio, destrói sua obra, também aquele que ousa separar a sabedoria de Deus dele é um destruidor de tudo.

47.   A santa Trindade não é contada na contemplação dos sensíveis e dos inteligíveis, porque aqueles são corruptíveis, e esses estão sujeitos a mudanças; somente a santa Trindade é a ciência essencial.

48.   Se o nous avança por seu próprio caminho, ele encontra as potências santas; mas se ele segue pelo caminho das concupiscências do corpo, ele encontra os demônios.

49.   Aquele que foi o primeiro a receber a espiga do grão se torna o primeiro em relação aos que receberam o grão; o que recebeu em segundo lugar a espiga se torna o primeiro em relação ao que receber eu terceiro lugar, e assim por diante, até que se esgote a potência do grão.

50.   Quando os que engravidam deixem de engravidar, então “tremerão os guardas do palácio”, e suas colunas fraquejarão e se inclinarão; então as duas cabeças se guarnecerão de rosa e de linho.

51.   O carro da ciência são o fogo e o ar; o carro da ignorância, o ar e a água.

52.   Dentre os demônios, alguns são chamados de conhecedores inteligíveis, e outros receberam a ciência do conhecimento deles.

53.   Um único é adorável, aquele que é o único Único.

54.   A ciência não avança pelas regiões da ignorância, mas pelas regiões da ciência.

55.   Dentre os logikoi alguns atraíram para si a ignorância por sua vontade, outros sem sua vontade. Os segundos são chamados cativos, os primeiros são chamados captores, de quem Nosso Senhor “resgatou os cativos”.

56.   O nous ensina a alma, a alma ensina o corpo; somente o “homem de Deus” pode conhecer o homem da ciência.

57.   Aprendemos que existem três altares nas alturas, dos quais um só é único e não composto, enquanto os outros dois são compostos.

58.   Aos que hoje habitam a largura foram dados os três altares; mas os que habitam no comprimento e na profundidade, eles lhes serão dados no mundo do porvir.

59.   Os testemunhos da longanimidade de Nosso Senhor o Cristo são aqueles que se fizeram contrários à virtude; e os arautos de suas numerosas misericórdias são os que são objeto de sua providência, sem que sejam dignos.

60.   A “mesa” de Cristo é Deus Pai, e a mesa de seus irmão pela misericórdia é ele, próximo ao Pai.

61.   Vemos a contemplação primeira espiritual nas potências santas, e a potência natural segunda nos homens.

62.   Quando os nous dos santos receberem a contemplação de si mesmos, também a pesandez do corpo será retirada do meio, e daí por diante a visão se tornará espiritual.

63.   Dentre as ciências, algumas são imateriais, outras são conhecidas na matéria. Mas a ciência da santa Trindade é superior a todas.

64.   A revelação de tudo o que foi produzido está escrita e não escrita. Não escrita é aquela que é revelada pelo Espírito ao nous, e escrita é aquela que foi dada pelo Espírito sobre o Horeb.

65.   Por meio dos que chegaram por sua vontade à realização total do mal, nós aprendemos a grandeza da longanimidade de Deus; e por meio daqueles que, com sua boa vontade, trabalharam para exercer boas ações, aprendemos a misericórdia transbordante de Nosso Senhor.

66.   Nas diferenças de crescimento dos corpos, vemos o mistério da diferença de crescimento dos logikoi; e na denominação de sua composição vemos a diferença de posição (rang) desses. [A gênese dos corpos não é a gênese dos logikoi que eles permitem conhecer; mas ela introduz a natureza dos nomes, e a composição desses mostra a diferença de posição daqueles.]

67.   Quando os homens chegarem à contemplação daqueles que não são divididos, também eles serão sem divisão.

68.   Diz-se que estão no alto os que possuem corpos leves, e embaixo os que possuem corpos pesados; e mais abaixo desses, os que possuem corpos tenebrosos e impuros.

69.   Não foi sobre a distinção das coisas celestes que o Espírito Santo nos revelou por intermédio de Moisés, mas sobre a distinção dos seres que estão nesse mundo. [Não foi a distinção primeira dos logikoi e a gênese dos corpos que o Espírito Santo nos deu a conhecer, mas a distinção presente dos logikoi e a transformação dos corpos.}

70.   Se Deus “criou tudo com sabedoria”, não existe nada criado por ele que não contenha, cada uma em particular, o signo das luzes.

71.   A contemplação dos incorpóreos não se eleva, nem se abaixa; mas a contemplação dos corpos se eleva e se abaixa. [A contemplação dos incorpóreos permanece no não-rebaixamento; mas a que concerne aos corpos, ela aparece em parte como capaz de rebaixamento e em parte incapaz de se rebaixar.]

72.   Se a ciência dos espirituais é anterior e principal à ciência dos corpóreos, é evidente que seus corpos são mais leves e luminosos do que esses.

73.   Da mesma forma como aquele que, por meio de seu Verbo, nos revelou as coisas do mundo por vir, mas não nos expôs sobre a gênese dos corpos e dos incorpóreos, do mesmo modo aquele que nos ensinou sobre a gênese desse mundo [sobre o monte Sinai] não nos deu a conhecer a passagem dos corpos e dos incorpóreos, mas expôs sua distinção e transformação.

74.   Quem é aquele que compreendeu a distinção primeira? Quem conheceu o movimento primeiro e o modo como os logikoi, por seu próprio trabalho, retornam à sua herança? [Quem conheceu a distinção primeira e viu a gênese dos corpos e esse mundos variados, de que se nutrem certas potências santas e que exerceram uma realeza bem-aventurada?]

75.   A violação do mandamento pelos logikoi constrangeu Deus a se tornar um juiz para eles, e os que se liberam completamente dos deveres de amor da adoção filia retornam à herança. [Tanto o juiz julgou os justiçáveis, quanto fez ele mundos; e quem conhece o número dos julgamentos conhece também o número dos mundos.]

76.   Assim como os diferentes estados distinguem os logikoi uns dos outros, também as diferenças de suas condutas distinguem seus corpos uns dos outros.

77.   O julgamento último do “justo juiz” não constitui uma mudança nque ele fará nos corpos, mas ele retirará sua pesandez do meio, acrescentando-lhe a potência, a fim de poder perseverar na herança, seja do julgamento, seja do reino dos Céus. [O julgamento final não mostrará a transformação dos corpos, mas fará conhecer sua destruição.]

78.   Cada um dos coros das potências celestes é formado, seja inteiramente de superiores, seja inteiramente de inferiores; e assim ele se constitui de superiores e de inferiores.

79.   Aquele que avança sobre o caminho da ciência, avança na renovação diária; mas o que avança no caminho da ignorância se afasta resolutamente do estado em que se encontra.

80.   Variada é a contemplação do instrumento da alma; diversificada é a contemplação dos instrumentos espirituais; e mais diversa do que esses é a contemplação dos espirituais, porque ela é suscetível da ciência da Trindade santa.

81.   A ciência gera a ciência, e essa gera continuamente os conhecedores para que conheçam.

82.   Tal é a diferença dos logikoi, e também tal a diferença de seu alimento em seus mundos. [Não são os corpos das potências espirituais, mas somente os das almas, que são feitos para se alimentar do mundo que lhes é aparentado.]

83.   Assim como nos órgãos dos sentidos o sentido muda conforme as diferença de qualidades e das cores, também o nous se altera quando ele considera as diferenças das contemplações.

84.   Houve um tempo em que Nosso Senhor era juiz somente dos vivos; mas não houve tempo em que ele tenha julgado apenas os mortos; e haverá novamente um tempo em que ele julgará somente os vivos.

85.   Se os vivos são suscetíveis da virtude e da não virtude, é evidente que os que se opõem a esses estão mortos, eles que, por sua vontade, caíram da vida. [Se os vivos são suscetíveis de aumento e diminuição, é evidente que os que se opõem a eles são mortos que recebem essas mesmas coisas. E isso é assim, e haverá novamente corpos variados, e serão criados mundos para lhes convir.]

86.   Aqueles cuja conduta é exterior, seu pão não é um pão de proposição, e sua bebida é cheia de moscas; mas aqueles cuja conduta é interior, seu pão é um pão de proposição, e sua bebida é pura.

87.   O movimento dos corpos é temporal, mas a mutação dos incorpóreos é intemporal.

88.   A contemplação desse mundo visível não alimenta apenas os homens, como também outras naturezas racionais. [logikoi]

89.   Aquele único que está “sentado à direita” do Pai, somente ele possui a ciência da direita.

90.   Aqueles que viram a luz dos dois luminares espirituais são os que poderão ver a luz primeira da beatitude, que veremos com a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, quando obtivermos a renovação de nossos corpos.

 

A Segunda Centúria, da qual faltam dez capítulos, está encerrada.


 

TERCEIRA CENTÚRIA

 

 

1.       Somente o Pai conhece o Cristo, e somente o Cristo conhece o Pai, um enquanto único na Unidade, outro enquanto Mônada da Unidade.

2.       Cristo é aquele que tem em si toda a Unidade, e que recebeu a humilhação da natureza racional.

3.       A Unidade é aquilo que só é conhecido por Cristo, ele cuja ciência é essencial.

4.       É próprio dos anjos nutrir-se todo o tempo da contemplação dos seres, dos homens, nutrir-se da contemplação dos seres, mas não todo o tempo, e dos demônios, de não se nutrir da contemplação dos seres, nem no tempo, nem no contratempo.

5.       Os nous das potências celestes são puros e cheios de ciência, e seus corpos são de luzes que resplandecem sobre aqueles que se aproximam.

6.       O nous nu é aquele que se realizou na visão de si mesmo, e conseguiu obter a participação na Trindade Santa.

7.       Ele foi confiado à variedade das renovações de nutrição dos logikoi; e os que dele se nutrem aproximam-se da virtude, mas os que não se nutrem dele retornam às mutações defeituosas.

8.       O nous que possui a vestimenta última é aquele que possui a segunda contemplação natural.

9.       No mundo futuro a ignorância dos logikoi estará terminada, e neles será abundante a ciência das distinções, das quais jorrarão a alegria e a tristeza: a alegria para os diligentes, a tristeza para os negligentes. [No mundo futuro os corpos de ignorância serão ultrapassados, e naquele que o seguirá a mudança receberá um aumento de fogo e de ar; e aqueles que estão embaixo se aplicarão doravante à ciência, pois “as casas dos ímpios receberão a purificação” e “hoje e amanhã” Cristo “operará milagres, e no terceiro dia se realizará”.]

10.   O nous que é imperfeito é o que ainda precisa progredir na intelecção das naturezas das criaturas e na contemplação primeira, coisas que ele pode adquirir com esse instrumento. [O nous que é imperfeito é aquele que ainda necessita da contemplação que é conhecida pela natureza corporal.]

11.   O corpo de Cristo recebe “a sabedoria cheia de variedades”, por meio da qual aparece também para nós a ciência da Trindade santa. [A natureza corporal recebeu “a natureza cheia de variedades” de Cristo, mas não é susceptível dela; mas a própria Unidade não pode ser vista, ligada a qualquer um dos seres; e, por causa disso, o nous incorpóreo vê a Trindade santa naqueles que não possuem corpo.]

12.   O nous perfeito é aquele que pode facilmente receber a ciência essencial.

13.   Nós conhecemos a sabedoria da Unidade santa em sua condescendência para com a natureza racional, e por meio dela recebemos as revelações ocultas do Pai e as leis espirituais perfeitas. [Nós recebemos a sabedoria da Unidade unida à natureza que está abaixo dela; mas a própria Unidade não pode ser vista, ligada a qualquer um dos seres; e, por causa disso, o nous incorpóreo vê a Trindade santa naqueles que não possuem corpo.]

14.   A alma deficiente é aquela cuja potência passiva se inclina para a vaidade.

15.   Se a perfeição do nous é a ciência espiritual, como dizem os Padres, e se Sua coroa é a ciência da Trindade santa, é evidente que quem dela se priva está distante da perfeição. [Se a perfeição do nous é a ciência imaterial. Como se diz, e que a ciência imaterial é apenas a da Trindade, é evidente que na perfeição não restará nada da matéria. E, se isso é assim, o nous doravante se tornará um contemplador da Trindade.]

16.   A alma perfeita é aquela cuja potência pacífica age naturalmente.

17.   Os que alcançaram a contemplação primeira se mantém também no estado principal; e os que estão na contemplação segunda se mantém no estado natural; mas os que se mantém nas condutas da virtude estão no estado de pureza e são chamados de terceiros, por seu escalão. [Os que alcançaram a contemplação imaterial, esses estão também na mesma ordem; mas não são os que estão na mesma ordem que estão desde já também na contemplação imaterial. É possível, de fato, que eles ainda necessitem da contemplação que se refere aos inteligíveis, a qual necessita de um nous nu, desde que esse a tenha visto também desnuda.]

18.   O tormento é a dor pelo fogo, que no julgamento purifica a passibilidade da alma.

19.   Assim como a contemplação primeira necessita de um nous nu, também a contemplação segunda necessita de sua nudez, embora diferente da primeira por seu signo. [As contemplações primeira e segunda possuem em comum o fato de possuírem um contemplador nu, mas enquanto uma é imaterial, a outra é material.]

20.   A transformação dos corpos praktika é a renovação que se faz da corporeidade à espiritualidade, segundo o grau de seu estado. [A mudança dos organa é a passagem dos corpos a outros corpos, segundo o grau das ordens que estão unidas a eles.]

21.   As contemplações segunda e terceira possuem em comum a ciência das intelecções das naturezas; mas a que é anterior à outra possui um nous nu. [As contemplações segunda e terceira têm em comum serem materiais, mas uma possui um nous nu e da mesma ordem, e a outra está com o corpo e nas diferentes ordens.]

22.   O movimento primeiro da natureza racional é a separação que se produz do seu nous da ciência particular que há nele. [O movimento primeiro dos logikoi é a separação do nous da Unidade que está nele.]

23.   Os logikoi que estão nos céus possuem em comum os quatro elementos, e em especial da diferença das qualidades. [Existe em comum que todos os mundos são constituídos de quatro elementos, mas em especial que cada um deles possui uma variação de qualidade.]

24.   A ciência que diz respeito à natureza primeira dos logikoi é a contemplação espiritual, à qual estão prometidos após a perfeição de suas condutas. [A ciência da natureza primeira é a contemplação espiritual da qual se serviu o Criador ao fazer somente os nous que são susceptíveis de sua natureza.]

25.   O corpo espiritual de que se revestirão os logikoi intermediários no último dia não é outro do que esse corpo que eles deixarão; mas é o próprio que foi “semeado na corrupção”, que eles vestirão “incorruptível”, tendo sido retificado e abençoado. [O corpo espiritual e seu oposto não serão formados de nossos membros e de nossas partes, mas de um corpo. Com efeito, a mudança não é uma passagem de membros a membros, mas a passagem de uma qualidade excelente ou má a uma mudança excelente ou má.]

26.   A ciência que concerne à natureza segunda é a contemplação espiritual da qual se serviu Cristo ao criar a natureza dos corpos e os mundos a partir dela.

27.   A contemplação primeira da natureza é feita naturalmente para se separar do nous e para não se separar dele. Com efeito, aquele que é ensinado é separável, mas a que aparece no nous que a conhece é inseparável. [A contemplação primeira da natureza é o sinal do movimento do nous e de sua imobilidade.]

28.   A alma pecadora é o nous puro que, por sua negligência, decaiu da contemplação da Unidade santa, e precisa obter, com grande esforço, a imagem perfeita da Trindade santa, da qual decaiu. [A alma é o nous que, por negligência, decaiu da Unidade e que, por causa de sua não vigilância, desceu ao nível da praktiké.]

29.   O caráter do estado humano é o corpo dos homens, e o sinal do estado de cada homem é a grandeza, a forma, a cor, as forças naturais, a fraqueza, o tempo, o lugar, os pais, o crescimento, os modos, as artes, a vida, a morte e tudo o que é possível de conhecer neles que correm atrás dessas coisas.

30.   O nous é o contemplador da Trindade santa.

31.   É impossível dizer no que consiste o movimento do nous; e o que é sua natureza é indizível, porque ela não é constituída dos quatro elementos. [É impossível dizer no que consiste a unidade do nous; e o que é sua natureza é indizível, porque ela não é constituída nem de forma, nem de matéria, e por isso ela não possui a ciência da qualidade.]

32.   A imagem de Deus não é aquela que pode ser representada pelo signo de sua sabedoria, coisa que pode acontecer mesmo entre aqueles que são constituídos dos quatro elementos. A imagem de Deus é aquela que pode receber a ciência da Trindade santa. [A imagem de Deus não é aquela susceptível de sabedoria, pois assim a natureza corporal seria também uma imagem de Deus. Ela é aquela que se torna susceptível da Unidade; essa é a imagem de Deus.]

33.   O signo da vitalidade do nous é chamado de “imortalidade”, e o signo de sua continuidade faz com que ele permaneça eternamente. O primeiro signo é acompanhado da ciência da Trindade santa; o segundo, da contemplação primeira da natureza. [O nome de “imortalidade dá a conhecer a unidade natural do nous, e sua “incorruptibilidade”, o fato de que ele é eterno. O primeiro nome é acompanhado da ciência da Trindade, e o segundo, a contemplação primeira da natureza.]

34.   O demônio é a natureza racional que, por excesso de thymos, decaiu do serviço de Deus.

35.   A ciência cura o nous, o amor cura o thymos, a castidade cura a epithymia. E a causa do primeiro é o segundo, e a do segundo é o terceiro.

36.   O mundo é a sustasis[14] das naturezas que foi constituída por diferentes corpos e 1ue contém diferentes logikoi, para o crescimento da ciência de Deus.

37.   As estrelas se distinguem umas das outras pela glória, e não pelos corpos, pois esses são todos iguais. [As estrelas são superiores umas às outras pela glória, e não pelos corpos; mas sua grandeza, suas figuras, seu distanciamento umas das outras e suas cores, são diferentes. O fato de que algumas estão dentro da sombra da terra e outras fora, e outras ainda no limite separador, ensina-nos sobre suas ordens e sobre a governança que lhes foi confiada por Deus.]

38.   O julgamento de Deus é a justa distinção que colocará nos corpos dos logikoi a recompensa ou a condenação, e em cada um segundo a prática de suas obras, a saber, a glória ou o tormento.

39.   Uma parte do fogo é capaz de queimar, a outra é incapaz; a que é capaz de queimar é a que queima a matéria sensível, e a incapaz de queimar é a que queima as perturbações daqueles que são perturbados. A primeira não consome toda a massa sensível, mas a segunda é capaz de queimar toda a massa das perturbações.

40.   A “trombeta final” é o mandamento do “justo juiz” que revestirá os logikoi de seus corpos, conforme o estado de suas condutas. [A “trombeta final” é o mandamento do juiz que uniu aos logikoi a corpos bons e maus, depois da qual não haverá mais corpos maus.]

41.   A respeito da contemplação dos seres e a respeito da ciência da Trindade, entre nós e os demônios se estabelecerá um grande combate, aqueles tentando nos impedir de conhecer, e nós tentando aprender.

42.   A contemplação é a ciência espiritual de tudo o que foi e que será, que faz crescer o nous e o faz se aproximar da plenitude de sua imagem, tal como foi criado.

43.   Os que se aplicam em se tornar perfeitos na ciência verdadeira possuem em comum a água e o óleo perfumado; em especial, os homens possuem o óleo.

44.   O sol inteligível é a natureza racional que progride para carregar a luz primeira da glória.

45.   Assim como não se pode dizer que exista um nous mais antigo do que outro, tampouco existem corpos espirituais que sejam mais antigos do que os corpos carnais. [Assim como não se pode dizer que exista um nous mais antigo do que outro, tampouco existem corpos espirituais que sejam mais antigos do que os corpos carnais, porque a transformação que causa os dois organa é única.]

46.   O trabalho dos anjos é a solicitude para com as almas enfermas, para que elas se aproximem da plenitude da saúde. [O juízo dos anjos é a ciência que se refere às doenças da alma, que faz com que obtenham saúde os que foram feridos.]

47.   A renovação que se produzirá “num piscar de olhos” para todos os corpos racionais é única, e sob as ordens do “justo juiz”, distribuirá entre eles a retribuição de suas obras. Se alguém ousar dizer que existe outra renovação fora dessa que é absolutamente comum a todos, esse é um sinal de ignorância, e essa pessoa não alcançou a intelecção do “justo julgamento de Deus”.

48.   A renovação espiritual dos justos é a subida da virtude a uma outra virtude, e de uma ciência a uma outra ciência, que lhes são superiores. {A transformação dos justos é a passagem dos corpos praktika e contempladores a corpos contempladores e muito contempladores.]

49.   O nous não será coroado com a coroa da ciência natural se não expulsar de si a ignorância das duas lutas.

50.   A transformação dos pecadores é a passagem de pecados a pecados mais graves e de uma ignorância a outra ignorância ainda mais tenebrosa. [A mudança dos pecadores é a passagem dos corpos praktika ou demoníacos a corpos ainda mais pesados e tenebrosos.]

51.   A ciência se repartirá em toda a natureza dos logikoi no dia da renovação; mas para uns ela será deleite, e para outros tormento. [Todas as mudanças que se produzirão no mundo futuro unirá uns aos outros os corpos excelentes, e uns aos outros os corpos maus. Mas aqueles que se produzirão depois disso serão unidos com organa gnósticos.]

52.   A lua inteligível é a natureza racional iluminada pelo “sol de justiça”.

53.   Qualquer um que, por sua criação, é susceptível da ciência de Deus, mas que, acima dela, honra a ignorância, esse é chamado mau, com toda justiça. Mas a natureza corporal não é susceptível dessa ciência, e assim não falam com justiça aqueles que afirmam que o corpo é mau.

54.   Pela palavra de Deus foram constituídos no início os seres corporais e os incorpóreos, e não existe, na mente do Criador, nenhum que seja mais antigo do que os outros. [Num piscar de olhos, os Querubins foram chamados Querubins, Gabriel foi chamado Gabriel, e os homens, homens.]

55.   No início o nous tinha como tutor a revelação do Espírito; mas ele se desviou dela e se tornou discípulo dos sentidos; mas, por sua consumação diante de Deus, ele obterá outra vez seu antigo tutor. [No início o nous tinha a Deus como tutor das intelecções imateriais; mas agora ele recebeu a sensação corruptível como tutora das intelecções imateriais.]

56.   A ciência espiritual são as asas do nous, e o conhecedor é o nous das asas. E, sendo assim, os objetos trazem o signo de “árvores”, sobre os quais repousa o nous, encantado com as folhas, e cujos frutos saboreia, até que consiga alcançar a “árvore da vida”.

57.   Da mesma forma como os que ensinam as crianças traçam as letras sobre tabuinhas, também Cristo, ao ensinar a sabedoria aos logikoi, traçou-a sobre a natureza corporal.

58.   Aquele que aprende as letras necessita de luz para vê-las; e quem aprende a sabedoria que está nos seres precisa do amor espiritual, com o qual verá a luz da ciência.

59.   Se toda malícia é gerada pelas três partes da alma, a saber, a razão, a epithymia e o thymos, sendo essas passíveis de ser utilizadas para o bem e para o mal, é evidente que é pelo uso contrário à conveniência que o mal é gerado. E, sendo assim, nada existe de mau no que foi criado por Deus.

60.   O signo do nascer do sol é o símbolo dos santos, e o do pôr do sol são as almas que estão no Sheol. Mas a realização do retorno “ao curso” de todas as coisas pertence à Trindade santa.

61.   A virtude permite ao nous ver a contemplação natural segunda, e essa o estabelece em seu estado primeiro; por sua vez, esse estado primeiro o faz se aproximar da ciência da Unidade santa.

62.   As estrelas inteligíveis são as naturezas racionais, às quais foi confiado iluminar aqueles que estão na ignorância.

63.   Aquele cuja sabedoria tem fim, é evidente que sua ignorância tem fim, também; e aquele cuja sabedoria não tem fim, é evidente que sua ciência é também sem fim.

64.   Se dentre as coisas que se saboreiam nada há tão doce quanto o mel e o favo de mel, e que, mais do que essas coisas, seja doce a ciência de Deus, é evidente que não há coisa sobre a terra que dê mais prazer à alma do que a ciência de Deus.

65.   Todos os que, nessa terra, se tornam discípulos dos anjos, participarão de suas glórias no mundo futuro, segundo o grau de seu crescimento.

66.   Assim como o primeiro mandamento foi o criador de todos os corpos, da mesma forma a “última trombeta” será a renovadora de todos os corpos de carne. [Assim como a primeira trombeta deu a conhecer a gênese dos corpos, a última trombeta dará a conhecer a destruição dos corpos.]

67.   Toda contemplação natural por4ta o signo do leite e a primeira o signo do mel; e ambas são a terra “da qual jorra o leite e o mel”.

68.   Assim como a primeira exortação de Deus separou a malícia da natureza racional, também o “justo julgamento de Deus” destruirá a totalidade da malícia. [Assim como o “repouso” primeiro de Deus fará conhecer a diminuição da malícia e a desaparição dos corpos espessos, também a segunda dará a conhecer a destruição dos corpos, seres segundos, e a diminuição da ignorância.]

69.   De tudo o que foi produzido, somente o nous é susceptível da ciência da Trindade santa. [O nous foi constituído da contemplação, da qual não foi constituído nenhum outro ser, a menos que esse seja também susceptível da Trindade.]

70.   Cabe ao nous dizer o que é a sua natureza; para essa questão não existe resposta hoje, e no fim não haverá sequer a questão.

71.   Assim como o home, após haver recebido o sopro, “se tornou alma viva”, também o nous, quando receber a Trindade santa, se tornará nous vivo.

72.   A herança de Cristo é a Unidade da essência santa; e todos os que se tornarem herdeiros com ele se tornarão participantes com ele dessa ciência santa. Mas não é possível que esses sejam seus herdeiros, se antes não se tornarem seus herdeiros.

73.   Se “o dia do Senhor virá como um ladrão”, é evidente que nenhum dos que estiverem na casa saberão o dia e a hora em que ele virá roubar os que dormem.

74.   Tudo o que pertence à natureza corporal e é chamado de santo, é “santificado pela palavra de Deus”; e tudo o que, dentre os logikoi, é chamado santo, é santificado pela ciência de Deus. Mas entre esses últimos existem os que são santificados pela palavra de Deus, como as crianças, que são susceptíveis da ciência.

75.   O que é impuro torna-se assim, seja pelo uso contra a natureza, seja pela malícia. As coisas que são contra a natureza são feitas através do corpo; e as que se sujam por causa da malícia são operadas pela natureza racional, como o dizem os Padres.

76.   Quando fomos formados no seio, vivemos a vida das plantas; quando fomos gerados, vivemos a vida dos animais; quando nos tornamos adultos, vivemos, ou a vida dos anjos, ou a vida dos demônios. A causa da primeira vida é a natureza animada, a da segunda é a sensação, e a da terceira é que somos susceptíveis da virtude ou da malícia.

77.   Aqueles de quem o Espírito Santo nos contou de suas vidas e mortes, por meio desses ele também nos anunciou a ressurreição que se produzirá.

78.   Os anjos e os demônios se aproximam de nosso mundo, mas nós não nos aproximamos de seu mundo. Com efeito, n]ao podemos fazer com que os anjos se aproximem mais de Deus, nem que os demônios se sujem mais do que já estão.

79.   Embora todos os demônios sejam maus por sua vontade, a malícia é diversa dentre eles. Com efeito, existem alguns em que a malícia é pior do que em outros. [Os que hoje estão sob a terra arrastarão a uma malícia desmesurada aqueles que hoje conduzem as coisas terrestres, os infelizes!]

80.   A natureza corporal e a natureza incorpórea são conhecíveis; mas somente a natureza incorpórea é conhecedora. Deus é conhecedor e conhecível, mas não como a natureza incorpórea, nem como a natureza corporal.

81.   Aquele que conhece Deus possui, ou bem a ciência de sua natureza, ou bem a “sabedoria cheia de variedades” da qual ele se serviu ao criar os mundos.

82.   Feliz é aquele que, por meio dos objetos, recebe a demonstração da graça de Deus; e feliz também é aquele que, pela ciência, é capaz de examinar-se.

83.   A fé é um bem que. No início, foi colocado em nós por Deus, e que nos conduz à beatitude futura.

84.   Toda contemplação natural segunda possui o mistério das estrelas, às quais foi confiado iluminar aqueles que estão nas trevas.

85.   Todos os que são batizados na água participam do odor do Espírito Santo; mas aquele que batiza possui em si o óleo perfumado.

86.   Feliz é aquele que não amou nada do que pertence à contemplação segunda, senão pelam contemplação.

87.   Feliz aquele que não odeia nada da contemplação primeira das naturezas, se não for por sua negligência.

88.   Feliz aquele que atingiu a ciência que não pode ser ultrapassada.

89.   Assim como nosso corpo, quando gerado por nossos pais, não é capaz de gerá-los, também a alma, gerada por Deus pela graça, não pode lhe dar a ciência em retorno. Pois está escrito: “Que darei ao Senhor em retorno, que não sejam os dons que ele me deu?”.

90.   Os demônios não cessam de caluniar o gnóstico, mesmo quando ele não está em falta, a fim de atrair para si seu nous. Com efeito, uma nuvem se mantém sobre o pensamento e expulsa o nous de sua contemplação, no momento em que ele retoma os demônios como caluniadores.

 

A Terceira Centúria, da qual faltam dez capítulos, está encerrada.

 

 


 

QUARTA CENTÚRIA

 

 

1.       Deus plantou para si os logikoi, e a sabedoria os fez crescer, lendo-lhes os escritos de todo tipo.

2.       O que é conhecível em Deus está naqueles que são primeiros por sua gênese, e o que é incognoscível está em seu Cristo.

3.       O que é conhecível em Cristo está naqueles que são segundos por sua gênese, e o que é incognoscível está em seu Pai.

4.       O herdeiro de Cristo é aquele que conhece as intelecções de todos os seres posteriores ao primeiro julgamento.

5.       Para os conhecedores, a ciência está parcialmente nas coisas que podem ser conhecidas, e em parte nas coisas que não podem ser conhecidas.

6.       Do que é conhecível, uma parte se produz nos puros, e uma parte nos que não são puros. O que se produz nos puros é chamado de ciência espiritual; o que se produz nos que não são puros se chama contemplação natural.

7.       Aquele que colocou a “sabedoria plena de variedades” nos seres, esse ensina aos que desejam a arte de se tornar facilmente um contemplativo.

8.       O “coerdeiro de Cristo” é aquele que alcança a Unidade e se deleita na contemplação com Cristo.

9.       Se uma coisa é o herdeiro e outra coisa é a herança, é evidente que os logikoi, que foram criados à imagem do Filho, serão eles próprios seus herdeiros em relação ao Pai.

10.   Dentre os que escreveram doutrinas não verdadeiras, alguns caíram da contemplação primeira da natureza, outros da segunda, e outros caíram da ciência da Trindade Santa.

11.   Se Deus é conhecido por meio da natureza corporal e da natureza incorpórea, e que as duas contemplações dessas naturezas vivificam os logikoi, é justo dizer que Deus pode ser conhecido “no interior dos seres vivos”.

12.   A circuncisão inteligível é um afastamento voluntário para longe das paixões, que se faz pela ciência de Deus.

13.   Aqueles que “participaram da carne e do sangue” são as “crianças”; ora, quem é jovem não é nem bom, nem mau. É justo, portanto, dizer que os homens são intermediários entre os anjos e os demônios.

14.   Assim como os dons do Espírito que estão nos corpos são uma pequena parte dos corpos, também os dons do Espírito que estão nas ciências são uma pequena parte das ciências dos seres.

15.   Se todo o mundo dos homens é um mundo de crianças, chegará o dia em que eles alcançarão a idade adulta que convém aos justos e aos ímpios.

16.   O único é aquele antes do qual nenhum ser foi gerado, nem depois será algum ser gerado.

17.   Chamamos de “alto” o lugar ao qual conduz a ciência aos que a possuem, e “embaixo” o lugar onde conduz a ignorância os que a possuem.

18.   A unção inteligível é a ciência espiritual da Unidade Santa, e Cristo é aquele que está unido a essa ciência. Sendo assim, Cristo não é o Verbo no início, de sorte que aquele que foi ungido não é Deus no início, mas aquele que por cuja causa Cristo é, e aquele por cuja causa Deus é. [A unção inteligível é a ciência da Unidade santa, e o doutro dessa para os logikoi é o Senhor Cristo.]

19.   Um é um número de quantidade, e a quantidade está ligada à natureza corporal; portanto, o número pertence à contemplação natural segunda.

20.   O primeiro nascido é aquele antes do qual nenhum outro foi gerado, e depois do qual nenhum outro será gerado.

21.   A unção é, ou bem a marca da ciência da Unidade, ou o signo da contemplação dos seres. {...e se, mais do que qualquer um, Cristo é ungido, é evidente que ele é ungido na ciência da Unidade. Por causa disso, somente ele está “sentado à direita do Pai”, direita que aqui, segundo a regra dos gnósticos, indica a Mônada e a Unidade.]

22.   Assim como aqueles que oferecem a Deus sacrifícios simbólicos queimam, pelas virtudes, os movimentos animais da alma, também os que sacrificam aos demônios destroem com seus vícios as atividades naturais da alma.

23.   Moisés e Elias não são o Reino de Deus, porque um é marcado com o sinal da contemplação dos seres, e o outro com o sinal dos homens santos. {Moisés e Elias não são o Reino de Deus, se um é a contemplação, e o outro a santidade. Como, portanto, nosso Salvador, após ter prometido aos discípulos mostrar-lhes o Reino de Deus, mostrou-o com uma corpo espiritual, ele próprio, Moisés e Elias, sobre a montanha?]

24.   O “primogênito dentre os mortos” é aquele que ressuscitou dentre os mortos, e o primeiro a ser revestir de um corpo espiritual.

25.   Assim como a luz que brilha nos templos santos é o símbolo da ciência espiritual, também a da mansão dos ídolos é p signo das doutrinas e das intelecções enganadoras. A primeira é alimentada pelo azeite do santo amor, a segunda pelo amor mundano que ama o mundo e tudo o que há nele.

26.   Se “no terceiro dia” Cristo “foi cumprido”, e se no dia precedente, aquele que juntava lenha no deserto foi queimado, é evidente que hoje é chamado sexta-feira, quando, na “undécima hora”, as nações são chamadas por Nosso Senhor para a vida eterna.

27.   A forma de pomba que apareceu no Batismo no Jordão é um testemunho para o batizado, de que ele é o Filho do Altíssimo. [O símbolo que apareceu no Batismo ao batizando, significa que ele está na contemplação primeira, na segunda ou na terceira? E ainda, se é possível que a Unidade seja impressa numa forma como essa, é perigoso dar isso a conhecer abertamente; mas você corrigirá esse símbolo no meio dos gnósticos.]

28.   Os “ázimos” inteligíveis são o estado da alma racional, constituído por virtudes puras e doutrinas verdadeiras.

29.   Assim como, se a terra for destruída, a noite já não existiria há face do firmamento, quando a malícia for destruída, a ignorância não existirá na face do firmamento, e quando forem retirados os logikoi do meio do relaxamento, a ignorância não existirá mais. [Assim como, se a terra for destruída, a noite já não existiria há face do firmamento, quando a malícia for destruída, a ignorância não existirá mais entre os logikoi. A ignorância é a sombra do mal, na qual aqueles que caminham, como numa noite, são iluminados pelo azeite de Cristo e veem as estrelas, segundo a ciência que eles são dignos de receber dele, e também as “estrelas cairão” diante deles, se eles não retornarem prontamente para o “sol de justiça”.]

30.   Se a “riqueza de Deus”, que está por ir, é a contemplação espiritual dos mundos que existirão, aqueles que limitam o reino dos céus ao palácio e ao ventre serão confundidos.

31.   Assim como a estrela que é ocultada pela interposição de uma outra é mais alta do que ela, também aquele que é mais humilde que outro se verá, no mundo por vir, mais elevado do que aquele.

32.   O “lobo do fígado” é o primeiro dialogismos que é constituído pela parte concupiscente da alma.

33.   Os que não têm piedade serão recebidos por demônios sem piedade; e os mais sem piedade serão recebidos por demônios piores ainda. Sendo assim, não depende daqueles cuja alma deixa o corpo escolher os demônios que os receberão após a morte. É dito, com efeito, que nenhum dos que saem do corpo segundo a vontade de Deus será entregue a tais demônios.

34.   No mundo por vir, ninguém escapará da prisão em que cair, pois foi dito: “Você não sairá de lá, até que pague o último óbolo”, que é um sofrimento mínimo.

35.   Se o dom das línguas é um dom do Espírito Santo, é evidente que os demônios estão privados dele. Com efeito, eles não falam em línguas, e não existe um só demônio que conheça todas as línguas. Mas à custa de exercícios, eles conhecem línguas variadas, pois eles são muito antigos no mundo. [Se o dom das línguas é um dom do Espírito Santo, é evidente que os demônios estão privados dele, e são incapazes de falar em línguas. Mas se diz que, pelo estudo, eles sabem as línguas dos homens; não é de admirar, se eles as possuem por receptividade, porque sua sustasis é coextensiva à sustasis do mundo. Já foi dito que suas línguas são também variadas, por causa dos homens. E há quem diga que existem entre eles línguas antigas, de modo a que se opõem aos Hebreus aqueles que se servem da língua hebraica, aos Gregos os que utilizam a língua Grega, e assim por diante.]

36.   A “graxa” inteligível é a parte pesada que, por causa da malícia, provoca uma falha no nous.

37.   Dentre os animais, alguns extraem seu sopro desde fora; outros, seu sopro se move dentro deles. Os que o extraem de fora habitam os ares, os que o movem dentro habitam a água. [Dentre os animais, alguns extraem seu sopro desde fora; outros, de dentro, outros do entorno, outros de todos os lados. Se diz que os que extraem desde fora são os homens e todos aqueles que possuem pulmões; os que extraem de dentro são os peixes e os que possuem a traqueia longa; os que o extraem do entorno são as abelhas, com o adejar de suas asas; e os que o extraem de todos os lados são os demônios e todos os logikoi que possuem um corpo de ar.]

38.   No mundo por vir, o homem colérico não será contado entre os anjos, nem lhe será confiado um principado, porque a cólera é estranha à conduta dos anjos. [No mundo por vir, o homem colérico não será contado entre os anjos, nem lhe será confiado um principado. Com efeito, ele não vê devido à sua paixão, e se revolta contra os que são conduzidos por ele, perde a visão e os coloca em perigo. Essas duas coisas são estranhas aos anjos.]

39.   Se nos mundos que virão, Deus mostrará sua riqueza aos logikoi, é evidente que nesse mundo eles já a possuem em parte.

40.   A “chave do reino dos Céus” é o dom espiritual que revela ao nous a contemplação da praktiké espiritual, a intelecção que está nas naturezas e os logoi que concernem à divindade.

41.   Cristo, antes de sua vinda, apareceu aos homens em formas variadas; e, na sua vinda, ele lhes apareceu na verdade de seus corpos.

42.   A retribuição “ao cêntuplo” que nosso Senhor prometeu em seu Evangelho, é a contemplação dos seres, e a “vida eterna” a contemplação da Santa Trindade, conforme está escrito: “receberão a vida eterna aqueles que souberem que só Tu és Deus, e que Cristo é Teu enviado”.

43.   A escada que apareceu a Jacó, que chega até o céu e sobre a qual repousa o Senhor, tem em si o signo das duas contemplações: o aumento da pureza e a virtude da ciência. [Se Cristo apareceu a Jacó sobre a escada, a contemplação natural, a semelhança da escada ensina o caminho da praktiké; mas se ela significa a ciência da Unidade, a escada é o símbolo de todos os mundos.]

44.   O sábado é o repouso da alma racional, feito naturalmente para que ela não cruze os limites da natureza.

45.   As potências santas repudiam aqueles que a elas sacrificam; com efeito, elas próprias ensinam que todo sacrifício será oferecido ao Senhor. Como foi dito a Gedeão e Manué.

46.   “Os quatro cantos” dão a conhecer os quatro elementos. O “objeto” que apareceu é o signo da pesandez desse mundo. E os “animais” de toda espécie são ao signo das ordens dos homens. [Os “quatro cantos” significam os quatro elementos, o “objeto” que apareceu significa o mundo material, e os “animais” variados são os símbolos das ordens dos homens; e é isso que apareceu a Pedro sobre a toalha.

47.   O demônio da cólera, que costuma cegar o pensamento e privá-lo da contemplação espiritual, combate dia e noite aqueles que se aproximam das matérias obscuras e pretendem escrever sobre elas.

48.   “A coroa do sacerdócio é a fé inflexível, que jamais sente o calafrio do medo.

49.   Enquanto que todo prazer que deriva da prática das boas ações precede o mundo por vir, o prazer da ciência espiritual permanece com o nous nesse mundo e no mundo do porvir.

50.   Existe um amor bom que é eterno, que é o amor da ciência verdadeira, e que é inseparável do nous.

51.   Na contemplação natural secundária, diz-se que alguns possuem autoridade, enquanto outros estão submetidos a essa autoridade. Mas, na Unidade, não existe quem tenha autoridade, nem quem esteja submetido à autoridade; mas todos serão deuses.

52.   A “lâmina” espiritual é a ciência da Trindade santa.

53.   A ciência diminui e se rebaixa entre aqueles que constroem sua torre com malícia e falsas doutrinas; e ela falha com a ignorância e a confusão, assim como falham aqueles que construíram a torre.

54.   Em todas as línguas, as palavras permitem conhecer os nomes, e os objetos podem ser conhecidos; assim é que as palavras que os Apóstolos pronunciaram em hebraico foram transformados nos nomes e nas palavras de outras línguas. Por causa disso, todas as tribos conheceram o que foi revelado. [Em todas as línguas, os nomes e as palavras são conhecidos, e eles descrevem os objetos. Assim, a língua do Espírito ensina sobre as diferenças entre as intelecções.]

55.   As palavras das virtudes são o espelho das virtudes. Assim, aquele que “escuta” as palavras e não as “pratica”, vê apenas a sobra das virtudes, como num espelho. Mas a virtude verdadeira é o rosto exato da alma.

56.   O “éfode” inteligível é o estado excelente da alma racional, no qual o homem costuma praticar suas virtudes.

57.   Pelas virtudes praticadas por Cristo, pelos prodígios, pelos milagres e pelas curas que ele realizou, proclamou-se que ele é o Criador. [Cristo mostrou-se como Criador pela multiplicação dos pães, pelo vinho da união, e pelos olhos do cego de nascença.]

58.   Antes de criar a natureza racional (logikoi), Deus habitava em sua essência; mas, depois de criá-la, ele fez dela sua habitação. [Quando criou os logikoi, Deus não estava em parte alguma; mas, quando criou a natureza corporal e os mundos que daí provêm, ele passou a estar em seu Cristo.]

59.   Se uma essência não é chamada, por sua criação, superior ou inferior a uma outra essência, e se nosso Senhor em seu Evangelho mostrou que existem demônios piores do que outros demônios, fica evidenciado que os demônios são maus, não por sua criação, mas por sua vontade.

60.   Os que blasfemam contra o Criador e falam mal desse corpo da alma, quem lhes ensinará sobre a graça de nosso Senhor, que se produziu neles e que os protege dos demônios todo o tempo? Eles dão testemunho de minhas palavras, quando em seus sonhos são atormentados pelos demônios, e quando, em sua fuga, se refugiam junto aos anjos e despertam subitamente.

61.   A revelação interpretativa é a expl8cação dos mandamentos de Deus, que é revelada para consolo dos simples.

62.   Convém ao nous se dedicar, seja à contemplação dos incorpóreos, seja à contemplação dos corpos, seja à visão dos objetos; é nisso que consiste sua vida. Mas ele não verá os incorpóreos se estiver manchado sem sua vontade, nem os corpos, quando se encontrar privado do instrumento que os órgãos dos sentidos lhes mostra. Sendo assim, que poderão dar a mais, para a visão da alma morta, aqueles que desprezam o Criador e assim caluniam nosso corpo?

63.   O “éfode” espiritual é a ciência espiritual, que consola os pratikoi.

64.   Se no antigo Israel, muitos dos que não eram de Israel o acompanharam, com o novo Israel não teriam saído também muitos Egípcios?

65.   A natureza racional se divide em três partes: sobre uma reina a vida, sobre a outra reinam a vida e a morte, e sobre a terceira reina a morte.

66.   O “peitoral” espiritual é a ciência oculta dos mandamentos de Deus.

67.   Os objetos que, por meio dos sentidos, chegam à alma, a movem para que ela receba suas formas, porque o trabalho do nous é conhecer, assim como os animais que respiram externamente, e a alma corre perigo se não trabalhar, umas vez que, conforme a palavra do sábio Salomão, “a luz do Senhor é o sopro dos homens”.

68.   O corpo da alma é a imagem da casa, e os sentidos trazem o signo das janelas, pelas quais o nous observa e vê as coisas sensíveis.

69.   O “manto” inteligível é a doutrina espiritual, que reúne os dispersos.

70.   Não é a qualquer um que se diz: “Faze com que minha alma deixe a prisão, para que eu confesse teu nome”, mas àqueles que, pela pureza da alma, podem, mesmo sem esse corpo, contemplar os seres.

71.   Se um dos sentidos do corpo falha, ele entristece aqueles que foram dele privados; quem poderá suportar a privação de todos os sentidos, que se produzirá de um único golpe, e o privará da admiração pelos corpos?

72.   A “roupa de baixo” inteligível é a mortificação da parte concupiscente, que se obtém pela ciência de Deus.

73.   Qualquer pessoa cujo nous esteja todo o tempo junto ao Senhor, cujo thymos esteja cheio de sua lembrança, e cuja epithumia esteja voltada para ele, essa pessoa estará perto de não temer os que circulam ao redor de nossos corpos, nossos inimigos rebeldes.

74.   Os que se tornaram perfeitos no cumprimento dos mandamentos de Deus e partiram desse mundo, é evidente que não se separarão do contato com os anjos. [Aqueles dentre os santos que já se libertaram dos corpos e se misturaram ao coro dos anjos, é evidente que vieram ao nosso mundo por causa da economia.]

75.   O “éfode” inteligível é a justiça da alma, pela qual o homem se acostuma a se ilustrar por meio das obras e das doutrinas irreprocháveis.

76.   Aquele que está cheio de paixões e ora para que a saída do corpo se produza rapidamente, parece um homem que está doente e que pede ao carpinteiro que desmanche seu leito antes da cura.

77.   As coisas sensíveis estão fora do nous, e sua visão está dentro dele. Mas não é assim com a Trindade

santa, porque ela é a ciência essencial.

78.   Cristo é herdado e herda, mas o Pai é apenas herdado.

79.   A “cintura” do sacerdote é a humildade do thymos, que assegura a realeza do nous.

80.   A descida de Nosso Senhor ao Sheol e sua ascensão para junto do Pai se produziram, não por causa dele, mas por nossa causa; com efeito, sua natureza não precisava disso, e foi seu amor que o levou a isso. [Não foi o Deus Verbo que desceu ao Sheol e subiu ao céu, mas Cristo, que traz em si o Verbo; com efeito, o corpo grosseiro não é susceptível de ciência, e Deus é conhecido.

81.   Toda contemplação, pelo signo de sua intelecção, é imaterial e incorporal; mas aquela que possui ou não possui os objetos que estão sob sua atenção, essa é material ou imaterial.

82.   O “refúgio” é o corpo psíquico da alma impassível, que a protege e a livra dos demônios que a cercam.

83.   Quem não é puro e se evade do corpo deve refletir em seu pensamento se por acaso o pai daquele que foi morto não está atrás da porta para acusá-lo.

84.   Os movimentos dos incorpóreos estão na ciência, e os movimentos dos corpos nas cores e nas qualidades. [A ciência não é uma qualidade dos corpos, nem as cores são qualidades dos incorpóreos; mas a ciência é uma qualidade dos incorpóreos, e a cor uma qualidade acidental dos corpos.

85.   Os demônios sequestram a alma quando as paixões se multiplicam, e eles tornam o homem insensível, e extinguem as potências de seus órgãos dos sentidos, para que, quando ele encontrar objetos próximos, ele não consiga extrair do nous como de um poço raso.

86.   O nous que possui um corpo não vê os incorpóreos; e, quando ele estiver sem corpo, ele não verá os corpos.

87.   Toda contemplação aparece como um objeto subjacente, com exceção da Trindade santa.

88.   Dos três altares da ciência, dois são circunscritos, e um é sem limites.

89.   Quem contará a graça de Deus? Quem prescrutará os logoi da providência, e o modo como Cristo conduz a natureza racional pelos mundos variados em direção à união com a Trindade santa?

90.   A ciência de Deus precisa, não de uma alma dialética, mas de uma alma contemplativa. Com efeito, a dialética costuma ser encontrada nas almas que não são puras; mas a visão só é encontrada nas almas puras.

 

A Quarta Centúria, da qual faltam dez capítulos, está terminada.


 

QUINTA CENTÚRIA

 

 

1.       Adão é a “figura” de Cristo, e a da natureza racional é Eva, por cuja causa Cristo saiu do Paraíso.

2.       Os ouvintes da Igreja visível são separados uns dos outros pelos lugares que ocupam. Mas os ouvintes da Igreja celeste [a Igreja inteligível, oposta àquela] são separados pelos lugares e pelos corpos.

3.       Os que estão no mundo e queimam de desejo pelo mundo por vir, veem dele apenas uma contemplação “parcial”; mas, quando houverem realizado sua bela carreira, e chegarem lá, eles o verão claramente. [Assim como os que habitam esse mundo possuem uma pequena visão do mundo por vir, também os que vivem neste último veem alguns raios luminosos da Trindade santa.]

4.       O arcanjo é a natureza racional incorpórea a quem foi confiado o ministério superior na ordem dos anjos. [O arcanjo é a essência racional a quem foram confiados os logikoi que concernem à providência e o julgamento dos mundos dos anjos.]

5.       Duas grandes condutas purificam a parte passiva da alma: a prática dos mandamentos, e a humildade e aflição do nous. [Dois, dentre os mundos, purificam a parte passiva da alma, um pela praktiké, outro pelo tormento cruel.]

6.       Se a contemplação dos anjos é chamada de Jerusalém celeste e Sião, é evidente que os que creram em Cristo e se aproximaram de sua montanha santa e da cidade do Deus vivo, se aproximaram também da contemplação de seus santos anjos.

7.       O anjo é a natureza racional incorporal a que foi confiado por Deus o ministério junto aos santos, que devem herdar a vida. [O anjo é a essência racional a que foram confiados os logoi que concernem à providência e o julgamento e os mundos dos homens.]

8.       Os que cultivaram sua terra durante nos seis anos da praktiké são os que alimentarão os órfãos e as viúvas, não no oitavo ano, mas no sétimo; de fato, no oitavo ano, não haverá órfãos, nem viúvas.

9.       Dentre os homens, alguns estarão em festa com os anjos, outros se misturarão ao tropel dos demônios, e outros serão atormentados por homens impuros.

10.   Os “primogênitos” são as naturezas racionais que, por suas virtudes, precedem seus irmãos.

11.   Os homens decaem do estado de anjos para a conduta humana; daí eles resvalam para a baixa condição dos demônios; mas, ao subir novamente, eles passam pelos degraus de onde caíram. [Da ordem dos anjos e dos arcanjos provém a dos psíquicos; da ordem dos psíquicos provêm as dos demônios e dos homens; e da dos homens virão novamente as dos anjos e dos demônios, na medida em que um demônio é alguém que, devido à abundância do thymos, decaiu da praktiké e se uniu a um corpo tenebroso e extenso.]

12.   Quando o nous se despoja das paixões e, pela graça do Senhor, é capaz de ver os seres, ele se torna contemplador também das coisas sensíveis, porque sua espiritualidade foi edificada, e ele se tornou mais espacial em si do que o mundo inteiro, e para aí ele atrai seu pensamento, longe das vistas de todas as coisas aparentes. [O nous que se despoja das paixões e vê as intelecções dos seres já não recebe verdadeiramente os ídolos, que chegam pelos sentidos; é como se um outro mundo fosse criado pela sua ciência, atraindo para si seu pensamento e rejeitando para longe todo o mundo sensível.]

13.   A “nuvem” espiritual é a natureza racional incorpórea, à qual foi confiado por Deus dar de beber aos íntegros [...àqueles que dormem longe dele].

14.   Assim como, quando o sol se eleva, até os menores pedregulhos projetam sua sombra, também diante do nous que começa a brilhar pela ciência, as coisas desse mundo aparecem primeiro obscuramente.

15.   Quando o nous é despojado de suas paixões, ele brilha inteiramente como aluz e se torna capaz de ver, iluminado por todas as obras de Deus [...pela contemplação dos seres].

16.   A “neblina” espiritual é a contemplação espiritual à qual foram confiados os logoi da economia e do julgamento de Deus [...os logoi da providência e do juízo dos que estão sobre a terra].

17.   Assim como as ondas, quando se erguem, fazem sombra, e em seguida se acalmam e sua sombra desaparece, também o nous espiritual, quando surgem pequenos obstáculos, os dissipa facilmente [...também, quando as intelecções fogem para longe do nous puro, elas logo se tornarão conhecidas].

18.   Os demônios só conseguem imitar as cores, formas e grandezas; mas as potências santas sabem transformar também a natureza dos corpos, dispondo-a para os serviços que forem n3ecessários. Isso acontece entre os compostos; mas a natureza incorpórea não possui tais intelecções, como é dito.

19.   A pequena ressurreição do corpo é a transformação que nesse se produz, da queda na sujeira à ressurreição na santidade.

20.   A vida vivifica primeiro os vivos, depois os que vivem e que morrem e, ao final, vivificará os mortos.

21.   Não é em todos os mundos que você encontrará o Egito; mas nos outros você verá Jerusalém e o Monte Sião. [É na Jerusalém celeste e na montanha de Sião que você encontrará a contemplação incorpórea.]

22.   A pequena ressurreição da alma é a transformação da passividade em estado impassível.

23.   A multitude de palavras e de paixões tornam obscuro e tenebroso o sinal da contemplação do julgamento de Deus e de seu governo. [O movimento multiforme e as paixões diversas dos logikoi forçaram as intelecções que concernem a providência a que apareçam obscuramente, e suas diversas ordens esconderam as intelecções sobre o julgamento.]

24.   Os Padres dizem que os logoi do julgamento são secundários em relação aos logoi do movimento [...e a providência].

25.   A ressurreição do nous é a passagem da ignorância para a ciência verdadeira.

26.   Quer não viu a Deus não pode falar dele. [Assim como não é a mesma coisa ver a luz e falar da luz, também não é a mesma coisa ver a Deus e entender qualquer coisa sobre Deus.]

27.   Quando o thymos está perturbado, ele cega aquele que vê, e a epithymia, quando se move animalescamente, esconde os objetos visíveis.

28.   A “espada” inteligível é a palavra espiritual que separa o corpo da alma, e afasta a malícia e a ignorância.

29.   Assim como aqueles que contemplam a beleza das cidades se demoram em admirá-las, também o nous, quando se torna capaz de ver as obras de Deus, se demora numa admiração da qual ninguém é capaz de tirá-lo.

30.   Se o Reino dos Céus é a contemplação dos seres, e que ele, segundo a palavra do Senhor, “está dentro de nós”, e se nosso interior está ocupado pelos demônios, é justo dizer que os Filistinos ocupam a terra prometida.

31.   O “escudo” espiritual é a ciência prática que mantém incólume a parte impassível da alma.

32.   O que está contido na primeira taça se parece com o vinho, que é a ciência dos incorpóreos; e o que está contido na segunda taça traz o signo da água, ou seja, da contemplação dos corpos. E é essa a taça, das duas, que foi misturada em nós pela Sabedoria. [Quando cresce em nós a sabedoria adorável de Deus, sua taça está em nós com vinho e água. Perscrute com cuidado a contemplação dessas coisas.]

33.   O “ecônomo” prudente é aquele que distribui aos outros o dom que lhe foi confiado por Deus, com discernimento, ou seja, segundo a conveniência do momento. [O “ecônomo” iníquo não pode trabalhar a terra, porque renunciou às virtudes de sua alma; e o infeliz, por outro lado, tem vergonha de mendigar, ele que se acha o doutor dos outros. E ele ensina com raiva aos que estão doravante abaixo dele, ele que se retirou para ficar entre os querelantes.]

34.   O “capacete” inteligível é a ciência espiritual que guarda incólume a parte inteligente da alma.

35.   Se o pão da natureza racional é a contemplação dos seres, e se recebemos ordem de comer desse pão “com o suor de nosso rosto”, é evidente que o comemos por meio da prática dos mandamentos de Deus.

36.   Que aqueles que herdaram a Terra prometida ataquem com toda sua força os Filistinos, a fim de que, quando Josué se demorar entre eles, ele não deixe de sair com sua armada, e que eles não se tornem escravos dos Filistinos.

37.   O “anzol” espiritual é a doutrina espiritual que arranca a alma da profundeza da malícia.

38.   Aquele que combate pela impassibilidade se armará com os mandamentos de Deus, e aquele que combate pela verdade se armará com sua ciência, e assim avançará contra seus inimigos. O primeiro será derrotado quando não fizer o que é ordenado, e o segundo, quando, em sua doutrina, decair da verdade e se tornar cabeça de doutrinas errôneas.

39.   No pensamento puro estão impressos um céu esplêndido de se ver e uma região espaçosa, onde aparecem como intelecções os seres, e onde os santos anjos se aproximam dos que são dignos deles. Essa visão que é impressa se torna obscura pela irritação, e a cólera, ao se inflamar, a destrói completamente. [O “lugar de Deus” se chama paz, e a paz é o estado de impassibilidade da natureza racional. Quem deseja que seu Deus resida em si deve purificar com cuidado sua alma de todas as paixões.]

40.   A “montanha” inteligível é a contemplação espiritual que é colocada nas alturas; quando o nous chega até ela, ele se torna capaz de ver todos os logoi que concernem às naturezas.

41.   Aquele em cuja alma o mundo inteligível está completamente impresso se abstém de toda concupiscência corruptível, e doravante ele se envergonhará das coisas com as quais antes se deleitava, e seu pensamento lhe reprovará sua insensibilidade anterior.

42.   O mundo que é edificado no pensamento é considerado como sendo difícil de ver, porque o nous é atraído pelos sentidos e pela luz sensível que brilha; mas ele pode ser visto à noite, quando é impresso luminosamente do momento da oração. [O mundo da contemplação espiritual que se constitui no nous aparece claramente pelas virtudes; mas quando ele se desvia dela, ele se torna obscurecido.]

43.   O “caminho” inteligível é o estado excelente da alma racional, por onde caminhará o nous, encontrando os seres e usufruindo de sua visão.

44.   Se “a cólera do dragão é um vinho mau”, e se os Nazireus receberam a ordem de se abster de vinho, é justo dizer que os Nazireus espirituais se abstém todo o tempo da cólera.

45.   O nous é chamado de cabeça da alma e as virtudes, de cabeleira de seu nazireato; quando ele se vê privado dela, ele é entregue nas mãos dos inimigos.

46.   O grande sacerdote é aquele que dirige suas súplicas a Deus por todas as naturezas racionais, separando-as, por sua mediação, da malícia e da ignorância.

47.   Honramos os anjos, não por causa de sua natureza, mas por sua virtude, e insultamos os demônios por causa da grandeza de sua malícia.

48.   Existe um único corpo que é mais adorável do que tudo, o corpo de Cristo, porque somente nele está corporalmente o Verbo de Deus.

49.   O “Deus novo” é aquele incapaz de criar, mas cheio de malícia oculta.

50.   Somente a Trindade santa é adorável desde antes dos séculos, ela por cujo intermédio todos os seres corpóreos e incorpóreos foram constituídos a seguir, do nada.

51.   Aquele que vê o Criador segundo a harmonia dos seres, não é sua natureza que conhece, mas sua sabedoria, com a qual ele fez todas as coisas; e não falo da sabedoria essencial, mas daquela que aparece nos seres, que os entendidos chamam de contemplação natural. Sendo assim, que loucura a daqueles que dizem conhecer a natureza de Deus! [Aquele que considera a Deus segundo a visão dos seres vê, não sua natureza, mas a economia de sua sabedoria. Sendo assim, que loucura a daqueles que dizem conhecer a natureza de Deus.]

52.   Quando buscamos ver os corpos, é preciso que tenhamos um nous puro; e quando tentamos ver os incorpóreos, precisamos de uma pureza ainda maior; e maior ainda, quando estamos prestes a ver a Trindade.

53.   O sacrifício espiritual é a consciência pura que se coloca sobre o estado do nous como sobre um altar.

54.   Assim como é mais difícil ver as intelecções dos incorpóreos do que nos aproximar dos objetos pelos sentidos, também é mais difícil conhecer as intelecções do corpo do que ver os próprios corpos. [Assim como é mais difícil conhecer as intelecções das naturezas do que sua manifestação, também é mais difícil conhecer os logoi que concernem aos corpos do que ver os corpóreos em si mesmos.]

55.   A Trindade santa não é algo que esteja misturado à contemplação; isso só acontece com os seres criados. Por isso a nomearemos santamente ciência essencial.

56.   Aquele que foi separado das coisas foi privado de sua contemplação; e aquele a quem foi retirada a contemplação se encontrará também fora das coisas. Mas isso não acontece com a Trindade santa; com efeito, acreditamos que ela é a ciência essencial. [Quem foi separado dos objetos, não é de forma absoluta que perdeu a contemplação que lhes concerne; tampouco aquele que perdeu a contemplação está fora dos objetos. Mas isso não acontece com a Trindade santa; com efeito, acreditamos que ela é a ciência essencial.]

57.   Assim como hoje vemos as naturezas pelos órgãos dos sentidos, e que, quando formos purificados veremos sua contemplação, também quando formos já purificados veremos a contemplação dos incorpóreos; e quando formos triplamente purificados, obteremos também a visão da Trindade santa.

58.   O nous discerne a sensação, não enquanto sensível, mas enquanto sensação; e a sensação discerne as coisas sensíveis, não enquanto objetos, mas enquanto objetos sensíveis.

59.   A sensação não discerne a sensação; ela discerne somente os órgãos dos sentidos enquanto sensíveis. O nous discerne a sensação enquanto sensação e os órgãos dos sentidos enquanto órgãos dos sentidos.

60.   Uma coisa é a potência do nous quando considera as naturezas, e outra sua potência quando observa sua contemplação. Mas sua potência é uma, igual a si mesma, quando ele contempla a Trindade santa.

61.   Quando consideramos as matérias, nos recordamos de sua contemplação; e, quando recebemos a contemplação, nos lembramos das matérias. Mas não é o que acontece quando chegamos à contemplação da Trindade santa.

62.   A Trindade santa não é algo que tenha composições ou qualidades, falta ou excesso; com efeito, ela é uma essência única, em tudo sempre igual a si mesma. [A natureza da Trindade não é conhecida com subidas e descidas; nela não existem objetos subjacentes, e sua natureza não admite análise, porque aquele que dissocia a natureza dos corpos os faz consistir em matéria e forma; e a natureza incorpórea, ao ser dissecada, é remetida à contemplação comum e à substância susceptível de oposição. Não é assim que é possível conhecer a natureza da Trindade santa.]

63.   Na contemplação dos seres existem subidas e descidas, segundo sua diligência ou negligência. Mas o mesmo não acontece com a Trindade santa. Com efeito, trata-se de uma visão igual a si mesma, onde não existem subidas ou descidas. [A análise nos faz retornar ao começo dos objetos, e a ciência que é feita segundo a medida faz ver a sabedoria do Criador; mas não é através de signos que vemos a Trindade santa. De fato, ela não tem começo, e também não dizemos que a sabedoria que está em seus objetos é Deus, ainda que seus começos concordem na teoria das naturezas, com as coisas das quais eles são começos. Com efeito, tal sabedoria é uma ciência sem substância, que aparece apenas nos objetos.]

64.   Assim como um espelho não se altera com as imagens que vemos nele, também a alma impassível não se altera com todas as coisas que estão sobre a terra.

65.   O praktikos é o servidor da separação, e o gnóstico é o auxiliar da sabedoria.

66.   O nous não se une à ciência, antes de que tenha unido a parte passiva da alma às suas próprias virtudes.

67.   Se as naturezas racionais trazem o signo das árvores e se essas crescem com a água, é justo que a ciência seja chamada de água espiritual, que corre da “fonte da vida”.

68.   O Filistino inteligível é aquele que se opõe aos que chegam para herdar a Terra prometida.

69.   A Trindade santa é o signo da água santa, e a “árvore da vida” é Cristo, que dela bebe.

70.   Assim como se diz que nosso corpo está num lugar, também o nous está numa ciência qualquer; por isso a ciência é conformemente chamada de lugar.

71.   O “herói” inteligível é aquele que se esforça para expulsar os que invadiram a Terra Prometida.

72.   Se os “quatro braços” se dividiram a partir de um único “rio”, chamemo-lo de mundo onde havia um só rio, a fim de que o corpo compreenda o Paraíso do qual irá beber.

73.   O nous se admira quando vê os objetos [as naturezas] e não se perturba na sua contemplação; ao contrário, ele corre para eles como seus familiares e amigos.

74.   A “cidade” é a contemplação espiritual que contém as naturezas espirituais.

75.   Quanto mais o nous se despoja de suas paixões, mais ele se aproxima dos objetos e, segundo o grau de sua ordem, recebe também sua ciência; e, qualquer ordem em que se detenha, a contemplará como sendo sua própria. [Quanto mais o nous se despoja de suas paixões, mais ele vê as intelecções; e quanto mais seu zelo o pressiona, mais se enriquece sua ciência.]

76.   A natureza conhecedora examina a ciência das naturezas, e ela mesma purifica os conhecedores.

77.   As portas inteligíveis são as virtudes da alma racional, constituídas pela diligência do nous e pelo poder de Deus.

78.   Os corpos sutis dos demônios não crescem nem diminuem; um forte odor os acompanha, por meio do qual eles colocam em movimento nossas paixões, sendo facilmente reconhecíveis por aqueles que receberam do Senhor a capacidade de perceber seu cheiro.

79.   Tudo o que recai sob o poder do nous que vê os incorpóreos, constitui também sua natureza; mas o que é visto pela outra potência não pode ser-lhe conatural, se for a mesma potência que conhece as intelecções incorpóreas da santa Trindade. [Perceber a contemplação dos seres cabe à potência do nous; mas ver a Trindade santa não cabe à sua potência, mas é um dom superior da Graça.]

80.   A dobradiça espiritual é a liberdade da natureza racional que, em seu zelo, não se dobra diante do mal, por causa de seu amor pelo bem.

81.   Quando o nous puder estar na contemplação da Unidade santa, também ele será chamado de Deus pela Graça, porque terá realizado em si a imagem de seu Criador. [Quando o nous receber a ciência essencial, também ele será chamado de Deus, porque também ele poderá fundar mundos variados.]

82.   O muro espiritual é a impassibilidade da alma, da qual os demônios não se aproximam.

83.   Em tudo encontramos sete circuncisões, segundo os Padres; quatro dentre elas estão no Sexto dia, uma no Sétimo e as demais no Oitavo.

84.   O templo inteligível é o nous digno de se tornar a morada da “sabedoria cheia de variedades de Deus”; e ele será realizado, para ser templo de Deus, quando ele for digno da contemplação da Trindade santa.

85.   A natureza primeira é para o Um, a segunda tende para o Um, e o mesmo está no Um.

86.   O solitário que ama a vanglória é aquele que, antes da impassibilidade, pretende ser glorificado pelos homens. O humilde de espírito é o que, mesmo depois de ter adquirido a santidade da alma, não deseja a glória da parte dos homens.

87.   A ciência segunda está na contemplação primeira, e essa está na mesma.

88.   Sião é o signo da ciência primeira, e o Egito indica toda a malícia; mas o símbolo da contemplação natural é Jerusalém, onde está o Monte Sião, cume da cidade.

89.   Assim como a destruição do último mundo não será acompanhada de uma gênese, também a gênese do primeiro mundo não foi precedida de uma destruição.

90.   A visão dos seres, tal como é em verdade, ou bem o nous puro a vê, ou bem a palavra dos sábios a dão a conhecer. Mas o que é privado dessas duas coisas recai na culpa do escriba.

 

A Quinta Centúria, da qual faltam dez capítulos, está terminada.

 


 

 

SEXTA CENTÚRIA

 

 

1.       O Livro santo não permite conhecer o que vem a ser a contemplação dos seres; mas ele ensina claramente como podemos chegar a isso pela prática dos mandamentos e pela verdade da ciência., “Com efeito, quem subirá à montanha do Senhor, etc.?”.

2.       A contemplação desse mundo é dupla: uma é manifesta e espessa, a outra inteligível e espiritual. Da primeira, aproximam-se os ímpios e os demônios, da segunda os justos e os anjos de Deus. E assim como, mais do que os justos, os anjos conhecem a contemplação espiritual, também mais do que os ímpios os demônios conhecem a contemplação espessa, que achamos que eles concedem a alguns dos que lhes pertencem; e nós aprendemos que também os anjos fazem isso por meio do Livro. [...uma existe objetivamente, a outra espiritualmente. Da primeira se aproximam até os injustos; mas da segunda, só os santos se aproximam.]

3.       As nações sensíveis se distinguem umas das outras pelos lugares, pelas leis, pelas línguas, pelas vestimentas e eventualmente pelas qualidades. As nações inteligíveis e santas se distinguem pelos corpos e, segundo se diz, pelas línguas. O Pai das primeiras é Adão, e o das segundas é Cristo, de quem Adão é a “figura”.

4.       O pai é considerado antes do Filho enquanto Pai, antes do Espírito enquanto princípio, e é anterior aos incorpóreos e aos corpóreos enquanto Criador.

5.       O incriado é aquele em relação a quem – porque ele é por sua própria essência – não há nada que seja anterior.

6.       Assim como a faca circuncisa o Judeu sensível, também a prática dos mandamentos de Deus circuncisa o Judeu espiritual, segundo o ensinamento de Nosso Senhor, que disse: “Eu vim para trazer uma espada ao mundo”.

7.       Se o oitavo dia é o dia da ressurreição, e se Nosso Senhor é a nossa ressurreição, é evidente que aqueles que sejam circuncidados no oitavo dia serão circuncidados nele.

8.       Assim como o Paraíso é capaz de fazer as delícias dos justos, também o Sheol é capaz de fazer o tormento dos ímpios.

9.       Se a destruição está submetida ao tempo, a primeira gênese á anterior à destruição. [Se o tempo é considerado junto com a gênese e a destruição, então a gênese dois incorpóreos é intemporal, porque nenhuma destruição é anterior a essa gênese.]

10.   A Trindade santa não é como uma tétrade, uma pêntade, etc.; estas são números, mas Trindade santa é uma essência única.

11.   A tríade numérica é acompanhada de uma tétrade, uma pêntade e uma héxade; de fato, essas são formas sem substância; mas a Trindade santa é ciência essencial.

12.   A tríade numérica é precedida de uma díade, mas a Trindade santa não é precedida de uma díade; de fato, ela não é uma tríade numérica.

13.   A tríade numérica é constituída pela adição de unidades sem substância; mas a Trindade bem-aventurada não é constituída pela adição de tais unidades; ela não é, portanto, uma tríade formada por números.

14.   Cristo não é conatural à trindade. Com efeito, ele também não é ciência essencial; mas somente ele tem em si e para sempre e inseparavelmente a ciência essencial. Mas Cristo – refiro-me àquele que veio com o Deus Verbo e em espírito – é o Senhor, inseparável de seu corpo e, pela união, conatural a seu Pai, por ser ele também ciência essencial. [O corpo de Cristo faz parte da natureza dos homens, ele, em quem “toda a plenitude de Deus quis habitar” corporalmente. Mas Cristo é “Deus acima de tudo”, segundo a palavra do Apóstolo.]

15.   Os “pés” de Cristo são a praktiké e a contemplação; e. se ele “coloca seus inimigos sob seus pés”, é evidente que todos os que o obedecem são susceptíveis da praktiké e da contemplação.

16.   Cristo é aquele que, a partir da ciência essencial e a partir das naturezas incorpórea e corpórea, apareceu à raça dos homens; e aquele que diz que existem dois Cristos e dois Filhos é como quem diz que o sábio e a sabedoria são dois sábios e duas sabedorias.

17.   Uma potência santa é uma sustasis produzida pela contemplação dos seres e com a ajuda da graça de Deus. [...é aquela que foi constituída a partir da contemplação dos seres, da natureza incorpórea e da natureza corpórea.

18.   Houve um tempo em que não existia o corpo natural de Cristo, mas não houve tempo em que nele não estivesse o Verbo de Deus. Mas, desde que isso aconteceu, foi de maneira oculta, e sua manifestação só se produziu no final dos dias.

19.   A conversão é a subida a partir do movimento e a partir da malícia e da ignorância, em direção à ciência da Trindade santa.

20.   Antes do movimento, Deus era bom, poderoso, sábio, criador dos incorpóreos, pai dos logikoi e todo-poderoso; depois do movimento, ele se tornou criador dos corpos, juiz, governador. Médico, pastor, doutro, misericordioso e longânime, e ainda porta, caminho, cordeiro, grande sacerdote, junto com todos os nomes que são pronunciados por modos. E ele é Pai e Princípio, mesmo antes da gênese dos incorpóreos: Pai de Cristo, e Princípio do Espírito Santo.

21.   A virtude é o estado da alma racional, em que ela dificilmente é posta em movimento pelo mal.

22.   Se as palavras sensíveis servem também ao mundo porvir, os sábios desse mundo também herdarão o Reino dos Céus. Mas se for a pureza do nous que obtém a visão do mundo porvir, é evidente que os sábios desse mundo ficarão distantes da ciência de Deus.

23.   Assim como essa palavra manifesta ensina sobre as coisas desse mundo, também a palavra espiritual ensinará sobre a verdade do mundo porvir.

24.   Aqueles que, no mundo porvir, serão “como anjos” santos, e que serão estabelecidos “sobre cinco cidades”, ou “sobre dez”, é evidente que receberão da graça de Deus um poder superior para o governo. [Aqueles que, no mundo porvir, serão “como anjos” santos, e que serão estabelecidos “sobre cinco cidades”, ou “sobre dez”, é evidente que eles receberão a ciência capaz de empurrar as almas racionais da malícia à virtude e da ignorância à ciência de Deus.]

25.   Quando os demônios não conseguem colocar em movimento pensamentos maus nos gnósticos, eles fecham seus olhos por meio de um grande frio e os arrastam a um sono profundo; pois os corpos dos demônios são muito frios, ao contrário da graça.

26.   Assim como não é o próprio fogo que está nos nossos corpos, mas é a qualidade que foi posta neles, também nos corpos dos demônios não é a própria terra, nem a própria água, mas suas qualidades, que o Criador semeou neles. [Nos corpos dos homens, não existem os quatro elementos, mas seu poder.]

27.   Se “todas as nações virão e se prostrarão diante dos Senhor”, é evidente que mesmo as nações que desejam a guerra virão. E, se é assim, toda a natureza dos logikoi se prosternarão diante do nome do Senhor, que dará a conhecer o Pai que está nele. Com efeito, esse é “o nome que é superior a todos os nomes”.

28.   O Pai é o gerador da ciência essencial.

29.   O Pai é aquele que possui uma natureza racional unida à ciência da Trindade. [O Pai pela graça é aquele que, em sua misericórdia, gerou a natureza racional susceptível de sua imagem.]

30.   O Pai “que nutre” é aquele que alimenta os filhos para que eles obtenham a ciência da Trindade santa. [O Pai é aquele que possui uma natureza racional unida à contemplação dos seres.]

31.   O gerado é aquele que foi gerado por qualquer coisa, como o filho por um pai.

32.   Feito é o que foi feito por alguma coisa, como a criatura pelo Criador.

33.   Quando o Cristo não mais aparecer à natureza racional em múltiplas variedades, então ele “estará todo submetido” por seu intermédio ao Pai verdadeiro. [Quando Cristo não mais estiver impresso em mundo vários e em nomes de toda espécie, então “também ele se submeterá” a Deus Pai, e se deleitará com a ciência de si próprio, que não é dividida em mundos nem em crescimento dos logikoi.]

34.   Nos mundos, Deus “mudará os corpos de nossa humilhação na semelhança do corpo glorioso” do Senhor; e depois de todos os mundos, ele nos fará também “à semelhança da imagem de seu Filho”, uma vez que a imagem do Filho é a ciência essencial de Deus Pai. [Pela prática de seus mandamentos Deus nos reveste com o selo de sua pureza; e, pela manifestação de seu Espírito Santo ele perfecciona em nós sua imagem verdadeira.]

35.   Pela contemplação da prática dos mandamentos de Deus, os poderes santos nos purificam da malícia e nos tornam impassíveis. Pela contemplação das naturezas e pelos logoi que concernem à divindade, eles nos libertam da ignorância e nos tornam sábios e gnósticos. [Pelas intelecção da exortação os santos anjos nos purificam da malícia e nos tornam impassíveis; pelas da natureza e pelos logoi divinos, eles nos libertam da ignorância e nos tornam sábios e gnósticos.]

36.   “Aquele que foi criado para ser motivo de risada entre os anjos”, não teria sido dele a iniciativa do movimento, e que, no começo, ultrapassou as fronteiras da malícia, e não teria sido ele que foi chamado de “começo das criaturas do Senhor”?

37.   Assim como os grous voam em formato de letra, embora não conheçam a escrita, também os demônios recitam palavras de temor a Deus, embora não conheçam o temor a Deus.

38.   O leito dos defuntos é a mortificação dos corpos, que, por uma boa vontade, aperfeiçoam no homem a castidade que existe e Cristo.

39.   A geração de Cristo é a regeneração de nosso homem interior, que Cristo, como bom construtor, fundou sobre a pedra principal do edifício de seu corpo quando o construiu. [A geração é as primícias do mundo novo.]

40.   A crucificação de Cristo é a mortificação do homem velho, a anulação da sentença levantada contra nós e a remissão que nos faz voltar à vida.

41.   O afastamento completo para longe do mundo pacifica a parte concupiscente da alma e torna vivo o thymos. [...e torna dura a parte do thymos.]

42.   A morte de Cristo é a operação misteriosa que conduz à vida eterna aqueles que esperaram por ele nessa vida.

43.   A providência de Deus acompanha a liberdade da vontade; mas seu julgamento considera a ordem dos logikoi. [A providência de Deus segue a liberdade da vontade; mas seu justo juízo segue a conduta da alma.]

44.   A demonstração espiritual é a realização das coisas que foram preditas de modo divino pelo Espírito Santo. [A demonstração espiritual consiste nas coisas que preexistiram pelo Espírito Santo nas profecias, e que se realizaram no novo Evangelho em seu tempo.]

45.   Que “o homem foi feito à imagem de Deus”, isso é estabelecido sem restrição, e aí chegam os diligentes, segundo a palavra de Deus. [Jamais um mundo foi superior ao mundo primeiro; diz-se, com efeito, que neste foi feito da qualidade principal; que nele se realizarão todos os mundos. Isso nos foi dito por um atleta gnóstico.]

46.   A cítara é a alma que possui a praktiké e que é movida pelos mandamentos de Cristo.

47.   O “julgamento justo de Deus” fará com que entrem na Terra Prometida todos os que seguirem Josué, dando a eles, como a esse, uma herança incorruptível.

48.   A harpa é o nous puro movido pela ciência espiritual.

49.   O Egito é o símbolo da malícia; o deserto é o símbolo da praktiké, a terra de Judá é o da contemplação dos corpos, Jerusalém o da contemplação dos incorpóreos e Sião a da Trindade Santa.

50.   Tudo o que é parte desse mundo é parte da corporeidade, e tudo o que é parte da corporeidade é parte desse mundo.

51.   Se a parte racional é a mais preciosa de todas as potências da alma, por ser ela que participa da sabedoria de Deus, e o dom da ciência espiritual é superior a todos os dons, é por isso que os Padres a chama também de “espírito de filiação adotiva”.

52.   Numerosas paixões se escondem na nossa alma, e quando elas escapam, tentações vivas as revelam; é preciso que “guardemos o coração com toda atenção” para que, ao surgir o objeto pelo qual sentimos paixão, não sejamos arrastados subitamente pelos demônios e fraçamos alguma coisa abominável a Deus.

53.   A flecha má é o mau logismos que brota em primeiro lugar da epithymia da alma.

54.   Se o nous distingue as palavras e os nomes, e se as palavras e os nomes ensinam coisas, o nous distingue as coisas.

55.   O nous contempla os inteligíveis quando se liberta dos movimentos das paixões da alma.

56.   Se se diz que a visão está na sensação e no pensamento e que Cristo vem do mesmo modo como os discípulos o viram subir aos céus, que seja dito como eles o viram. Porém, Cristo o mostra constantemente ais santos em suas almas espirituais, ao passo em que ele desce a outras almas para fazê-las subir.

57.   A retribuição que a natureza racional receberá diante do tribunal de Cristo serão corpos espirituais ou tenebrosos, e a contemplação ou ignorância apropriadas a esses; por causa disso se diz que Cristo, que esperamos, virá para alguns de um jeito, e para outros, de outro.

58.   Dentre os corpos, os que serão fixados em seguida da transformação são os chamados corpos espirituais. Mas, se eles se produzirão a partir da matéria ou a partir dos organa que foram eles, examina-o tu, em verdade.

59.   A providência de Deus é dupla; diz-se que uma parte guarda a sustasis dos corpos e dos incorpóreos, e que a outra empurra os logikoi da malícia e da ignorância para a virtude e a ciência.

60.   O nous privado da ciência espiritual é estéril, e também o é aquele a que faltam as sementes semeadas pelo Espírito Santo.

61.   Se “Deus é o Deus dos vivos e não dos mortos’, e se, segundo as palavras de Moisés, os necromantes “interrogam os mortos”, não foi Samuel que a necromante fez subir de entre os mortos, a menos que ele não estivesse morto, mas vivo.

62.   A alma racional que aprende constantemente e não consegue chegar À ciência verdadeira, é estéril.

63.   Assim como os que estão doentes da vista e miram o sol são feridos por suas lágrimas e veem fantasmas no ar, também o nous puro, perturbado pela cólera, não pode receber a contemplação espiritual, mas a vê como algo que borbulha sobre os objetos que elew tenta contemplar.

64.   Assim como, na cura do paralítico, nosso Senhor nos ensinou sobre a saúde oculta por meio da saúde aparente, também pela partida manifesta dos filhos de Israel da terra do Egito ele nos ensinou sobre a nossa partida da malícia e da ignorância.

65.   O mistério é a contemplação espiritual que não é acessível a qualquer um.

66.   O “machado de pedra” é a doutrina de nosso Senhor Jesus Cristo, que circuncisa com a ciência verdadeira o nous recoberto pelas paixões.

67.   Quanto mais o nous cresce na ciência espiritual, mais ele se aproxima da contemplação da Trindade Santa.

68.   A submissão da natureza racional à ciência de Deus é o consentimento da boas vontade.

69.   Os anjos veem os homens e os demônios; os homens não podem ver os anjos e os demônios, e os demônios só podem ver os homens.

70.   A submissão consiste numa fraqueza da natureza racional, que não pode sair dos limites de sua classe; assim, com efeito, “ele colocou tudo sob seus pés”, como disse São Paulo.

71.   Assim como Israel tem como adversárias nações sensíveis, o Israel inteligível tem como opositoras as nações inteligíveis.

72.   Uma coisa é a intelecção da matéria, outra a da qualidade que permite conhecê-la, outra a da sua parte interna próxima dos elementos, outra a dos elementos sensíveis, outra a contemplação dos corpos e outra a do organon humano. [Um é o logos da matéria, outro o logos da potência, outro o dos elementos, outro o de sua qualidade comum, outro o dos corpos e outro o do instrumento do homem.]

73.   Não é por ser incorpóreo que o nous é a semelhança de Deus, mas porque ele foi feito susceptível de Deus. Se o motivo for por ser incorpóreo, será pela ciência essencial e não pela receptibilidade, que terá sido feito à imagem de Deus. Mas examine a mesma coisa, o fato dele ser incorpóreo e de ser susceptível da ciência, ou ao contrário, como com uma estátua e o bronze de que é feita.

74.   O Senhor é conhecido antes do Juízo pelos prudentes, e depois do Juízo ele será conhecido pelos prudentes e pelos imprudentes, conforme está escrito: “O Senhor será conhecido pelo Juízo que ele faz”.

75.   A ciência primeira que reside nos logikoi é a da Trindade santa; em seguida vem o movimento da liberdade, a providência segura e o não-afrouxamento, e em seguida o juízo e, novamente, o movimento da liberdade, a providência, o julgamento, até a Trindade santa. Assim é que um julgamento pé interposto entre o movimento da liberdade e a providência de Deus. [A ciência primeira que residiu na natureza racional é a contemplação da Trindade santa; a seguir veio o movimento da liberdade, depois o socorro da providência de Deus, pelo castigo que fez voltar à vida, ou pelo ensinamento que aproxima da contemplação primeira.]

76.   Se “aquele que subiu acima de todos os céus”, “realizou tudo”, é evidente que cada um dos batalhões das potências celestes verdadeiramente aprendeu as intelecções que concernem à providência, por meio das quais eles empurram rapidamente para a virtude e para a ciência de Deus aqueles que são inferiores. [Se “aquele que subiu acima de todos os céus”, “realizou tudo”, é evidente que ele renovou todos os batalhões de logikoi, com exceção das tropas dos rebeldes.]

77.   O mistério de Nosso Senhor, oculto no Pai desde os séculos e as gerações, foi revelado com sua aparição; e a eleição de seus santos apóstolos antes do fundamento do mundo foi conhecida com seu Evangelho; e isso foi revelado às tribos que estavam separadas de sua esperança, e as fez se aproximarem dele. [Grabriel anunciou a Maria a saída de Cristo de junto ao Pai, ou sua vinda do mundo dos anjos ao mundo dos homens?  Pesquise agora a respeito dos discípulos que viveram com ele na sua corporeidade, se vieram com ele para o mundo visto por nós, ou de outros mundos, se uma parte deles ou se todos. Ademais, pesquise se foi a partir do estado psíquico que eles se tornaram discípulos de Cristo.

78.   É equivalente ao corpo aquilo que lhe é igual em qualidade.

79.   O corpo de Cristo é conatural ao nosso corpo, e sua alma é da natureza das almas; mas o Verbo que está nele essencialmente é coessencial ao Pai.

80.   Equivalente da substância racional é aquilo que lhe é igual em ciência.

81.   Assim como é impossível que uma natureza racional esteja num corpo fora do mundo, é impossível que uma natureza racional esteja fora do corpo no mundo novo. [Assim como é impossível que uma natureza racional esteja num corpo fora do mundo, é impossível que fora de um corpo ela esteja no mundo.]

82.   Diz-se que Deus está na natureza corporal como o arquiteto nas coisas feitas por ele; e, da mesma forma, se diz que ele é como uma estátua, caso ele faça uma estátua de madeira.

83.   Diz-se que o nous vê as coisas que ele conhece e que não vê as coisas que não conhece; e, por causa disso, não são todos os pensamentos que lhe interditam a ciência de Deus, mas apenas aqueles que assaltam o thymos e a epithymia. [...e que são contra a natureza.]

84.   A parte colérica da alma está junto ao coração, onde fica também sua inteligência; e sua parte concupiscente está unida à carne e ao sangue, se é verdade que devemos “afastar o coração da cólera 3e a carne da malícia”.

85.   Se possuímos a epuithymia e o thymos em comum com os animais, é evidente que esses não foram criados conosco no começo de nossa criação, mas que irromperam na natureza racional depois do movimento.

86.   Os santos anjos instruem alguns homens pela palavra; outros, eles convertem por meio dos sonhos; outros, eles tornam castos pelo terror, e trazem outros de volta por meio de golpes.

87.   Segundo as palavras de Salomão, o nous está unido ao coração; e a luz que lhe aparece provém da cabeça sensível. [Segundo as palavras de Salomão, o nous reside no coração e a inteligência no cérebro.]

88.   Não são apenas os anjos que trabalham conosco para nossa salvação, mas também as próprias estrelas, que nos dias de Baraq interferiram, do céu, na guerra contra Sisara.

89.   Assim como nesse mundo Nosso Senhor foi o primogênito, por ter ressuscitado dentre os mortos, também no mundo por vir ele será “o primogênito dentre muitos irmãos.

90.   Quem quer que tenha obtido a ciência espiritual ajudará os santos anjos e reunirá as almas racionais contra a malícia para a virtude, e contra a ignorância para a ciência.

Perscrutem nossas palavras, irmãos, explicando-as com belos pensamentos que contenham esse símbolo estabelecido por nós no número de seis centúrias, mistério do número seis de nossas gerações.

 

A Sexta Centúria, da qual faltam dez Capítulos, está concluída.

Essas foram as Seis Centúrias Gnósticas ditas pelo bem-aventurado Evagro.

 

 

***

 

 

 

 



[1] II Samuel 14: 20. O meu senhor tem a sabedoria de um enviado de Deus e sabe tudo o que se passa na terra.

[2] Salmo 77: 25. homem comeu pão dos anjosDeus mandou-lhes provisões em fartura.

II Reis XIV: 20. Para que esse modo de falar possa surgir, foi que teu servo Joab fixou esse assunto: e meu senhor é sábio como a sabedoria de um anjo de Deus, para conhecer todas as coisas que estão na terra.

[3] Alguns manuscritos trazem “o maravilhamento”. Outros, simplesmente, “a glória acompanha a primeira, a salmodia a segunda e a exaltação a terceira”.

[4] Lit. Médiété, teoria da virtude clássica que considera toda virtude como o justo meio entre dois excessos contrários.

[5] Ou: Não existe nada em potência na alma que possa sair dela em ato e subsistir separadamente; essa, com efeito, é feita naturalmente para estar no corpo.

[6] Ou: Tudo o que está ligado aos corpos acompanha aqueles pelos quais foi gerado, mas nada deixa de estar ligado à alma.

[7] Ou: Somente os que forem primeiros por sua gêneses serão libertos da corrupção que está em ato; mas nenhum dos seres será liberto da que está em potência.

[8] Ou: Os homens temem o Sheol, e os demônios, o abismo; mas, pior do que eles são as serpentes, que não possuem palavra.

[9] Ou: Alguns mortos têm como causa primeira o nascimento; outra causa provém dos santos contra aqueles que não vivem pela justiça; e a mãe da terceira será a remissão. E, se é mortal aquele que é naturalmente feito para ser liberto do corpo ao qual está unido, será naturalmente imortal o que não está feito para que isso ocorra. Com efeito, todos os que não foram unidos a um corpo serão libertos necessariamente.

[10] Lit.: “Conjunção”.

[11] Ou: Se a “coroa da justiça” é a ciência santa, e se o ouro que contém as pedras indica os mundos que foram e serão, a contemplação da natureza corporal e incorpórea será a coroa que colocará o justo sábio sobre a cabeça dos lutadores.

[12] Outra versão: A natureza é o signo do corpo, e a natureza primeira é o signo da alma; e o nous é Cristo, que é unido à ciência da Unidade.

[13] Gênesis 2: 13. Jeremias 2: 18.

[14] Composição.

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