quinta-feira, 16 de maio de 2019

Vladimir Lossky - Ensaios sobre a Teologia Mística da Igreja do Oriente - Conclusão: O Festim do Reino






Em nossa introdução, insistimos sobre a ligação íntima, indissolúvel, entre a teologia e a mística, entre a tradição doutrinal e a espiritualidade. Não podemos interpretar a espiritualidade de outra forma que não dogmática, sendo os dogmas sua expressão exterior, o único testemunho objetivo de uma experiência afirmada pela Igreja. As experiências pessoais e a experiência comum da Igreja são idênticas, em virtude da catolicidade da tradição cristã. Ora, a tradição não é apenas o conjunto dos dogmas, das instituições sagradas e dos ritos conservados pela Igreja, mas, antes de tudo, ela é o que se expressa nessas determinações exteriores, uma tradição viva, a revelação incessante do Espírito Santo na Igreja, a vida da qual cada um de seus membros pode participar segundo sua medida. Estar na tradição significa ter sua parte na experiência dos mistérios revelados à Igreja. A tradição doutrinal – marcos fixados pela Igreja sobre o caminho do conhecimento de Deus e da tradição mística – e a experiência adquirida dos mistérios da fé, não podem ser separados ou opostos: não se compreende os dogmas fora da experiência, e não existe a plenitude da experiência fora do verdadeiro ensinamento. É por isso que, nessas páginas, quisemos apresentar a tradição da Igreja do Oriente como uma teologia mística, em que doutrina e experiência se condicionam reciprocamente.

Examinamos sucessivamente os elementos fundamentais da teologia ortodoxa, sem jamais perder de vista o objetivo final, o da união com Deus. Orientada para esse fim, invariavelmente soteriológico em sua intenção, essa tradição doutrinal nos aparece como sendo muito homogênea, apesar da riqueza de suas experiências, apesar da diversidade das culturas e das épocas que ela abarca. Trata-se de uma única família espiritual na qual reconhecemos facilmente o parentesco, embora seus membros estejam afastados uns dos outros no tempo e no espeço. Para dar testemunho da mesma espiritualidade, pudemos nos referir, no decurso desses estudos, a Dionísio o Areopagita e a Gregório Palamas, a Macário do Egito e a Serafim de Sarov, a Gregório de Nissa e a Filarete de Moscou, a Máximo o Confessor e aos teólogos russos modernos, sem nunca ter a impressão de uma mudança de clima espiritual ao passarmos de uma época para outra. É porque a Igreja na qual as pessoas humanas realizam sua vocação, onde se realiza sua união com Deus, é sempre a mesma, embora sua “economia” em relação ao mundo exterior deva mudar segundo as épocas ou os meios diferentes nos quais a Igreja cumpre sua missão. Os Padres e os Doutores que tiveram que defender e formular, no decurso de sua história, os diferentes dogmas, não pertenciam menos a uma só e mesma tradição; eles foram o testemunho de uma mesma experiência. Essa tradição permanece comum ao Oriente e ao Ocidente, na medida em que a Igreja dá seu testemunho claro às verdades que se referem à Encarnação. Mas os dogmas mais interiores por assim dizer, os mais misteriosos, os que dizem respeito ao Pentecostes, os ensinamentos sobre o Espírito Santo, sobre a graça, sobre a Igreja, já não são comuns à Igreja de Roma e às Igrejas do Oriente. Duas tradições separadas se opõem uma à outra. Mesmo aquilo que foi comum às duas até um determinado momento recebe retrospectivamente uma ênfase diferente, aparece presentemente sob outra luz, como realidades espirituais que pertencem a duas experiências distintas. Doravante, São Basílio ou Santo Agostinho serão interpretados diferentemente, segundo sejam considerados dentro da tradição católica romana ou ortodoxa. Isso é inevitável, pois não se pode admitir a autoridade de um autor eclesiástico, senão no espírito da tradição que o reclama para si. Em nossa exposição, tentamos colocar em relevo os caracteres próprios à tradição da Igreja ortodoxa, inclinando-nos exclusivamente sobre os testemunhos dos Padres orientais, a fim de evitar toda confusão ou mal-entendido possíveis.

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Pudemos constatar em muitas ocasiões, no decurso de nossos estudos sobre a teologia mística da Igreja do Oriente, a atitude apofática própria a cada pensamento religioso. Como vimos, as negações que assinalam a incognoscibilidade divina não são proibições de conhecer; longe de ser uma limitação, o apofatismo permite ultrapassar todos os conceitos, todo o domínio da especulação filosófica. É uma tendência a uma plenitude sempre maior, que transforma o conhecimento em ignorância, a teologia dos conceitos em contemplação, os dogmas em experiência dos mistérios inefáveis. É também uma teologia existencial que engaja todo o ser, colocando-o sobre a via da união, obrigando-o a mudar, a transformar sua natureza para chegar à verdadeira “gnose”, que é a contemplação da Santa trindade. Ora, a “mudança do espírito”, a metanoia, significa arrependimento. A via apofática da teologia oriental é o arrependimento da pessoa diante da face do Deus vivo. É a mudança incessante do ser que tende para sua plenitude, para a união com Deus que se efetua pela graça divina e a liberdade humana. Mas a plenitude da divindade, a realização última para a qual tendem as pessoas criadas, se abre no Espírito Santo. É Ele o Mistagogo[1] da via apofática cujas negações assinalam a presença do Inominável, do Ilimitado, da Plenitude absoluta. É a tradição secreta na tradição manifestada a todos, pregada sobre os telhados. É o mistério que permanece oculto nos ensinamentos da Igreja, ao mesmo tempo em que lhe confere um caráter de certeza, de evidência interior, de vida, de calor, de luz, próprias à verdade cristã. Sem Ele os dogmas seriam verdades abstratas, autoridades exteriores impostas desde fora a uma fé cega, razões contrárias à razão, recebidas por obediência e a seguir adaptadas ao nosso modo de entendimento, em lugar de serem mistérios revelados, princípios de um conhecimento novo que se abrem em nós e adaptam nossa natureza à contemplação das realidades que ultrapassam todo entendimento humano. A atitude apofática, na qual podemos ver o caráter básico de todo o pensamento teológico da tradição oriental, é um testemunho incessante prestado ao Espírito Santo, que supre todas as insuficiências, que permite ultrapassar todas as limitações, que confere ao conhecimento do Incognoscível a plenitude da experiência, que transformas as trevas divinas em Luz na qual nós comungamos com Deus.

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Se o Deus incognoscível se revela como a Santa Trindade, se sua incognoscibilidade aparece como o mistério das Três Pessoas e da Natureza una, é porque o Espírito Santo abre à nossa contemplação a plenitude do Ser divino. É por isso que, no rito oriental, o dia de Pentecostes é chamado de festa da Trindade. É a estabilidade absoluta, termo de toda contemplação, de toda elevação e, ao mesmo tempo, princípio de toda teologia, verdade primeira, dado inicial a partir do qual todo pensamento, todo ser recebe seu começo. São Gregório de Nazianze, Evagro o Pôntico, São Máximo o Confessor e outros Padres identificam o conhecimento perfeito da Trindade com o Reino de Deus, perfeição última para a qual são chamados os seres criados. A teologia mística da Igreja do Oriente sempre irá se afirmar como triadocêntrica. O conhecimento de Deus será para ela um conhecimento da Trindade; a união mística, uma unidade de vida com as Três Pessoas divinas. A antinomia do dogma trinitário, a identidade misteriosa da Mônada-Tríade, será ciosamente salvaguardada no espírito de apofatismo oriental que se oporá à fórmula ocidental da processão ab utroque[2], para não colocar a ênfase sobre a unidade de natureza em detrimento da plenitude pessoal das “Três Santidades reunidas em uma só Dominação e Divindade[3]”. A monarquia do Pai será sempre afirmada – fonte das três pessoas, nas quais existe a riqueza infinita da natureza una.

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Tendendo sempre a conceber uma plenitude maior, a ultrapassar todas as limitações conceituais que determinariam racionalmente o Ser divino, a teologia oriental se recusa a emprestar à natureza divina o caráter de uma essência fechada em si mesma. Deus, essência una em três pessoas, é mais do que uma essência: Ele transborda Sua essência, se manifesta fora dela, se comunica ao mesmo tempo em que é incomunicável por natureza. Essas processões da divindade fora da essência, esses transbordamentos da plenitude divina são as energias, o modo de existência próprio a Deus na medida em que Ele derrama a plenitude de Sua divindade pelo Espírito Santo sobre todos aqueles que são capazes de a receber. É por isso que o cântico do Pentecostes chama o Espírito Santo de “rio de divindade que escoa do Pai para o Filho”.

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A mesma aspiração à plenitude se manifesta nas doutrinas relativas à criação. Se a existência do mundo não possui nenhum caráter de necessidade, se a criação é contingente, é justamente nessa liberdade absoluta do querer divino que o universo criado encontra sua perfeição. Pois Deus criou do nada um objeto absolutamente novo, um cosmo que não é uma cópia imperfeita de Deus, mas uma obra desejada, “excogitada” pelo “conselho divino”. Com efeito, na teologia oriental, as ideias divinas, como vimos, se apresentam sob o aspecto dinâmico das forças, das vontades, das palavras criadoras. Elas determinam os seres criados como suas causas exteriores, mas, ao mesmo tempo, elas os chamam à perfeição ao “ser perfeito” em união com Deus. Assim, o universo criado aparece como uma realidade dinâmica, tendendo a uma plenitude futura, sempre presenta para Deus. O fundamento inquebrantável do mundo criado do nada reside em sua realização, que é o termo de seu devir. Ora, Aquele que realiza, que confere a plenitude a todo ser criado, é o Espírito Santo. Considerado em si, o ser criado será sempre uma “implenitude”; considerado no Espírito Santo, ele aparecerá como uma plenitude da criatura deificada. No curso de sua história, o mundo criado será colocado entre esses dois termos, sem que jamais se possa conceber a “natureza pura” e a graça como duas realidades justapostas que se acrescentariam uma à outra. A tradição da Igreja do Oriente conhece a criatura que tende para a deificação, ultrapassando a si mesma continuamente na graça; ela conhece também a criatura decaída, que se separa de Deus para entrar num novo plano existencial, o do pecado e da morte; mas ela evitará atribuir uma perfeição estática à natureza criada considerada em si mesma. Com efeito, isso equivaleria a atribuir uma plenitude limitada, uma suficiência natural aos seres que foram criados para encontrar sua plenitude na união com Deus.

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Na antropologia e no ascetismo que dela decorre, a limitação que deve ser ultrapassada é a do indivíduo, do ser particular, resultado de uma confusão entre a pessoa e a natureza. A plenitude da natureza exige a unidade perfeita da humanidade, um corpo único que se realiza na Igreja; a plenitude virtual das pessoas se exprime em sua liberdade em relação a toda qualificação natural, a todo caráter individual, liberdade que faz de cada um dentre eles um ser único, que não tem símile, uma multiplicidade de hipóstases humanas que possuem uma só natureza. Na unidade da natureza comum, as pessoas não são partes, mas cada uma é um todo que encontra a realização de sua plenitude na união com Deus. A pessoa, imagem indestrutível de Deus, tende sempre para uma certa plenitude, embora às vezes a busque fora de Deus, pois ela conhece, deseja e age pela natureza que o pecado obscureceu, uma natureza que já não possui a semelhança divina. Assim, o mistério do Ser divino, que é a distinção entre a natureza uma e as pessoas, está inscrito na humanidade chamada a participar da vida da Santa Trindade. Os dois polos do ser humano, a natureza e a pessoa, encontram sua plenitude, uma na unidade, outra na diversidade absoluta, pois cada pessoa se une a Deus segundo seu modo, que lhe é próprio e único. A unidade da natureza purificada é recriada e “recapitulada” por Cristo; a multiplicidade das pessoas é confirmada pelo Espírito Santo que se comunica a cada membro do corpo de Cristo. A nova plenitude, o novo plano existencial introduzido no universo depois do Gólgota, da Ressurreição e do Pentecostes, se chama Igreja.

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É unicamente na Igreja, pelos olhos da Igreja, que a espiritualidade oriental verá a Cristo. Dito de outro modo, ela O conhecerá no Espírito Santo. Cristo se apresentará a ela sempre na plenitude de Sua divindade, glorificado e triunfante, mesmo em sua paixão, mesmo no sepulcro. A kenwsis será sempre substituída pelo brilho da divindade. Morto e repousando no sepulcro, Ele desceu aos infernos como um vencedor e destruiu para sempre o poder do inimigo. Ressuscitado e tendo subido ao céu, Ele não pode ser conhecido pela Igreja sob outra forma que não a de uma pessoa da Santa Trindade, assentando-se à direita do Pai depois de haver derrotado a morte. O Cristo “histórico”, “Jesus de Nazaré”, tal como aparecia aos olhos dos testemunhos estrangeiros, o Cristo exterior à Igreja é sempre ultrapassado na plenitude da revelação concedida aos verdadeiros testemunhos, aos filhos da Igreja iluminados pelo Espírito Santo. O culto da humanidade de Cristo é estranho à tradição oriental, ou antes, essa humanidade deificada se reveste aqui da mesma forma gloriosa que aquela que os discípulos viram sobre o Monte Tabor, a humanidade do Filho que torna visível a divindade comum com o Pai e o Espírito Santo. O caminho da imitação de Cristo jamais é praticado na vida espiritual da Igreja do Oriente. Com efeito, ela pareceria ter aqui um certo caráter de implenitude, ser uma atitude exterior em relação a Cristo. Para a espiritualidade oriental, a única via que nos torna conformes a Cristo é a da aquisição da graça conferida pelo Espírito Santo. Os santos da Igreja do Oriente jamais tiveram estigmas, marcas exteriores que os tornaram semelhantes ao Cristo sofredor alguns grandes santos e místicos do Ocidente. Mas, por outro lado, frequentemente os santos orientais foram transfigurados pela lua interior da graça incriada e apareceram resplendentes como Cristo no momento de Sua Transfiguração.

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A fonte dessa plenitude, que permite ultrapassar toda limitação rígida da doutrina, a experiência e a vida da Igreja, a origem dessa riqueza e dessa liberdade, é o Espírito Santo. Plenamente Pessoa, Ele jamais é considerado como um “laço de amor” entre o Pai e o Filho, como uma função de unidade dentro da Trindade, na qual não existe lugar para determinações funcionais. Ao confessar a processão do Espírito Santo do Pai, Sua independência hipostática em relação ao Filho, a tradição da Igreja Oriental afirma a plenitude pessoal da obra do Paráclito que veio ao mundo. O Espírito Santo não constitui uma força unitiva pela qual o Filho se imporia aos membros de Seu corpo místico. Se Ele dá testemunho do Filho, é em sua qualidade de pessoa divina independente do Filho, pessoa divina que comunica a cada hipóstase humana, a cada membro da Igreja, uma nova plenitude na qual as pessoas criadas desabrocham e confessam livre e espontaneamente a divindade de Cristo tornada evidente no Espírito. “Onde está o Espírito de Deus, ali está a liberdade”, a verdadeira liberdade das pessoas que não são membros cegos na unidade do corpo de Cristo, que não são apagadas na união, mas que aí adquirem sua plenitude pessoal; cada uma se torna um todo dentro da Igreja, pois o Espírito Santo desce separadamente sobre cada hipóstase humana. Se o Filho empresta Sua hipóstase à natureza humana renovada, se Ele se torna Chefe de um corpo novo, o Espírito Santo, vindo em nome de Cristo, confere a cada membro desse corpo, a cada pessoa humana, a divindade. Na kenwsis do Filho que desceu à terra, a pessoa se manifestava claramente, mas a natureza permanecia dissimulada sob a “figura de escravo”. No advento do Espírito Santo, a divindade se revela como um Dom, enquanto que a pessoa do Doador permanece abscôndita. Ao se humilhar, por assim dizer, ao se dissimular enquanto pessoa, o Espírito Santo adequa a graça incriada às pessoas humanas. O homem se une a Deus, adaptando-se à plenitude de ser que se abre nas profundezas de sua própria pessoa. Mediante os esforços incessantes de uma via de ascensão, de cooperação com a vontade divina, a natureza criada será cada vez mais modificada pela graça, até a deificação final que se revelará plenamente no Reino de Deus.

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A mesma plenitude do Espírito Santo, o mesmo impulso para a realização final, ultrapassando tudo o que se estabiliza e de limita, de dá a conhecer na eclesiologia oriental. A Igreja histórica, concreta, bem delimitada no tempo e no espaço, reúne em si a terra e o céu, os homens e os anjos, os vivos e os mortos, os pecadores e os santos, o criado e o incriado. Como reconhecer, debaixo de seus defeitos e enfermidades exteriores de sua existência histórica a Esposa gloriosa de Cristo, “sem mancha, nem ruga, nem nada semelhante[4]”? Como poderemos escapar à tentação, à dúvida, se o Espírito Santo não suprisse constantemente as falhas humanas, se as limitações históricas não fossem sempre ultrapassadas, a implenitude sempre transformada em plenitude, como a água foi transformada em vinho nas bodas de Caná?  Quantas pessoas não passaram ao largo da Igreja, sem reconhecer a irradiação de sua glória eterna sob o aspecto da humilhação e do rebaixamento! Mas quantas reconheceram o Filho de Deus no “homem das dores”? É preciso ter olhos para ver e os sentidos abertos para o Espírito Santo para reconhecer a plenitude onde o olho exterior não percebe senão limitações e deficiências. Não temos necessidade de “grandes épocas” para poder afirmar essa plenitude de vida divina sempre presente na Igreja. No tempo dos apóstolos, na época das perseguições, nos séculos dos grandes concílios, sempre houve “espíritos leigos” que permaneceram cegos diante da evidência das manifestações do Espírito de Deus na Igreja. Podemos citar um exemplo mais recente: a Igreja russa produziu, há poucas décadas[5], milhares de mártires e de confessores que nada ficam a dever àqueles dos primeiros séculos. As abundantes efusões da graça, os milagres mais espantosos tiveram lugar ali, onde a fé era posta à prova; os ícones de renovavam diante dos olhos dos espectadores maravilhados, as cúpulas das igrejas resplandeciam com uma luz que não era desse mundo. E, maior milagre de todos, a Igreja soube triunfar sobre todas as dificuldades e sair das provações renovada e reafirmada. No entanto, tudo isso quase não foi notado; o lado glorioso de tudo o que se passava na Rússia permaneceu quase sem interesse para a maioria: protestou-se sobretudo contra as perseguições, lamentou-se que a Igreja russa não tenha se comportado como uma potência temporal e política; perdoou-se sua “fraqueza humana”. O Cristo crucificado e sepultado não teria sido julgado diferentemente por aqueles que são cegos para a luz da Ressurreição. Para saber reconhecer a vitória sob as aparências do fracasso, a força de Deus sendo cumprida na enfermidade, a verdadeira Igreja na realidade histórica, é preciso receber, segundo as palavras de São Paulo, “não o espírito desse mundo, mas o Espírito que vem de Deus, a fim de que possamos conhecer as coisas que Deus nos deu por Sua graça[6]”.

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O apofatismo próprio à teologia mística da Igreja do Oriente nos aparece finalmente como um testemunho prestado à plenitude do Espírito Santo, Pessoa que permanece desconhecida, embora preencha todas as coisas fazendo-as tender para sua realização final. Tudo se torna plenitude no Espírito Santo, o mundo que foi criado para ser deificado, as pessoas humanas chamadas à união com Deus, a Igreja na qual essa união se realiza; enfim, Deus se dá a conhecer pelo Espírito Santo na plenitude de seu Ser, que é a Santa Trindade. A fé, que é um sentido apofático dessa plenitude, não pode ficar cega nas pessoas que se encaminham à união com Deus. O Espírito Santo se torna nelas o próprio princípio de sua consciência que se abre mais e mais à percepção das realidades divinas. A vida espiritual, segundo os autores ascéticos orientais, jamais é inconsciente, como vimos nos dois últimos capítulos. Essa consciência da graça, de Deus presente em nós, se chama habitualmente “gnose”, ou conhecimento espiritual (gnwsis pneumatikh), que Santo Isaac o Sírio definiu como “o sentido da vida eterna”, ou “o sentido das realidades secretas[7]”. A gnose afasta toda limitação da consciência, toda agnoia, cujo termo extremo é o inferno tenebroso. A perfeição da gnose é a contemplação da luz divina da Santa Trindade, consciência plena que é a parúsia, o julgamento e a entrada na vida eterna, que se realiza, segundo São Simeão o Novo Teólogo, desde aqui em baixo, antes da morte e da ressurreição, nos santos que vivem em comunhão constante com Deus.

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A consciência da plenitude do Espírito Santo dada a cada membro da Igreja segundo a medida da elevação pessoal de cada qual faz com que desapareçam as trevas da morte, o medo do Juízo, a garganta do inferno, dirigindo o olhar unicamente para o Senhor que vem em sua glória. Essa alegria da ressurreição e da vida eterna faz da noite pascal um “festim da fé”, do qual cada um participa, mesmo que seja em pequena medida e por alguns momentos, da plenitude do “oitavo dia” que não terá fim. Uma homilia atribuída a São João Crisóstomo[8], lida ano após ano durante as matinas da Páscoa, expressa perfeitamente o sentido dessa plenitude escatológica à qual aspira a cristandade oriental. Não poderíamos encontrar palavras mais eloquentes para terminar nossos estudos sobre a teologia mística da Igreja do Oriente.

Que aqueles que são piedosos, aqueles que amam a Deus, venham se deleitar com essa festa bela e luminosa.
Que o servidor fiel entre com alegria no regozijo de seu Mestre.
Que aquele que suportou as fadigas do jejum receba agora sua paga.
Que aqueles que trabalhou desde a primeira hora receba hoje seu justo salário; que o que chegou na terceira hora se alegre dando graças; que o que chegou na sexta hora não tenha nenhuma dúvida, pois ele nada perderá; que o que se demorou até a nona hora se aproxime sem hesitação ou temor; e o que não apareceu senão na décima-primeira hora não tema pelo seu atraso.
Pois o Senhor é generoso, Ele recebe o último como o primeiro, Ele admite ao repouso o trabalhador da décima-primeira hora, tanto quanto o que trabalhou desde a primeira hora; Ele concede graça ao último e cuida do primeiro; Ele dá a este e concede àquele; Ele recebe a obra e acolhe a intenção; Ele honra o trabalho e louva o bom propósito.
Entrem, portanto, na alegria de seu Mestre: recebam a recompensa, os primeiros como os segundos; ricos e pobres, rejubilem-se juntos; os abstinentes, os preguiçosos, glorifiquem esse dia; os que jejuaram, os que não jejuaram, regozijem-se todos hoje.
O festim está pronto; participem dele todos. O boi gordo está servido; que ninguém saia faminto.
Que todos se deleitem no banquete da fé; recebam todos as riquezas da bondade,
Que ninguém se lamente de sua pobreza, pois o reino comum apareceu.
Que ninguém chore por suas faltas, pois o perdão resplendeu do Sepulcro.
Que ninguém tema a morte, pois a morte do Senhor nos libertou.
Ele extinguiu a morte, Aquele que havia sido feito seu prisioneiro.
Ele aprisionou o inferno, Aquele que desceu até lá.
Ele se amargurou, quando Aquele o fez provar de Sua carne.
Sabendo de tudo isso previamente, Isaías clamou:
O inferno se amargurou, disse ele, quando O encontrou sob a terra. Ele se amargurou, porque foi anulado; ele se amargurou, porque foi humilhado; ele se amargurou, porque foi levado à morte; ele se amargurou, porque foi arrasado; ele se amargurou, porque foi acorrentado.
O inferno se apoderou de um corpo, e se viu diante de Deus; ele agarrou a terra, e encontrou o céu; ele capturou o visível, e caiu diante do que é invisível.
Onde está seu aguilhão, ó morte? Inferno, onde está sua vitória? Cristo ressuscitou e você foi arrasado.
Cristo ressuscitou, e os demônios tombaram.
Cristo ressuscitou, e os anjos se regozijaram.
Cristo ressuscitou, e a vida triunfou.
Cristo ressuscitou, e já não existem mortos nos sepulcros.
Pois Cristo se tornou as primícias daqueles que dormem, ressuscitando dos mortos.
A Ele a glória e a honra pelos séculos dos séculos. Amém.

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[1] Aquele que conduz ou inicia nos mistérios.
[2] Modo no qual o Espírito Santo procede do Pai e do Filho.
[3] São Gregório de Nazianze, In Theophaniam, Or. XXXVII, 9, P.G., t. 36, col. 320BC.
[4] Efésios 5: 27.
[5] A primeira edição desse estudo de Lossky sobre a Teologia Mística da Igreja do Oriente é de 1944.
[6] I Coríntios 2: 12.
[7] Ed. Theotoki, XLIII e LXIX; Wensinck, Hom. LXII, pg. 289 e Hom. LXVII, pg. 316ss.
[8] Homilia Pascal de São João Crisóstomo, P.G., t. 59, col. 721-724 (spuria).

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Vladimir Lossky - Ensaios sobre a Teologia Mística da Igreja do Oriente - Capítulo XI: A Luz Divina




A união com Deus é um mistério que se realiza nas pessoas humanas.

Um ser humano no caminho da união jamais diminui sua qualidade de pessoa, ainda que renuncie à sua vontade própria, às suas inclinações naturais. É quando renuncia livremente a tudo o que lhe é próprio por natureza que a pessoa humana se realiza plenamente na graça. O que não é livre, o que não é consciente, não tem valor pessoal. As privações, os sofrimentos, não podem se transformar numa via de união, se não forem aceitos livremente. Uma pessoa perfeita é plenamente consciente em todas as suas determinações: ela é livre de toda obrigação, de toda necessidade natural. Quanto mais uma pessoa progride na via de união, mais ela se torna consciente. Essa consciência na vida espiritual se chama “conhecimento” (gnwsis) entre os autores ascéticos orientais. Ela se manifesta plenamente nos graus superiores da via mística como conhecimento perfeito da Trindade. É por isso que Evagro o Pôntico identificava o Reino de Deus com o conhecimento da Santa Trindade – a consciência do objeto da união. Ao contrário, a inconsciência (agnoia), em seu limite extremo, não seria outra coisa do que o inferno – a decadência última da pessoa[1]. A vida espiritual – o crescimento da pessoa humana na graça – é sempre consciente, sendo o inconsciente sempre uma marca do pecado, o “sono da alma”. É preciso assim estar constantemente em estado de vigília, comportar-se como filhos da luz – ut filii lucis ambulate[2], segundo as palavras de São Paulo: Surge qui dormis, et exsurge a mortuis, et iluminabit te Christus[3].

A Santa Escritura está cheia de expressões que se referem à luz, à iluminação divina, ao Deus que é chamado de Luz. Para a teologia mística da Igreja do Oriente não se trata se simples metáforas, de figuras de retórica, mas de palavras que expressam um aspecto real da divindade. Se Deus é chamado de luz, é porque ele não pode permanecer estranho à nossa experiência. A “gnose”, a consciência do divino em seu grau supremo, é uma experiência da luz incriada, sendo essa mesma experiência a própria luz: in lumine tuo videbimus lumen – “em Tua luz vemos a luz[4]”. É o que percebemos, e aquilo por meio de que percebemos, na experiência mística. Para São Simeão o Novo Teólogo a experiência da luz, que constitui a vida espiritual consciente ou a “gnose”, revela a presença da graça adquirida pela pessoa. “Não falamos de coisas que ignoramos, diz ele, mas damos testemunho daquilo que conhecemos. Pois a luz já brilha nas trevas, na noite e no dia, em nossos corações e em nossos espíritos. Ela nos ilumina, essa luz sem declínio, sem alterações, inalterável, jamais eclipsada; ela fala, ela age, ela vive e vivifica, ela transforma em luz aqueles a quem ilumina. Deus é Luz, e aqueles a quem Ele torna dignos de vê-Lo, O veem como Luz. Pois a luz de Sua glória precede Sua face e é impossível que Ele aparece de outro modo que não como luz. Aqueles que não viram essa luz não viram a Deus, pois Deus é Luz. Os que não receberam essa luz tampouco receberam a graça, pois ao receber a graça recebe-se a luz divina e Deus (...) Aqueles que ainda não a receberam, que ainda não participaram da luz, se encontram sempre sob o jugo da lei, na região das sombras e das imagens, são ainda filhos da escrava. Reis ou patriarcas, bispos ou padres, príncipes ou servidores, seculares ou monges, estão todos igualmente nas trevas e caminham na escuridão, se não se arrependerem como devem. Pois o arrependimento é a porta que conduz da região das trevas à da luz. Portanto, aqueles que ainda não estão na luz, é porque não franquearam dignamente a porta do arrependimento (...) Os escravos do pecado odeiam a luz, temendo que ela torne manifestas as suas obras ocultas[5]”. Se a vida no pecado é às vezes voluntariamente consciente (fechamos os olhos para não ver a Deus), a vida na graça é um progresso incessante da consciência, uma experiência crescente da luz divina.

Segundo São Macário do Egito, o fogo da graça aceso pelo Espírito Santo nos corações dos cristãos os faz brilhar como velas diante do Filho de Deus. Esse fogo divino, proporcional à vontade humana, tanto se anima e resplandece com uma luz mais forte, como diminui e já não produz brilho nos corações perturbados pelas paixões. “O fogo imaterial e divino ilumina e põe as almas à prova. Esse fogo desceu sobre os apóstolos sob a forma de línguas de chamas. Esse fogo resplendeu para Paulo, falou com ele, iluminou seu espírito e, ao mesmo tempo, cegou seus olhos, pois o que é carne não pode suportar o brilho dessa luz. Moisés viu esse fogo na sarça ardente. Esse fogo elevou Elias da terra, sob a forma de um carro de chamas (...) Os anjos e os espíritos a serviço de Deus participam do brilho desse fogo (...) Esse fogo expulsa os demônios, extermina os pecados. Ele é a força da ressurreição, a realidade da vida eterna, a iluminação das almas santas, a estabilidade das potências celestes[6]”. Trata-se das energias divinas, os “raios da divindade” de que fala Dionísio o Areopagita, as virtudes criadoras que penetram o universo e se dão a conhecer fora das criaturas como a luz inacessível na qual habita a Trindade. Conferidas aos cristãos pelo Espírito Santo, as energias não aparecem mais como causas exteriores, mas como a graça, luz interior que transforma a natureza, deificando-a. “Deus é chamado de Luz, não segundo Sua essência, mas segundo Sua energia”, diz São Gregório Palamas[7]. Na medida em que Deus se manifesta, se comunica, pode ser conhecido, Ele é Luz. Se Deus é chamado de Luz, isso não é apenas uma analogia com a luz material. A luz divina não possui um sentido alegórico e abstrato: ela é um dado da experiência mística. “Essa experiência é dada a cada um segundo sua medida e pode ser maior ou menor, segundo a dignidade dos que a experimentam[8]”. A visão perfeita da divindade que se torna visível na luz incriada é “o mistério do oitavo dia”: ela pertence ao século futuro. Entretanto, aqueles que são dignos dela chegam a ver “o Reino de Deus vindo em seu poder[9]” já nessa vida, como os três apóstolos o viram sobre o Monte Tabor.

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Os debates teológicos sobre a natureza da luz da Transfiguração de Cristo, disputas que iriam opor, em meados do século XIV, os defensores da tradição doutrinal da Igreja do Oriente e os tomistas orientais, visavam, no fundo, um problema religioso de primeira importância. Tratava-se da realidade da experiência mística, da possibilidade de uma comunicação consciente com Deus, da natureza incriada ou criada da graça. A questão da vocação última dos homens, a noção da beatitude e da deificação estavam em jogo. Foi um conflito entre a teologia mística e uma filosofia religiosa, ou antes, uma teologia de conceitos que se recusava a admitir aquilo que lhe parecia ser um absurdo, uma “loucura”. O Deus da Revelação e da experiência religiosa se viu confrontado com o Deus dos filósofos e dos sábios sobre o terreno da mística e, mais uma vez, a loucura divina prevaleceu sobre a sabedoria humana. Vendo-se obrigados a definir sua posição, a formular conceitos sobre realidades que ultrapassavam toda especulação filosófica, os filósofos, em definitivo, tiveram que emitir um juízo que, por sua vez, pareceu ser uma “loucura” para a tradição oriental: eles afirmaram a natureza criada da graça deificante. Não voltaremos a essa questão, que tratamos no capítulo IV, quando se tratava da distinção entre a essência e as energias de Deus. Chegando ao final de nosso estudo, deveremos observar as energias divinas sob um outro aspecto: o da luz incriada na qual Deus se revela e se comunica com aqueles que entram em união com Ele.

Essa luz (jws) ou iluminação (ellamyis) pode ser definida como o caráter visível da divindade, das energias ou da graça na qual Deus se dá a conhecer. Ela não é de ordem intelectual, como é às vezes a iluminação do intelecto tomada num sentido alegórico e abstrato. Tampouco ela é uma realidade de ordem sensível. Entretanto, essa luz preenche ao mesmo tempo a inteligência e os sentidos, revelando-se ao homem inteiro e não apenas a uma de suas faculdades. A luz divina, sendo um dado da experiência mística, ultrapassa ao mesmo tempo os sentidos e a inteligência. Ela é imaterial e nada tem de sensível; é por isso que São Simeão o Novo Teólogo a chama em seus poemas de “fogo invisível”, ao mesmo tempo em que afirma sua visibilidade[10]. Mas tampouco ela é uma luz inteligível. O Tomo Hagiorítico, uma apologia redigida pelos monges do Monte Athos por ocasião dos debates sobre a luz da Transfiguração, distingue a luz sensível, a luz da inteligência e a luz incriada que ultrapassa igualmente as outras duas. “A luz da inteligência, dizem os monges athonitas, é diferente daquela percebida pelos sentidos. Com efeito, a luz sensível nos revela os objetos próprios aos nossos sentidos, enquanto que a luz intelectual serve para manifestar a verdade que existe nos pensamentos. Portanto, a vista e a inteligência não apreendem uma única e mesma luz, mas essa é própria de cada uma dessas duas faculdades de agir, segundo suas naturezas e dentro de seus limites. Porém, quando aqueles que são dignos da graça recebem-na, e à força espiritual e sobrenatural, eles percebem pelos sentidos e também pela inteligência aquilo que está acima de todo sentido e de todo intelecto (...), agora, o como, esse não é conhecido senão por Deus e por aqueles que tiveram a experiência de sua graça[11]”.

A maior parte dos Padres que falaram da Transfiguração atesta a natureza incriada, divina, da luz que apareceu aos apóstolos. São Gregório de Nazianze, São Cirilo de Alexandria, São Máximo, Santo André de Creta, São João Damasceno, São Simeão o Novo Teólogo, Eutímio Zigabeno, todos se exprimem nesse sentido e seria incorreto interpretar sempre essas passagens como uma ênfase retórica. São Gregório Palamas desenvolve esse ensinamento em relação com a questão da experiência mística. A luz que os apóstolos viram sobre o monte Tabor é própria a Deus por natureza. Eterna, infinita, existente fora do tempo e do espaço, ela apareceu nas teofanias do Antigo Testamento como a glória de Deus: aparição terrificante e insuportável para as criaturas, porque exterior, estranha à natureza humana antes de Cristo, e fora da Igreja. É por isso que, segundo São Simeão o Novo Teólogo, Paulo, no caminho para Damasco, não tendo ainda a fé em Cristo, ficou cego e aterrado pela aparição da luz divina[12]. Ao contrário, segundo São Gregório Palamas, Maria Madalena pôde ver a luz da Ressurreição que enchia o sepulcro e que tornava visível tudo o que ali havia, apesar da escuridão da noite, quando a “luz sensível” ainda não havia iluminado a terra; essa mesma luz a tornou capaz de ver os anjos e de conversar com eles[13]. No momento da Encarnação, a luz divina se concentrou, por assim dizer, em Cristo, o Deus-Homem, em quem habitava corporalmente a plenitude da divindade. Isso quer dizer que a humanidade de Cristo estava deificada pela união hipostática com a natureza divina; que Cristo, durante sua vida terrestre, sempre resplandeceu de luz divina, mas que era invisível para a maior parte dos homens. A Transfiguração não foi um fenômeno circunscrito no tempo e no espaço: nenhuma alteração aconteceu a Cristo naquele momento, mesmo em sua natureza humana, mas uma mudança se produziu na consciência dos apóstolos que receberam por algum tempo a faculdade de ver seu Mestre tal como Ele era, resplendendo com a luz eterna de Sua divindade[14]. Aquilo foi, para os apóstolos, uma saída da história, uma tomada de consciência das realidades eternas. São Gregório Palamas diz em sua Homilia sobre a Transfiguração: “A Luz da Transfiguração do Senhor não teve começo nem fim; ela permaneceu incircunscrita (no tempo e no espaço), e imperceptível aos sentidos, embora tenha sido contemplada por olhos corporais (...) mas, por uma transmutação de seus sentidos, os discípulos do Senhor passaram da carne ao Espírito[15]”. Para ver a luz divina com olhos corporais, como os discípulos a viram no Monte Tabor, é preciso participar dessa luz, ser transformado por ela em maior ou menor medida. A experiência mística pressupõe então uma mudança na nossa natureza, sua transformação pela graça. São Gregório Palamas o diz explicitamente: “Aquele que participa da energia divina (...) se torna ele próprio, de certa forma, luz; ele fica unido à luz e, com a luz, ele vê em plena consciência tudo o que permanece oculto aos que não possuem essa graça; ele ultrapassa assim não somente os sentidos corporais, como ainda tudo o que pode ser conhecido (pela inteligência) (...) pois os puros de coração verão a Deus (...) que, sendo Luz, habita neles e se revela aos que O amam, aos Seus bem-amados[16]”.

O corpo não deve ser um obstáculo para a experiência mística. A depreciação maniqueísta da natureza corporal é estranha ao ascetismo ortodoxo. “Nós não aplicamos o nome de homem separadamente à alma ou ao corpo, mas ao conjunto dos dois, pois o homem inteiro foi criado à imagem de Deus”, diz São Gregório Palamas[17]. O corpo deve ser espiritualizado, tornar-se um “corpo espiritual”, segundo a expressão de São Paulo. Nosso fim último não consiste apenas numa contemplação intelectual de Deus; se assim fosse, a ressurreição dos mortos seria inútil. Os bem-aventurados verão a Deus face a face na plenitude de sua natureza criada. É por isso que o Tomo Hagiorítico atribui à natureza corporal purificada, desde aqui em baixo, certas “disposições espirituais”: “Se o corpo deve tomar parte com a alma dos bens inefáveis do século futuro, é certo que ele deve participar deles, na medida do possível, desde agora (...) Pois o corpo tem também a experiência das coisas divinas quando as forças passionais da alma se encontram, não mais destinadas à morte, mas transformadas e santificadas[18]”.

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Na medida em que é luz, a graça não pode permanecer imperceptível em nós. Nós não podemos não sentir Deus, se nossa natureza estiver em estado de saúde espiritual. A insensibilidade em nossa vida interior constitui um estado anormal. É preciso reconhecer seus próprios estados e julgar os fenômenos da vida mística. É por isso que São Serafim de Sarov começa seus ensinamentos espirituais com as palavras: Deus é um fogo que aquece e abrasa os corações. Se nós sentirmos em nosso coração o frio que provém do demônio – pois o demônio é frio – invoquemos o Senhor, e Ele virá e aquecerá nosso coração com o amor por Ele e pelo próximo. E diante do calor de Sua face será expulso o frio do inimigo[19]”. A graça se dará a conhecer como alegria, paz, calor interior, luz. Os estados de secura, de “noite mística” na espiritualidade da Igreja do Oriente, não têm o mesmo sentido que no Ocidente. Uma pessoa que entra numa união cada vez mais estreita com Deus não pode permanecer fora da luz. Se ela se encontra mergulhada em trevas, é porque sua natureza está obscurecida por algum pecado, ou porque Deus a está experimentando para aumentar ainda mais o seu fervor. Esses estados devem ser ultrapassados pela obediência e pela humildade, às quais Deus responde manifestando-se outra vez na alma, comunicando sua luz ao ser humano que foi deixado de lado por algum tempo. A secura é um estado doentio que não deve durar muito; ela jamais foi considerada pelos autores ascéticos e místicos da tradição oriental como uma etapa necessária e normal na via de união. Sobre essa via, ela constitui um acidente bastante frequente, mas sempre perigoso. Ela tem uma grande afinidade com a acídia, a tristeza ou desânimo, o esfriamento do coração que produz a insensibilidade. É uma prova que coloca o ser humano nos limites da morte espiritual. Pois a ascensão para a santidade, a luta pela luz divina, não acontece sem perigos. Aqueles que buscam a luz, a vida consciente em Deus, correm um grande risco espiritual, mas Deus não os deixa errar nas trevas.

“Muitas vezes eu vi a Luz, diz São Simeão o Novo Teólogo, às vezes ela aparecia no interior de mim mesmo, quando minha alma possuía a paz e o silêncio, ou ela aparecia ao longe, ou mesmo se ocultava por completo. Eu experimentava uma aflição imensa, crendo que jamais voltaria a vê-la. Mas, assim que eu começava a derramar lágrimas, assim que eu sentia uma completa separação de tudo, uma humildade e obediência absolutas, a Luz reaparecia, semelhante a um sol que expulsa as espessas nuvens e que se mostra pouco a pouco, criando a alegria. Assim Tu, Indizível, Invisível, Impalpável, que move tudo, que está presente em todas as coisas e sempre, que a tudo preenche, que Te mostras e Te escondes a cada hora, Tu desaparecias e reaparecias para mim de dia e de noite. Lentamente Tu dissipavas as trevas que existiam em mim, expulsavas a nuvem que me cobria, abrias o ouvido espiritual, purificavas as pupilas dos olhos do meu espírito. Por fim, tendo feito de mim tal como o querias, Tu te revelavas à minha alma polida, vindo a mim, embora ainda invisível. E subitamente, aparecias como um outro Sol, ó inefável condescendência divina[20]”. Esse texto nos mostra que a secura é um estado passageiro que não pode se tornar uma atitude constante. Com efeito, a atitude heroica dos grandes santos da Cristandade ocidental, presa à dor de uma separação trágica de Deus – a noite mística como via, como necessidade espiritual – é desconhecida da espiritualidade da Igreja do Oriente. As duas tradições estão separadas sobre um ponto de doutrina misterioso, relativo ao Espírito Santo, fonte da santidade. Duas concepções dogmáticas diferentes correspondem a duas experiências, a duas vias de santificação que em quase nada se parecem. Os caminhos que levam à santidade não são os mesmo para o Ocidente e para o Oriente depois da separação[21]. Uns provam sua fidelidade a Cristo na solidão e no abandono da noite do Getsêmani; os outros adquiriram a certeza da união com Deus na luz da Transfiguração.

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Uma passagem extraída das Revelações de São Serafim de Sarov, escritas no começo do século XIX, nos fará compreender, melhor do que todas as exposições teológicas, no que consiste essa certeza, essa “gnose”, ou consciência de união para com Deus. No decurso de uma conversação que aconteceu numa clareia na floresta, numa tarde de inverno, um discípulo de São Serafim, autor do texto que citamos, diz ao seu mestre:

“Eu não compreendo como posso eu estar certo de que estou no Espírito de Deus. Como posso, por mim mesmo, discernir sua verdadeira manifestação em mim”?

O Padre Serafim respondeu: “Eu já lhe disse, Bem-Amado, que é muito simples e já relatei em detalhes como as pessoas chegaram a estar no Espírito de Deus e o modo pelo qual podemos reconhecer sua presença em nós. O que mais você quer”?

“Eu quero entender isto direito”, disse eu.

Então o Padre Serafim segurou-me com firmeza pelo ombro e disse: “Nós dois estamos agora no Espírito de Deus, meu filho. Por que você não olha para mim”?

Eu lhe respondi: “Eu não posso olhar, Padre, porque seus olhos estão brilhando como relâmpagos. Sua face se tornou mais brilhante do que o sol, e meus olhos doem”.

O Padre Serafim disse: “Não fique alarmado, Bem-Amado! Agora você próprio se tornou tão brilhante quanto eu. Você está na plenitude do Espírito de Deus também; de outro modo, você não poderia me ver como eu sou”.

Então, inclinando sua cabeça, ele segredou ao meu ouvido: “Agradeça ao Senhor Deus por sua inexprimível misericórdia por nós! Você viu que eu sequer fiz o sinal da cruz; apenas, em meu coração, eu orei mentalmente ao Senhor Deus e disse interiormente: ‘Senhor, conceda a ele que veja claramente com seus olhos carnais a descida de Seu Espírito, que Você concede aos seus servos quando deseja aparecer na luz de Sua glória magnificente’. E você vê, filho meu, o Senhor imediatamente satisfez o humilde pedido do pobre Serafim. Como não agradecer a Ele por sua indizível dádiva a nós? Mesmo para os maiores eremitas, meu filho, não é sempre que o Senhor mostra sua misericórdia desta maneira. Esta graça de Deus, como uma mãe amorosa, lhe foi concedida para confortar seu coração contrito pela intercessão da própria Mãe de Deus. Mas por que, filho meu, você não olha nos meus olhos? Apenas olhe, e não tenha medo! O Senhor está conosco”.

Depois destas palavras eu mirei seu rosto e sobreveio-me uma enorme veneração. Imagine no centro do sol, na luz ofuscante dos raios do meio dia, o rosto de um homem falando com você. Você vê os movimentos de seus lábios e as mudanças de expressão de seus olhos, você ouve sua voz, você sente que alguém segura seus ombros; mas você não vê estas mãos, você sequer enxerga a si mesmo ou sua figura, mas apenas uma luz cegante espalhando-se ao redor por muitas dezenas de metros e iluminando com seu halo a neve que cobre o chão da floresta e os flocos que caem sobre tudo e sobre aquele Ancião. Você pode imaginar o estado em que eu fiquei!

“Como você se sente agora”? – perguntou-me o Padre Serafim.

“Extraordinariamente bem”, disse eu.

“Como, exatamente, você se sente”?

Eu respondi: “Eu sinto uma calma e paz em minha alma, que nenhuma palavra é capaz de expressar”.

“Isto, Bem-Amado, disse o Padre Serafim, é a paz da qual disse o Senhor aos seus discípulos: ‘Eu lhes dou a minha paz; não a paz que o mundo dá, mas a que Eu dou ’. ‘Se vocês fossem do mundo, o mundo amaria o que é dele; mas porque eu os escolhi fora do mundo, o mundo odiará vocês ’. ‘Mas não desanimem: eu venci o mundo ’. E para aquelas pessoas a quem o mundo odeia, mas que foram escolhidas pelo Senhor, o Senhor concede esta paz que você sente agora, a paz que, sendo as palavras do Apóstolo, ‘ultrapassa todo entendimento ’. O Apóstolo a descreve assim, porque é impossível expressar em palavras o bem-estar espiritual que se produz naqueles em cujos corações o Senhor Deus infundiu esta paz. Cristo o Salvador chama a isto a paz que ele concede por sua própria generosidade e que não é deste mundo, porque nenhuma prosperidade terrestre e temporária pode dar esta paz ao coração humano; ela é concedida desde o alto pelo próprio Senhor Deus, e por isso é chamada de paz de Deus. O que mais você sente?” – perguntou-me o Padre Serafim.

“Uma doçura extraordinária”, respondi.

Ele prosseguiu: “Esta é a doçura da qual se fala na Sagrada Escritura: ‘Eles ficarão inebriados com a gordura de minha casa; me eu os farei beber da torrente de minhas delícias ’. E agora esta doçura inunda nossos corações e corre por nossas veias com inexprimível delícia. Nossos corações se confundem nesta doçura e ambos estamos cheios de uma alegria que a língua não é capaz de contar. O que mais você sente?”.

“Uma extraordinária alegria no coração”.

E o Padre Serafim continuou: “Quando o Espírito de Deus desce até o homem e o cobre com a plenitude de sua inspiração, a alma humana transborda com inexprimível alegria, porque o Espírito de Deus enche de alegria tudo o que toca. É desta alegria que fala o Evangelho: ‘Quando a mulher está para dar à luz, sente angústia, porque chegou a sua hora. Mas quando a criança nasce, ela nem se lembra mais da aflição, porque fica alegre por ter posto um homem no mundo. Agora, vocês também estão angustiados. Mas, quando vocês tornarem a me ver, vocês ficarão alegres, e essa alegria ninguém tirará de vocês ’. E por mais reconfortante que seja a alegria que você sente em seu coração, ela não é nada em comparação com aquela que o próprio Senhor mencionou pela boca de seu Apóstolo, descrevendo-a como aquela ‘que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu, foi isso que Deus preparou para aqueles que o amam ’. Amostras desta alegria nos são dadas, e se elas enchem nossas almas com tamanha doçura, bem-estar e felicidade, o que diremos da alegria que foi preparada no céu para aqueles que choraram aqui na terra? E você, filho meu, chorou bastante nesta sua vida na terra; e veja com que alegria o Senhor o consola ainda nesta vida! Agora cabe a nós, meu filho, acrescentar trabalho sobre trabalho, de modo a irmos ‘de força em força ’, e ‘alcançarmos a medida da estatura da plenitude de Cristo ’, de modo a que possamos nos encher com as palavras do Senhor: ‘Aqueles que esperaram pelo Senhor renovaram suas forças; eles cresceram asas como águias; eles correrão e não serão fracos ’; ‘eles irão de força em força, e o Deus dos deuses aparecerá para eles em Sião ’, na Sião da realização e das visões celestiais. Somente então sua alegria atual (que nos visita pouco e brevemente) surgirá em sua plenitude, e ninguém a tomará de nós, porque estaremos cheios e transbordando de delícias celestiais inexplicáveis[22]”.

Esse relato de uma experiência contém em sua simplicidade todas as doutrinas dos Padres orientais sobre a “gnose”, a consciência da graça que atinge seu grau extremo na visão da luz divina. Essa luz preenche a pessoa humana que alcançou a união com Deus. Já não se trata de um êxtase, estado passageiro que arrebata, que arranca o ser humano de sua experiência habitual, mas de uma vida consciente na luz, na comunhão incessante com Deus. Com efeito, citamos mais acima uma passagem de São Simeão o Novo Teólogo, segundo a qual os estados extáticos seriam próprios sobretudo das pessoas cuja natureza ainda não foi transformada, adaptada à vida divina. A transfiguração da natureza criada que começa aqui em baixo é uma promessa do novo céu e da nova terra, a entrada da criatura na vida eterna antes da morte e da ressurreição. Poucas pessoas, mesmo dentre os grandes santos, chegaram a esse estado na vida terrestre. O exemplo de São Serafim é tanto mais notável na medida em que ele revive, numa época bastante recente, a santidade dos Padres do deserto, que parece quase fabulosa para nossa fé racional e débil, ao nosso espírito tornado “kantiano” pela queda, sempre pronto a rejeitar na doutrina noumenal, aquela dos “objetos da fé”, tudo o que ultrapassa as leis, ou melhor, os hábitos de nossa natureza decaída. A defesa filosófica da autonomia de nossa natureza limitada, fechada à experiência da graça, é uma afirmação consciente de nossa inconsciência, a anti-gnose, a anti-luz, a oposição do Espírito Santo, único que abre nas pessoas humanas uma consciência perfeita da comunhão com Deus. Na mesma conversação espiritual que citamos, São Serafim diz ao seu interlocutor: “Na época em que vivemos, chegamos a um tal grau de fraqueza quase generalizada em relação à santa Fé em nosso Senhor Jesus Cristo, a uma tal insensibilidade em relação à comunhão com Deus, que podemos dizer verdadeiramente que nos afastamos quase que totalmente da verdadeira vida cristã. As passagens da Escritura nos parecem estranhas hoje (...) Algumas pessoas dizem: essas passagens são incompreensíveis; como podemos admitir que os homens pudessem ver a Deus de uma maneira tão concreta? Mas não existe nada de incompreensível nelas. A incompreensão resulta do fato de que nós nos distanciamos da simplicidade primitiva do conhecimento cristão. Sob pretexto de instrução, de “luzes”, nós nos engajamos numa escuridão da ignorância tal, que hoje em dia consideramos inconcebível tudo aquilo a respeito de que nossos antepassados tinham uma clara noção, para poder falar entre si das manifestações de Deus aos homens, como de coisas conhecidas de todos, e em absoluto estranhas[23]”.

Encontramos a “simplicidade do conhecimento cristão” onde a gnose e o amor se tornam uma coisa só, na experiência secreta, oculta aos olhos do mundo, na vida daqueles que se uniram à Luz eterna da Santa Trindade, mas essa experiência é sempre inexprimível. “As realidades do século futuro, diz Santo Isaac o Sírio, não possuem apelação própria e direta. Podemos ter a seu respeito não mais do que um conhecimento simples, acima de qualquer palavra, de qualquer elemento, de qualquer imagem, cor, figura ou nome composto, quaisquer que sejam[24]”. “É a ignorância que ultrapassa todo conhecimento[25]”. Novamente nos encontramos no domínio do apofático, por onde começamos nossos estudos da tradição oriental. Mas, em lugar das trevas divinas, trata-se aqui da luz, e em lugar do esquecimento de si mesmo, trata-se da consciência pessoal que desabrocha plenamente na graça. É que se trata agora da perfeição adquirida, da natureza transformada pela união com a graça, de uma natureza que se torna, também ela, luz. Como fazer entender essa experiência àqueles que não a tiveram? O que São Simeão tenta expressar nos permite entrever, em termos contraditórios, tudo o que permanece ainda fechado à nossa consciência não iluminada: “Quando atingimos a perfeição, diz ele, Deus já não vem a nós, como antes, sem imagem ou aparência (...) Ele vem sob uma certa imagem, porém sob uma imagem de Deus: pois Deus quase não aparece numa figura ou vestígio qualquer, mas Ele se dá a conhecer em Sua simplicidade, formado pela luz sem forma, incompreensível, inefável. Nada mais posso dizer. E, no entanto, Ele permite ser visto claramente, Ele se torna perfeitamente reconhecível, Ele fala e escuta de uma maneira que não podemos expressar. Aquele que é Deus por natureza conversa com aqueles a quem Ele torna deuses pela graça, como um amigo conversa com seus amigos, face a face. Ele ama a seus filhos como um pai; Ele é amado por eles acima de toda medida; Ele se torna neles um conhecimento maravilhoso, um ouvido temível. Eles não podem falar Dele como é devido, mas eles tampouco podem guardar o silêncio (...) O Espírito Santo se torna neles tudo o que as Escrituras falam a respeito do Reino de Deus, a pérola, o grão de cevada, o fermento, a água, o fogo, o pão, a bebida da vida, o leito, a câmara nupcial, o esposo, o amigo, o irmão e o pai. Mas que posso eu dizer sobre aquilo que é indizível? Aquilo que o olho não viu, nem o ouvido ouviu, o que não chegou ao coração do homem, como poderia ser expresso em palavras? Embora tenhamos adquirido e recebido tudo isso no interior de nós mesmos, por um dom de Deus, não podemos absolutamente medi-lo com a inteligência, ou expressá-lo em palavras[26]”.

Segundo os defensores da luz incriada, essa experiência das realidades do século futuro não tem como ser definida dogmaticamente. Assim é que o Antigo Testamento, ao lado dos dogmas e das prescrições da lei, tinha previsões proféticas das realidades que viriam a se revelar e se tornar dogmas na Igreja. Da mesma forma, na idade evangélica na qual vivemos, ao lado dos dogmas, ou antes dentro dos próprios dogmas, um fundo oculto nos aparece como um mistério relativo ao século futuro, ao Reino de Deus[27]. Podemos também dizer que o Antigo testamento vivia pela lei e tendia para a esperança; que a idade evangélica vive na esperança e tende para o amor; que o amor é um mistério que não se revelará, que não se realizará plenamente senão no século futuro. Para aquele que adquire o amor, “as trevas se dissipam e a luz verdadeira aparece desde já”, segundo as palavras de São João[28].

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A luz divina aparece aqui em baixo, no mundo, no tempo. Ela se revela na história, mas ela não é desse mundo; ela é eterna, ela significa uma saída da existência histórica: “o mistério do oitavo dia”, mistério do verdadeiro conhecimento, perfeição da gnose cuja plenitude não pode ser contida por esse mundo antes do fim. É o começo da parúsia das almas santas, primícias da manifestação final, quando Deus aparecerá a todos na luz inacessível. É por isso que, segundo São Simeão o Novo Teólogo, “para aqueles que se tornaram filhos da luz e filhos do dia futuro, para aqueles que caminham sempre na luz, o dia do Senhor não virá jamais, porque eles já estão com Deus e em Deus. Portanto, o dia do Senhor não aparecerá para aqueles que já foram iluminados pela luz divina, mas ele se revelará subitamente aos que permanecem nas trevas da paixão, aos que vivem segundo o século, ligados aos bens perecíveis. Para esses, esse dia aparecerá subitamente, inesperado, e será para eles terrível como o fogo que não se pode suportar[29]”.

A luz divina se torna o princípio de nossa consciência: nela conhecemos a Deus e conhecemos a nós mesmos. Ela perscruta as profundidades do ser que acede à união com Deus, ela se torna para ele o julgamento de Deus antes do Juízo Final. Pois existem dois julgamentos, segundo São Simeão: um acontece aqui em baixo – é o julgamento com vistas à salvação; o outro, depois do fim do mundo, é o julgamento da danação. “Na vida presente, quando, pelo arrependimento, entramos livremente e de nossa própria vontade na luz divina, nos vemos acusados e julgados; porém, pela caridade e a misericórdia divinas, essa acusação e esse julgamento se fazem em segredo, nas profundezas de nossa alma, para nossa purificação e para o perdão dos pecados. Somente Deus e nós mesmos vemos as profundezas ocultas de nossos corações. Aqueles que na vida presente sofrem esse julgamento nada têm a temer diante de novo exame. Mas os que não querem desde aqui em baixo entrar na luz para serem acusados e julgados, aos que odeiam a luz, o segundo advento de Cristo revelará a luz que permanece oculta presentemente e tornará manifesto tudo o que permanece secreto. Tudo o que escondemos hoje, por não querermos revelar o fundo de nossos corações pelo arrependimento, se abrirá então à luz, diante da face de Deus, diante do universo inteiro, e aquilo que somos em realidade surgirá a descoberto[30]”.

A consciência plena se realizará em todos na luz divina, quando acontecer o segundo advento de Cristo. Mas não será a consciência que se abre livremente na graça, em acordo com a vontade divina; será uma consciência que virá, por assim dizer, desde fora, abrindo-se dentro da pessoa contra sua vontade, uma luz que se une aos seres exteriormente, ou seja, “fora da graça”, segundo São Máximo – o amor divino que se tornará um tormento intolerável para aqueles que não o adquiriram no interior de si mesmos. Segundo Santo Isaac o Sírio, “aqueles que se encontrarem na Geena serão flagelados pelo açoite do amor. Quão amargo e cruel será esse tormento do amor! Pois os que compreenderem que pecaram contra o amor sentirão um sofrimento maior do que o produzido pelos mais terríveis tormentos. A dor que tomará o coração que faltou com o amor será mais aguda do que toda outra pena. Não é justo dizer que no inferno os pecadores serão provados do amor de Deus (...) Mas o amor age de duas maneiras diferentes: ele se torna sofrimento para os reprovados e alegria para os bem-aventurados[31]”.

A própria ressurreição será uma manifestação do estado interior dos seres, pois os corpos deixarão transparecer os segredos das almas. Em sua visão escatológica, São Macário do Egito exprime esse pensamento: “O fogo celeste da divindade, diz ele, que os cristãos recebem aqui, nesse século, no interior de seus corações onde ele age, esse fogo, quando o corpo for destruído, agirá no exterior; ele restituirá outra vez os membros desconjuntados e ressuscitará os corpos decompostos[32]”. Então, tudo o que a alma tiver ajuntado em seu tesouro interior aparecerá no exterior, no corpo. Tudo se tornará luz, tudo será penetrado de luz incriada. Os corpos dos santos se tornarão semelhantes ao corpo glorioso do Senhor, tal como Ele apareceu aos apóstolos no dia da Transfiguração. Deus será tudo em todas as coisas, e a graça divina, a luz da Santa Trindade, resplandecerá na multitude das hipóstases humanas, em todos aqueles que a houverem adquirido e que se tornarão como novos sóis no Reino do Pai, semelhantes ao Filho, transfigurados pelo Espírito Santo, o Doador da Luz. “A graça de Seu Espírito Santíssimo, diz São Simeão, brilhará como um astro sobre os justos, e, no meio deles, Tu resplandecerás, ó Sol inacessível! Então todos eles serão iluminados na medida de sua fé e de suas obras, de sua esperança e de sua caridade, na medida da purificação e da iluminação por Teu Espírito, ó Deus único de infinita mansuetude[33]”.

Na parúsia e na realização escatológica da história, o conjunto do universo criado entrará em união perfeita com Deus. Essa união se realizará, ou antes, ela se manifestará diferentemente em cada uma das pessoas humanas que houverem adquirido a graça do Espírito Santo na Igreja. Mas os limites da Igreja além da morte e as possibilidades de salvação para aqueles que não conheceram a luz nessa vida permanecem para nós como o mistério da misericórdia divina, sobre a qual não ousamos atribuir um valor, e que tampouco podemos determinar segundo nossas medidas humanas.



[1] Capita Practica, XXXIII, 25, P.G., t. 40, col. 1268A.
[2] Caminhem como filhos da luz (Efésios 5: 9).
[3] Despertem, levantem-se de entre os mortos, e Cristo os iluminará (Efésios 5: 14).
[4] Salmo 35: 10.
[5] Homilia LXXIX, 2, ed. Russa do Monte Athos, II, pg. 318-319.
[6] Homilias Espirituais, V, 8, P.G., t. 32, col. 513B; XII, 14, col. 565AB; XXV, 9, 10, col. 673.
[7] Contra Akyndinum, P.G., t. 150, col. 823.
[8] São Gregório Palamas, Homilia sobre a Transfiguração, P.G., t. 151, col. $$*B.
[9] Marcos 9: 1.
[10]  Esti pur Qeion ontws
       Aktiston aoraton ge
       Anarcon kai aulon te...
       (Obras de São Simeão, ed. de Smirna, 1886, II, pg. 1.
[11] P.G., t. 150, col. 1933D.
[12] São Simeão, Hom., LVII, ed. russa do Monte Athos, II, pg. 36; São Gregório Palamas, Capita physica, etc., (c. 67), P.G., t. 150, col. 1160A.
[13] Sermões, XX, P.G., t. 151, col. 168AB.
[14] Tomo Hagiorítico, P.G., t. 150, col. 1232C.
[15] P.G., t. 151, col. 433B.
[16] Homilia sobre a Apresentação da Santa Virgem no Templo, ed. Sophoclès, in 22 Homilias de São Gregório Palamas, Atenas, 1861, pg. 175-177.
[17] Diálogos da alma e do corpo, P.G., t. 150, col. 1361C. A autenticidade desse texto atribuído a Palamas é discutível, mas fato é que ele pertence à mesma família espiritual.
[18] P.G., t. 150, col. 1233BD.
[19] Relação da vida e das obras do Pe. Serafim, de bem-aventurada memória, hieromonge e recluso de Sarov, 3ª. Ed., Moscou, 1851, pg. 63.
[20] Homilia XC, ed. russa do Monte Athos, II, 487-488.
[21] Quando opomos as vias de santificação próprias ao Ocidente e ao Oriente, não pretendemos afirmar nada de modo absoluto. Essa matéria, demasiado delicada e cheia de nuanças escapa a toda tentativa de esquematização. Assim, no Ocidente, a experiência da noite não foi característica para São Bernardo, por exemplo. Por outro lado, a espiritualidade oriental nos oferece pelo menos um caso de “noite mística” bem caracterizado: o de São Thikon de Voronej (Século XVIII).
[22] São Serafim de Sarov – Uma revelação maravilhosa para o mundo - Diálogo de São Serafim de Sarov (1754-1833) com Nikolai Motovilov (1809-1879).
[23] Ibid.
[24] Ed. Wensinck, Hom. II, pg. 8-9; ver Hom. XXII, pg. 114.
[25] Ibid., Hom. XXII, pg. 118.
[26] Homilia XC, ed. russa do Monte Athos, 2ª. Parte, pgs. 488-489.
[27] Tomo Hagiorítico, P.G., 150, col. 1225-1227.
[28] I João 2: 8.
[29] Homilia LVII, 2, ed. russa do Monte Athos, 2ª. Parte, pg. 37.
[30] Ibid.
[31] Ed. Theotoki, LXXXIV, pg. 480-481; Wensinck, pg. 136.
[32] Homilias Espirituais, XI, 1, P.G., t. 34, col. 5440.
[33] Discurso XXVII, trad. francesa, La Vie Spirituelle, XXVII, 3, 1 de junho de 1931, pg. 309.