domingo, 13 de maio de 2018

Arquimandrita Sofronio - Excertos do Ensinamento de São Silouane o Athonita: Mantém teu espírito no Inferno e não te desesperes




O asceta em estado de contemplação vê realidades que permanecem misteriosas para a maior parte dos homens, e que difíceis de comunicar; traduzidas para a linguagem humana, elas podem ser deformadas e mesmo traídas. As palavras e os conceitos não possuem mais do que uma limitada possibilidade de transmitir um estado espiritual, e a condição indispensável para que nesse domínio uma pessoa possa compreender a outra é a identidade de experiências, ou, no mínimo, a semelhança. Na falta disso, não se estabelecerá uma compreensão recíproca, já que o valor de uma noção é função do dado vivido que essa noção contém. Assim, por um lado, todos os homens falam línguas distintas; mas, por outro, a palavra pode provocar às vezes, graças à consubstancialidade do gênero humano, uma experiência autêntica no espírito do interlocutor e suscitar nele uma nova vida.

Se isso acontece no que diz respeito às relações humanas, quanto quando o próprio Deus atua! A palavra divina, aproveitando o instante em que a alma está em posição de recebê-la, realmente traz a ela uma nova vida, a vida eterna incluída nessa mesma palavra. “As palavras que vos disse são espírito e vida[1]”.

Dito isso, vamos nos deter sobre aquele “encontro-oração” de tão estranha aparência, a que nos referimos anteriormente, e em especial sobre as palavras: “Mantém teu espírito no inferno e não te desesperes”.

Os leitores do Evangelho devem ter certamente percebido a transformação imprevisível que costuma acontecer nos encontros com Cristo, seja o de Nicodemo, o da Samaritana, ou com os discípulos na Santa Ceia. Não se percebe a princípio uma sequência lógica. É que a atenção de Cristo está fixada mais no coração de seus interlocutores do que nas suas palavras, em suas necessidades secretas, em sua capacidade de compreensão.

De modo análogo, o “encontro-oração” do Starets oferece pouco sentido aparentemente, e poderia ser qualificado por alguns como um “delírio incoerente”. Mas se a revelação contida nele nos fosse revelada em todo o seu poder, é certo que nosso coração ficaria profundamente comovido.

O Starets passou dezenas de anos de sua vida pedindo ardentemente ao Senhor que o mundo conhecesse a Deus. Se os homens, pensava – e sua oração abarcava todas as nações – pudessem conhecer o amor e a humildade de Deus, abandonariam, a exemplo de Paulo, como barro[2], como jogo de crianças, suas ilusões e preocupações atuais; e com todas as forças, dia e noite, não aspirariam a outra coisa do que a essa humildade e esse amor. Se assim fosse, dizia o Starets, o destino de cada homem mudaria e o mundo inteiro seria transfigurado. Tão grande é o poder da humildade de Cristo.

Os anciãos e escribas de Israel se admiraram da “segurança de Pedro e João”, “homens simples e ignorantes”, quando Pedro, referindo-se a Cristo, proclamou: “Não existe sob o céu outro Nome dados aos homens, por meio do qual possamos ser salvos[3]”. Ainda hoje isso nos surpreende e desejaríamos saber de que maneira Padro, “que não havia estudado”, e que provavelmente ignorava a história das culturas e religiões da China, da Índia e das demais civilizações, poderia saber quais nomes teriam sido dado sob o céu. Não existe outra resposta a essa pergunta senão a plenitude da revelação concedida a Pedro no Monte Tabor e no dia do Pentecostes.

Ao “ignorante e simples” Silouane, durante aquela noite de seu “encontro-oração”, os “mistérios ocultos aos sábios e aos inteligentes” foram igualmente mostrados. Aquela noite teve uma importância excepcional em sua vida. O mundo está submerso nas trevas da ignorância espiritual. O caminho da vida eterna é pregado sem cessar em todas as línguas, mas os que o conhecem verdadeiramente são poucos em cada geração.

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“Mantém teu espírito no inferno e não te desesperes”.

Exortação ininteligível. O que pode significar “manter o espírito no inferno”? isso não se reveste imaginativamente de modo simplista, como vemos às vezes nos quadros grosseiramente realistas criados pela ingênua imaginação dos homens? Não é esse o caso. Ao Padre Silouane, como a alguns dos Padres mais eminentes (Antônio, Sisóes, Macário, Poêmio), foi concedido viver na terra os tormentos do inferno. Tratava-se de um estado cuja intensidade acabava por deixar nos corações uma marca tão profunda que eles podiam renová-lo mediante um movimento interior apropriado, quando queriam. E eles podiam recorrer a esse ato ascético quando alguma paixão, em especial o orgulho, a mais sutil e enraizada de todas, surgia-lhes na alma.

A luta contra o orgulho é efetivamente a última etapa no caminho que conduz à impassibilidade. No princípio, o asceta está ao alcance das grosseiras paixões da carne, depois da irritabilidade, e ao final do orgulho, e esse último combate é sem dúvida o mais doloroso. O asceta, convencido, depois de uma longa experiência, de que o orgulho põe a perder a graça, desce conscientemente, ao vê-lo nascer, ao inferno e desse modo paralisa qualquer movimento passional.

Essa forma de combate nos foi legada por Santo Antônio, fundador do Monaquismo, e o Starets Silouane notara que a maior parte dos monges se assusta e fraqueja quando chega essa etapa. Por esse motivo o grande Sisóes disse: “Quem poderá suportar o pensamento de Antônio?”.

Sisóes, pensava o Starets, aludia aqui ao pensamento ascético que Antônio aprendeu de um sapateiro de Alexandria. Santo Antônio havia suplicado a Deus que lhe mostrasse alguém igual a ele. Deus lhe fez saber que ele não havia alcançado a “estatura” de certo sapateiro de Alexandria. Antônio deixou o deserto, dirigiu-se à casa desse homem e perguntou a ele como vivia. O sapateiro respondeu-lhe que entregava um terço de seus ganhos à Igreja e outro aos pobres, guardando o resto para si. Isso não pareceu extraordinário a Antônio, já que ele havia renunciado a todos os seus bens e vivia no deserto, numa pobreza maior do que a do sapateiro. Não estava ali, portanto, a superioridade desse último. Antônio lhe disse: “O Senhor me enviou para ver como vives”. O humilde artesão, que venerava a Antônio, confiou-lhe então o segredo de sua alma: “Não faço nada de especial; apenas, quando trabalho, olho os passantes e penso: todos se salvarão, só eu perecerei”.

Antônio, preparado por um longo e extraordinário esforço ascético, que enchera de admiração a todo o Egito, penetrou pela graça de Deus no sentido dessas palavras e compreendeu realmente que não havia alcançado a altura daquele sapateiro.

Voltando ao deserto, dedicou-se a esse exercício e o ensinou aos eremitas capazes de absorver, “não o leite, mas o alimento sólido[4]”. Os Padres da Igreja transmitiram essa lição, desde então, como um legado inestimável. Cada qual, é certo, lhe dará uma forma distinta. Assim, Poêmio o Grande dizia aos seus discípulos: “Creiam-me, filhos meus, onde Satanás estiver, ali eu serei deixado”. O exercício, porém, é essencialmente o mesmo.

“Mantém teu espírito no inferno”. Essa expressão parece refletir um extremo desespero. Mas o Starets dizia que o asceta experimentado, seguro do amor de seu Senhor, se mantém sabiamente na beira do abismo e não desespera.

Se a exposição do “encontro-oração” do santo Starets é simples, como o foram as palavras do sapateiro de Alexandria, o poder e o mistério desse exercício permanecerão incompreensíveis para aqueles que não viveram de modo parecido, tanto os sofrimentos do inferno, como os grandes dons da graça.

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A partir daquela noite, a prolongada ascese do Starets foi uma busca ardente da humildade. E, se quisermos penetrar no segredo de seu caminho para a humildade, devemos escutar seu “cântico” preferido: “Logo morrerei e minha alma miserável descerá ao inferno; ali, sofrendo sozinho na prisão tenebrosa, chorarei amargamente: minha alma busca ao Senhor e eu o busco com lágrimas. Como não buscá-lo? Foi ele quem primeiro me encontrou e que apareceu a mim, pecador”.

Quando o Starets dizia “minha alma descerá ao inferno”, não era somente uma expressão: os tormentos do inferno, realmente vividos, ficaram gravados em seu coração, de modo que ele podia revivê-los mediante um movimento consciente de seu espírito; e, quando todo pensamento passional era aniquilado, ele opunha ao efeito destruidor desse sofrimento a ação salvadora de Cristo, porque a levava também em seu coração.

Raros são os ascetas capazes desse exercício espiritual. A alma que persevera vai se acostumando a ele e adquire uma resistência especial: a lembrança do inferno se torna tão familiar que quase nunca a abandona. E essa perseverança é necessária, pois o homem “que vive no mundo e suporta a carne” está submetido continuamente às tentações do pecado e deve se defender revestindo-se da couraça da humildade.

O Starets dizia: “Com sua resposta – ‘mantém o espírito no inferno e não desesperes’ – o Senhor me ensinou como é necessário humilhar-se. É assim que vencemos os inimigos. Mas quando permito ao meu espírito que saia do fogo, os pensamentos voltam a recuperar sua força”.

No começo desse exercício, o asceta desce em espírito ao inferno e permanece parcialmente em seu poder como prisioneiro. Mas esse exercício conduz, em seu desenvolvimento posterior, à impassibilidade, e o inferno se transforma em “inferno do amor de Cristo”, algo essencialmente diferente.

O que é a “descida de Cristo ao inferno”? Não devemos conceber o inferno como uma porção do espaço, como uma região física onde os pecadores se encontram detidos, mas como um estado espiritual da criatura que se afastou do amor divino.

Como é possível que aquele que é a Luz inacessível e o Amor sem medidas se rebaixe até o nível das trevas do ódio?

Encontraremos uma explicação em São Paulo quando escreve: “Assim, a morte trabalha em nós e a vida em vós[5]”. Tal é o poder do Amor: mudar as vidas. Aquele que ama vive a existência do amado como sendo sua, até o ponto de lhe transmitir a força e a luz de seu amor, assumindo em troca suas trevas e sua morte.

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Sabemos da necessidade de que nossa vida reproduza em linhas gerais aquilo que o Filho do homem realizou durante sua vida terrestre. Esse caminho é o mesmo para todo cristão, segundo a palavra do Senhor: “Eu sou o Caminho”, e, ademais, não existe outro caminho, pois “ninguém chega ao Pai senão por mim[6]”.

Se o Senhor foi tentado[7], também nós devemos inevitavelmente atravessar o fogo das tentações. Se o Senhor foi perseguido, seremos perseguidos pelos mesmos poderes que perseguiram a Cristo[8]. Se o Senhor foi transfigurado, também nós o seremos, e já desde agora, na terra, desde que as nossas aspirações sejam parecidas com as suas. Se o Senhor foi crucificado, deveremos também sofrer, seremos como ele crucificados, ainda que sobre cruzes invisíveis – se é que o seguimos verdadeiramente. Se o Senhor teve que morrer, todos os que nele creem passarão por uma morte semelhante à sua[9]. Se o Senhor, por sua Ressurreição num corpo glorioso, “subiu aos Céus e sentou-se à direita do Pai[10]”, também nós seremos “filhos da Ressurreição[11]”, subiremos ao Céus pelo poder do Espírito Santo e seremos convertidos em “coerdeiros de Cristo[12]”.

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Ao se condenar ao inferno, aniquilando assim toda paixão, o homem deixa seu coração livre para receber o amor divino[13]. Só quando esse amor houver preenchido totalmente o homem, ser-lhe-á revelado o mistério da descida redentora de Cristo aos infernos, e sua semelhança com Deus estará realizada. Deus o abraça por inteiro, incluindo o inferno, pois não existe domínio algum do universo no qual sua presença esteja excluída. Por isso mesmo, “os Santos vão ao inferno”, dizia o Starets, “mas o inferno não tem poder sobre eles”.

“Mantém teu espírito no inferno e não desesperes”.

Sem essa experiência de descida ao inferno, é impossível conhecer verdadeiramente o que é o amor de Cristo, seu Gólgota e sua ressurreição.

A salvação, entendida como deificação, começa aqui na terra. Onde está, todavia, o critério tangível de que tal deificação nos tenha sido realmente concedida? Ele se encontra na proporção de nossa semelhança para com Deus, tal como ele se manifestou na terra por meio do ato da Encarnação; segundo a mesma medida, nos tornaremos semelhantes a ele na Eternidade.

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Nossa sucinta exposição não permite conhecer esse caminho em toda sua plenitude; sua majestade, no fundo, não pode ser descrita, pois nela se reúnem maravilhosamente o extremo sofrimento e a felicidade extrema, misturando-se um ao outro de maneira estranha. Se não houvesse mais do que sofrimento, seria impossível suportá-lo. Se não houvesse senão felicidade, seria igualmente impossível suportá-la.


[1] João 6: 83.
[2] Filipenses 3: 7-8.
[3] Atos 4: 12-13.
[4] Hebreus 5: 12-14.
[5] II Coríntios 4: 12.
[6] João 14: 6.
[7] Mateus 4: 1; Hebreus 2: 18.
[8] João 15: 21; I Timóteo 3: 12.
[9] Romanos 6: 4-5.
[10] Marcos 16: 19.
[11] Lucas 20: 36.
[12] Romanos 8: 17.
[13] Romanos 9: 1-3.

Georges Florovsky - A Igreja de Adoração




“Orai sem cessar.”
(I Tessalonicenses 5: 17)

1.       Comunidade e retiro

Existe uma dualidade essencial da existência Cristã.

O Cristianismo está alicerçado numa fé pessoal e num compromisso, e no entanto a existência Cristã é intrinsecamente coletiva: ser Cristão significa viver na Comunidade, na Igreja e da Igreja. Todavia, a personalidade jamais deve simplesmente submergir no coletivo. A Igreja consiste em pessoas responsáveis. A similaridade com o Corpo jamais deve ser mal interpretada e levada ao extremo. A Igreja é composta por personalidades únicas e insubstituíveis que não podem nunca ser vistas meramente como elementos ou células de um todo, porque cada indivíduo está em comunhão direta e imediata com Cristo e com Seu Pai – o pessoal não deve ser dissolvido no coletivo. O coletivo Cristão, no qual estão “todos juntos” não deve degenerar numa espécie de impersonalismo.

Os primeiros seguidores de Jesus, nos “dias de Sua carne”, não eram indivíduos isolados engajados em buscas pessoais da verdade. Eles eram Israelitas – e o próprio nosso Senhor costumava declarar que Ele “não fora enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel[1]”; e os Doze receberam ordens Suas no sentido de irem precisamente a essas ovelhas perdidas, evitando os Gentios e os Samaritanos[2]. Os primeiros seguidores de Jesus eram membros regulares de uma Comunidade estabelecida e instituída – a “Casa de Israel”, o “povo escolhido” de Deus – e eles estavam esperando pela “consolação de Israel”, de acordo com a Profecia e a Promessa. Num certo sentido, a “Igreja” já existia quando Jesus começou Seu ministério. Ela era Israel, o Povo da Aliança. Sua pregação foi de início dirigida aos membros dessa Comunidade. Ele nunca se dirigiu a indivíduos enquanto indivíduos. A Aliança existente formava um constante pano de fundo para Sua pregação. O Sermão da Montanha não foi dirigido a uma multidão casual de ouvintes acidentais, mas a um “círculo interno” formado por aqueles que já seguiam a Jesus na antecipação – ou com a convicção – de que Ele era “Aquele que deveria vir”, ou seja, o Messias. O “Pequeno Rebanho”, essa comunidade que Jesus reunira ao Seu redor, era, de fato, os fiéis “Remanescentes” de Israel, um “Povo de Deus” reconstituído. Ele fora reconstituído pelo Chamado de Deus, pelo anúncio do Reino, pela “Boa Nova” da salvação. E mesmo para esse chamado cada pessoa deveria responder individualmente, por um ato de fé pessoal. Essa resposta pessoal pela fé, naturalmente, incorporava o fiel na Comunidade. Ou antes, havia um pré-requisito existencial de incorporação que era efetivado e completado no Batismo, pela graça de Deus. Porém era preciso q eu a pessoa primeiro acreditasse e se comprometesse com um voto de lealdade, para então ser batizada. A “fé da Igreja” deve ser sempre apropriada pessoalmente, e mantida continuamente por meio de um esforço espiritual.

Os dois aspectos da existência Cristã – o pessoal e o coletivo – estão unidos inseparavelmente. A pessoa só pode ser salva na Comunidade, e, no entanto, a salvação é sempre mediada pela fé pessoal e a obediência.

A dualidade básica da existência Cristã reflete-se de forma visível no campo da adoração. A adoração Cristã é antes de tudo pessoal e coletiva, embora às vezes esses aspectos possam estar em tensão um com o outro.

Existem nos Evangelhos duas passagens significativas relativas à prece, e elas parecem guiar o fiel em direções opostas.

No Sermão da Montanha a multidão é exortada a orar “em segredo”, em reclusão ou em solidão. Claro, essa injunção estava dirigida primeiramente contra os “hipócritas”, contra aqueles que demonstravam uma pretensiosa ostentação no ato de adorar – “nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens”; e uma advertência semelhante foi estendida ainda às esmolas. Mas existe uma dimensão mais profunda nesse convite ao “segredo”, ou à privacidade, na prece. De fato, orar é um ato intrinsecamente pessoal, ou antes uma ação pessoal. É sempre uma pessoa que ora. Trata-se de um encontro íntimo com o Deus Vivo, e, obviamente, não devem haver testemunhas nesse encontro: “entra em teu quarto (...) fecha a porta...”. A pessoa deve se colocar diante de Deus a sós, face a face: “ora ao teu Pai que está no secreto...”. A pessoa deve se retirar para adorar, ou mesmo isolar-se. E no entanto, paradoxalmente, mesmo nesse retiro e nesse isolamento, na solidão de seu quarto, a pessoa só pode orar enquanto membro de uma Comunidade salvífica, seja o antigo Israel, seja a Igreja de Cristo. Inclusive, nenhum verdadeiro fiel jamais pode esquecer de que seu Pai é também o Pai comum a todos os fiéis e de toda a raça humana. Como Cristãos nós somos instruídos a orar ao Pai Nosso, que é também o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”. Nenhum Cristão verdadeiro pode orar apenas por si mesmo, mesmo fechado em seu quarto. A abrangência na oração é um sintoma de saúde e maturidade espiritual. Em seu âmbito e conteúdo a prece Cristã nunca deve ser estritamente “provada”, embora deva sempre ser pessoal. Mais do que isso, os Cristãos devem estar totalmente conscientes fundamento último de seu privilégio de orar – que é precisamente sua participação na Comunidade, na Igreja de Cristo.

Em outra ocasião nosso Senhor estava falando aos seus discípulos sobre o mistério da oração conjunta. Os fiéis – “dois ou três” deles – devem “concordar” em orar por certas coisas em comum. E então o maior mistério do culto é revelado: “pois onde dois ou três estiverem reunidos em Meu nome, ali estarei Eu no meio deles”. Essa “concordância” não constitui um assentimento humano ocasional. A “reunião” em nome de Cristo é em si um dom do Espírito. E ela pressupõe um tipo de preparação espiritual, ou treinamento. O coração que ora deve alargar-se até a medida do amor de Cristo pelos homens. Somente no espírito do amor de Cristo podem os indivíduos realmente estar reunidos, para se encontrarem como “irmãos”, ou seja, como irmãos em Cristo.

Orar “em segredo” e orar “em comum” referem-se de fato um ao outro inseparavelmente como aspectos de um mesmo compromisso e de uma mesma ação devocional. Não há escolha: eles devem ser praticados juntos. De fato, é a regra da Igreja que os fiéis devem se preparar para a adoração coletiva por meio de suas devoções pessoais “em casa”, “no quarto”. É perigoso espiritualmente ignorar essa regra. Mas também é perigoso ficar tão absorvido na “devoção caseira” que o impulso de reunir-se com os irmãos no culto coletivo expira, ou é reduzido ao mínimo: porque o clímax da adoração Cristã – e também seu centro – é a Santa Comunhão na qual o próprio Cristo surge no meio daqueles que estão reunidos em Seu nome. Qualquer que seja o caso, como explicava São Cipriano ao seu rebanho, a prece Cristã é essencialmente a “oração do povo”, uma vez que “nós, todo o povo, somos um”. Por conseguinte, o objetivo e a medida da adoração Cristã é a unanimidade – “com uma só boca e um só coração”. E nós, Cristãos, devemos estar sempre agradecidos pela graça que nos foi concedida – “de que com uma só mente façamos nossas súplicas” ao nosso Pai Celestial.

2.       Memória e ação de graças

A adoração Cristã é essencialmente um “encontro”. Mais do que isso, ela é também um “diálogo”. Existem sempre duas pessoas na adoração. O fiel está sempre esperando uma resposta. “Dê ouvidos, Senhor, à minha prece; e atende à voz da minha súplica. Nos dias de minha angústia eu chamarei por Ti, porque hás de me ouvir[3]”. Como disse o profeta, “Eu sou um Deus próximo, não um Deus distante[4]”. A iniciativa é divina. Chamamos por Deus porque ele primeiro chamou por nós. Assim sendo, a adoração Cristã é uma resposta ao chamado ou ao “desafio” de Deus. Oramos porque Deus tomou a iniciativa, e nos tornamos cientes dessa iniciativa através do testemunho da Escritura. Chamamos pelo Deus que se deu a conhecer a nós – porque Ele se revelou através das eras, em ocasiões especiais, por intermédio de mensageiros específicos, e finalmente por meio de Seu Filho Unigênito e nosso Senhor Jesus Cristo. Ele primeiro chamou o povo que Ele criou, e o fez porque criou o homem para Seu propósito, modelando-o à Sua imagem, imprimindo Sua semelhança em cada homem. Ele revelou a Si próprio nessa maravilhosa história contada nas páginas da Sagrada Escritura. Mas Ele fez mais do que isso. O Filho de Deus desceu para habitar entre os homens para sua salvação. O clímax da revelação de Deus é “o Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”. Trata-se da história de um Encontro, de uma conversa pessoal com o homem Daquele que era Divino e que para nossa salvação, "por nós homens e para nossa salvação”, se tornou ou “se fez” homem. Os Cristãos sempre oram a Deus “através de Jesus Cristo nosso Senhor”. E essa referência é crucial e decisiva. Só chegamos ao Pai por intermédio do Filho, “que o revelou[5]”. Como Cristãos, chamamos pelo Deus a quem conhecemos – por seus feitos extraordinários para nossa salvação em Cristo. Por conseguinte, existem sempre duas ênfases principais na adoração Cristã: a memória e a ação de graças anamnese e eucaristia. Elas pertencem uma à outra de modo inseparável.

O ponto de partida do culto Cristão é a comemoração ou a recordação. A Fé Cristã é em si em primeiro lugar um reconhecimento obediente e grato dos feitos extraordinários e salvífico de Deus que culminaram na “descida” do Filho de Deus. Deus agiu de uma vez por todas. Agora o homem deve agradecer a ação da graça de Deus e dar testemunho de Seu amor e de Sua glória. A adoração Cristã só é possível no contexto da Revelação histórica de Deus, na perspectiva de uma “História Sagrada” que é precisamente a “História da Salvação”. Correspondentemente, ela se acha determinada e caracterizada por meio de certas “assumpções de fé”, por meio das quais acessamos e interpretamos, à luz da fé, os feitos de Deus e seus propósitos. Já na Antiga Lei toda a estrutura do culto Judaico era essencialmente “histórica”. A memória dos extraordinários feitos de Deus no passado domina o Saltério, esse “Livro de Orações” exemplar, que manteve seu lugar central também no culto da Igreja Cristã, tanto público como “privado”. Certamente, essa “memória” foi reavaliada e reinterpretada à luz da Nova Aliança. Mas o sentido de história permaneceu de modo enfático. O Deus Vivo a quem os Judeus dirigiam suas preces sob a Lei, agora revelou seu envolvimento definitivo “nos últimos dias”. O mesmo Deus Vivo que escolheu Israel para ser Seus servo e Seu povo, finalmente manifestou Seu infalível amor pelo homem de modo mais perfeito em Cristo Jesus. A Velha Aliança foi finalmente suplantada pela Nova, mas essa Nova Aliança “em Cristo” foi, de fato, simplesmente o clímax e a consumação da Antiga. Essa conexão íntima entre as duas é fortemente enfatizada no Magnificat e no Nunc Dimittis, esses grandes e triunfantes hinos escriturários da Igreja. O culto da Igreja foi construído sobre fundações antigas. A Igreja retomou as sagradas memórias do Antigo Israel, e continuou devotamente relembrando os feitos extraordinários de Deus sob a Antiga Aliança. As reminiscências da Antiga, entendidas como uma antecipação profética, reaparecem em muitos hinos e preces Cristãos. Mais do que isso, a Igreja reteve o velho esquema litúrgico, ou o padrão de “recordação” e “recital”. Lectio divina, a recitação da Escritura, continua sendo uma parte integral e orgânica do culto Cristão, incluindo tanto o Antigo como o Novo Testamento. É significativo que especialmente nas grandes ocasiões das comemorações litúrgicas estejam prescritas numerosas leituras do Antigo Testamento – para enfatizar a unidade e a continuidade da “História Sagrada”. Nesses grandes dias o culto da Igreja adquire mais visivelmente sua dimensão histórica. A fé Cristã e a esperança estão enraizadas na História Sagrada. A Profecia e o Evangelho pertencem um ao outro inseparavelmente, como promessa e consumação. “Nos tempos antigos, muitas vezes e de muitos modos Deus falou aos antepassados por meio dos profetas. No período final em que estamos, falou a nós por meio do Filho. Deus o constituiu herdeiro de todas as coisas e, por meio dele, também criou os mundos[6]”.

O caráter histórico do culto Cristão fica claramente expresso na estrutura do ano litúrgico. Desde os primeiros tempos houve na Igreja uma comemoração anual do Triduum crucial – da Cruz à Ressurreição – assim como uma comemoração semanal da Ressurreição, a cada “Dia do Senhor”. Gradualmente um amplo esquema de comemorações anuais foi elaborado; de fato, para cada dia foi estabelecida sua própria “memória”. Esse calendário Cristão possuía obviamente um significado teológico vital e muitas implicações teológicas. A cada dia a Igreja olhava o passado. O calendário testifica a santificação do tempo. A Igreja vive numa dimensão de memórias sagradas, ao mesmo tempo em que olha para o futuro.

Sem dúvida, a consumação foi maior do que a promessa, e seu mistério ultrapassou todas as expectativas e todo entendimento. Apesar disso, trata-se precisamente de uma “consumação” e também – num dado sentido – uma “recapitulação”. Paradoxalmente, ao mesmo tempo ela ab-rogou a Antiga Aliança e confirmou seu significado perene. A própria natureza da História Sagrada foi profunda e radicalmente transformada, e ainda assim se mantém como a mesma história que continua. Abrahão continua sendo o “pai de todos os crentes” não apenas do Antigo Israel, como também daqueles da Igreja Cristã. Os santos da Antiga Aliança encontraram seu lugar no calendário Cristão. Desde a vinda de Cristo, em virtude da Encarnação, Deus guia Seu Povo “desde de dentro” e não mais “desde fora”, como acontecia sub umbraculo legis[7]. A recordação Cristã é muito mais do que uma simples memória ou reminiscência. Na verdade, os Cristãos são convidados e olhar para trás, para os eventos prodigiosos que fundaram sua fé e sua esperança: a Encarnação, a Cruz e a Ressurreição, o Pentecostes. Mas esses acontecimentos isolados do passado estão, ao mesmo tempo, paradoxalmente presentes na Igreja aqui e agora. A Encarnação do Verbo é em primeiro lugar um acontecimento histórico do passado que pode e deve ser “rememorado” da maneira usual, mas também constitui um presença persistente e eterna do Senhor que pode ser percebida diretamente e reconhecida em todos os tempos e a qualquer momento específico pelo olho do fiel, na Igreja. Isso muda completamente o caráter da anamnese da adoração Cristã. Existe aí muito mais do que uma expansão ou uma extensão da perspectiva histórica comum. O cumprimento da Promessa não constituiu simplesmente um evento extra na sequência homogênea dos acontecimentos. Claro, foi um “evento”, mas um evento que nunca passa. Evidentemente ele pode ser datado com uma boa precisão cronológica e assim contamos hoje “os anos do Senhor”, anni Domini – a partir da Natividade de Cristo em Belém, post Christum natum. E mesmo assim aquilo que está sendo “recordado” está de fato presente, e estará presente “pelos séculos dos séculos” – até que outra vez Ele venha. Pois mesmo antes de que Ele venha, Ele já está presente na Igreja. É precisamente Sua presença perpétua que torna a Igreja o que ela é, ou seja, o Corpo de Cristo. Assim é que essa misteriosa presença de Cristo – na Igreja e no mundo – inaugurou-se na história, por uma intervenção soberana de Deus, por um “terremoto” revelador decisivo, para usarmos a expressão audaciosa de São Gregório de Nazianze. A consciência da Presença está inseparavelmente ligada com a memória do Passado. Essa coincidência paradoxal entre Passado e Presente constitui a característica única e distintiva da “memória” Cristã, que alcança sua culminação na anamnese Eucarística, ou “comemoração”.

A Santa Eucaristia é o centro da adoração e do culto Cristão. Um ciclo elaborado de ofícios diários foi construído, ao longo do tempo, em volta desse centro de devoção. Mais do que isso, a Eucaristia não é apenas um “ofício” particular, ou akolouthia[8], mas é primeiramente um sacramento, um mysterion. Ora, o rito Eucarístico é obviamente uma anamnese, um “Memorial do Senhor”, realizado “em Sua memória”, de acordo com seu mandamento. Mas, por outro lado, indubitavelmente, ela não é uma mera comemoração da Última Ceia. De fato, ela é a própria Última Ceia. O próprio Cristo está realmente presente no rito sagrado, tanto como seu supremo e perene oficiante como sua vítima, “pois és Tu que ofereces e és oferecido”. Nas poderosas palavras de São João Crisóstomo, cada celebração Eucarística é, realmente, a própria Última Ceia, em sua realidade plena, sem nenhuma diminuição. “Essa mesa é a mesma de antes e nada menos[9]”. “É a mesma oferenda, seja ela oferecida por qualquer homem, ou por Pedro, ou Paulo. A mesma que Cristo deu aos Seus discípulos, a mesma que o sacerdote ministra agora. Ela não é de modo algum inferior àquela, porque não é o homem que a santifica, mas é o Mesmo que a santifica agora como a santificou outrora[10]”. Não existe diferença, conclui São João. O Sacramento Eucarístico não constitui nem uma mera recordação, nem uma “repetição” da Última Ceia. Ants, ela é sua “manifestação”, ou extensão. Os fiéis, de fato, são conduzidos até a Sala Superior e se tornam partícipes da mesma Santa Ceia. A natureza paradoxal da anamnese sacramental, que é ao mesmo tempo um encontro real e imediato, ou antes uma comunhão, com o Senhor perpetuamente presente, revela o supremo mistério da existência Cristã. O Corpo jamais se separa da Cabeça. A Igreja é algo mais do que a assembleia dos crentes, daqueles que acreditam e confirmam os feitos prodigiosos de Deus “nos séculos passados”, incluindo os tempos evangélicos. Ela é, acima de tudo, o Corpo de Cristo, uma corporação daqueles que habitam Nele e nos quais o próprio Cristo habita perpetuamente, conforme Sua própria e solene promessa. Existe na Igreja uma misteriosa continuidade entre Cristo Salvador e os Cristãos – que são salvos exatamente como “membros” de Seu Corpo – seja lá qual for a maneira como se tente explicar e compreender esse mistério supremo, o mistério da Igreja. São João Crisóstomo esforçou-se para descrever esse mistério em palavras, falando na própria pessoa de Cristo: “Eu o persegui, corri atrás dele, para poder surpreendê-lo. Eu o unifiquei e o prendi a Mim. Eu o segurei por cima e o enlacei por baixo, eu desci até embaixo. Eu não apenas me misturei com ele, eu o envolvi completamente. Quando as coisas são unidas, elas ainda existem dentro de seus próprios limites, mas eu me entreteci com ele. Não havia mais divisão entre nós. Eu quis que ambos fôssemos um[11]”. São João tinha em mente precisamente o mistério da Comunhão.

De fato, a anamnese Eucarística é também uma koinonia, uma comunhão, um encontro. Aqueles que “recordam” ou “comemoram” o Senhor, de acordo com seu mandamento, não estão “fora Dele”, mas “Nele”, in Christo, como os ramos de uma vinha. Eles pertencem à Sua “plenitude”, ao pleroma que é a Igreja[12]. Não é possível existir Cristãos do lado de fora. Todos são membros de Cristo. O culto Cristão consiste na adoração dos que estão dentro. É significativo que esse grande mistério da Presença de nosso Senhor tenha sido desde os primeiros Cristãos descrito como Eucaristia, ou seja, como Ação de Graças. A principal oração desse rito, a anaphora, é precisamente uma elaborada anamnese ou recapitulação do Magnalia Dei[13], ou seja, da própria Criação até a Última Ceia e a solene declaração de Cristo, “fazei isso em memória de Mim”. O Sacramento é visto desde uma ampla perspectiva da História da Salvação. Desse modo, ele é uma anamnese em forma de Ação de Graças. A gratidão é uma resposta apropriada do homem à benevolência, ou à filantropia, de Deus. Na medida em que constitui uma resposta do homem à Providência salvífica de Deus, e em especial ao mistério da Redenção por Jesus Cristo e em Jesus Cristo, e ainda ao insondável dom da Vida Nova no Espírito, o culto Cristão é em primeiro lugar uma expressão de agradecimento e reconhecimento, de louvor e adoração. Ele culmina definitivamente na doxologia. É significativo que sejamos dirigidos a concluir nossas preces e intercessões com doxologia: “... pois a Ti convém toda glória, honra e adoração...”. Esse também deve ser nosso ponto de partida: “Louvado seja Teu Nome...” constitui a primeira petição e a introdução de Oração do Senhor, e somente depois disso começam as intercessões.

3.       Encontro e diálogo

A adoração é a norma da existência Cristã. Ela deveria ser a disposição constante e a atitude do Cristão. De fato, adorar a Deus significa precisamente estar ciente de Sua presença, significa habitar constantemente nessa presença. É por meio da adoração que o “homem novo” é formado dentro do fiel, e que a graça batismal da adoção é atualizada. O Cristão deve estar sempre em estado de adoração, seja ela expressa em palavras ou não. Na sua essência, a adoração consiste numa orientação do homem em direção a Deus: “em Tuas mãos eu entrego meu espírito”.

A oração é um dever obrigatório dos fiéis. A fé e a adoração não podem ser separadas. Mas a prece é também um esforço audacioso, ainda mais na medida em que constitui um impulso espiritual daquele que crê. Sempre se encontra a Deus com tremor e temor, ainda que com amor e adoração. Durante a oração, deve-se iniciar com um ato de desligamento – “deixar de lado todos os cuidados dessa vida”. Essa não é de modo algum uma tarefa fácil, especialmente quando desejamos apresentar exatamente esses “cuidados” – nossas preocupações e necessidades – a ele, buscando auxílio e iluminação. Por isso somos convidados a orar “no quarto”, em isolamento, retirados “do mundo”. É claro que as paredes do quarto, a porta fechada e quaisquer outros muros exteriores não são capazes por si só de evitar a distração e a dissipação. Isso só se obtém por meio de um intenso esforço interno, de um treinamento firme e constante, e por uma reorientação total da vida da pessoa. Mas desligamento não implica indiferença. O próprio Deus não é indiferente à necessidade humana de “cuidados”.

Tem sido frequentemente sugerido, por muitas autoridades e experimentados mestres da vida espiritual, que os “livros de oração”, os formulários fixos do culto, são feitos apenas para os iniciantes. Isso é verdade, sem dúvida, desde que corretamente entendido. Fórmulas fixas são, é claro, não mais do que meios em direção a algo bem maior. Mas são meios apropriados. É espiritualmente perigoso negligenciar os “livros”, dispensá-los precipitadamente, e entregar-se arbitrariamente em improvisações extemporâneas de composição pessoal. Trata-se mais do que uma simples questão de disciplina. As fórmulas estabelecidas não apenas ajudam a fixar a atenção, como ainda alimentam o coração e a mente dos fiéis, oferecendo tópicos para meditação e recordação dos feitos admiráveis de Deus. Não há lugar para psicologismos ou subjetivismo na adoração Cristã. O objetivo e a proposta da adoração é a “prece da mente”, para a completa exclusão de todas as “paixões”. A medida é a serenidade. Silencie toda carne humana, e com temor e tremor se apresente...

Existe na Igreja uma regra fixa, ou ordem, para a adoração, e mesmo para a oração “no quarto”. Nossa tarefa é segui-la. Claro, deve haver mais do que uma mera recitação: as palavras devem vir do coração, e esse deve encontrar suas próprias palavras. Mas a prece espontânea só acontece depois de um assíduo treinamento. Deve-se manter um balanço entre “recitação” e “improvisação” durante a adoração, embora evidentemente não se possa estabelecer uma regra formal para isso. O objetivo do treinamento consiste em introduzir o fiel numa “conversa” com Deus, em guiá-lo para um “encontro” com o Deus Vivo. É significativo que a maior parte dos ofícios da Igreja, incluindo as regras para a oração doméstica, comecem com um ousado apelo ao Espírito Santo, o Rei Celestial: Vem e habita em nós. De fato, trata-se de uma antecipação de nosso propósito último e final – adquirir o Espírito de Deus. Paradoxalmente, o final é antecipado desde o princípio. A busca pelo Espírito é força que move a adoração. Pode acontecer que em algum momento durante a adoração o Espírito comece a falar em nosso coração. Devemos então parar e escutar. “O próprio Espírito assegura ao nosso espírito que somos filhos de Deus (...) O próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis[14]”. Nesse ponto, a prece, no sentido comum do termo, desaparece. Como diz São Serafim de Sarov, a pessoa já não pode pedir “vem e habita em nós”, quando o Espírito já veio e está falando em nosso coração. Não podemos fazer outra coisa do que receber essa visita com alegria, e também com humildade. Naturalmente, o Espírito só se manifesta nas almas que foram preparadas por um longo e firme exercício de devoção. Não existe espaço para a “improvisação” humana. É o Espírito quem improvisa.

Nesse ponto, emerge o problema crucial: de que maneira podemos e devemos relacionar essa devoção pessoal “no quarto” com o culto coletivo em comunidade? O encontro com Deus, durante a oração “no quarto”, é certamente o âmago da adoração. Esse é o encontro genuíno e a comunhão com Deus. Então, o que está faltando? Por que, e como, deve esse encontro íntimo com o Deus Vivo no secreto do quarto ser suplementado pela participação no culto coletivo e público da Comunidade? Essas questões não são ociosas ou vãs. Elas têm uma enorme importância prática, que é ainda mais urgente e candente nos tempos atuais. Tampouco são questões simples que admitem uma solução geral e invariável. De fato, existe uma tensão permanente na prática devocional dos indivíduos Cristãos, entre a “de3voção privada” e o “culto coletivo”, que só pode ser superada por uma meditação intensa sobre os artigos da fé. Certa tendência para um tipo peculiar de “individualismo” espiritual parece inerente à prática da prece solitária, ainda que subconscientemente. É realmente verdadeiro que é “no quarto” que o fiel entra numa conversa íntima e direta com o Deus Vivo e adquire o Espírito Santo. É geralmente esse encontro íntimo com Deus que costuma ser desenvolvido nos manuais da vida espiritual. Ao mesmo tempo, é claro, assume-se que aqueles que adoram “no quarto” são também membros da Igreja. Mas esse aspecto da matéria nem sempre é suficientemente enfatizado. De fato, os Cristãos só estão autorizados a rezar enquanto membros da Comunidade. Não se trata apenas de um pressuposto objetivo, mas de uma condição espiritual interna, de uma parte integral de sua orientação devocional.  “Devoções privadas” são inevitavelmente tanto uma preparação como uma consequência da “adoração coletiva”. Uma sempre aponta para a outra. A oração está intrinsecamente subordinada aos sacramentos. Ela só é possível com base em nossa incorporação sacramental no Corpo de Cristo, através do Santo Batismo. Por conseguinte, o “encontro” definitivo só se realiza de um modo sacramental, no mistério da Sagrada Eucaristia. Todas as “devoções privadas” devem ser conscientemente dirigidas para esse objetivo sacramental. É altamente significativo que Nicolas Cabasilas tenha escrito sua grande obra “Vida em Cristo” na forma de um tratado sobre os sacramentos – a tríade dos sacramentos de iniciação: Batismo, Crisma, Eucaristia. Aí residem as raízes da existência Cristã, e também da adoração Cristã. A esse respeito, devemos recordar ainda os ensinamentos do Padre João de Kronstadt.

Para Cabasilas, a Eucaristia é o “mistério definitivo”, uma consumação sacramental, “o objetivo e o termo da vida”. A Eucaristia é o ápice da peregrinação Cristã. E quando esse estágio final da vida sacramental é alcançado, não há nada mais a ser desejado ou que seja necessário. Nesse mistério, ou sacramento, não apenas estão contidos os dons do Espírito concedidos e recebidos, como está presente o próprio Senhor Ressuscitado. Não é possível ir mais longe do que isso. Cristo habita nos comungantes. Esse é o “sacramento perfeito”, mais perfeito do que qualquer outro, o início e o fim de todas as bênçãos, a meta última de todas as aspirações humanas. Deus está unido a nós “na mais perfeita união”, e nada pode haver de mais perfeito do que essa conjunção maravilhosa. Cabasilas segue aqui os passos de São João Crisóstomo, com seu audacioso realismo Eucarístico. A mesma experiência de comunhão íntima com Cristo é expressa nessas admiráveis orações que a Igreja estabelece que devem ser recitadas antes e depois da comunhão por todos os participantes. Existe aqui mais do que um encontro: existe união e comunhão.

Na Eucaristia aqueles que se encontram separados e estranhos uns aos outros pela fragilidade humana são reunidos na perfeita e íntima unidade do Corpo Único em Cristo. O exclusivismo humano e a impenetrabilidade mútua são superados. Os fiéis se tornam “co-membros” uns dos outros por intermédio de Cristo na Igreja, ou antes, “co-corpóreos” uns em relação aos outros e com Cristo em Seu Corpo, para usarmos a frase de São Cirilo de Alexandria. Na Eucaristia a unidade essencial dos Cristãos encontra sua expressão mais perfeita. Essa unidade não está restrita ou confinada àqueles que estão de fato tomando parte de uma determinada celebração ou em algum dia específico. Cada celebração é realmente universal, e a Eucaristia é sempre uma. Cristo nunca é dividido. Cada Liturgia é celebrada em comunhão com toda a Igreja, Católica e Universal. Ela é celebrada em nome de toda a Igreja, e por sua autoridade. Espiritualmente, em cada celebração a totalidade da Igreja, “a totalidade das hostes celestiais” tomam parte, real e invisivelmente. Essa unidade se estende não apenas s todos os lugares, como a todos os tempos, incluindo todas as gerações e todas as eras. Os vivos e os que partiram estão aí para juntos “comemorar” a cada celebração da Divina Liturgia. Não se trata apenas de uma recordação, no sentido estreito e psicológico da palavra, não apenas um testemunho de nossa simpatia e comprometimento humanos, mas antes uma percepção, uma visão da irmandade universal de todos os fiéis, dos vivos e dos que partiram, em Cristo, o Senhor Ressuscitado comum a todos. Nesse sentido, a Eucaristia é a manifestação do mistério da Igreja, ou melhor, o mistério do Cristo Total. Como foi dito, cada celebração é idêntica à Última Ceia. É na Eucaristia que a Igreja está ciente e consciente de sua unidade profunda, é nela que ela antecipa sua perfeição final no século futuro. A Eucaristia não é apenas uma expressão dos laços que unem todos os homens, ou de nossa irmandade humana, mas é, acima de tudo, uma expressão ou uma imagem do divino mistério de nossa Redenção. Trata-se de um mistério de Cristo. Toda vez que a Eucaristia é celebrada, testemunhamos e vivemos essa perfeita unidade, que começou e foi inaugurada pelo Senhor Encarnado e Ressuscitado. Nós oramos em nome de toda a humanidade, por todos os que foram chamados e responderam a esse chamado. Oramos enquanto Igreja – e toda a Igreja está orando conosco, ou antes, em nós e por intermédio de nós.

Naturalmente, é preciso estar preparado espiritualmente para essa participação no mistério da Igreja Adorante, é preciso estar limpo e purificado. A adoração "no quarto” é indispensável. Mas ela só pode ser consumada na celebração comum do mistério definitivo de Cristo, em comunhão com todos os irmãos.

A história da Redenção não está ainda completa. Enraizados na comemoração do passado, os Cristãos vivem ainda na expectativa: o Reino ainda está por vir. Mas, por outro lado, a própria Igreja é o ícone dessa gloriosa consumação, e desde os primeiros dias ela orou pela sua realização: “Assim como esse pão dividido foi espalhado sobre as montanhas e foi reunido e se tornou um, também essa Tua Igreja será reunida desde os confins da terra, no Teu Reino[15]”.


[1] Mateus 15: 24.
[2] Mateus 10: 5,6.
[3] Salmo 85: 6-7.
[4] Jeremias 23: 23, citado por São Cipriano em seu tratado sobre a Prece do Senhor.
[5] João 1: 18.
[6] Hebreus 1: 1-2.
[7] “Sob a sombra da Lei”.
[8] Literalmente: “a descoberto”.
[9] In Matt. Hom. 82.
[10] In II Tim. Hom. 2.
[11] In I Tim. Hom. 15, sub fine.
[12] Efésios 1: 22-23.
[13] Literalmente: “a maravilha de Deus”.
[14] Romanos 8: 16, 26.
[15] Didaké, IX, 4.