quarta-feira, 2 de maio de 2018

Arquimandrita Sofronio - Excertos do Ensinamento de São Silouane o Athonita: Provas Espirituais




Nem sempre Deus é fácil para o homem. Em períodos geralmente muito prolongados, quando a graça abandona a alma, Deus pode parecer a esta um tirano impiedoso. O homem que, apesar de todos os seus esforços e trabalhos levados até o limite, se sente abandonado pela misericórdia divina, suporta tamanhos sofrimentos que preferiria renunciar, se fosse possível, a qualquer forma de existência.

Qual é a natureza desses sofrimentos? Não é fácil responder a essa pergunta.

Depois de ter encontrado a Deus e de ter conhecido a vida na luz que irradia de seu Rosto, a alma já não encontra repouso ou satisfação em realidade alguma desse mundo; nada mais pode contentá-la e, ao mesmo tempo, se encontra isolada de tudo, salvo de Deus. Tudo o que ela conheceu como o mal, as trevas, a ação demoníaca, tudo isso tenta soterrá-la; a tortura infligida pelas paixões alcança às vezes uma intensidade extrema, mas tudo acontece como se Deus houvesse se afastado do homem e não mais prestasse atenção às suas chamadas. Como um ser sem defesa, ele se sente suspenso ao ato de um abismo que o aterroriza; chama a Deus em seu socorro, mas todos os seus gritos permanecem sem resposta. A alma não ignora que se afastou do amor de Deus; atormentada pela consciência de sua indignidade, implora, sem embargo, para que Deus tenha piedade dela; mas tudo é em vão. Deus não se apresenta à alma senão para acusá-la de infidelidade, e ela se sente oprimida sob o peso dessas acusações. Ela reconhece a justiça do julgamento divino, mas isso não diminui seus sofrimentos; não em imaginação, mas realmente, ela está submersa na sombra da morte; não encontrando perto de si ao Deus que invoca noite e dia, sofre de modo intolerável.

Nos perguntamos: qual o sentido de tudo isso?

No momento da prova, a alma não pode aceitá-la como uma manifestação da misericórdia divina ou da confiança que Deus deposita nela, como seu desejo de tornar o homem partícipe da santidade e plenitude que residem nele. Ela só sabe de uma coisa: Deus a abandonou depois de haver-lhe mostrado sua luz, tornando assim mais profundos seus sofrimentos. E quando ela está no limite de suas forças, não vê a Deus que se inclina misericordiosamente para ela; então lhe sobrevêm pensamentos e sentimentos a respeito dos quais prefere calar. A alma desce ao inferno, mas não como o fazem aqueles que não conheceram o Espírito de Deus, ou como os que não têm em si a luz do verdadeiro conhecimento de Deus, e que estão, portanto, cegos; não, a alma desce capaz de discernir a natureza das trevas que percebe.

Isso não acontece senão àqueles que, depois de haver conhecido a graça divina, a perdem em seguida. A semente do amor divino que a alma leva em suas profundidades gera então nela um arrependimento cuja forma e amplitude ultrapassam a consciência religiosa ordinária. Derramando lágrimas abundantes, o homem se volta então a Deus com todo o seu ser, com todas as suas forças, e desse modo descobre a verdadeira oração que a arranca desse mundo para introduzi-la em outro, onde escuta palavras que nenhuma linguagem humana saberia expressar. Essas palavras são realmente inefáveis, dado que, quando são traduzidas em termos e conceitos concretos, quem as entende não as interpreta senão em função do conhecimento extraído de sua própria experiência e sem superar seus limites. Quando a alma passou através de toda essa série de duras provas, vê claramente em si mesma que não há no mundo nem sofrimento, nem alegria, nem força, nem criatura que possam arrancá-la do amor de Deus. E, a partir desse momento, as trevas já não poderão absorver a luz dessa vida.

***

Entre Deus e o homem nem sempre as coisas são fáceis. E, igualmente, nem sempre é fácil viver com os Santos. São muitos os que pensam ingenuamente que os contatos com os Santos são agradáveis e marcados pelo gozo; se queixam de estar rodeados de pecadores e sonham em encontrar com um santo. A partir de alguns encontros ocasionais que por vezes enchem uma alma abatida de alegre esperança e de forças renovadas, concluem precipitadamente que viver com os santos tem sempre o mesmo efeito exultante sobre a alma. Isso é um erro. Nenhum santo pode nos aliviar da necessidade de lutar com o pecado que vive em nós.

O santo pode nos assistir com suas orações, ajudar-nos com suas palavras e ensinamentos, fortificar-nos com seu exemplo, mas não pode nos aliviar em nossos esforços pessoais, e menos ainda em nossa ascese. E um santo, quando nos exorta e anima a viver segundo os mandamentos de Cristo, pode parecer “duro”. Não era o que se falava, e ainda se diz de Cristo, que “suas palavras são duras, quem pode escutá-las?[1]”. Do mesmo modo, quando os Santos exigem de nós que guardemos os mandamentos com toda sua pureza, sua palavra se converte em algo opressivo e “duro”.

O Starets era sempre doce, indulgente e bom, mas na realidade não se afastava nunca daquilo que Deus lhe havia ensinado. Sua atitude era simples e clara: “O Senhor tem piedade de todos... ele amou tanto aos homens, que tomou sobre si o peso do mundo inteiro... e quanto a nós, ele espera que amemos aos nossos irmãos”. Ao escutar o Starets, sabíamos interiormente que ele dizia a verdade, mas segui-lo superava nossas forças. E foram numerosos os que se afastaram dele. O perfume espiritual que emanava dele fazia nascer na alma um profundo sentimento de vergonha de si e uma consciência de nossa própria abjeção. Se nos queixávamos a ele dos que nos haviam ofendido, compreendia nossa pena e nossa aflição, mas não nossa cólera. Se pensávamos devolver o mal com o mal, éramos nós que lhe dávamos pena. Se pensássemos ser contraproducente responder com o bem a um homem perverso, ele não compreendia como um homem, dizendo-se cristão, pudesse provocar qualquer dano a alguém. Os mandamentos de Cristo eram para ele a lei da perfeição absoluta e o único caminho que permite vencer o mal no mundo, e que conduz à vida eterna. O cumprimento dos mandamentos não pode ser menos do que útil, tanto para quem os segue como para aquele em relação a quem são cumpridos. Não; não existem circunstâncias em que o cumprimento dos mandamentos de Cristo, desde que se considere o prejuízo não sob o prisma temporal, mas desde o plano da vida eterna, pois o mandamento de Cristo é a expressão do bem absoluto.

Um monge disse um dia a Starets que, se atuasse segundo suas palavras, isso daria vantagem aos inimigos e o mal triunfaria. Num primeiro momento, o Starets guardou silêncio, porque quem fazia a pergunta era incapaz de compreender suas palavras, porém mais tarde ele disse a um monge: “Como pode o Espírito Santo desejar o mal a alguém? É para isso que fomos chamados por Deus?”.

No homem dominado pelas paixões, a malícia da consciência é ao mesmo tempo grande e sutil. Na vida espiritual, o homem possuído por uma paixão faz com frequência com que essa paixão pareça ser uma busca desinteressada da verdade e do amor, às vezes até um combate pela glória de Deus. Em nome de Cristo, que se entregou à morte por seus inimigos, os homens muitas vezes estão dispostos a dar o sangue, não seu próprio sangue, mas o de seus “irmãos inimigos”. Acontece assim todo tempo, mas na vida do Starets isso coincidiu com um período da história no qual essa deformação do sentido do Evangelho alcançou uma excepcional amplitude.

“É esse o caminho de Cristo?”, dizia ele com tristeza.

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“Dura” é a palavra do Starets. Quem poderia escutá-la? Viver segundo essa palavra é entregar-se ao martírio, não apenas no sentido forte da palavra, mas na vida de todos os dias.

Conta-se em alguma parte – não recordamos exatamente onde – a história de um homem piedoso que durante toda sua vida pediu a Deus que lhe concedesse a morte como mártir; quando se aproximou a hora de uma morte tranquila, disse com tristeza: “Minha oração não foi ouvida”. Mas apenas havia pronunciado essas palavras, recebeu interiormente a notícia de que toda sua vida tinha sido um martírio, e de que como tal havia sido aceita.

O Starets dizia que a graça que recebera no começo era comparável à dos mártires, a ponto de pensar que o Senhor lhe reservasse talvez uma morte de mártir. Mas, do mesmo modo como aconteceu com aquele homem piedoso, ele teve um final tranquilo.

O Starets era extraordinariamente sóbrio em todas as coisas. Não se deixava arrastar por sonhos sobre a perfeição; mas, tendo conhecido o amor perfeito de Cristo, passou toda a sua vida num esforço intenso para adquiri-lo. Sabia mais do que ninguém que “o espírito está pronto, mas a carne é débil”; por isso dizia que existem pessoas que têm o desejo de sofrer por Cristo, mas que, “quando não se tem a graça, inclusive no corpo”, pode acontecer que não suportem os sofrimentos do martírio. Por isso não convém entusiasmar-se demasiado com tal proeza. Mas se o Senhor nos chama a tanto, então devemos pedir seu apoio e ele nos ajudará.

Por mais que tenha conhecido a “graça dos Mártires”, o Starets não buscava o martírio. E no entanto toda sua vida foi um verdadeiro martírio. Poderíamos ainda dizer mais. Pois o mártir sacrifica às vezes sua vida no breve instante de sua valorosa confissão de fé. Mas viver na ascese como o Starets durante dezenas de anos, pelo mundo – rezar pelos homens é derramar o próprio sangue – é superior ao simples martírio.

O caminho de um cristão é, falando em termos gerais, o do martírio. Quem segue esse caminho como se deve, não se decide a predicá-lo sem pesar. Sua alma está desejosa de ver o irmão comungando na luz eterna, mas deseja star só ao suportar os sofrimentos. Por isso, ela se entrega antes de tudo e sobretudo à oração pelo mundo.

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Nos limites da vida terrestre, nessa esfera confiada por Deus à manifestação das possibilidades tanto positivas quanto negativas da liberdade, nada nem ninguém seria capaz de deter a manifestação do mal; entretanto, a oração do amor é suficientemente poderosa para modificar o curso de muitos acontecimentos, e pode reduzir as proporções do mal.

“A vida é a luz dos homens. A Luz brilhou nas trevas e as trevas não a compreenderam”[2]. As trevas do ser não podem absorver a luz da vida. Todo bem que procede de Deus e que retorna a Deus é indestrutível. A oração é uma das formas mais elevadas desse bem ontológico, eterno e indestrutível. Ela é “a boa parte que não será arrebatada[3]”.

Buscando a sua salvação e a de seus irmãos, o asceta, concentrado em seu “homem interior”, vê em si mesmo a força da “lei do pecado[4]”. Ao ver como o pecado o está matando, ele o mata[5]; mas, apesar de toda sua decisão em cumprir o bem, não é estranho que ele chegue ao limite do desespero. É a partir desse triste estado que ele reza.

Guardamos a recordação de uma visita memorável. Um monge que vivia como eremita veio nos ver. Devia na ocasião contar uns setenta anos. Vivia num lugar deserto, situado no caminho que une o mosteiro à sketa, em um córrego próximo a uma fonte, em pleno bosque. Seu rosto macilento estava sulcado de rugas, de uma palidez acinzentada e empoeirada, a barba e os cabelos encanecidos descuidados; seus olhos de um cinza azulado, estavam afundados nas órbitas. Tivemos uma longa conversa com ele. E eis aqui o que ele nos contou a seu respeito.

“Há muitos anos minha alma sofre quando penso em nós, os monges. Renunciamos ao mundo, deixamos nossos pais e nossa pátria, e tudo o que normalmente constitui a vida dos homens; pronunciamos as promessas diante de Deus, dos Anjos e dos homens, de viver segundo a lei de Cristo, renunciamos à nossa vontade própria e levamos, no fundo, uma vida de mártires; e, no entanto, não progredimos no bem. Quantos de nós se salvarão? Eu serei o primeiro a ir para a perdição. Vejo a outros que são escravos de suas paixões. E quando me encontro com os homens do mundo, vejo que vivem numa profunda ignorância, de modo descuidado e sem arrependimento. E assim, pouco a pouco, sem sequer dar-me conta, me pus a rezar pelo mundo. Chorei muito com a ideia de que se nós, os monges, que renunciamos ao mundo, não nos salvamos, que acontecerá então ao mundo? Minha aflição crescia sempre e eu começava a derramar lágrimas de desespero. E eis que, no ano passado, quando me encontrava nesse estado de desespero, cansado de chorar, deitado uma noite com o rosto por terra, o Senhor me apareceu e me perguntou: ‘Por que choras desse modo?’. Eu me calava, sem levantar a cabeça para ver a Cristo. ‘Não sabes que serei eu que irã julgar o mundo?’. Eu me mantinha calado, sem mudar de posição. O Senhor disse: ‘Terei misericórdia de todo homem que, ao menos uma vez na vida, tenha invocado a Deus’. Um pensamento cruzou meu espírito: ‘Por que, então, atormentar-me desse modo todo dia?’. O Senhor respondeu ao meu pensamento: ‘Os que sofrem por causa do meu mandamento, serão meus amigos no Reino dos Céus; mas com os outros, serei apenas misericordioso’. E, com essas palavras, o Senhor se afastou”.

Foi em estado de vigília que ele teve essa visão. Em seguida, ele nos relatou outras aparições que havia recebido em estado de sono leve, depois de uma ardente oração pelo mundo.

Não diremos o nome desse monge, pois ele ainda vive, e vamos nos abster de emitir juízo sobre sua visão. Nós o escutamos sem manifestar de modo algum nossos sentimentos em relação àquilo que ele nos contava, seguindo assim a severa regra dos monges athonitas: ser especialmente reservados quando se trata de visões. Pode ter sido essa seca reserva, ou alguma outra torpeza de nossa parte, que afastou o velho monge; de qualquer modo, a partir desse momento, ele não voltou a nos visitar. Tínhamos, na verdade, a ambiciosa intenção de sondar-lhe mais a respeito. Teria se sentido ferido por isso? Não o sabemos.

Durante o período de nossa relação com os monges da Santa Montanha, encontramos nove monges que gostavam de rezar pelo mundo e que oravam derramando lágrimas, certa vez, escutamos essa conversa entre dois monges. Um dizia: “Não posso compreender porque o Senhor não concede a paz ao mundo, nem que fosse porque um só homem lhe suplicasse”. O outro respondeu: “E como seria possível uma paz perfeita sobre a terra, se apenas um homem fizesse o mal?”.

Mas voltemos ao nosso assunto: nem sempre Deus é fácil para o homem.

Estamos nos repetindo; em nosso tema, as repetições são inevitáveis. No universo mental em que vive o asceta não apresenta nem riqueza, nem diversidade; suas preocupações dizem respeito a um plano de existência com o qual não é muito fácil familiarizar-se. No decurso dos séculos, a mesma experiência se repete de forma quase idêntica e, no entanto, são poucos os que conhecem a ordem que segue a ascese cristã, e numerosos os que se perdem nesse caminho. O Senhor disse: “A porta é estreita e apertado é o caminho que conduz à vida, e poucos são os que o encontram[6]”.

Voltamos ainda outra vez àquilo que foi objeto de longas conversas com o Starets Silouane e o Padre Estratonico. A vida espiritual de um cristão se apresenta, em suas linhas gerais, da seguinte maneira: no início, o homem é atraído para Deus pelo dom da graça; uma vez atraído, começa um longo período de provas. A liberdade do homem e sua confiança em Deus são postos à prova, às vezes até “duramente”. No começo de sua conversão, suas orações, importantes ou não, apenas formuladas, são quase sempre rápida e milagrosamente atendidas por Deus. Mas quando chega o período de provações, tudo muda; dir-se-ia que o céu se fecha e se torna surdo às nossas súplicas. Na vida do cristão fervoroso tudo se torna difícil. A atitude dos homens em relação a ele se altera; deixam de tratá-lo com respeito; não lhe perdoam o que é perdoado aos demais; seu trabalho quase sempre é remunerado abaixo do padrão; a resistência de seu corpo às enfermidades diminui; a natureza, as circunstâncias e os homens se voltam contra ele. Quanto aos seus dotes naturais, não inferiores aos dos demais, não encontram aplicação. E, além de tudo isso, ele sofre os assaltos das potências demoníacas. E o último, o mais penoso e intolerável dos tormentos é o de ser abandonado por Deus. Então seus sofrimentos alcançam o cúmulo, pois o homem é golpeado em todos os planos de sua existência.

Abandonará Deus o homem? Será isso possível? E, em lugar de experimentar como dantes a proximidade de Deus, um sentimento novo surge na alma: Deus está infinitamente afastado, inacessível, mais distante do que as estrelas, e todos os apelos lançados a ele se perdem miseravelmente no espaço. Interiormente, a alma intensifica sua invocação a Deus, mas não vê sua ajuda, sequer sua atenção. Tudo se torna penoso, nada é obtido senão ao preço de esforços desproporcionais e que excedem as forças humanas. A vida se converte num sofrimento perpétuo, e o homem começa a ter a impressão de que a maldição e a cólera divinas se abatem sobre ele. Mais tarde, quando passarem essas provas, ele compreenderá com que atenção foi guardado em todos os seus caminhos pela inefável providência divina.

A experiência milenar, transmitida de geração em geração, nos ensina que quando Deus vê a fidelidade da alma de um asceta como viu a de Jó, ele a leva por abismos e cumes inacessíveis a qualquer outro homem. Quanto mais inquebrantáveis sejam a fidelidade do asceta e sua confiança em Deus, maior será sua prova e mais completa também será sua experiência, que poderá se estender aos limites últimos que pode alcançar um homem.

***

Enquanto o orgulho mantém suas raízes no homem, esse permanece exposto aos assaltos de um desespero especialmente opressor, propriamente infernal e que falseia todas as suas concepções de Deus e dos caminhos de sua Providência. A alma orgulhosa, submersa nos tormentos e nas trevas do inferno, chega a ver em Deus a causa de seus sofrimentos e o considera desmesuradamente cruel. Provada da verdadeira vida em Deus, ela vê todas as coisas através do prisma deformado de seu próprio estado enfermo, e começa a detestar até sua própria vida e, de modo geral, tudo o que existe no mundo. Permanecendo fora da luz divina, ela chega, em seu desespero, a considerar a própria existência de Deus como um absurdo. Desse modo, seu afastamento de Deus e seu desprezo por tudo o que existe aumentam cada vez mais.

Os homens de fé escapam a esse desespero e desprezo, pois pela fé o homem é salvo; pela fé e no amor e na misericórdia de Deus, pela fé em sua palavra, pela fé no testemunho dos Padres da Igreja. É possível que a maior parte dos fiéis cristãos não tenha vivido sua própria ressurreição ao longo de sua vida, mas creem nela e essa fé os protege. O Starets falava com frequência dessa fé citando as palavras do Senhor: “Felizes os que não viram e creram[7]”. Chegará a hora em que essa fé fará com que o homem saia das trevas e das estreitas cadeias de sua escravidão, e o conduzirá pelos vastos espaços da vida verdadeira e incorruptível cujo esplendor não é comparável com a ideia inteiramente humana que fazemos do esplendor e da beleza.

O diabo não atua da mesma maneira com aqueles que se submetem e com os que lhe resistem. O sofrimento que provém do orgulho é um, e outro é o da alma piedosa quando Deus permite a Satanás fazer-lhe guerra. Essa última forma de tentação é extremamente penosa e somente em raras ocasiões é permitida.

Quando o homem que está providencialmente abandonado por Deus sente pela primeira vez a proximidade de Satanás, todo o seu ser, corpo e alma, é tomado por uma imensa angústia e um terror que não se compara ao que se experimenta na proximidade de um criminoso ou de um assassino, já que é provocado pela trevas da perdição eterna. A alma compreende então o que vem a ser exatamente o diabo: ela conhece o poder de sua crueldade e, admirada com a imensidão do mal que se descortina diante dela, se dobra inteiramente sobre si mesma. Está a tal ponto esmagada pelo desespero, o horror e o temor que se apoderaram dela, que já não encontra forças sequer para rezar. Não sente perto de si o Deus Protetor, e o Inimigo lhe diz: “Estás em meu poder. Não espere por Deus, esquece-o”. Nesses momentos, a alma que não quer ceder ao diabo se imobiliza, sem movimento nem palavra, no pensamento de Deus, ou, no caso mais favorável, encontra forças para invocar o nome de Deus. Só mais tarde ela entenderá com que solicitude Deus se inclinava para ela no momento desse combate.

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Lendo os escritos do Starets, vemos que em duas ocasiões ele teve que sustentar semelhante luta contra Satanás. Na primeira vez, salvou-se pronunciando a oração de Jesus; ainda não havia terminado, quando o Senhor lhe apareceu. Na segunda vez, ele já estava mais forte e curtido; encontrou em si mesmo a força para sentar-se, voltar-se para Deus e rezar; e foi então que recebeu em resposta essas estranhas palavras: “Mantém teu espírito no inferno e não te desesperes”.

Então ele compreendeu de quais armas necessitava servir-se para vencer o diabo: cada vez que ele se aproxima da alma, esta deve voltar contra si todo o fogo do desprezo e condenar a si mesma como seu pior inimigo, mas acrescentando: “Deus é santo, verdadeiro e bendito por todos os séculos”.

Armada com essa espada, a alma se livra de todo temor e se torna invulnerável às investidas do Inimigo. Diante de qualquer assalto do Inimigo, a alma assim “experimentada” se lança com grande cólera no abismo das trevas eternas, julgando-se digna desse castigo. O Inimigo se afastará dela, não podendo suportar a violência do fogo que arrasta, e a alma, desembaraçando-se dele, pode se voltar para Deus e rezar com o espírito puro.

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O Inimigo caiu pelo orgulho. O orgulho é o princípio do pecado; todos os aspectos com os quais o mal pode se revestir estão reunidos nele: presunção, vanglória, afã de poder, frieza, crueldade, indiferença ao sofrimento do próximo; tendência do intelecto ao devaneio, hiperatividade da imaginação, expressão demoníaca nos olhos, caráter demoníaco de toda a aparência; angústia, desespero, ódio; inveja, complexo de inferioridade, que para muitos pode ser o passo para a concupiscência carnal; inquietude interior dilacerante, indocilidade, temor da morte – ou, ao contrário, desejo de pôr fim aos seus dias – e, finalmente, o que não é raro, completa demência. Tais são os sinais distintivos de uma espiritualidade demoníaca. Mas enquanto eles não se manifestam claramente, passam desapercebidos a muitos homens.

Não é necessário que todos os sintomas enumerados estejam reunidos para que possa ser reconhecido aquele que se deixou “seduzir” por pensamentos passionais, “revelações”, “visões” de origem demoníaca. Em uns predomina a megalomania, a ambição, o desejo de potência; em outros, a melancolia, o ciúme, o ódio; em outros ainda, o desejo do prazer carnal. Mas em todos encontraremos infalivelmente uma imaginação transbordante e um orgulho que pode se dissimular sob a máscara enganosa da falsa humildade.

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Quando um homem se deixa “seduzir” pelo Inimigo e se põe a segui-lo, sem compreender no que consiste o Inimigo, não conhece a aspereza da luta contra ele; sofre, sem embargo, porque o Inimigo o arrasta, fora da luz da vida verdadeira, para as trevas onde ele próprio está. Esses sofrimentos levam o sela de uma verdadeira cegueira espiritual.

Em alguns casos, o Inimigo acrescenta ainda um deleite turvo, criando a consciência orgulhosa de uma grandeza ilusória; em outros casos, provoca uma dor aguda na alma e a dirige contra Deus. A alma não compreende a verdadeira causa de seus males e então se volta com ódio contra Deus.

Mas uma alma piedosa que tenha conhecido o amor de Deus sofre, na luta direta contra o Inimigo, o imenso poder maléfico que o diabo dirige contra ela. O homem vê claramente que esse poder é capaz de abater todo o seu ser.

No primeiro caso, a alma se debate por longo tempo, geralmente sem encontrar a saída que a levaria a Deus. No segundo caso, Deus aparece ao homem numa grande luz, assim que se alcança o término da prova. É Deus quem fixa a dureza e a intensidade da prova; para alguns ela pode durar alguns poucos minutos, para outros, uma hora ou mais; um asceta permaneceu lutando por três dias. A duração da prova pode depender, de um lado, da maior ou menor intensidade da luta e, de outro, da capacidade de suportá-la, já que nem todas as almas possuem a mesma resistência.

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 Não tentação maior do que essa luta da alma contra Satanás. Essa tribulação supera todas as calamidades possíveis sobre a terra. Existe, todavia, um sofrimento que provoca uma dor ainda maior. É o sofrimento da alma ferida até o mais profundo de si mesma pelo amor de Deus e que não consegue encontrar Àquele a quem busca.

Quão incompreensível é a maneira como Deus trata a alma! Depois de haver suscitado nela um amor ardente, ele se esconde de forma misteriosa e, quando a alma está desfeita por causa dessa abandono, se aproxima docemente, trazendo a ela seu inefável consolo. Em alguns momentos, o tormento de sentir-se abandonado por Deus ultrapassa todos os sentimentos do inferno, com a diferença, porém, de que traz consigo uma força vivificadora capaz de transformar a dor na doce felicidade do amor de Deus.

***

Na medida em que vive na força de atração da terra, o homem não pode permanecer inquebrantável. Em certos momentos privilegiados da oração pura, a alma do asceta toca a vida eterna, que é seu objetivo único e último. Mas quando essa oração cessa, a alma recupera a percepção sensorial do mundo; com essa percepção retorna também a opacidade da carne e o sentimento de Deus perde sua intensidade.

Muitos homens estão a tal ponto apegados a uma percepção sensorial do mundo que ignoram, por assim dizer, qualquer outro modo de conhecimento e, dessa forma, se convertem à “carne” que recusa a lei de Deus. Mas, para um asceta, cair da oração pura à opacidade da percepção sensorial do mundo equivale a afastar-se do Senhor. O apóstolo Paulo disse: “Enquanto vivemos nesse corpo, habitamos longe do Senhor (...) desejamos deixar esse corpo para irmos habitar com o Senhor[8]”. Não sem um esforço incessante, o asceta se liberta dessa queda para a qual sua carne o arrasta continuamente com todo o seu ser. E quanto mais frequente e prolongados são seus estados espirituais, mais penoso é para ele recair numa percepção carnal do mundo.

Quando um asceta, movido pelo amor divino, reza derramando lágrimas e alcança um estado limite acima do qual não lhe é possível elevar-se, seu espírito experimenta então uma paz devida à proximidade de Deus; mas quando cessa a oração, a alma não permanece nessa paz mais do que um certo tempo, às vezes mais longo, outras mais curto, depois do que cai de novo na agitação dos pensamentos. A alternância desses estados espirituais leva a resultados diferentes. Em certa etapa de sua vida espiritual, alguns alcançam um grau de oração que mergulha sua alma no temor e no tremor, depois do que voltam atrás pouco a pouco e debilitam sua oração, e isso enquanto ainda estão enraizados na alma o desejo e também a necessidade de recusar-se a toda autocompaixão e de “odiar e perder” sua própria vida. Esse estado, como vemos pelos escritos do Starets Silouane, ainda não é o amor supremo que o Senhor dá a conhecer aos seus servidores, e cuja doçura permite suportar facilmente todo sofrimento, inclusive a morte.

O bem-aventurado Starets sabia com certeza absoluta que o amor que o Espírito Santo lhe havia dado a conhecer constitui a verdade cuja autenticidade intrínseca está acima de toda dúvida. Ele percebera esse grau de conhecimento quando da aparição do Senhor. Dizia que quando o próprio Senhor aparece à alma, essa não pode senão reconhecê-lo como seu Criador e Deus. Pela ação do Espírito Santo, lhe foi concedido contemplar a perfeita santidade de Deus, e com todo seu coração e todo seu ser aspirava a participar dessa santidade.

Quem segue esse caminho não pode se entregar a uma atividade abstrata, racional, nem mesmo em relação aos mistérios da fé. Sua alma se afasta de todo “raciocínio discursivo” que conduza a uma ruptura da unidade e da integridade da vida do espírito, tensionado pela oração a Deus. Quando se permanece constantemente em oração, a lembrança do mundo exterior se desfaz; tornar-se-ia impossível mesmo executar as tarefas cotidianas, se não fosse o costume adquirido ao longo dos anos, que nos liberam da necessidade de fixar sobre elas nosso pensamento.

“O homem que conheceu a Deus e a doçura do Espírito Santo se torna como que insensato; permanece imóvel, se cala e não deseja falar; como um louco, contempla o mundo, mas não o deseja e nem o vê. E os homens não sabem que ele contempla o Senhor amado. O mundo é deixado para trás e esquecido, e a alma não quer pensar nele, pois nele não existe doçura”.



[1] João 6: 60.
[2] João 1: 4-5.
[3] Lucas 10: 42.
[4] Romanos 7: 23.
[5] Romanos 7: 11.
[6] Mateus 7: 14.
[7] João 20: 29.
[8] II Coríntios 5: 6-8.

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