sábado, 25 de setembro de 2021

Alexander Schmemann - Pela Vida do Mundo - Capítulo II

 

A EUCARISTIA

 

1

 

Cristo foi rejeitado por esse mundo. Ele era a expressão perfeita da vida pretendida por Deus. A vida fragmentária do mundo foi reunida em Sua vida; Ele era o pulso do coração do mundo, e o mundo O matou. Mas nesse assassinato o mundo todo morreu. Ele perdeu sua última chance de se tornar o paraíso para o qual Deus o criou. Podemos desenvolver mais e melhores coisas materiais. Podemos construir uma sociedade mais humana que pode até evitar com que aniquilemos uns aos outros. Mas quando Cristo, a verdadeira vida do mundo, foi rejeitado, esse foi o começo do fim. Essa rejeição teve uma finalidade: Ele foi crucificado pelo bem. Como disse Pascal, “Cristo permanecerá em agonia até o final do mundo”.

 

O Cristianismo parece às vezes pregar que, se o homem procurar com todo esforço viver uma vida Cristã, a crucificação pode ser, de algum modo, revertida. Isso é porque o Cristianismo esqueceu de si mesmo, esqueceu que ele sempre, e em primeiro lugar, deve permanecer junto à cruz. Não que esse mundo não possa ser melhorado – um dos nossos objetivos certamente consiste em trabalhar pela paz, pela justiça, pela liberdade. Mas, ainda que ele possa ser melhorado, ele jamais se tornará o lugar pretendido por Deus. O Cristianismo não condena o mundo. O mundo condenou a si mesmo quando, no Calvário, ele condenou Aquele que era a sua própria verdade. “Ele era o mundo, o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu[1]”. Se pensarmos seriamente a respeito do verdadeiro significado, do real conteúdo dessas palavras, saberemos que como Cristãos e na medida mesma em que somos Cristãos, somos, em primeiro lugar, testemunhos desse fim: fim de toda alegria natural, fim de toda satisfação do homem com o mundo e consigo mesmo, fim, realmente da vida em si como uma “busca pela felicidade”, racional e racionalmente organizada. Os Cristãos não precisam esperar pelos que propões a ansiedade, o desespero e o absurdo para serem conscientes disso. E, embora no decurso de sua longa história, os Cristãos tenham muitas vezes esquecido o sentido da cruz, e desfrutado da vida como se “nada houvesse acontecido”, embora muitos de nós tiremos “férias” – sabemos que, no mundo em que Cristo morrei, a “vida natural” foi conduzida a seu fim.

 

 

2

 

E ainda assim, nos seus começos o Cristianismo foi a proclamação da alegria, da única alegria possível nesse mundo. Ele tornou impossível toda felicidade tal como a pensávamos possível. Mas dentro dessa impossibilidade, no fundo mesmo dessa escuridão, ele anunciou e trouxe uma nova e abrangente alegria, e por meio dessa alegria ele transformou o Fim num Começo. Sem a proclamação dessa alegria o Cristianismo é incompreensível. Foi somente enquanto felicidade que a Igreja se tornou vitoriosa no mundo, e ela perdeu o mundo quando perdeu sua alegria, e deixou de ser uma testemunha confiável dela. De todas as acusações contra os Cristãos, a mais terrível foi a de Nietzsche, quando disse que os Cristãos não têm alegria.

 

Mas vamos esquecer por um momento as discussões técnicas a respeito da Igreja, de sua missão e seus métodos. Não que essas discussões estejam erradas ou sejam desnecessárias – mas elas só podem ser úteis e significativas dentro de um contexto fundamental, e esse contexto é o da “grande alegria” a partir da qual todo o resto do Cristianismo se desenvolve e adquire sentido. “Não temais, eu vos trago boas novas de grande alegria[2]” – assim começa o Evangelho, que irá terminar assim: “Eles o adoraram e retornaram a Jerusalém com grande alegria[3]”. É preciso recuperar o sentido dessa grande alegria. Se possível, devemos partilhar dela, antes de discutir qualquer outra coisa – programas, missões, projetos e técnicas.

 

A felicidade, naturalmente, não é algo que se possa definir e analisar. A pessoa fica feliz. “Vem e participa da minha alegria[4]”. E não temos outro modo de participar dessa alegria, nenhuma maneira de compreender isso, a não ser por meio da única ação que, desde o início, foi para a Igreja tanto a fonte quanto a plenitude da felicidade, o verdadeiro sacramento da alegria, a Eucaristia.

 

A Eucaristia é a Liturgia. Mas quem diz Liturgia atualmente se envolve numa espécie da controvérsia. Pois, para alguns – os que possuem uma “mente litúrgica” – de todas as atividades da Igreja, a Liturgia é a mais importante, senão a única. Para outros, a Liturgia constitui um desvio estético e espiritual da verdadeira tarefa da Igreja. Existem hoje igrejas “litúrgicas” e “não litúrgicas”, assim como Cristãos. Mas essa controvérsia é desnecessária, pois ela tem suas raízes num erro básico: o entendimento “litúrgico” da Liturgia. Trata-se da redução da Liturgia às categorias “cultuais”, sua definição como um ato sagrado de adoração, diferente, não apenas da área “profana” da vida, mas até das demais atividades da própria Igreja. Mas esse não é o sentido originas da palavra grega leitourgia. Ela significa uma ação por meio da qual um grupo de pessoas incorporam-se umas às outras de uma maneira que vai além de uma mera coleção de indivíduos – um todo que é maior do que a soma de suas partes. Isso implica também uma função, ou “ministério” do homem ou de um grupo em favor e no interesse de toda uma comunidade. Assim é que a leitourgia do antigo Israel consistia no trabalho corporativo de alguns escolhidos no sentido de preparar o mundo para a vinda do Messias. E, nesse ato de preparação, eles se tornaram aquilo que foi chamado de Israel de Deus, o instrumento escolhido para Seu propósito.

 

Assim, portanto, a própria Igreja é leitourgia, um ministério, uma chamada para a ação nesse mundo depois da manifestação de Cristo, para dar testemunho Dele e de Seu reino. A Liturgia eucarística, dessa forma, não deve ser aproximada e entendida apenas no sentido “litúrgico” e “cultual”. Assim como o Cristianismo pode – e deve – ser considerado como o fim da religião, também a Liturgia Cristã em geral, e a Eucaristia em particular, constituem de fato o fim do culto, do ato religioso “sagrado” isolado e oposto à vida “profana” da comunidade. A primeira condição para o entendimento da Liturgia é esquecer tudo a respeito de uma “piedade litúrgica” específica.

 

A Eucaristia é um sacramento, mas quem diz sacramento está se envolvendo numa controvérsia. Quando falamos de sacramento, onde está o Verbo? Não estaremos nós caminhando para os perigos do “sacramentalismo” e da “mágica”, numa traição do caráter espiritual do Cristianismo? Para essas questões não existem resposta. Pois a proposta desse ensaio é a de mostrar que o contexto dentro do qual essas questões são colocadas não é o único possível. Nesse momento, tudo o que podemos dizer é: a Eucaristia constitui a entrada da Igreja na alegria de seu Senhor. E o verdadeiro chamado da Igreja, sua leitourgia fundamental, consiste em entrar nessa alegria, para que sejamos testemunhas disso no mundo – esse é o sacramento por meio do qual ela “se torna o que ela é”.

 

Na breve descrição da Eucaristia que se segue, faremos referências em primeiro lugar à Liturgia eucarística Ortodoxa, e isso por duas razões. Primeiramente, na área da Liturgia só é possível falar com convicção na medida em que tenhamos experimentado aquilo sobre o que falamos. E essa experiência o autor encontrou na Tradição Ortodoxa. Em segundo lugar, é a opinião geral dos “liturgistas” que a Liturgia Ortodoxa preservou os elementos e ênfases que constituem o próprio tema desse livro.

 

 

3

 

A Liturgia da Eucaristia é melhor entendida como uma viagem, ou uma procissão. Trata-se da viagem da Igreja para a dimensão do Reino. Usamos essa palavra “dimensão”, porque parece ser a melhor maneira de indicar nossa entrada sacramental na ressuscitada de Cristo. Transparências coloridas se tornam “vivas” quando vistas em três dimensões, ao invés de em duas. A presença dessa dimensão acrescentada nos permite ver melhor a verdadeira realidade daquilo que foi fotografado. De maneira muito parecida, embora toda analogia esteja condenada a falhar, nossa entrada na presença de Cristo constitui uma entrada numa quarta dimensão que nos permite ver a realidade última da vida. Não se trata de uma fuga do mundo, mas sim de uma chegada a um ponto de vista a partir do qual podemos ver mais profundamente dentro da realidade desse mundo.

 

A viagem começa quando os Cristãos deixam seus lares e suas camas. De fato, eles deixam suas vidas no mundo presente e concreto, e ainda que tenham que dirigir centenas de quilômetros, ou caminhar muitos quarteirões, uma ação sacramental já começou a agir, uma ação que é a condição primária para tudo o mais que vier a acontecer. Porque agora eles estarão no caminho para constituir a Igreja, ou, para ser mais exato, para se transformarem na Igreja de Deus. Eles eram indivíduos, brancos, negros, ricos e pobres, eles eram o mundo “natural” numa comunidade natural. E agora eles estão sendo chamados a “virem juntos a um lugar”, a trazer suas vidas, seu próprio “mundo” consigo, para que se tornem mais do que foram até então: uma nova comunidade com uma nova vida. Ainda estamos distantes das categorias do louvor comum e da oração. A proposta desse “ir juntos” não é simplesmente a de acrescentar uma dimensão religiosa à comunidade natural, para torná-la “melhor” – mais responsáveis, mais Cristãos. A proposta é de preencher a Igreja, e isso significa tornar presente Aquele em quem todas as coisas têm seu fim, e todas as coisas têm seu começo.

 

A Liturgia começa a ser uma real separação do mundo. Em nossa tentativa de tornar o Cristianismo um chamado para o homem comum, frequentemente nós minimizamos, ou até esquecemos por completo, essa necessária separação. Tentamos tornar o Cristianismo “compreensível” e “aceitável”, para esse mítico homem “moderno” das ruas. E esquecemos que o Cristo de que falamos “não é desse mundo”, e que depois de Sua ressurreição Ele não foi reconhecido nem por seus próprios discípulos. Maria Madalena pensou que Ele fosse o jardineiro. Quando dois de seus discípulos iam a caminho de Emaús, o próprio Jesus “aproximou-se deles e caminhou ao seu lado”, e eles não O reconheceram, até que Ele “tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e o deu a eles”[5]. Ele apareceu aos doze “estando as portas fechadas”. Aparentemente essas coisas não foram simplesmente para que eles soubessem que Ele era o filho de Maria. Não havia um imperativo físico em reconhecê-lo. Em outras palavras, Ele já não era “parte” desse mundo, dessa realidade, e reconhecê-Lo, entrar na alegria de Sua presença, estar com Ele, implicava uma conversão a uma outra realidade. A glorificação do Senhor não tinha o caráter impositivo, a evidência objetiva de Sua humilhação da cruz. Sua glorificação é conhecida apenas por através da misteriosa morte na pia batismal, através da unção do Espírito Santo. Ela só pode ser conhecida na plenitude da Igreja, na medida em que ela reúne as pessoas para encontrar o Senhor e partilhar de Sua ressurreição.

 

Os primeiros Cristãos perceberam que, para que se tornassem Templo do Espírito Santo, eles deveriam ascender aos Céus para onde Cristo havia subido. Eles entenderam também que essa ascensão era a condição primordial de sua missão no mundo, de seu ministério no mundo. Pois lá – nos Céus – eles estariam imersos na nova vida do Reino; e quando, depois dessa “Liturgia da ascensão”, eles retornavam ao mundo, seus rostos refletiam a luz, a “alegria e a paz” desse Reino, do qual eles se tornavam verdadeiras testemunhas. Eles não traziam programas ou teorias; mas aonde quer que fossem, as sementes do Reino brotavam, acendia-se a fé, a vida era transfigurada, as coisas impossíveis se tornavam possíveis. Eles eram testemunhas, e quando lhes perguntavam: “De onde vem essa luz, qual é a fonte desse poder?”, eles sabiam o que responder e aonde conduzir as pessoas. Mas na Igreja de nossos dias, frequentemente só encontramos o mesmo velho mundo, e nem Cristo, nem Seu Reino. Não nos damos conta de que não vamos a parte alguma, porque jamais abandonamos o lugar em que estamos.

 

Ir, vir... Esse é o começo, o ponto de partida do sacramento, a condição de sua transformação em poder e realidade.

 

 

4

 

A Liturgia Ortodoxa começa com a solene Doxologia: “Bendito seja o Reino do Pai, do Filho e do Espírito Santo, agora e sempre, e pelos séculos dos séculos”. Desde o início se anunciava o destino: a jornada é para o Reino. É para onde todos estamos indo – e não simbolicamente, mas de verdade. Na linguagem da Bíblia, que é a mesma linguagem da Igreja, bendizer o Reino não equivale simplesmente a aclamá-lo. Mas é declará-lo como sendo o objetivo, o cume de todos os nossos desejos e interesses, de toda nossa vida, o valor supremo e máximo de tudo o que existe. Bendizer significa aceitar com amor e se mover em direção ao que é amado e aceito. Assim é que a Igreja constitui a assembleia, a reunião daqueles para quem o destino último de toda a via fi revelado e que o aceitaram. Essa aceitação é expressa na solene resposta à Doxologia: “Amém”. Essa é, de fato, uma das palavras mais importantes do mundo, porque ela expressa a concordância da Igreja em seguir a Cristo em sua subida ao Pai, e para fazer dessa subida o destino do homem. É um presente de Cristo para nós, pois somente Nele podemos dizer Amém a Deus, ou antes, é Ele próprio nosso Amém a Deus e a Igreja constitui um Amém a Cristo. É sobre esse Amém que o destino da raça humana é decidido. Ele revela que o movimento para Deus começou.

 

Mas ainda estamos muito no começo. Deixamos “esse mundo”. Nós o fizemos juntos. Ouvimos o anúncio de nosso destino derradeiro. Dissemos “amém” a esse anúncio. Somos a ecclesia, a resposta a esse chamado e mandamento. E começamos com nossas “preces comuns e súplicas”, com um ato comum e alegre de louvor. Mais uma vez, é preciso enfatizar o caráter alegre da reunião litúrgica. Pois a ênfase medieval na cruz, embora não fosse errada, era certamente unilateral. A Liturgia é, antes de qualquer coisa, a reunião alegre daqueles que encontraram o Senhor ressuscitado e que com Ele penetraram na Câmara Nupcial. Essa é a alegria da expectativa e essa espera alegre á expressa em música e ritual, vestimentas e incenso, em toda essa “beleza” da Liturgia, que tantas vezes foi denunciada como desnecessária e até pecaminosa.

 

De fato, ela é desnecessária, porque estamos além das categorias da “necessidade”. A beleza nunca é “necessária”, “funcional” ou “útil”. E quando, esperando por alguém que amamos, colocamos uma linda toalha na mesa e a decoramos com flores e velas, não o fazemos por necessidade, mas por amor. E a Igreja é amor, espera e alegria. É o céu na terra, de acordo com nossa tradição Ortodoxa: é a alegria da infância redescoberta, essa alegria livre, incondicionada e desinteressada, a única capaz de transformar o mundo. Em nossa piedade adulta e séria exigimos definições e justificativas, mas elas estão enraizadas no medo – medo da corrupção, do desvio, das “influências pagãs” e o que mais for. Pois “no perfeito amor não existe medo[6]”. Na medida em que os Cristãos amarem de fato o Reino de Deus, e não apenas não discutirem a respeito, eles realmente o “representarão” e darão significado a ele com arte e beleza. E a celebração do sacramento de alegria aparecerá numa magnífica casula, porque estará revestida da glória do Reino, porque mesmo na forma do homem Deus aparece em glória. Na Eucaristia nos colocamos na presença de Cristo e, como Moisés diante de Deus, nos revestimos de sua glória. O próprio Cristo vestiu uma túnica inconsútil que os soldados junto à cruz não puderam dividir: ela não foi comprada no mercado, ao contrário – com toda probabilidade, foi confeccionada pelas mãos amorosas de alguém. Sim, a beleza de nossa preparação para a Eucaristia não tem uma utilidade prática. Mas Romano Guardini falou sabiamente sobre a inutilidade da beleza. Ele disse, a respeito da Liturgia:

 

“O homem, com a ajuda da graça, tem a oportunidade de alterar sua essência fundamental, de realmente se tornar aquilo que deve ser de acordo com seu destino divino: um filho de Deus. Na Liturgia, ele “caminha para Deus, que dá alegria à sua juventude” (...) É pelo fato de que a vida da Liturgia é mais elevada do que tudo o que a realidade costumeira e capaz de apresentar como oportunidade ou modo de expressão, que ela adapta as formas e os métodos adequados dessa esfera única na qual elas podem ser encontradas, ou seja: na arte. Ela fala compassada e melodiosamente; ela emprega gestos formais e rítmicos; ela se recobre com cores e vestimentas que não encontramos na existência de todo dia (...) Ela constitui o mais alto sentido da vida de uma criança, na qual tudo é pintura, melodia e canções. Esse é o fato maravilhoso que a Liturgia nos mostra: ela une o ato e a realidade numa infância sobrenatural diante de Deus[7]”.

 

 

5

 

O próximo ato da Liturgia é a entrada: a chegada do celebrante ao altar. Já foram dadas muitas explicações simbólicas para isso, mas não se trata de um “símbolo”. Ela representa o próprio movimento da Igreja como passagem do velho para o novo, “desse mundo” para o “mundo futuro”, e, como tal, ela constitui o movimento essencial da “jornada” litúrgica. “Nesse mundo” não existe altar, e o templo foi destruído. Pois o único altar é o próprio Cristo, Sua humanidade que Ele assumiu e deificou, tornando-a templo de Deus, o altar de Sua presença. E Cristo subiu as céus. Assim, o altar é o sinal de que em Cristo recebemos acesso aos céus, que a Igreja consiste na “passagem” para os céus, a entrada no santuário celestial, e que apenas “entrando”, subindo aos céus a Igreja se torna plena, se torna o que ela é para ser. E assim a entrada na Eucaristia, essa aproximação do celebrante – e, com ele, de toda a Igreja – ao altar, não é um símbolo. Trata-se do ato decisivo e crucial nos qual as verdadeiras dimensões do sacramento são reveladas e estabelecidas. Não é a “graça” que desce; é a Igreja que entra na “graça”, e a graça implica uma nova existência, o Reino, o mundo futuro. E, na medida em que o celebrante se aproxima do altar, a Igreja entoa o hino que os anjos cantam eternamente junto ao trono de Deus – “Santo Deus, Santo poderoso, Santo imortal” – e o sacerdote diz: “Santo Deus, Tu que és celebrado três vezes santo na voz dos Querubins, que és glorificado pelos Serafins e adorados por todas as potências celestiais”.

 

Os anjos não estão aqui como decoração ou inspiração. Eles estão precisamente por causa dos céus, acima e além do qual só conhecemos uma coisa: que ele ressoa eternamente com os louvores de divina glória e santidade. “Santo” é o verdadeiro nome de Deus, do Deus “que não é dos acadêmicos e dos filósofos”, mas do Deus vivo da fé. O conhecimento sobre Deus resulta em definições e distinções. O conhecimento de Deus conduz apenas a uma palavra, incompreensível, ainda que óbvia e inescapável: santo. E nessa palavra expressamos tanto que Deus é Absolutamente Outro, Aquele sobre Quem nada sabemos, e que Ele é o fim de nossa fome, de todos os nossos desejos, o inacessível Um que mobiliza nossa vontade, o misterioso tesouro que nos atrai, e que não há nada para ser conhecido sobre Ele. “Santo” é a palavra, a música, a “reação” da Igreja na medida em que ela penetra nos céus, na medida em que ela se coloca diante da glória celestial de Deus.

 

 

6

 

Agora, pela primeira vez desde que se iniciou a jornada da Eucaristia, o celebrante se volta e encara o povo. Até esse momento, ele era o encarregado de conduzir a Igreja em sua ascensão, mas agora o movimento alcançou seu objetivo. E o sacerdote, cuja liturgia, cuja única função e obediência na Igreja consiste em re-presentar, em tornar presente o sacerdócio do próprio Cristo, diz ao povo: “A paz esteja convosco”. Em Cristo o homem retorna a Deus e em Cristo Deus se torna homem. Como o novo Adão, como o homem perfeito, Ele nos conduz a Deus; como Deus encarnado Ele revela o Pai a nós e nos reconcilia com Deus. Ele é a nossa paz – a reconciliação com Deus, o perdão divino, a comunhão. E a paz que o sacerdote anuncia e distribui a todos é a paz que Cristo estabeleceu entre Deus e Seu mundo, e no qual nós, a Igreja, acabamos de penetrar.

 

É dentro dessa paz – “que ultrapassa todo entendimento” – que agora se inicia a Liturgia do Verbo. Os Cristãos Ocidentais estão tão acostumados a distinguir o Verbo do sacramento, que pode ser difícil para eles entender que na perspectiva Ortodoxa a Liturgia do Verbo é tão sacramental quanto o sacramento é “evangélico”. O sacramento é uma manifestação do Verbo. E, a menos que seja superada a dicotomia entre o Verbo e o sacramento, o verdadeiro sentido de ambos, e em especial o verdadeiro sentido do “sacramentalismo” Cristão não pode ser captado em todas as suas maravilhosas implicações. A proclamação do Verbo é um ato sacramental por excelência, porque se trata de um ato transformador. Ele transforma as palavras humanas do Evangelho na Palavra de Deus e num templo do Espírito. A cada noite de sábado, na solene vigília da ressurreição, o evangeliário é trazido em procissão solene passando em meio à congregação, e com essa ação o Dia do Senhor é anunciado e manifestado. Pois o Evangelho não é apenas um “registro” da ressurreição de Cristo; o Verbo de Deus constitui a eterna vinda a nós do Senhor Ressuscitado, o próprio poder e a alegria da ressurreição.

 

Na Liturgia, a proclamação do Evangelho é precedida pelo “Aleluia”, a celebração dessa misteriosa palavra “teófora” que constitui a alegre ação de graças de todos os que veem o Senhor chegar, que têm consciência de Sua presença, e que expressam sua alegria diante dessa gloriosa “Parusia”. “Aqui está Ele!”, seria a tradução mais adequada para esse termo intraduzível.

 

É por isso que a leitura e a pregação do Evangelho na Igreja Ortodoxa é um ato litúrgico, uma parte integral e essencial do sacramento. Ele é ouvido como sendo a Palavra de Deus, e é recebido no Espírito – vale dizer, na Igreja, que é a vida do Verbo e sua “expansão” no mundo.

 

 

7

 

Pão e vinho: para entender seu significado original e eterno na Eucaristia, revemos esquecer por um tempo as intermináveis controvérsias que pouco a pouco os transformaram em “elementos” dentro de uma especulação teológica abstrata. De fato, um dos maiores defeitos da teologia sacramental é que, ao invés de seguir a jornada eucarística como uma progressiva revelação de significado, os teólogos aplicaram à Eucaristia um elenco de questões abstratas para fazê-la caber nos suas próprias estruturas intelectuais. Desse ponto de vista, o que virtualmente desapareceu da esfera de interesse e da investigação teológica foi a própria Liturgia, e o que permaneceu foram “momentos”, “fórmulas” e “condições de validação”. Desapareceu a Eucaristia, enquanto ação orgânica, como uma ação abarcante e transformadora, de toda a Igreja, e o que permaneceu foram as partes “essenciais” e “não essenciais”, os “elementos” a “consagração”, etc. Assim, por exemplo, para explicar e definir o sentido da Eucaristia do modo como algumas teologias o fazem, não há necessidade da palavra “eucarístico”: ela se torna irrelevante. Mas para os antigos Padres ela era a palavra-chave que dava unidade e significado a todos os “elementos” da Liturgia. Os Padres chamavam de “eucarísticos” o pão e o vinho da oferenda, assim como sua oferta e consagração e, finalmente, a comunhão. Tudo isso era a Eucaristia, e só poderia ser entendido dentro da Eucaristia.

 

Conforme iniciamos os procedimentos da Liturgia Eucarística, chega o momento em que oferecemos a Deus a totalidade de nossas vidas, de nós mesmos e do mundo em que vivemos. Esse é o primeiro significado de levarmos ao altar os elementos de nossa própria alimentação. Pois sabemos que o alimento é vida, que ele é o princípio da vida e que todo o mundo foi criado como alimento para o homem. Sabemos também que oferecer esse alimento, esse mundo, essa vida a Deus é a função original “eucarística” do homem, sua plenitude enquanto homem. Sabemos que fomos criados como celebrantes do sacramento da vida, de sua transformação para vida em Deus, para comunhão com Deus. Sabemos que a verdadeira vida é “eucarística”, um movimento de amor a adoração a Deus, o único movimento no qual o sentido e o valor de tudo o que existe pode ser revelado e preenchido. Sabemos que perdemos nossa vida eucarística, e sabemos, finalmente, que em Cristo, o novo Adão, o homem perfeito, essa vida eucarística foi restaurada no homem. Pois Ele próprio é a perfeita Eucaristia; ele ofereceu a Si mesmo em total obediência, amor e ação de graças a Deus. Deus é Sua própria vida, e ele ofereceu essa vida perfeita e eucarística a nós. Nele, Deus se tornou nossa vida.

 

Dessa maneira, essa oferta de pão e vinho a Deus, do alimento que precisamos comer para viver, constitui nossa oferta de nós mesmos a Ele, de nossa vida e de todo o mundo. “Tomamos o mundo nas mãos como se fosse uma maçã”, disse um poeta russo. Essa é nossa Eucaristia. É esse movimento que Adão falhou em executar, e em Cristo ele se tornou a própria vida do homem: um movimento de adoração e louvor no qual toda alegria e sofrimento, toda beleza e frustração, toda fome e toda satisfação são referenciadas ao seu Fim último, e finalmente se tornam plenas de significado. É certo que se trata de um sacrifício: mas o sacrifício é a ação mais natural do homem, a essência mesma de sua vida. O homem é um ser sacrificial, porque ele encontra sua vida no amor, e o amor é sacrifício: ele coloca todo valor e todo significado da vida no outro e dá sua vida por ele, e nesse ato de doação, nesse sacrifício, ele encontra o sentido e a alegria da vida.

 

Nós oferecemos o mundo e a nós mesmos a Deus. Mas fazemos isso em Cristo e em memória Dele. Nós o fazemos em Cristo, porque Ele próprio já ofereceu tudo o que há para ser oferecido a Deus. Ele realizou essa Eucaristia de uma vez por todas, e nada existe que não tenha sido ofertado. Nele estava a Vida – e essa Vida que é de todos nós, a oferecemos a Deus. A Igreja se compõe de todos aqueles que foram aceitos na vida eucarística de Cristo. E nós o fazemos em memória Dele porque, na medida em que oferecemos uma e outra vez nossa vida e nosso mundo a Deus, descobrimos reiteradamente que não há nada mais a ser oferecido, senão o próprio Cristo – a Vida do mundo, a plenitude de tudo o que existe. Essa é a Sua Eucaristia, e Ele é a Eucaristia. Como diz a oração da oferenda – “é Ele quem oferece e Ele que é oferecido”. A Liturgia nos conduz até essa Eucaristia total de Cristo, e nos revela que a única Eucaristia, a única oferenda do mundo é Cristo. Voltamos sempre a oferecer nossas vidas; nós trazemos e “sacrificamos” – vale dizer, ofertamos a Deus – aquilo que Ele próprio nos deu; e a cada vez chegamos ao Fim de todos os sacrifícios, de todas as oferendas, de toda Eucaristia, porque a cada vez se revela a nós que Cristo ofertou tudo o que existe, e que Ele e tudo o que existe foram ofertados em Sua oferenda de Si mesmo, Nós nos incluímos na Eucaristia de Cristo, e Cristo é a nossa Eucaristia.

 

E na medida em que a procissão perfaz seu movimento, ela carrega o pão e o vinho até o altar, e assim sabemos que é o próprio Cristo que nos toma, e toma a totalidade de nossas vidas, e as leva até Deus em Sua ascensão eucarística. É por isso que nesse momento da Liturgia se comemora e se recorda: “lembre-se o Senhor em seu Reino...”. Recordar é um ato de amor. Deus se lembra de nós e Sua lembrança, Seu amor, são o fundamento do mundo. Em Cristo nos recordamos. Tornamo-nos outra vez seres abertos ao amor, e nos lembramos. A Igreja, em sua separação “do mundo”, em sua jornada para os céus, lembra-se do mundo, lembra-se dos homens, lembra-se de toda a criação, e os apresenta a Deus em amor. A Eucaristia é o sacramento da lembrança cósmica: de fato, ela é a restauração do amor como a verdadeira vida do mundo.

 

 

8

 

O pão e o vinho estão agora sobre o altar, cobertos, ocultos, assim como “nossa vida está oculta com Cristo em Deus[8]”. Ali está, oculta em Deus, a totalidade da vida, que Cristo devolveu a Deus. Então o celebrante diz: “Amemo-nos mutuamente, para que com uma só mente possamos dizer...”. e se segue o beijo da paz, uma dos atos fundamentais da Liturgia Cristã. A Igreja, se quiser ser a Igreja, deve ser a revelação desse Amor que Deus “derramou em nossos corações”. Sem esse Amor, nada é “válido” na Igreja, porque nada é possível. O conteúdo da Eucaristia de Cristo é o Amor, e somente através do amor podemos penetrar nela e nos tornarmos seus participantes. Não somos capazes desse amor: nós o perdemos. Esse amor, Cristo nos deu, e esse presente é a Igreja. A Igreja se constitui no amor e através do amor, e ela constitui o “testemunho” desse Amor no mundo, para re-presentá-lo, para torná-lo presente. Somente o Amor cria e transforma: ele consiste, assim, no verdadeiro “princípio” do sacramento.

 

 

9

 

“Elevemos ao alto nossos corações”, diz o celebrante, e o povo responde: “Já os temos no Senhor”. A Eucaristia é a anáfora, a “elevação” de nossa oferenda e de nós mesmos. Ela é a ascensão da Igreja aos céus. “Mas, por que me preocupar com os céus”, diz São João Crisóstomo, “quando eu mesmo me transformei em céus?”. A Eucaristia já foi explicada muitas vezes apenas em referência aos dons: os que “acontece” com o pão e o vinho, e porque, e quando acontece! Mas devemos entender que o que “acontece” ao pão e ao vinho acontece porque algo aconteceu em primeiro lugar a nós e à Igreja. É porque nós “constituímos” a Igreja, e porque isso significa que seguimos a Cristo em sua ascensão; porque Ele nos aceitou em Sua mesa e em Seu Reino; porque, em termos de teologia, penetramos no Eschaton, e agora nos encontramos além do tempo e do espaço; porque tudo isso aconteceu conosco em primeiro lugar – por isso essas coisas acontecem com o pão e o vinho.

 

“Elevemos ao alto nossos corações”, diz o celebrante, e o povo responde: “Já os temos no Senhor”. “Demos graças ao Senhor” (Eucharistisomen), diz o celebrante.

 

 

10

 

Quando o homem se coloca diante de Deus, quando ele preencheu tudo o que Deus lhe deu para que fosse preenchido, quando todos seus pecados foram perdoados e toda alegria restaurada, então nada mais lhe resta senão agradecer. A Eucaristia (ação de graças) é o estado do homem perfeito. A Eucaristia é a vida doo paraíso. A Eucaristia é a única resposta total e real do homem à criação de Deus, à redenção e ao dom dos céus. Mas esse homem perfeito que se coloca diante de Deus é Cristo. Somente Nele tudo o que Deus deu ao homem se encontra preenchido e levado de volta aos céus. Somente Ele é o perfeito Ser Eucarístico. Ele é a Eucaristia do mundo. É nessa Eucaristia e através dessa Eucaristia que toda a criação se torna aquilo que ele sempre deveria ter sido e que ela falhou em ser.

 

“É digno e justo”, responde a congregação, expressando com essas palavras sua “rendição incondicional”, com a qual a verdadeira “religião” começa. Pois a fé não é fruto de uma busca intelectual, ou da “aposta” de Pascal. Não se trata de uma solução racional para as frustrações e ansiedades da vida. Tampouco nasce da “falta” de alguma coisa, mas, ao contrário, provém de uma plenitude, de um amor e de uma alegria. “É digno e justo” expressa essas coisas. É a única resposta possível para o convite divino de viver e receber uma vida em abundância.

 

Então o sacerdote inicia a Oração Eucarística: “É digno e justo que Te celebremos, Te bendigamos, Te glorifiquemos, Te agradeçamos e nos prostremos em todo o Teu Reino. Pois Tu és um Deus inefável, incompreensível, invisível, inacessível, sempre existente e sempre o mesmo, Tu, Teu Filho unigênito e Teu Espírito Santo. Tu, que nos tiraste do nada para a existência, e depois da queda levantaste-nos de novo e não cessas de tudo fazer para nos reconduzir ao céu e fazer-nos dom do Teu futuro reino; por tudo isto nós Te damos graças, a Ti, ao Teu Filho unigênito e ao Teu Espírito Santo, e por todos os benefícios concedidos conhecidos e desconhecidos, visíveis e invisíveis. Damos-Te graças também por esta liturgia que Te dignaste receber de nossas mãos, embora disponhas a Teu serviço, de multidões de Arcanjos e de Anjos, de Querubins e Serafins com seis asas e múltiplos olhos, sublimes e alados”.

 

O início da Oração Eucarística é comumente chamado de “Prefácio”. E, embora esse Prefácio pertença a todos os ritos eucarísticos conhecidos, pouca atenção costuma ser dada a ele no desenvolvimento da teologia eucarística. Um “prefácio” é algo que não pertence realmente ao corpo de um livro. E os teólogos o negligenciam porque estão ansiosos para chegar aos verdadeiros “problemas”: o da consagração, da transformação dos elementos, do sacrifício e outros. É aqui que encontramos um dos principais defeitos da teologia Cristã: a teologia da Eucaristia deixou de ser eucarística e assim ela retirou o espírito eucarístico de todo o entendimento do sacramento, da verdadeira vida da Igreja. A longa controvérsia a respeito das palavras da instituição e da invocação do Espírito Santo (epiclesis) que se estabeleceu por séculos entre o Oriente e o Ocidente é um bom exemplo desse estágio não-eucarístico na história da teologia sacramental.

 

Mas é preciso entender que é precisamente esse prefácio – essa ação, essas palavras, esse movimento de ação de graças – que realmente “torna possível” tudo o que virá a seguir. A Eucaristia de Cristo e o Cristo Eucarístico constituem a “brecha” que nos conduz até a mesa do Reino, que nos eleva até os céus, e que nos torna partícipes do banquete divino. Pois a Eucaristia – ação de graças e louvor – é a própria forma e o conteúdo da nova vida que Deus concedeu a nós quando nos reconciliou consigo mesmo em Cristo. Essa reconciliação, o perdão, o poder da vida – tudo isso encontra seu propósito e plenitude desse novo estágio da existência, nesse novo estilo de vida que é a Eucaristia, a única vida verdadeira da criação com Deus e em Deus, a única relação verdadeira entre Deus e o mundo.

 

De fato, ela é o prefácio do mundo por vir, a porta para o Reino: e é isso que confessamos e proclamamos quando, falando de Reino que virá, afirmamos que Deus já no-lo concedeu. Esse futuro nos foi dado no passado, e ele pode se constituir o próprio presente, a vida em si, agora, da Igreja.

 

 

11

 

E assim o Prefácio se completa no Sanctus – no “Santo, Santo, Santo” da eterna Doxologia, que é a essência secreta de tudo que existe: “Os Céus e a terra estão cheios da Tua glória”. Precisamos subir aos Céus em Cristo para ver e entender a criação em sua verdadeira existência enquanto glorificação da Deus, como resposta ao amor divino no qual, e somente no qual, a criação se torna aquilo que é do desejo de Deus: ação de graças, eucaristia, adoração. É aqui – na dimensão celestial da Igreja, com “milhares de Arcanjos e miríades de Anjos, com os Querubins e os Serafins, que voam nas alturas e sustentam com suas asas” – que podemos, finalmente, “nos expressar”. E essa expressão é: “Santo, Santo, Santo, é o Senhor Sabaoth. Os Céus e a terra estão cheios de Sua glória. Hosana nas alturas! Bendito o que vem em Nome do Senhor”.

 

Essa é a finalidade última de tudo o que existe, o fim, o objetivo e a plenitude, porque é esse o começo, o princípio da Criação.

 

 

12

 

Mas, na medida em que nos colocamos diante de Deus, relembrando tudo o que Ele fez por nós, e oferecendo a Ele nossa ação de graças por todos os Seus benefícios, descobrimos sem sombra de dúvida que o conteúdo dessa ação de graças e dessa recordação é Cristo. Toda recordação é, em definitivo, uma recordação de Cristo, e toda ação de graças é uma ação de graças a Cristo. “Nele estava a vida e essa vida era a luz dos homens”. E, na luz da Eucaristia, vemos esse Cristo que é de fato vida, luz e tudo o que existe, e a glória que preenche os céus e a terra. Não há nada além para ser lembrado, nada mais a agradecer, porque é Nele que tudo encontra sua existência, sua vida, seu fim.

 

E, dessa maneira, o Sanctus nos conduz de forma tão simples e lógica a esse homem, a essa noite, a esse acontecimento no qual o mundo encontrou de uma vez por todas seu juízo e sua salvação. Não que, ao cantarmos o Sanctus e confessarmos a majestade da glória divina, coloquemos essas coisas de lado e prossigamos para a próxima subdivisão da prece, a Lembrança. Não, a Lembrança é a plenitude da Doxologia, ela é uma vez mais a Eucaristia que “naturalmente” nos conduz ao próprio coração e ao conteúdo da recordação e da ação de graças.

 

Tu és Santo, totalmente santo, Tu e o teu Filho unigênito e o Teu Espírito Santo. Tu és Santo, és totalmente Santo e magnífica é a Tua glória. Tu amaste tanto o mundo que nos ofereceste o Teu Filho Unigênito, a fim de que todo aquele que Nele creia não pereça, mas tenha a vida eterna. Ele veio e cumpriu inteiramente o Teu plano salvífico a nosso respeito. Ele, na hora em que se entregava para voluntariamente sofrer a morte vivificante pela vida do mundo, tomou o pão em suas mãos santas e imaculadas e, tendo-o oferecido a ti, Deus Pai, deu graças, pronunciou as palavras de bênção, o santificou, o partiu e deu aos seus santos discípulos e apóstolos, dizendo: “Tomai e comei, isto é o meu corpo que será partido por vós para a remissão dos pecados”. Do mesmo modo, ao fim da ceia, tomou o cálice dizendo: “Bebei dele todos, isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, que é derramado por vós e por muitos para a remissão dos pecados”.

 

Enquanto estamos diante do Senhor, nada mais existe a ser recordado, ou que possamos oferecer a Deus, senão esse auto-oferecimento de Cristo, porque nele toda ação de graças, toda lembrança, toda oferenda – vale dizer, toda a vida do homem e do mundo – se completa. Então dizemos:

 

Fazendo pois a anamnese desse mandamento salvador para nós: a cruz, o sepulcro, a ressurreição ao terceiro dia, a ascensão aos céus, o trono à direita do Pai, a segunda e gloriosa vinda: Os teus dons, a ti oferecemos, em tudo e por tudo.

 

 

13

 

Até esse ponto a Eucaristia consistia em nossa ascensão em Cristo, em nossa entrada, Nele, no “mundo do futuro”. Agora, nessa oferenda de todas as coisas, em Cristo, ao Um a quem tudo pertence e somente no qual tudo existe realmente, esse movimento ascensional encontra seu fim. Estamos na mesa pascal do Reino. Tudo o que oferecemos – nosso alimento, nossa vida, nós mesmos e todo o mundo – nós oferecemos em Cristo e como Cristo porque Ele próprio assumiu nossa vida e se tornou nossa vida. E agora tudo isso é devolvido a nós com o dom de uma nova vida, e, sendo assim – necessariamente – como alimento.

 

“Esse é meu corpo, esse é meu sangue. Tomai, comei. Bebei...”. E gerações após gerações de teólogos se fizeram as mesmas questões. Como isso é possível? Como isso acontece? O que, exatamente, acontece nessa transmutação? E, exatamente, quando? Qual é sua causa? Nenhuma resposta parece satisfatória. Símbolo? Mas o que é um símbolo? Substância, acidentes? Sentimos imediatamente que algo está faltando em todas essas teorias, nas quais o Sacramento é reduzido às categorias do tempo, da substância, da causalidade, que são as categorias “desse mundo”.

 

Algo falta, porque o teólogo pensa no sacramento e se esquece da liturgia. Como bom cientista ele começa por isolar o objeto de seu estudo, reduzindo-o a um momento, a um “fenômeno” – e então, procedendo do geral para o particular, do conhecido para o desconhecido, ela dá uma definição que, de fato, levanta mais questões do que respostas. Mas através de nosso estudo o ponto principal sempre foi que a liturgia por inteiro é sacramental, vale dizer, um ato transformador e um movimento ascendente. E o verdadeiro objetivo desse movimento de ascensão é o de nos retirar “desse mundo”, e nos tornar partícipes do “mundo do futuro”. Nesse mundo – o mundo que condenou Cristo e que, ao fazê-lo, condenou a si próprio – não há pão nem vinho que possa se transformar no corpo e no sangue de Cristo. Nada que faça parte dele pode ser “sacralizado”. Mas a liturgia da Igreja constitui sempre uma anáfora, uma elevação, uma ascensão. A Igreja preenche a si mesma nos céus nesse novo éon que Cristo inaugurou com Sua morte, ressurreição e ascensão, e que foi dado à Igreja no dia de Pentecostes como sendo sua vida, como sendo o “fim” em direção ao qual ela se move. Nesse mundo Cristo é sacrificado, Seu corpo é morto e Seu sangue é derramado. E é para esse mundo que devemos nos dirigir, devemos ascender aos céus em Cristo para nos tornamos participantes do mundo que virá.

 

Mas esse não é um “outro” mundo, diferente daquele que Deus criou e nos deu. É o mesmo mundo nosso, perfeccionando em Cristo, mas ainda não em nós. É o nosso mesmo mundo, redimido e restaurado, no qual Cristo “preenche todas as coisas Consigo”. E, uma vez que Deus criou o mundo como alimento para nós e nos deu o alimento como comunhão com Ele, como vida Nele, o novo alimento da nova vida que recebemos de Deus em Seu Reino é o próprio Cristo. Ele é nosso pão – porque desde o começo toda nossa fome era fome por Ele e todo nosso pão não era outra coisa do que um símbolo Dele, um símbolo que estava destinado e se tornar realidade.

 

Ele se tornou homem e viveu nesse mundo. Ele comeu e bebeu, e isso significa que o mundo do qual ele participou, o próprio alimento de nosso mundo, se tornou Seu corpo, Sua vida. Mas Sua vida era totalmente, absolutamente eucarística – tudo era transformado em comunhão com Deus e tudo ascendia aos céus. E agora ele partilha dessa vida glorificada conosco. “Aquilo que eu fiz, agora vos dou: tomai e comei...”.

 

Oferecemos o pão em memória de Cristo porque sabemos que Cristo é Vida, e que assim todo alimento deve nos conduzir a Ele. E agora, quando recebemos esse pão de Suas mãos, sabemos que Ele tomou toda vida, preencheu-a Consigo próprio e a tornou aquilo que ela tem que ser: a comunhão com Deus, o sacramento de Sua presença e amor. Somente no Reino podemos confessar com São Basílio que “esse pão é em verdade o corpo precioso de nosso Senhor, que esse vinho é o sangue precioso de Cristo”. O que é “sobrenatural” aqui, nesse mundo, se revela como “natural” lá. E é sempre capaz de nos conduzir “até lá” e nos tornar o que temos que ser para que a Igreja realize a si mesma na liturgia.

 

 

14

 

É o Espírito Santo que manifesta o pão como corpo e o vinho como sangue de Cristo, conforme a Liturgia de São Basílio: “E faz desse pão o corpo precioso do Teu Cristo (...) e do que contém esse cálice o sangue precioso do Teu Cristo...”. A Igreja Ortodoxa sempre insistiu que a transmutação (metábole) dos elementos eucarísticos é realizada pela epiclese – a invocação do Espírito Santo – e não pelas palavras da instituição. Essa doutrina, porém, foi muitas vezes mal compreendida pelos próprios Ortodoxos. Não se trata de substituir uma “causalidade” – as palavras da instituição – por outra, por uma “fórmula” diferente. Trata-se de revelar o caráter escatológico do sacramento. O Espírito Santo veio no “último e grande dia” do Pentecostes. Ele manifestou o mundo por vir. Ele inaugurou o Reino. Ele sempre nos leva além. Estar no Espírito implica estar nos céus, pois o Reino de Deus é “alegria e paz no Espírito Santo”. E assim, na Eucaristia, é Ele quem sela e confirma nossa ascensão para os céus, que transforma a Igreja no corpo de Cristo e – por conseguinte – manifesta os elementos de nossa oferenda como comunhão no Espírito Santo. É nisso que consiste a consagração.

 

 

15

 

Mas antes de partilharmos do alimento celestial resta ainda uma última ação, absolutamente essencial: a intercessão. Estar em Cristo significa ser como Ele, significa transformar nosso movimento no próprio movimento de Sua vida. E como Ele “viveu para interceder” por todos “para que fossem a Deus por meio Dele[9]”, então não podemos aceitar Sua intercessão como se fosse nossa. A Igreja não é uma sociedade escapista – corporativa ou individualmente – desse mundo para experimentar um aperitivo místico de eternidade. A comunhão não é uma “experiência mística”: bebemos do cálice de Cristo, e Ele se entrega pela vida do mundo. O pão na patena e o vinho no cálice nos lembram da encarnação do Filho de Deus, da cruz e da morte. Assim, é a verdadeira felicidade do Reino que nos faz recordar o mundo e orar por ele. É a própria comunhão com o Espírito Santo que nos torna capazes de amar o mundo com o amor de Cristo. A Eucaristia é o sacramento de unidade e o momento da verdade: aqui vemos o mundo em Cristo, real como ele é, a não de nosso ponto de vista particular, limitado e parcial. A intercessão começa aqui, na glória do banquete messiânico, e essa é o único verdadeiro começo para a missão da Igreja. É quando “colocando de lado todo mundanismo”, parece-nos termos deixado esse mundo, e assim, de fato, recuperamo-lo em toda sua realidade.

 

A intercessão constitui, assim a única preparação real para a comunhão. Pois na comunhão e através da comunhão não apenas nos tornamos um corpo e um espírito, como somos restaurados nessa solidariedade e amor que o mundo perdeu. E a grande Oração Eucarística agora se soma à Oração do Senhor, e cada petição sua implica a total e completa dedicação ao Reino de Deus no mundo. Essa é a Sua prece, e Ele a para nós, Ele faz dela a nossa prece, assim como fez de Seu Pai o nosso Pai. Ninguém jamais foi “digno” de receber a comunhão, ninguém foi preparado para tanto. Nesse ponto, todos os méritos, toda justiça, toda devoção desaparece e se dissolve. A vida retorna a nós como um Dom, um dom divino e gratuito. É por isso que na Igreja Ortodoxa chamamos os elementos eucarísticos de Santos Dons. Adão é reintroduzido no Paraíso, resgatado do nada e coroado rei da criação. Tudo é gratuito, nada é devido e não obstante tudo é dado. E assim, a maior humildade e obediência consiste em aceitar o dom, em dizer sim – com alegria e gratidão. Não há nada que possamos fazer, e mesmo assim nos tornamos tudo o que Deus quis de nós desde a eternidade, e nos tornamos eucarísticos.

 

 

16

 

E então chega o momento em que devemos retornar ao mundo. “Ide em paz”, diz o celebrante enquanto deixa o altar, e esse é o último mandamento da Liturgia. Não devemos permanecer no Monte Tabor, bem ora saibamos que é bom para nós estar lá. Somos mandados de volta. Mas agora “vimos a verdadeira Luz, recebemos o Espírito celeste”. E é como testemunhas dessa Luz, como testemunhas do Espírito, que devemos “retornar” e começar a interminável missão da Igreja. A Eucaristia foi o fim da jornada, o final do tempo. E agora estamos novamente no começo, e as coisas que eram impossíveis são agora reveladas a nós como possíveis. O tempo do mundo se tornou o tempo da Igreja, o tempo de salvação e redenção. E Deus nos tornou competentes, como disse Paul Caudel, competentes para sermos testemunho Seu, para realizar o que Ele fez e continua a fazer. Esse e o sentido da Eucaristia; e é por isso que a missão da Igreja começa na Liturgia da ascensão, pois somente ela torna possível a Liturgia da missão.



[1] João 1: 10.

[2] Lucas 2: 10.

[3] Lucas 24: 52.

[4] Mateus 25: 21.

[5] Lucas 24: 15-16, 30.

[6] I João 4: 18.

[7] Guardini, Romano – The Church and the Catholic, and the Spirit of the Liturgy, NY, 1950.

[8] Colossenses 3: 3.

[9] Hebreus 7: 25.

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Alexander Schmemann - Pela Vida do Mundo - Prefácio e Capítulo I

 

PELA VIDA DO MUNDO

Sacramentos e Ortodoxia

ALEXANDER SCHMEMANN

 

 

PREFÁCIO

 

Esse pequeno livro foi escrito há dez anos, como um “guia para estudos” para a Conferência Quadrienal da Federação Nacional de Estudantes Cristãos que aconteceu em Athenas, Ohio, em Dezembro de 1963. Ele não pretendia ser, e certamente não é um tratado teológico sistemático sobre a tradição litúrgica Ortodoxa. Meu único intento ao escrever foi o de ordenar – para estudantes que se preparavam para discutir a missão Cristã – a “visão de mundo” Cristã, isso é, a perspectiva sobre o mundo e a vida do homem naquilo que procede da experiência litúrgica da Igreja Ortodoxa.

 

Mas aconteceu de o livro alcançar leitores fora dos círculos estudantis para os quais havia sido escrito. Republicado em 1965 por Herder & Herder (sob o título de Sacramentos e Ortodoxia), e em seguida na Inglaterra (O Mundo como Sacramento), depois traduzido para o francês, o italiano e o grego, ele chegou mesmo a ser recentemente “publicado” numa tradução anônima em russo pelo movimento dissidente clandestino samizdat na União Soviética. Tudo isso prova, tenho certeza, não alguma qualidade particular do livro em si – mais do que ninguém, estou consciente de seus muitos defeitos e insuficiências – mas a importância do tema escolhido, e cuja urgência, evidente dez anos atrás, é mais evidente ainda hoje, sendo aliás a única justificativa para essa nova edição.

 

Esse tema não é outro do que o secularismo – a rápida e progressiva alienação de nossa cultura, desde suas fundações, da experiência Cristã e da “visão de mundo” que de início modelou essa cultura – e a profunda polarização que o secularismo provocou entre os próprios Cristãos. De fato, enquanto alguns saúdam o secularismo como sendo o melhor fruto do Cristianismo na história, outros encontram aí a justificativa para uma rejeição maniqueísta do mundo, para uma fuga em direção a uma “espiritualidade” desencarnada e dualista. E existem os que reduzem a Igreja ao mundo e seus problemas, e os que simplesmente equiparam o mundo ao mal e se alegram morbidamente com seu obscurecimento apocalíptico.

 

Ambas as atitudes distorcem, estou convencido disso, a plenitude, a catolicidade da tradição Ortodoxa genuína, que sempre afirmou a bondade do mundo, por cuja vida Deus entregou seu Filho unigênito, bem como a perversidade sobre a qual o mundo repousa, e que sempre proclamou e continua a proclamar todo Domingo que “pela Cruz veio a felicidade para todo o mundo”, e que diz aos que acreditam em Cristo que eles “estão mortos e que sua vida está oculta com Cristo em Deus[1]”.

 

Dessa forma, nossa real questão é a seguinte: como é possível “compatibilizar” – na fé, na vida, na ação – essas afirmações aparentemente contraditórias da Igreja, como superar a tentação de optar por uma delas e “absolutizá-la”, caindo assim nas escolhas erradas ou “heresias” que tanto devastaram a Cristandade no passado?

 

Estou certo de que a resposta virá a nós, não de teorias puramente intelectuais, mas, acima de tudo, da experiência viva e inquebrantável da Igreja, que ela revela e comunica a nós em seus cultos, na Liturgia que sempre fez dela aquilo que ela é: o sacramento do mundo, o sacramento do Reino – seu dom para nós, em Cristo. E é essa experiência que eu tentei, não tanto expor e analisar, mas antes confirmar nesse ensaio.

 

Fosse hoje, eu a escreveria de outro modo. Mas não acredito em, nem sou capaz de escrever aquilo que já escrevi, ainda que imperfeitamente, de todo meu coração. Assim é que fiz não mais do que pequenas correções a alterações para essa nova edição. E acrescentei, na forma de apêndices, dois ensaios escritos a partir de outra perspectiva, mas que, espero, poderão ajudar e entender algumas implicações desse livro.

 

Finalmente, gostaria e aproveitar a oportunidade dessa nova edição para expressar minha grande gratidão àqueles cujas reações ao meu trabalho foram para mim fonte de muita alegria: para Zissimos Lorenzatos de Athenas que, por sua própria iniciativa – apenas porque, como ele me escreveu, “sentiu que deveria” – publicou uma magnífica tradução grega dessa livro; para meus desconhecidos amigos na Rússia: saber de sua humilde edição de meu ensaio, batida à máquina, foi para mim uma das mais motivadoras experiências de minha vida; para todos os que me escreveram e cujas mensagens foram para mim a alegre afirmação de nossa unidade “na fé e no amor”; e finalmente, para os meus amigos David Drillock e Anthony Pluth, que não pouparam esforços no preparo dessa nova edição.

 

Alexandre Schmemann

Janeiro de 1973

 


 

A VIDA DO MUNDO

 

1

 

“O homem é o que ele come”. Com essa colocação, o filósofo materialista alemão Feuerbach acreditou ter posto um ponto final em todas as especulações “idealistas” a respeito da natureza humana. De fato, porém, ele estava expressando, sem o saber, a mais religiosa ideia sobre o homem. Pois, muito antes de Feuerbach, a mesma definição de homem fora dada pela Bíblia. Na história bíblica da criação o homem é apresentado, antes de tudo, como um ser faminto, e todo o mundo constitui seu alimento. Logo em seguida à ordem de se multiplicar e dominar a terra, de acordo com o autor do primeiro capítulo do Gênese, veio a instrução de Deus ao homem para que se alimentasse da terra: “Vejam! Eu vos entrego todas as ervas que produzem semente e estão sobre toda a terra, e todas as árvores em que há frutos que dão semente: tudo isso será alimento para vós[2]”. O homem precisa comer para viver; ele deve introduzir o mundo em seu corpo e transformá-lo em si mesmo, em carne e sangue. Ele de fato é aquilo que come, e todo o mundo é apresentado como uma mesa de banquete total para o homem. E essa imagem do banquete permanece, através de toda a Bíblia, como sendo a imagem central da vida. É a imagem da vida em seu início e também a imagem da vida em sua plenitude e seu fim: “para que comam e bebam de minha mesa no meu Reino”.

 

Eu comecei por esse tema aparentemente secundário da comida – secundário do ponto de vista dos grandes “assuntos religiosos” – porque o propósito real desse ensaio consiste em colocar, se possível, a questão: de que vida estamos falando, qual a vida que pregamos, proclamamos e anunciamos quando, como Cristãos, confessamos que Cristo morreu pela vida do mundo? Que vida é ao mesmo tempo a motivação, o começo e a finalidade da missão Cristã?

 

As respostas para isso seguem dois padrões gerais. Existem aqueles para quem a vida, quando discutida em termos religiosos, significa “vida religiosa”. E essa vida religiosa constitui um mundo em si, que existe à parte do mundo secular e de sua vida. É o mundo da “espiritualidade”, e hoje em dia ele parece ganhar mais e mais popularidade. Mesmo as lojas dos aeroportos estão cheias de antologias de textos místicos. Vimos entre essas coletâneas uma que se chamava Misticismo Básico. Perdido e confuso no meio do barulho, da pressa e das frustrações da “vida”, o homem aceita com facilidade o convite para penetrar no santuário interior de sua alma, para ali descobrir uma nova vida, para desfrutar do “banquete espiritual” cheio de alimentos espirituais. Esse alimento espiritual irá ajudá-lo: ajudá-lo a restaurar sua paz de espírito, a suportar a outra vida – a vida secular –, a aceitar suas atribulações, a levar uma vida mais completa e dedicada, a “manter o sorriso” de um modo religioso e profundo. Dessa forma, a missão consistirá em converter as pessoas para essa vida “espiritual”, transformando-as em “pessoas religiosas”.

 

Existe uma grande variedade de ênfases e mesmo de teologias dentro desse padrão geral, desde as sobrevivências populares até o sofisticado interesse nas doutrinas místicas esotéricas. Mas o resultado é o mesmo: a vida “religiosa” torna a vida secular – a vida do comer e do beber – irrelevante, retira dela todo significado, com exceção de considerá-la como um exercício de piedade e paciência. E quanto mais espiritual se torna o “banquete espiritual”, mais a vida secular se parece com os anúncios de neon “coma e beba” que vemos ao longo das rodovias.

 

Mas também existem outros, para quem a afirmação “pela vida do mundo” parece significar naturalmente “por uma vida melhor no mundo”. Os “espiritualistas” são contrabalançados pelos “ativistas”. É certo que estamos hoje muito distantes do otimismo ingênuo e da euforia do “Evangelho Social”. Todas as implicações do existencialismo, com suas ansiedades, ou da neo-Ortodoxia com sua visão da história pessimista e realista, já foram assimiladas e receberam sua consideração específica. Mas a crença fundamental do Cristianismo como sendo, antes de tudo, ação, permaneceu intacta, e na verdade adquiriu ainda mais força. Desse ponto de vista o Cristianismo simplesmente perdeu o mundo. E o mundo precisa ser recuperado. A missão Cristã, assim, consiste em alcançar esse mundo que se perdeu. O homem que “come e bebe” é levado a sério, talvez demasiado a sério. Ele constitui o objeto virtualmente exclusivo da ação Cristã, e somos constantemente chamados a nos arrepender por termos dedicado tempo demais em contemplação e adoração, em silêncio e Liturgia, por não termos lidado suficientemente com os aspectos social, político, econômico, racial e outros temas da vida real. Aos livros de misticismo e espiritualidade correspondem livros sobre “Religião e Vida” (ou “e Sociedade”, “e Sexo”, “e Urbanismo”, etc.). Ainda assim a questão básica permanece sem resposta: no que consiste essa vida que devemos recuperar para Cristo e torná-la Cristã? Em outras palavras, qual é a finalidade última de tudo o que há para ser feito, de toda ação?

 

Supondo que tenhamos alcançado pelo menos um desses objetivos práticos, que tenhamos “vencido” – e daí? A questão pode parecer ingênua, mas não se pode agir de fato sem conhecer o sentido, não apenas dessa ação, mas da própria vida em cujo nome agimos. Comemos e bebemos, lutamos por liberdade e justiça para nos sentirmos vivos, para obtermos a plenitude da vida. Mas o que é isso? O que é a vida da vida em si mesma? Qual é o conteúdo da vida eterna? No final das contas, numa análise derradeira, descobriremos inevitavelmente que a ação em si e por si mesma não tem significado. Quando todos os coletivos tiverem cumprido suas funções, quando todos os papéis tiverem sido distribuídos e todos os objetivos práticos tiverem sido alcançados, deve vir para todos a felicidade completa. Sobre o quê? A menos que saibamos, permanece a mesma dicotomia entre religião e vida que observamos na solução espiritual. Quer “espiritualizemos” nossa vida, quer “secularizemos” nossa religião, quer convidemos os homens para o banquete espiritual, quer os chamemos para o banquete secular, a vida real do mundo, pela qual Deus ofereceu seu Filho Unigênito, permanece, sem esperança, além de nosso alcance religioso.

 

 

2

 

“O homem é o que ele come”. Mas o que come ele, e por quê? Essas questões parecem ingênuas e irrelevantes, e não apenas para Feuerbach. Ela pareceu ainda mais irrelevante para seus oponentes religiosos. Para esses, como para ele, comer consistia numa função material, e a única questão importante era se o homem possui ou não uma “superestrutura” acrescentada a isso. A religião responde com um “sim”. Feuerbach respondia com um “não”. Mas ambas as respostas eram dadas dentro da mesma oposição entre o espiritual e o material. “Espiritual” versus “material”, “sagrado” versus “profano”, “sobrenatural” versus “natural” – durante séculos esses foram os únicos moldes e categorias compreensíveis do pensamento e da experiência religiosa. E Feuerbach, com todo seu materialismo, era de fato um herdeiro natural do “idealismo” e do “espiritualismo” Cristãos,

 

Mas, como vimos, a Bíblia também começa com “o homem que é aquilo que ele come”. A perspectiva, porém, é totalmente diferente, pois em nenhum lugar na Bíblia encontramos as dicotomias que são para nós o enquadre evidente de toda perspectiva sobre a religião. Na Bíblia, o alimento que o homem come, o mundo do qual ele deve partilhar para viver, foi dado a ele por Deus, e dado a ele em comunhão com Deus. O mundo, visto como alimento do homem, não é algo “material” e limitado às funções materiais, diferente e oposto às funções especificamente “espirituais” por meio das quais o homem se relaciona com Deus. Tudo o que existe é um presente dado por Deus ao homem, e tudo existe para que o homem conheça a Deus, para que a vida do homem seja uma comunhão com Deus. O amor divino se transforma em alimento e vida para o homem. Deus abençoa tudo o que Ele criou e, em linguagem bíblica, isso significa que Ele fez de toda a criação o símbolo e o significado de Sua presença e sabedoria, seu amor e revelação: “Provai e vede que o Senhor é bom”.

 

O homem é um ser faminto. Mas ele tem fome de Deus. Por trás de toda a fome de nossa vida está Deus. Todo desejo acaba sendo um desejo por Ele. Para falar a verdade, o homem não é o único ser faminto. Tudo o que existe, vive porque come. Toda a criação depende do alimento, mas a posição única do homem no universo consiste em que somente ele bendiz a Deus pelo alimento que recebe Dele. Somente ele responde à bênção de Deus com seu próprio bendizer. O fato mais significativo da vida no Jardim é que o homem deu nome às coisas. Assim que foram criados os animais para companhia de Adão, Deus os levou a ele para ver como Adão os nomearia. “E assim Adão deu nome a todas as criaturas vivas, e esse é o seu nome”. Ora, na Bíblia, um nome é infinitamente mais do que um meio para distinguir uma coisa da outra. Ele revela a própria essência da coisa, ou melhor, sua essência enquanto dom de Deus. Dar nome a uma coisa equivale a manifestar o sentido e o valor que Deus deu a ela, é saber que ela veio de Deus e conhecer seu lugar e função dentro do cosmo criado por Deus.

 

Em outras palavras, dar nome a uma coisa equivale a bendizer a Deus por ela e nela. E na Bíblia bendizer a Deus não é uma ação “religiosa” ou “cultual”, mas constitui a própria maneira de se viver. Deus abençoou o mundo, abençoou o homem, abençoou o sétimo dia (ou seja, o tempo), e isso significa que Ele preencheu tudo o que existe com Seu amor e bondade, que ele tornou tudo “muito bom”. Assim, a única reação natural (e não “sobrenatural”) do homem, para o qual Deus concedeu sua bênção e santificou o mundo, é bendizer a Deus em troca, agradecer-Lhe, é ver o mundo como Deus o vê e – nesse ato de gratidão e adoração – conhecer, nomear e possuir o mundo. Todas as qualidades do homem, racionais, espirituais ou outras, que o distinguem das demais criaturas, têm seu foco e sua perfeição final nessa capacidade de bendizer a Deus, de conhecer, por assim dizer, o significado da sede e da fome que constituem a vida. “Homo sapiens”, “homo faber”, sim, mas, acima de tudo, “homo adorans”. A primeira e mais básica definição de homem é que ele é um sacerdote. Ele se coloca no centro do mundo e dá unidade a ele ao bendizer a Deus, tanto ao receber o mundo de Deus, quanto ao oferecer o mundo a Deus – e ao preencher o mundo com essa eucaristia, ele transforma sua vida, essa vida que ele recebeu do mundo, em vida em Deus, em comunhão com Ele. O mundo foi criado como “matéria”, como o material para a eucaristia que abarca a tudo, e o homem foi criado como o sacerdote desse sacramento cósmico.

 

O homem entende tudo isso instintivamente, senão racionalmente. Séculos de secularismo não conseguiram transformar o comer e o beber em algo estritamente utilitário. O alimento ainda é tratado com reverência. Uma refeição continua sendo um rito – o último “sacramento natural” da família e dos amigos, da vida que é mais do que “comer e beber”. Comer ainda é algo mais do que manter as funções corporais. As pessoas podem não entender o que é esse “algo a mais”, mas não deixam de desejar celebrá-lo. Elas ainda estão sedentas e famintas por uma vida sacramental.

 

 

3

 

Portanto, não é por acidente que a história bíblica da Queda esteja centrada no alimento. O homem comeu do fruto proibido. O fruto daquela árvore, sejam lá quais forem os significados que lhe possam ser atribuídos, era diferente de todos os demais frutos do Jardim: ele não havia sido oferecido ao homem como um presente. Nem dado, nem abençoado por Deus, era um fruto cuja ingestão estava condenada a ser uma comunhão apenas consigo mesmo, e não com Deus. Era a imagem do mundo que só ama a si mesmo, e comer desse fruto é a imagem de uma vida considerada como um fim em si mesma.

 

Amar não é uma coisa fácil, e a humanidade escolheu não retribuir ao amor de Deus. O homem amou o mundo, mas como um fim em si mesmo e não como algo transparente em relação a Deus. Ele fez isso de forma tão consistente, que se tornou como que algo que “está no ar[3]”. Parece natural ao homem experimentar o mundo como sendo opaco, e não conseguir penetrar através dele e sentir a presença de Deus. Parece natural não viver uma vida de agradecimento a Deus pelos dons que ele concedeu ao mundo. Parece natural não ser eucarístico.

 

Esse mundo é decaído porque ele se afastou da consciência de que Deus é tudo em tudo. A acumulação desse desdém por Deus constitui o pecado original que corrói o mundo. E mesmo a religião desse mundo decaído não pode curá-lo nem redimi-lo, por ter aceitado a redução de Deus a uma área restrita chamada “sagrada” (ou “espiritual”, ou “sobrenatural”), oposta ao mundo dito “profano”. Aceita-se, assim o secularismo que a tudo envolve e que tenta roubar o mundo de Deus.

 

A dependência natural do homem em relação ao mundo existe com a intenção de se transformar constantemente em comunhão com Deus, em quem está toda a vida. O homem deveria ser o sacerdote da eucaristia, ofertando o mundo a Deus, e por meio dessa oferta ele deveria receber o dom da vida. Mas no mundo decaído o homem não possui o poder sacerdotal para tanto. Sua dependência em relação ao mundo se tornou um circuito fechado, e seu amor foi desviado de sua verdadeira direção. Ele ainda ama, ele ainda tem fome. Mas seu amor e sua dependência se referem exclusivamente ao mundo em si. Ele não sabe sequer que respirar pode se tornar uma comunhão com Deus. Ele não percebe que comer implica receber de Deus a vida, e não apenas no sentido físico. Ele esquece que o mundo, o ar que ele respira e o alimento que come não podem trazer-lhe a vida por si sós, mas apenas na medida em que são recebidos e aceitos em nome de Deus, em Deus, como portadores do dom divino da vida. Por si mesmas, essas coisas só podem produzir a aparência da vida.

 

Quando contemplamos o mundo como um fim em si mesmo, tudo se torna um valor em si e, consequentemente, tudo perde seu valor, porque somente em Deus é possível encontrar o sentido – e o valor – das coisas, e o mundo só adquire pleno significado quando constitui o “sacramento” da presença de Deus. Quando as coisas são tratadas meramente como coisas em si, eles se destroem, porque somente em Deus elas podem possuir vida, qualquer que seja. O mundo da natureza, cortado de sua fonte de vida, se torna moribundo. Pois para quem pensa que o alimento em si é a fonte da vida, o ato de comer se torna uma comunhão com um mundo agonizante, uma comunhão com a morte. O alimento em si é morte, é a vida que morreu e tem que ser mantida em refrigeradores como cadáveres.

 

Pois “o salário do pecado é a morte”. A vida que o homem escolheu possui apenas a aparência de vida. Deus mostrou ao homem que ele decidiu comer o pão de tal modo que ele apenas retorna à terra, de onde tanto ele quanto o pão foram tirados. “Pois és pó, e ao pó tornarás”. O homem perdeu a vida eucarística, perdeu a vida da própria vida, o poder de transformá-la em Vida. Ele deixou de ser o sacerdote do mundo e se tornou seu escravo.

 

Na história do Jardim isso aconteceu no crepúsculo, ou seja, à noite. E Adão, ao deixar o Jardim no qual a vida deveria ter sido eucarística – uma oferta do mundo a Deus e uma ação de graças – Adão deixou o mundo todo como que nas trevas. Numa das mais belas peças da hinologia bizantina, Adão é retratado sentado do lado de fora do Paraíso, chorando. Essa é a própria imagem do homem.

 

 

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Podemos agora interromper por um instante esse tema do alimento. Começamos por ele apenas para libertar os termos “sacramental” e “eucarístico” das conotações que eles adquiriram ao longo da história da teologia técnica, onde eles costumam ser aplicados exclusivamente dentro do esquema do “natural” versus o “sobrenatural”, do “sagrado” versus o “profano”, vale dizer, dentro da mesma oposição entre a religião e a vida, que ultimamente tornou a vida sem salvação e religiosamente insignificante. De nossa perspectiva, porém, o pecado “original” não implica primariamente que o homem tenha “desobedecido” a Deus; o pecado consistiu em que ele deixou de ter fome de Deus, e apenas de Deus, em que ele deixou de ver que toda sua vida depende de que o mundo todo seja como um sacramento de comunhão com Deus. O pecado não consistiu em que o homem tenha negligenciado suas funções religiosas. O pecado consistiu em que ele passou a pensar em Deus em termos de religião, isso é, opondo a vida a Ele. A única queda real do homem está em sua vida não eucarística num mundo não eucarístico. A queda não se deve ao fato de que ele preferiu o mundo a Deus, distorcendo o equilíbrio entre o espiritual e o material, mas no fato de que ele transformou o mundo em material, quando ele deveria tê-lo transformado em “vida em Deus”, cheia de significado e espírito.

 

Mas está dito nos Evangelhos que Deus não abandonou o homem em seu exílio, num estado de saudade e confusão. Ele criou o homem “de seu próprio coração”, e para Si próprio, e o homem em sua liberdade luta para encontrar a resposta para essa misteriosa fome que há nele. Nesse cenário de radical incompletude Deus agiu de forma decisiva: em meio às trevas nas quais o homem tateia em busca do Paraíso, Ele enviou a luz. Ele o fez, não como uma operação de resgate, para recuperar o homem perdido: antes foi para completar aquilo que Ele havia empreendido desde o início. Deus agiu de modo a que o homem tivesse que entender quem Ele era realmente, e para onde sua fome o estava conduzindo.

 

A luz enviada por Deus foi Seu Filho: a mesma luz que brilhara inextinguível nas trevas do mundo, e que agora podia ser vista com todo seu brilho.

 

Antes que viesse Cristo, Deus O havia prometido ao homem. Ele o fez de maneira especial, falando através dos profetas de Israel, mas também por meio das diversas outras maneiras pelas quais Ele se comunica com o homem. Como Cristãos, acreditamos que Ele, que na verdade era Deus e homem, forneceu antevisões de Sua encarnação de muitas maneiras fragmentadas. Acreditamos ainda que Cristo está presente em todos aqueles que buscam a verdade. Simone Weil disse que por mais que uma pessoa corra para se afastar de Cristo, se ela o faz na direção daquilo que ela considera verdadeiro, ela estará de fato correndo para os braços de Cristo.

 

Muito do que é verdadeiro a respeito de Deus foi também revelado na longa história da religião, e isso pode ser demonstrado para o Cristãos pela referência ao verdadeiro padrão de Cristo. Nas grandes religiões que deram forma às aspirações humanas, Deus rege uma orquestra que às vezes desafina, ainda que quase sempre toque uma música rica e maravilhosa.

 

Naturalmente, o Cristianismo é, num sentido profundo, o fim de todas as religiões. Na história evangélica da mulher samaritana junto ao poço, Jesus deixa isso bem claro: “Senhor – diz a mulher – vejo que és profeta. Nossos pais adoraram na montanha; mas tu dizes que é em Jerusalém que se deve adorar”. E Jesus responde a ela: “Mulher, creia-me, virá a hora, quando não se irá adorar ao Pai nem na montanha, nem em Jerusalém (...) Mas virá a hora, e é agora, quando os verdadeiros adoradores irão adorar o Pai em espírito e verdade: pois são esses os adoradores que o Pai procura”[4]. Ela lhe perguntara sobre o culto, e Jesus respondeu mudando inteiramente a perspectiva da questão. Em parte alguma do Novo Testamento, de fato, o Cristianismo é apresentado como um culto ou uma religião. A religião é necessária onde existe um muro de separação entre Deus e o homem. Mas Cristo, que é a um tempo Deus e homem, derrubou esse muro entre o homem e Deus. Ele inaugurou uma nova vida, não uma nova religião.

 

Foi essa liberdade da Igreja primitiva em relação à “religião” como se pensava usualmente, no sentido tradicional do termo, que fez com que os pagãos acusassem os Cristãos de ateísmo. Os Cristãos não estavam preocupados com nenhuma geografia sagrada, nem templos, nem cultos que pudessem ser reconhecidos como tais pelas gerações que haviam sido alimentadas com as solenidades dos cultos de mistérios. Não havia um interesse específico pelos lugares nos quais Cristo vivera. Não havia peregrinações. A velha religião possuía milhares de lugares santos e templos; para os Cristãos tudo isso era velho e ultrapassado. Não havia necessidade de templos erguidos em pedra: o Corpo de Cristo, a própria Igreja, o novo povo reunido Nele, era o único templo verdadeiro. “Destruam esse templo, e em três dias eu o reerguerei...[5]”.

 

A própria Igreja era a nova Jerusalém celeste: por contraste, a Igreja em Jerusalém não tinha importância. O fato de que Cristo viera e estava presente era muito mais significativo do que os lugares onde ele havia estado. A realidade histórica de Cristo era naturalmente o terreno indubitável sobre o qual se movia a fé Cristã original: Ele não era tanto lembrado, na medida mesma em que Ele estava com eles. E Nele estava o fim de “religião”, porque Ele próprio era a Resposta para toda religião, para toda fome humana por Deus, porque Nele a Vida, que havia sido perdida pelo homem – e que na religião apenas podia ser simbolizada, significada – havia sido restaurada para o homem.

 

 

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Esse não é um tratado de teologia sistemática. Não estamos tentando explorar todos os aspectos e implicações dessa Resposta. Também não pretendemos acrescentar nada – nesse pequeno volume – à sabedoria acumulada em inumeráveis volumes de “teologias” e “dogmáticas”. A proposta desse livro é muito humilde. Trata-se de lembrar a seus leitores que em Cristo, a vida – a vida em sua totalidade – retornou ao homem, foi mais uma vez concedida como sacramento e comunhão, foi feita Eucaristia. E isso mostra – ainda que parcial e superficialmente – o significado de nossa missão no mundo. O Cristãos Ocidental costuma pensar o sacramento como algo oposto ao Mundo, e relaciona sua própria missão ao Mundo, e não ao sacramento. Mais do que isso, ele está acostumado a considerar o sacramento como algo talvez essencial e claramente definido, enquanto parte ou instituição da Igreja e dentro da Igreja, mas não a Igreja como sendo em si o sacramento da presença e da ação de Cristo. Finalmente, ele está interessado basicamente em algumas questões bastante “formais” referentes aos sacramentos: seu número, sua “validade”, sua instituição, etc. Nossa proposta é mostrar que existe e que sempre existiu uma perspectiva diferente, uma visão diferente do sacramento, e que essa visão pode ser de importância crucial precisamente para a candente problemática da missão, de nosso testemunho de Cristo no mundo. Pois a questão básica é: somos testemunhos de quê? O que foi que vimos e tocamos com nossas mãos? De que partilhamos, com o que comungamos? Para o que chamamos os homens? O que temos a lhes oferecer?

 

Esse ensaio foi escrito por um Ortodoxo e na perspectiva da Igreja Ortodoxa. Mas ele não é um livro sobre Ortodoxia, tal como são escritos e entendidos hoje em dia os livros sobre Ortodoxia. Existe uma perspectiva “Ocidental” sobre o Oriente que os próprios Ortodoxos aceitaram. A Ortodoxia é apresentada usualmente como especializada em “misticismo” e “espiritualidade”, como o lar potencial de todos os que têm sede e fome do “banquete espiritual”. A Igreja Ortodoxa foi colocada no lugar e na função da Igreja “litúrgica” e “sacramental”, sendo, portanto, mais ou menos indiferente à missão. Mas isso está errado. Os Ortodoxos podem ter falhado em muitas ocasiões em ver a real implicação de seu “sacramentalismo”, mas seu sentido fundamental certamente não é o de escapar rumo a uma “espiritualidade” fora do tempo, para longe do obscuro mundo da “ação”. E é esse verdadeiro significado que esse escritor gostaria de revelar e partilhar com seus leitores.

 

Lindas igrejas com seus “ofícios de vigílias noturnas”, ícones e procissões, uma Liturgia que, para ser realizada apropriadamente, requer não menos do que vinte e sete grandes livros litúrgicos – tudo isso parece contradizer aquilo que foi dito sobre o Cristianismo como sendo “o fim da religião”. Mas é isso mesmo? E, se não é assim, qual é o significado de tudo isso no mundo real no qual vivemos, e por qual vida Deus nos deu Seu Filho?



[1] Colossenses 3: 3.

[2] Gênese 1: 29.

[3] Ou como algo que é óbvio em si mesmo, que não requer esforço para entender, que é evidente para todos. (NT)

[4] João 4:19-21, 23.

[5] João 2: 19.