segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Alexander Schmemann - Pela Vida do Mundo - Prefácio e Capítulo I

 

PELA VIDA DO MUNDO

Sacramentos e Ortodoxia

ALEXANDER SCHMEMANN

 

 

PREFÁCIO

 

Esse pequeno livro foi escrito há dez anos, como um “guia para estudos” para a Conferência Quadrienal da Federação Nacional de Estudantes Cristãos que aconteceu em Athenas, Ohio, em Dezembro de 1963. Ele não pretendia ser, e certamente não é um tratado teológico sistemático sobre a tradição litúrgica Ortodoxa. Meu único intento ao escrever foi o de ordenar – para estudantes que se preparavam para discutir a missão Cristã – a “visão de mundo” Cristã, isso é, a perspectiva sobre o mundo e a vida do homem naquilo que procede da experiência litúrgica da Igreja Ortodoxa.

 

Mas aconteceu de o livro alcançar leitores fora dos círculos estudantis para os quais havia sido escrito. Republicado em 1965 por Herder & Herder (sob o título de Sacramentos e Ortodoxia), e em seguida na Inglaterra (O Mundo como Sacramento), depois traduzido para o francês, o italiano e o grego, ele chegou mesmo a ser recentemente “publicado” numa tradução anônima em russo pelo movimento dissidente clandestino samizdat na União Soviética. Tudo isso prova, tenho certeza, não alguma qualidade particular do livro em si – mais do que ninguém, estou consciente de seus muitos defeitos e insuficiências – mas a importância do tema escolhido, e cuja urgência, evidente dez anos atrás, é mais evidente ainda hoje, sendo aliás a única justificativa para essa nova edição.

 

Esse tema não é outro do que o secularismo – a rápida e progressiva alienação de nossa cultura, desde suas fundações, da experiência Cristã e da “visão de mundo” que de início modelou essa cultura – e a profunda polarização que o secularismo provocou entre os próprios Cristãos. De fato, enquanto alguns saúdam o secularismo como sendo o melhor fruto do Cristianismo na história, outros encontram aí a justificativa para uma rejeição maniqueísta do mundo, para uma fuga em direção a uma “espiritualidade” desencarnada e dualista. E existem os que reduzem a Igreja ao mundo e seus problemas, e os que simplesmente equiparam o mundo ao mal e se alegram morbidamente com seu obscurecimento apocalíptico.

 

Ambas as atitudes distorcem, estou convencido disso, a plenitude, a catolicidade da tradição Ortodoxa genuína, que sempre afirmou a bondade do mundo, por cuja vida Deus entregou seu Filho unigênito, bem como a perversidade sobre a qual o mundo repousa, e que sempre proclamou e continua a proclamar todo Domingo que “pela Cruz veio a felicidade para todo o mundo”, e que diz aos que acreditam em Cristo que eles “estão mortos e que sua vida está oculta com Cristo em Deus[1]”.

 

Dessa forma, nossa real questão é a seguinte: como é possível “compatibilizar” – na fé, na vida, na ação – essas afirmações aparentemente contraditórias da Igreja, como superar a tentação de optar por uma delas e “absolutizá-la”, caindo assim nas escolhas erradas ou “heresias” que tanto devastaram a Cristandade no passado?

 

Estou certo de que a resposta virá a nós, não de teorias puramente intelectuais, mas, acima de tudo, da experiência viva e inquebrantável da Igreja, que ela revela e comunica a nós em seus cultos, na Liturgia que sempre fez dela aquilo que ela é: o sacramento do mundo, o sacramento do Reino – seu dom para nós, em Cristo. E é essa experiência que eu tentei, não tanto expor e analisar, mas antes confirmar nesse ensaio.

 

Fosse hoje, eu a escreveria de outro modo. Mas não acredito em, nem sou capaz de escrever aquilo que já escrevi, ainda que imperfeitamente, de todo meu coração. Assim é que fiz não mais do que pequenas correções a alterações para essa nova edição. E acrescentei, na forma de apêndices, dois ensaios escritos a partir de outra perspectiva, mas que, espero, poderão ajudar e entender algumas implicações desse livro.

 

Finalmente, gostaria e aproveitar a oportunidade dessa nova edição para expressar minha grande gratidão àqueles cujas reações ao meu trabalho foram para mim fonte de muita alegria: para Zissimos Lorenzatos de Athenas que, por sua própria iniciativa – apenas porque, como ele me escreveu, “sentiu que deveria” – publicou uma magnífica tradução grega dessa livro; para meus desconhecidos amigos na Rússia: saber de sua humilde edição de meu ensaio, batida à máquina, foi para mim uma das mais motivadoras experiências de minha vida; para todos os que me escreveram e cujas mensagens foram para mim a alegre afirmação de nossa unidade “na fé e no amor”; e finalmente, para os meus amigos David Drillock e Anthony Pluth, que não pouparam esforços no preparo dessa nova edição.

 

Alexandre Schmemann

Janeiro de 1973

 


 

A VIDA DO MUNDO

 

1

 

“O homem é o que ele come”. Com essa colocação, o filósofo materialista alemão Feuerbach acreditou ter posto um ponto final em todas as especulações “idealistas” a respeito da natureza humana. De fato, porém, ele estava expressando, sem o saber, a mais religiosa ideia sobre o homem. Pois, muito antes de Feuerbach, a mesma definição de homem fora dada pela Bíblia. Na história bíblica da criação o homem é apresentado, antes de tudo, como um ser faminto, e todo o mundo constitui seu alimento. Logo em seguida à ordem de se multiplicar e dominar a terra, de acordo com o autor do primeiro capítulo do Gênese, veio a instrução de Deus ao homem para que se alimentasse da terra: “Vejam! Eu vos entrego todas as ervas que produzem semente e estão sobre toda a terra, e todas as árvores em que há frutos que dão semente: tudo isso será alimento para vós[2]”. O homem precisa comer para viver; ele deve introduzir o mundo em seu corpo e transformá-lo em si mesmo, em carne e sangue. Ele de fato é aquilo que come, e todo o mundo é apresentado como uma mesa de banquete total para o homem. E essa imagem do banquete permanece, através de toda a Bíblia, como sendo a imagem central da vida. É a imagem da vida em seu início e também a imagem da vida em sua plenitude e seu fim: “para que comam e bebam de minha mesa no meu Reino”.

 

Eu comecei por esse tema aparentemente secundário da comida – secundário do ponto de vista dos grandes “assuntos religiosos” – porque o propósito real desse ensaio consiste em colocar, se possível, a questão: de que vida estamos falando, qual a vida que pregamos, proclamamos e anunciamos quando, como Cristãos, confessamos que Cristo morreu pela vida do mundo? Que vida é ao mesmo tempo a motivação, o começo e a finalidade da missão Cristã?

 

As respostas para isso seguem dois padrões gerais. Existem aqueles para quem a vida, quando discutida em termos religiosos, significa “vida religiosa”. E essa vida religiosa constitui um mundo em si, que existe à parte do mundo secular e de sua vida. É o mundo da “espiritualidade”, e hoje em dia ele parece ganhar mais e mais popularidade. Mesmo as lojas dos aeroportos estão cheias de antologias de textos místicos. Vimos entre essas coletâneas uma que se chamava Misticismo Básico. Perdido e confuso no meio do barulho, da pressa e das frustrações da “vida”, o homem aceita com facilidade o convite para penetrar no santuário interior de sua alma, para ali descobrir uma nova vida, para desfrutar do “banquete espiritual” cheio de alimentos espirituais. Esse alimento espiritual irá ajudá-lo: ajudá-lo a restaurar sua paz de espírito, a suportar a outra vida – a vida secular –, a aceitar suas atribulações, a levar uma vida mais completa e dedicada, a “manter o sorriso” de um modo religioso e profundo. Dessa forma, a missão consistirá em converter as pessoas para essa vida “espiritual”, transformando-as em “pessoas religiosas”.

 

Existe uma grande variedade de ênfases e mesmo de teologias dentro desse padrão geral, desde as sobrevivências populares até o sofisticado interesse nas doutrinas místicas esotéricas. Mas o resultado é o mesmo: a vida “religiosa” torna a vida secular – a vida do comer e do beber – irrelevante, retira dela todo significado, com exceção de considerá-la como um exercício de piedade e paciência. E quanto mais espiritual se torna o “banquete espiritual”, mais a vida secular se parece com os anúncios de neon “coma e beba” que vemos ao longo das rodovias.

 

Mas também existem outros, para quem a afirmação “pela vida do mundo” parece significar naturalmente “por uma vida melhor no mundo”. Os “espiritualistas” são contrabalançados pelos “ativistas”. É certo que estamos hoje muito distantes do otimismo ingênuo e da euforia do “Evangelho Social”. Todas as implicações do existencialismo, com suas ansiedades, ou da neo-Ortodoxia com sua visão da história pessimista e realista, já foram assimiladas e receberam sua consideração específica. Mas a crença fundamental do Cristianismo como sendo, antes de tudo, ação, permaneceu intacta, e na verdade adquiriu ainda mais força. Desse ponto de vista o Cristianismo simplesmente perdeu o mundo. E o mundo precisa ser recuperado. A missão Cristã, assim, consiste em alcançar esse mundo que se perdeu. O homem que “come e bebe” é levado a sério, talvez demasiado a sério. Ele constitui o objeto virtualmente exclusivo da ação Cristã, e somos constantemente chamados a nos arrepender por termos dedicado tempo demais em contemplação e adoração, em silêncio e Liturgia, por não termos lidado suficientemente com os aspectos social, político, econômico, racial e outros temas da vida real. Aos livros de misticismo e espiritualidade correspondem livros sobre “Religião e Vida” (ou “e Sociedade”, “e Sexo”, “e Urbanismo”, etc.). Ainda assim a questão básica permanece sem resposta: no que consiste essa vida que devemos recuperar para Cristo e torná-la Cristã? Em outras palavras, qual é a finalidade última de tudo o que há para ser feito, de toda ação?

 

Supondo que tenhamos alcançado pelo menos um desses objetivos práticos, que tenhamos “vencido” – e daí? A questão pode parecer ingênua, mas não se pode agir de fato sem conhecer o sentido, não apenas dessa ação, mas da própria vida em cujo nome agimos. Comemos e bebemos, lutamos por liberdade e justiça para nos sentirmos vivos, para obtermos a plenitude da vida. Mas o que é isso? O que é a vida da vida em si mesma? Qual é o conteúdo da vida eterna? No final das contas, numa análise derradeira, descobriremos inevitavelmente que a ação em si e por si mesma não tem significado. Quando todos os coletivos tiverem cumprido suas funções, quando todos os papéis tiverem sido distribuídos e todos os objetivos práticos tiverem sido alcançados, deve vir para todos a felicidade completa. Sobre o quê? A menos que saibamos, permanece a mesma dicotomia entre religião e vida que observamos na solução espiritual. Quer “espiritualizemos” nossa vida, quer “secularizemos” nossa religião, quer convidemos os homens para o banquete espiritual, quer os chamemos para o banquete secular, a vida real do mundo, pela qual Deus ofereceu seu Filho Unigênito, permanece, sem esperança, além de nosso alcance religioso.

 

 

2

 

“O homem é o que ele come”. Mas o que come ele, e por quê? Essas questões parecem ingênuas e irrelevantes, e não apenas para Feuerbach. Ela pareceu ainda mais irrelevante para seus oponentes religiosos. Para esses, como para ele, comer consistia numa função material, e a única questão importante era se o homem possui ou não uma “superestrutura” acrescentada a isso. A religião responde com um “sim”. Feuerbach respondia com um “não”. Mas ambas as respostas eram dadas dentro da mesma oposição entre o espiritual e o material. “Espiritual” versus “material”, “sagrado” versus “profano”, “sobrenatural” versus “natural” – durante séculos esses foram os únicos moldes e categorias compreensíveis do pensamento e da experiência religiosa. E Feuerbach, com todo seu materialismo, era de fato um herdeiro natural do “idealismo” e do “espiritualismo” Cristãos,

 

Mas, como vimos, a Bíblia também começa com “o homem que é aquilo que ele come”. A perspectiva, porém, é totalmente diferente, pois em nenhum lugar na Bíblia encontramos as dicotomias que são para nós o enquadre evidente de toda perspectiva sobre a religião. Na Bíblia, o alimento que o homem come, o mundo do qual ele deve partilhar para viver, foi dado a ele por Deus, e dado a ele em comunhão com Deus. O mundo, visto como alimento do homem, não é algo “material” e limitado às funções materiais, diferente e oposto às funções especificamente “espirituais” por meio das quais o homem se relaciona com Deus. Tudo o que existe é um presente dado por Deus ao homem, e tudo existe para que o homem conheça a Deus, para que a vida do homem seja uma comunhão com Deus. O amor divino se transforma em alimento e vida para o homem. Deus abençoa tudo o que Ele criou e, em linguagem bíblica, isso significa que Ele fez de toda a criação o símbolo e o significado de Sua presença e sabedoria, seu amor e revelação: “Provai e vede que o Senhor é bom”.

 

O homem é um ser faminto. Mas ele tem fome de Deus. Por trás de toda a fome de nossa vida está Deus. Todo desejo acaba sendo um desejo por Ele. Para falar a verdade, o homem não é o único ser faminto. Tudo o que existe, vive porque come. Toda a criação depende do alimento, mas a posição única do homem no universo consiste em que somente ele bendiz a Deus pelo alimento que recebe Dele. Somente ele responde à bênção de Deus com seu próprio bendizer. O fato mais significativo da vida no Jardim é que o homem deu nome às coisas. Assim que foram criados os animais para companhia de Adão, Deus os levou a ele para ver como Adão os nomearia. “E assim Adão deu nome a todas as criaturas vivas, e esse é o seu nome”. Ora, na Bíblia, um nome é infinitamente mais do que um meio para distinguir uma coisa da outra. Ele revela a própria essência da coisa, ou melhor, sua essência enquanto dom de Deus. Dar nome a uma coisa equivale a manifestar o sentido e o valor que Deus deu a ela, é saber que ela veio de Deus e conhecer seu lugar e função dentro do cosmo criado por Deus.

 

Em outras palavras, dar nome a uma coisa equivale a bendizer a Deus por ela e nela. E na Bíblia bendizer a Deus não é uma ação “religiosa” ou “cultual”, mas constitui a própria maneira de se viver. Deus abençoou o mundo, abençoou o homem, abençoou o sétimo dia (ou seja, o tempo), e isso significa que Ele preencheu tudo o que existe com Seu amor e bondade, que ele tornou tudo “muito bom”. Assim, a única reação natural (e não “sobrenatural”) do homem, para o qual Deus concedeu sua bênção e santificou o mundo, é bendizer a Deus em troca, agradecer-Lhe, é ver o mundo como Deus o vê e – nesse ato de gratidão e adoração – conhecer, nomear e possuir o mundo. Todas as qualidades do homem, racionais, espirituais ou outras, que o distinguem das demais criaturas, têm seu foco e sua perfeição final nessa capacidade de bendizer a Deus, de conhecer, por assim dizer, o significado da sede e da fome que constituem a vida. “Homo sapiens”, “homo faber”, sim, mas, acima de tudo, “homo adorans”. A primeira e mais básica definição de homem é que ele é um sacerdote. Ele se coloca no centro do mundo e dá unidade a ele ao bendizer a Deus, tanto ao receber o mundo de Deus, quanto ao oferecer o mundo a Deus – e ao preencher o mundo com essa eucaristia, ele transforma sua vida, essa vida que ele recebeu do mundo, em vida em Deus, em comunhão com Ele. O mundo foi criado como “matéria”, como o material para a eucaristia que abarca a tudo, e o homem foi criado como o sacerdote desse sacramento cósmico.

 

O homem entende tudo isso instintivamente, senão racionalmente. Séculos de secularismo não conseguiram transformar o comer e o beber em algo estritamente utilitário. O alimento ainda é tratado com reverência. Uma refeição continua sendo um rito – o último “sacramento natural” da família e dos amigos, da vida que é mais do que “comer e beber”. Comer ainda é algo mais do que manter as funções corporais. As pessoas podem não entender o que é esse “algo a mais”, mas não deixam de desejar celebrá-lo. Elas ainda estão sedentas e famintas por uma vida sacramental.

 

 

3

 

Portanto, não é por acidente que a história bíblica da Queda esteja centrada no alimento. O homem comeu do fruto proibido. O fruto daquela árvore, sejam lá quais forem os significados que lhe possam ser atribuídos, era diferente de todos os demais frutos do Jardim: ele não havia sido oferecido ao homem como um presente. Nem dado, nem abençoado por Deus, era um fruto cuja ingestão estava condenada a ser uma comunhão apenas consigo mesmo, e não com Deus. Era a imagem do mundo que só ama a si mesmo, e comer desse fruto é a imagem de uma vida considerada como um fim em si mesma.

 

Amar não é uma coisa fácil, e a humanidade escolheu não retribuir ao amor de Deus. O homem amou o mundo, mas como um fim em si mesmo e não como algo transparente em relação a Deus. Ele fez isso de forma tão consistente, que se tornou como que algo que “está no ar[3]”. Parece natural ao homem experimentar o mundo como sendo opaco, e não conseguir penetrar através dele e sentir a presença de Deus. Parece natural não viver uma vida de agradecimento a Deus pelos dons que ele concedeu ao mundo. Parece natural não ser eucarístico.

 

Esse mundo é decaído porque ele se afastou da consciência de que Deus é tudo em tudo. A acumulação desse desdém por Deus constitui o pecado original que corrói o mundo. E mesmo a religião desse mundo decaído não pode curá-lo nem redimi-lo, por ter aceitado a redução de Deus a uma área restrita chamada “sagrada” (ou “espiritual”, ou “sobrenatural”), oposta ao mundo dito “profano”. Aceita-se, assim o secularismo que a tudo envolve e que tenta roubar o mundo de Deus.

 

A dependência natural do homem em relação ao mundo existe com a intenção de se transformar constantemente em comunhão com Deus, em quem está toda a vida. O homem deveria ser o sacerdote da eucaristia, ofertando o mundo a Deus, e por meio dessa oferta ele deveria receber o dom da vida. Mas no mundo decaído o homem não possui o poder sacerdotal para tanto. Sua dependência em relação ao mundo se tornou um circuito fechado, e seu amor foi desviado de sua verdadeira direção. Ele ainda ama, ele ainda tem fome. Mas seu amor e sua dependência se referem exclusivamente ao mundo em si. Ele não sabe sequer que respirar pode se tornar uma comunhão com Deus. Ele não percebe que comer implica receber de Deus a vida, e não apenas no sentido físico. Ele esquece que o mundo, o ar que ele respira e o alimento que come não podem trazer-lhe a vida por si sós, mas apenas na medida em que são recebidos e aceitos em nome de Deus, em Deus, como portadores do dom divino da vida. Por si mesmas, essas coisas só podem produzir a aparência da vida.

 

Quando contemplamos o mundo como um fim em si mesmo, tudo se torna um valor em si e, consequentemente, tudo perde seu valor, porque somente em Deus é possível encontrar o sentido – e o valor – das coisas, e o mundo só adquire pleno significado quando constitui o “sacramento” da presença de Deus. Quando as coisas são tratadas meramente como coisas em si, eles se destroem, porque somente em Deus elas podem possuir vida, qualquer que seja. O mundo da natureza, cortado de sua fonte de vida, se torna moribundo. Pois para quem pensa que o alimento em si é a fonte da vida, o ato de comer se torna uma comunhão com um mundo agonizante, uma comunhão com a morte. O alimento em si é morte, é a vida que morreu e tem que ser mantida em refrigeradores como cadáveres.

 

Pois “o salário do pecado é a morte”. A vida que o homem escolheu possui apenas a aparência de vida. Deus mostrou ao homem que ele decidiu comer o pão de tal modo que ele apenas retorna à terra, de onde tanto ele quanto o pão foram tirados. “Pois és pó, e ao pó tornarás”. O homem perdeu a vida eucarística, perdeu a vida da própria vida, o poder de transformá-la em Vida. Ele deixou de ser o sacerdote do mundo e se tornou seu escravo.

 

Na história do Jardim isso aconteceu no crepúsculo, ou seja, à noite. E Adão, ao deixar o Jardim no qual a vida deveria ter sido eucarística – uma oferta do mundo a Deus e uma ação de graças – Adão deixou o mundo todo como que nas trevas. Numa das mais belas peças da hinologia bizantina, Adão é retratado sentado do lado de fora do Paraíso, chorando. Essa é a própria imagem do homem.

 

 

4

 

Podemos agora interromper por um instante esse tema do alimento. Começamos por ele apenas para libertar os termos “sacramental” e “eucarístico” das conotações que eles adquiriram ao longo da história da teologia técnica, onde eles costumam ser aplicados exclusivamente dentro do esquema do “natural” versus o “sobrenatural”, do “sagrado” versus o “profano”, vale dizer, dentro da mesma oposição entre a religião e a vida, que ultimamente tornou a vida sem salvação e religiosamente insignificante. De nossa perspectiva, porém, o pecado “original” não implica primariamente que o homem tenha “desobedecido” a Deus; o pecado consistiu em que ele deixou de ter fome de Deus, e apenas de Deus, em que ele deixou de ver que toda sua vida depende de que o mundo todo seja como um sacramento de comunhão com Deus. O pecado não consistiu em que o homem tenha negligenciado suas funções religiosas. O pecado consistiu em que ele passou a pensar em Deus em termos de religião, isso é, opondo a vida a Ele. A única queda real do homem está em sua vida não eucarística num mundo não eucarístico. A queda não se deve ao fato de que ele preferiu o mundo a Deus, distorcendo o equilíbrio entre o espiritual e o material, mas no fato de que ele transformou o mundo em material, quando ele deveria tê-lo transformado em “vida em Deus”, cheia de significado e espírito.

 

Mas está dito nos Evangelhos que Deus não abandonou o homem em seu exílio, num estado de saudade e confusão. Ele criou o homem “de seu próprio coração”, e para Si próprio, e o homem em sua liberdade luta para encontrar a resposta para essa misteriosa fome que há nele. Nesse cenário de radical incompletude Deus agiu de forma decisiva: em meio às trevas nas quais o homem tateia em busca do Paraíso, Ele enviou a luz. Ele o fez, não como uma operação de resgate, para recuperar o homem perdido: antes foi para completar aquilo que Ele havia empreendido desde o início. Deus agiu de modo a que o homem tivesse que entender quem Ele era realmente, e para onde sua fome o estava conduzindo.

 

A luz enviada por Deus foi Seu Filho: a mesma luz que brilhara inextinguível nas trevas do mundo, e que agora podia ser vista com todo seu brilho.

 

Antes que viesse Cristo, Deus O havia prometido ao homem. Ele o fez de maneira especial, falando através dos profetas de Israel, mas também por meio das diversas outras maneiras pelas quais Ele se comunica com o homem. Como Cristãos, acreditamos que Ele, que na verdade era Deus e homem, forneceu antevisões de Sua encarnação de muitas maneiras fragmentadas. Acreditamos ainda que Cristo está presente em todos aqueles que buscam a verdade. Simone Weil disse que por mais que uma pessoa corra para se afastar de Cristo, se ela o faz na direção daquilo que ela considera verdadeiro, ela estará de fato correndo para os braços de Cristo.

 

Muito do que é verdadeiro a respeito de Deus foi também revelado na longa história da religião, e isso pode ser demonstrado para o Cristãos pela referência ao verdadeiro padrão de Cristo. Nas grandes religiões que deram forma às aspirações humanas, Deus rege uma orquestra que às vezes desafina, ainda que quase sempre toque uma música rica e maravilhosa.

 

Naturalmente, o Cristianismo é, num sentido profundo, o fim de todas as religiões. Na história evangélica da mulher samaritana junto ao poço, Jesus deixa isso bem claro: “Senhor – diz a mulher – vejo que és profeta. Nossos pais adoraram na montanha; mas tu dizes que é em Jerusalém que se deve adorar”. E Jesus responde a ela: “Mulher, creia-me, virá a hora, quando não se irá adorar ao Pai nem na montanha, nem em Jerusalém (...) Mas virá a hora, e é agora, quando os verdadeiros adoradores irão adorar o Pai em espírito e verdade: pois são esses os adoradores que o Pai procura”[4]. Ela lhe perguntara sobre o culto, e Jesus respondeu mudando inteiramente a perspectiva da questão. Em parte alguma do Novo Testamento, de fato, o Cristianismo é apresentado como um culto ou uma religião. A religião é necessária onde existe um muro de separação entre Deus e o homem. Mas Cristo, que é a um tempo Deus e homem, derrubou esse muro entre o homem e Deus. Ele inaugurou uma nova vida, não uma nova religião.

 

Foi essa liberdade da Igreja primitiva em relação à “religião” como se pensava usualmente, no sentido tradicional do termo, que fez com que os pagãos acusassem os Cristãos de ateísmo. Os Cristãos não estavam preocupados com nenhuma geografia sagrada, nem templos, nem cultos que pudessem ser reconhecidos como tais pelas gerações que haviam sido alimentadas com as solenidades dos cultos de mistérios. Não havia um interesse específico pelos lugares nos quais Cristo vivera. Não havia peregrinações. A velha religião possuía milhares de lugares santos e templos; para os Cristãos tudo isso era velho e ultrapassado. Não havia necessidade de templos erguidos em pedra: o Corpo de Cristo, a própria Igreja, o novo povo reunido Nele, era o único templo verdadeiro. “Destruam esse templo, e em três dias eu o reerguerei...[5]”.

 

A própria Igreja era a nova Jerusalém celeste: por contraste, a Igreja em Jerusalém não tinha importância. O fato de que Cristo viera e estava presente era muito mais significativo do que os lugares onde ele havia estado. A realidade histórica de Cristo era naturalmente o terreno indubitável sobre o qual se movia a fé Cristã original: Ele não era tanto lembrado, na medida mesma em que Ele estava com eles. E Nele estava o fim de “religião”, porque Ele próprio era a Resposta para toda religião, para toda fome humana por Deus, porque Nele a Vida, que havia sido perdida pelo homem – e que na religião apenas podia ser simbolizada, significada – havia sido restaurada para o homem.

 

 

5

 

Esse não é um tratado de teologia sistemática. Não estamos tentando explorar todos os aspectos e implicações dessa Resposta. Também não pretendemos acrescentar nada – nesse pequeno volume – à sabedoria acumulada em inumeráveis volumes de “teologias” e “dogmáticas”. A proposta desse livro é muito humilde. Trata-se de lembrar a seus leitores que em Cristo, a vida – a vida em sua totalidade – retornou ao homem, foi mais uma vez concedida como sacramento e comunhão, foi feita Eucaristia. E isso mostra – ainda que parcial e superficialmente – o significado de nossa missão no mundo. O Cristãos Ocidental costuma pensar o sacramento como algo oposto ao Mundo, e relaciona sua própria missão ao Mundo, e não ao sacramento. Mais do que isso, ele está acostumado a considerar o sacramento como algo talvez essencial e claramente definido, enquanto parte ou instituição da Igreja e dentro da Igreja, mas não a Igreja como sendo em si o sacramento da presença e da ação de Cristo. Finalmente, ele está interessado basicamente em algumas questões bastante “formais” referentes aos sacramentos: seu número, sua “validade”, sua instituição, etc. Nossa proposta é mostrar que existe e que sempre existiu uma perspectiva diferente, uma visão diferente do sacramento, e que essa visão pode ser de importância crucial precisamente para a candente problemática da missão, de nosso testemunho de Cristo no mundo. Pois a questão básica é: somos testemunhos de quê? O que foi que vimos e tocamos com nossas mãos? De que partilhamos, com o que comungamos? Para o que chamamos os homens? O que temos a lhes oferecer?

 

Esse ensaio foi escrito por um Ortodoxo e na perspectiva da Igreja Ortodoxa. Mas ele não é um livro sobre Ortodoxia, tal como são escritos e entendidos hoje em dia os livros sobre Ortodoxia. Existe uma perspectiva “Ocidental” sobre o Oriente que os próprios Ortodoxos aceitaram. A Ortodoxia é apresentada usualmente como especializada em “misticismo” e “espiritualidade”, como o lar potencial de todos os que têm sede e fome do “banquete espiritual”. A Igreja Ortodoxa foi colocada no lugar e na função da Igreja “litúrgica” e “sacramental”, sendo, portanto, mais ou menos indiferente à missão. Mas isso está errado. Os Ortodoxos podem ter falhado em muitas ocasiões em ver a real implicação de seu “sacramentalismo”, mas seu sentido fundamental certamente não é o de escapar rumo a uma “espiritualidade” fora do tempo, para longe do obscuro mundo da “ação”. E é esse verdadeiro significado que esse escritor gostaria de revelar e partilhar com seus leitores.

 

Lindas igrejas com seus “ofícios de vigílias noturnas”, ícones e procissões, uma Liturgia que, para ser realizada apropriadamente, requer não menos do que vinte e sete grandes livros litúrgicos – tudo isso parece contradizer aquilo que foi dito sobre o Cristianismo como sendo “o fim da religião”. Mas é isso mesmo? E, se não é assim, qual é o significado de tudo isso no mundo real no qual vivemos, e por qual vida Deus nos deu Seu Filho?



[1] Colossenses 3: 3.

[2] Gênese 1: 29.

[3] Ou como algo que é óbvio em si mesmo, que não requer esforço para entender, que é evidente para todos. (NT)

[4] João 4:19-21, 23.

[5] João 2: 19.

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