A EUCARISTIA
1
Cristo foi rejeitado por esse mundo. Ele era a
expressão perfeita da vida pretendida por Deus. A vida fragmentária do mundo
foi reunida em Sua vida; Ele era o pulso do coração do mundo, e o mundo O
matou. Mas nesse assassinato o mundo todo morreu. Ele perdeu sua última chance
de se tornar o paraíso para o qual Deus o criou. Podemos desenvolver mais e
melhores coisas materiais. Podemos construir uma sociedade mais humana que pode
até evitar com que aniquilemos uns aos outros. Mas quando Cristo, a verdadeira
vida do mundo, foi rejeitado, esse foi o começo do fim. Essa rejeição teve uma
finalidade: Ele foi crucificado pelo bem. Como disse Pascal, “Cristo
permanecerá em agonia até o final do mundo”.
O Cristianismo parece às vezes pregar que, se o
homem procurar com todo esforço viver uma vida Cristã, a crucificação pode ser,
de algum modo, revertida. Isso é porque o Cristianismo esqueceu de si mesmo, esqueceu
que ele sempre, e em primeiro lugar, deve permanecer junto à cruz. Não que esse
mundo não possa ser melhorado – um dos nossos objetivos certamente consiste em
trabalhar pela paz, pela justiça, pela liberdade. Mas, ainda que ele possa ser
melhorado, ele jamais se tornará o lugar pretendido por Deus. O Cristianismo
não condena o mundo. O mundo condenou a si mesmo quando, no Calvário, ele
condenou Aquele que era a sua própria verdade. “Ele era o mundo, o mundo foi
feito por ele, e o mundo não o conheceu[1]”.
Se pensarmos seriamente a respeito do verdadeiro significado, do real conteúdo
dessas palavras, saberemos que como Cristãos e na medida mesma em que somos Cristãos,
somos, em primeiro lugar, testemunhos desse fim: fim de toda alegria natural,
fim de toda satisfação do homem com o mundo e consigo mesmo, fim, realmente da
vida em si como uma “busca pela felicidade”, racional e racionalmente
organizada. Os Cristãos não precisam esperar pelos que propões a ansiedade, o
desespero e o absurdo para serem conscientes disso. E, embora no decurso de sua
longa história, os Cristãos tenham muitas vezes esquecido o sentido da cruz, e
desfrutado da vida como se “nada houvesse acontecido”, embora muitos de nós tiremos
“férias” – sabemos que, no mundo em que Cristo morrei, a “vida natural” foi conduzida
a seu fim.
2
E ainda assim, nos seus começos o Cristianismo foi a
proclamação da alegria, da única alegria possível nesse mundo. Ele tornou impossível
toda felicidade tal como a pensávamos possível. Mas dentro dessa impossibilidade,
no fundo mesmo dessa escuridão, ele anunciou e trouxe uma nova e abrangente
alegria, e por meio dessa alegria ele transformou o Fim num Começo. Sem a
proclamação dessa alegria o Cristianismo é incompreensível. Foi somente enquanto
felicidade que a Igreja se tornou vitoriosa no mundo, e ela perdeu o mundo
quando perdeu sua alegria, e deixou de ser uma testemunha confiável dela. De
todas as acusações contra os Cristãos, a mais terrível foi a de Nietzsche,
quando disse que os Cristãos não têm alegria.
Mas vamos esquecer por um momento as discussões
técnicas a respeito da Igreja, de sua missão e seus métodos. Não que essas
discussões estejam erradas ou sejam desnecessárias – mas elas só podem ser úteis
e significativas dentro de um contexto fundamental, e esse contexto é o da
“grande alegria” a partir da qual todo o resto do Cristianismo se desenvolve e
adquire sentido. “Não temais, eu vos trago boas novas de grande alegria[2]”
– assim começa o Evangelho, que irá terminar assim: “Eles o adoraram e retornaram
a Jerusalém com grande alegria[3]”.
É preciso recuperar o sentido dessa grande alegria. Se possível, devemos
partilhar dela, antes de discutir qualquer outra coisa – programas, missões,
projetos e técnicas.
A felicidade, naturalmente, não é algo que se possa
definir e analisar. A pessoa fica feliz. “Vem e participa da minha alegria[4]”.
E não temos outro modo de participar dessa alegria, nenhuma maneira de
compreender isso, a não ser por meio da única ação que, desde o início, foi
para a Igreja tanto a fonte quanto a plenitude da felicidade, o verdadeiro
sacramento da alegria, a Eucaristia.
A Eucaristia é a Liturgia. Mas quem diz Liturgia
atualmente se envolve numa espécie da controvérsia. Pois, para alguns – os que
possuem uma “mente litúrgica” – de todas as atividades da Igreja, a Liturgia é
a mais importante, senão a única. Para outros, a Liturgia constitui um desvio
estético e espiritual da verdadeira tarefa da Igreja. Existem hoje igrejas
“litúrgicas” e “não litúrgicas”, assim como Cristãos. Mas essa controvérsia é
desnecessária, pois ela tem suas raízes num erro básico: o entendimento
“litúrgico” da Liturgia. Trata-se da redução da Liturgia às categorias
“cultuais”, sua definição como um ato sagrado de adoração, diferente, não
apenas da área “profana” da vida, mas até das demais atividades da própria
Igreja. Mas esse não é o sentido originas da palavra grega leitourgia. Ela
significa uma ação por meio da qual um grupo de pessoas incorporam-se umas às
outras de uma maneira que vai além de uma mera coleção de indivíduos – um todo
que é maior do que a soma de suas partes. Isso implica também uma função, ou
“ministério” do homem ou de um grupo em favor e no interesse de toda uma comunidade.
Assim é que a leitourgia do antigo Israel consistia no trabalho
corporativo de alguns escolhidos no sentido de preparar o mundo para a vinda do
Messias. E, nesse ato de preparação, eles se tornaram aquilo que foi chamado de
Israel de Deus, o instrumento escolhido para Seu propósito.
Assim, portanto, a própria Igreja é leitourgia,
um ministério, uma chamada para a ação nesse mundo depois da manifestação de
Cristo, para dar testemunho Dele e de Seu reino. A Liturgia eucarística, dessa
forma, não deve ser aproximada e entendida apenas no sentido “litúrgico” e
“cultual”. Assim como o Cristianismo pode – e deve – ser considerado como o fim
da religião, também a Liturgia Cristã em geral, e a Eucaristia em particular,
constituem de fato o fim do culto, do ato religioso “sagrado” isolado e oposto
à vida “profana” da comunidade. A primeira condição para o entendimento da Liturgia
é esquecer tudo a respeito de uma “piedade litúrgica” específica.
A Eucaristia é um sacramento, mas quem diz
sacramento está se envolvendo numa controvérsia. Quando falamos de sacramento,
onde está o Verbo? Não estaremos nós caminhando para os perigos do
“sacramentalismo” e da “mágica”, numa traição do caráter espiritual do
Cristianismo? Para essas questões não existem resposta. Pois a proposta desse
ensaio é a de mostrar que o contexto dentro do qual essas questões são
colocadas não é o único possível. Nesse momento, tudo o que podemos dizer é: a
Eucaristia constitui a entrada da Igreja na alegria de seu Senhor. E o
verdadeiro chamado da Igreja, sua leitourgia fundamental, consiste em entrar
nessa alegria, para que sejamos testemunhas disso no mundo – esse é o
sacramento por meio do qual ela “se torna o que ela é”.
Na breve descrição da Eucaristia que se segue,
faremos referências em primeiro lugar à Liturgia eucarística Ortodoxa, e isso
por duas razões. Primeiramente, na área da Liturgia só é possível falar com
convicção na medida em que tenhamos experimentado aquilo sobre o que falamos. E
essa experiência o autor encontrou na Tradição Ortodoxa. Em segundo lugar, é a
opinião geral dos “liturgistas” que a Liturgia Ortodoxa preservou os elementos
e ênfases que constituem o próprio tema desse livro.
3
A Liturgia da Eucaristia é melhor entendida como uma
viagem, ou uma procissão. Trata-se da viagem da Igreja para a dimensão do
Reino. Usamos essa palavra “dimensão”, porque parece ser a melhor maneira de
indicar nossa entrada sacramental na ressuscitada de Cristo. Transparências
coloridas se tornam “vivas” quando vistas em três dimensões, ao invés de em
duas. A presença dessa dimensão acrescentada nos permite ver melhor a verdadeira
realidade daquilo que foi fotografado. De maneira muito parecida, embora toda
analogia esteja condenada a falhar, nossa entrada na presença de Cristo
constitui uma entrada numa quarta dimensão que nos permite ver a realidade última
da vida. Não se trata de uma fuga do mundo, mas sim de uma chegada a um ponto
de vista a partir do qual podemos ver mais profundamente dentro da realidade
desse mundo.
A viagem começa quando os Cristãos deixam seus lares
e suas camas. De fato, eles deixam suas vidas no mundo presente e concreto, e
ainda que tenham que dirigir centenas de quilômetros, ou caminhar muitos
quarteirões, uma ação sacramental já começou a agir, uma ação que é a condição
primária para tudo o mais que vier a acontecer. Porque agora eles estarão no
caminho para constituir a Igreja, ou, para ser mais exato, para se
transformarem na Igreja de Deus. Eles eram indivíduos, brancos, negros, ricos e
pobres, eles eram o mundo “natural” numa comunidade natural. E agora eles estão
sendo chamados a “virem juntos a um lugar”, a trazer suas vidas, seu próprio
“mundo” consigo, para que se tornem mais do que foram até então: uma nova
comunidade com uma nova vida. Ainda estamos distantes das categorias do louvor
comum e da oração. A proposta desse “ir juntos” não é simplesmente a de acrescentar
uma dimensão religiosa à comunidade natural, para torná-la “melhor” – mais
responsáveis, mais Cristãos. A proposta é de preencher a Igreja, e isso
significa tornar presente Aquele em quem todas as coisas têm seu fim, e todas
as coisas têm seu começo.
A Liturgia começa a ser uma real separação do mundo.
Em nossa tentativa de tornar o Cristianismo um chamado para o homem comum,
frequentemente nós minimizamos, ou até esquecemos por completo, essa necessária
separação. Tentamos tornar o Cristianismo “compreensível” e “aceitável”, para esse
mítico homem “moderno” das ruas. E esquecemos que o Cristo de que falamos “não
é desse mundo”, e que depois de Sua ressurreição Ele não foi reconhecido nem
por seus próprios discípulos. Maria Madalena pensou que Ele fosse o jardineiro.
Quando dois de seus discípulos iam a caminho de Emaús, o próprio Jesus
“aproximou-se deles e caminhou ao seu lado”, e eles não O reconheceram, até que
Ele “tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e o deu a eles”[5].
Ele apareceu aos doze “estando as portas fechadas”. Aparentemente essas coisas
não foram simplesmente para que eles soubessem que Ele era o filho de Maria. Não
havia um imperativo físico em reconhecê-lo. Em outras palavras, Ele já não era
“parte” desse mundo, dessa realidade, e reconhecê-Lo, entrar na alegria de Sua
presença, estar com Ele, implicava uma conversão a uma outra realidade. A glorificação
do Senhor não tinha o caráter impositivo, a evidência objetiva de Sua
humilhação da cruz. Sua glorificação é conhecida apenas por através da
misteriosa morte na pia batismal, através da unção do Espírito Santo. Ela só
pode ser conhecida na plenitude da Igreja, na medida em que ela reúne as
pessoas para encontrar o Senhor e partilhar de Sua ressurreição.
Os primeiros Cristãos perceberam que, para que se
tornassem Templo do Espírito Santo, eles deveriam ascender aos Céus para
onde Cristo havia subido. Eles entenderam também que essa ascensão era a condição
primordial de sua missão no mundo, de seu ministério no mundo. Pois lá – nos
Céus – eles estariam imersos na nova vida do Reino; e quando, depois dessa “Liturgia
da ascensão”, eles retornavam ao mundo, seus rostos refletiam a luz, a “alegria
e a paz” desse Reino, do qual eles se tornavam verdadeiras testemunhas. Eles
não traziam programas ou teorias; mas aonde quer que fossem, as sementes do
Reino brotavam, acendia-se a fé, a vida era transfigurada, as coisas
impossíveis se tornavam possíveis. Eles eram testemunhas, e quando lhes
perguntavam: “De onde vem essa luz, qual é a fonte desse poder?”, eles sabiam o
que responder e aonde conduzir as pessoas. Mas na Igreja de nossos dias,
frequentemente só encontramos o mesmo velho mundo, e nem Cristo, nem Seu Reino.
Não nos damos conta de que não vamos a parte alguma, porque jamais abandonamos
o lugar em que estamos.
Ir, vir... Esse é o começo, o ponto de partida do
sacramento, a condição de sua transformação em poder e realidade.
4
A Liturgia Ortodoxa começa com a solene Doxologia: “Bendito
seja o Reino do Pai, do Filho e do Espírito Santo, agora e sempre, e pelos
séculos dos séculos”. Desde o início se anunciava o destino: a jornada é para o
Reino. É para onde todos estamos indo – e não simbolicamente, mas de verdade. Na
linguagem da Bíblia, que é a mesma linguagem da Igreja, bendizer o Reino não
equivale simplesmente a aclamá-lo. Mas é declará-lo como sendo o objetivo, o
cume de todos os nossos desejos e interesses, de toda nossa vida, o valor
supremo e máximo de tudo o que existe. Bendizer significa aceitar com amor e se
mover em direção ao que é amado e aceito. Assim é que a Igreja constitui a
assembleia, a reunião daqueles para quem o destino último de toda a via fi
revelado e que o aceitaram. Essa aceitação é expressa na solene resposta à
Doxologia: “Amém”. Essa é, de fato, uma das palavras mais importantes do mundo,
porque ela expressa a concordância da Igreja em seguir a Cristo em sua subida
ao Pai, e para fazer dessa subida o destino do homem. É um presente de Cristo
para nós, pois somente Nele podemos dizer Amém a Deus, ou antes, é Ele próprio
nosso Amém a Deus e a Igreja constitui um Amém a Cristo. É sobre esse Amém que
o destino da raça humana é decidido. Ele revela que o movimento para Deus
começou.
Mas ainda estamos muito no começo. Deixamos “esse
mundo”. Nós o fizemos juntos. Ouvimos o anúncio de nosso destino derradeiro.
Dissemos “amém” a esse anúncio. Somos a ecclesia, a resposta a esse chamado
e mandamento. E começamos com nossas “preces comuns e súplicas”, com um ato
comum e alegre de louvor. Mais uma vez, é preciso enfatizar o caráter alegre da
reunião litúrgica. Pois a ênfase medieval na cruz, embora não fosse errada, era
certamente unilateral. A Liturgia é, antes de qualquer coisa, a reunião alegre
daqueles que encontraram o Senhor ressuscitado e que com Ele penetraram na
Câmara Nupcial. Essa é a alegria da expectativa e essa espera alegre á expressa
em música e ritual, vestimentas e incenso, em toda essa “beleza” da Liturgia,
que tantas vezes foi denunciada como desnecessária e até pecaminosa.
De fato, ela é desnecessária, porque estamos além
das categorias da “necessidade”. A beleza nunca é “necessária”, “funcional” ou
“útil”. E quando, esperando por alguém que amamos, colocamos uma linda toalha na
mesa e a decoramos com flores e velas, não o fazemos por necessidade, mas por
amor. E a Igreja é amor, espera e alegria. É o céu na terra, de acordo com
nossa tradição Ortodoxa: é a alegria da infância redescoberta, essa alegria
livre, incondicionada e desinteressada, a única capaz de transformar o mundo.
Em nossa piedade adulta e séria exigimos definições e justificativas, mas elas
estão enraizadas no medo – medo da corrupção, do desvio, das “influências
pagãs” e o que mais for. Pois “no perfeito amor não existe medo[6]”.
Na medida em que os Cristãos amarem de fato o Reino de Deus, e não apenas não
discutirem a respeito, eles realmente o “representarão” e darão significado a
ele com arte e beleza. E a celebração do sacramento de alegria aparecerá numa
magnífica casula, porque estará revestida da glória do Reino, porque mesmo na
forma do homem Deus aparece em glória. Na Eucaristia nos colocamos na presença
de Cristo e, como Moisés diante de Deus, nos revestimos de sua glória. O
próprio Cristo vestiu uma túnica inconsútil que os soldados junto à cruz não puderam
dividir: ela não foi comprada no mercado, ao contrário – com toda
probabilidade, foi confeccionada pelas mãos amorosas de alguém. Sim, a beleza
de nossa preparação para a Eucaristia não tem uma utilidade prática. Mas Romano
Guardini falou sabiamente sobre a inutilidade da beleza. Ele disse, a respeito
da Liturgia:
“O
homem, com a ajuda da graça, tem a oportunidade de alterar sua essência
fundamental, de realmente se tornar aquilo que deve ser de acordo com seu
destino divino: um filho de Deus. Na Liturgia, ele “caminha para Deus, que dá
alegria à sua juventude” (...) É pelo fato de que a vida da Liturgia é mais
elevada do que tudo o que a realidade costumeira e capaz de apresentar como
oportunidade ou modo de expressão, que ela adapta as formas e os métodos
adequados dessa esfera única na qual elas podem ser encontradas, ou seja: na
arte. Ela fala compassada e melodiosamente; ela emprega gestos formais e
rítmicos; ela se recobre com cores e vestimentas que não encontramos na existência
de todo dia (...) Ela constitui o mais alto sentido da vida de uma criança, na
qual tudo é pintura, melodia e canções. Esse é o fato maravilhoso que a Liturgia
nos mostra: ela une o ato e a realidade numa infância sobrenatural diante de
Deus[7]”.
5
O próximo ato da Liturgia é a entrada: a chegada do
celebrante ao altar. Já foram dadas muitas explicações simbólicas para isso,
mas não se trata de um “símbolo”. Ela representa o próprio movimento da Igreja
como passagem do velho para o novo, “desse mundo” para o “mundo futuro”, e,
como tal, ela constitui o movimento essencial da “jornada” litúrgica. “Nesse
mundo” não existe altar, e o templo foi destruído. Pois o único altar é o
próprio Cristo, Sua humanidade que Ele assumiu e deificou, tornando-a templo de
Deus, o altar de Sua presença. E Cristo subiu as céus. Assim, o altar é o sinal
de que em Cristo recebemos acesso aos céus, que a Igreja consiste na “passagem”
para os céus, a entrada no santuário celestial, e que apenas “entrando”,
subindo aos céus a Igreja se torna plena, se torna o que ela é para ser. E
assim a entrada na Eucaristia, essa aproximação do celebrante – e, com ele, de
toda a Igreja – ao altar, não é um símbolo. Trata-se do ato decisivo e crucial
nos qual as verdadeiras dimensões do sacramento são reveladas e estabelecidas. Não
é a “graça” que desce; é a Igreja que entra na “graça”, e a graça implica uma
nova existência, o Reino, o mundo futuro. E, na medida em que o celebrante se
aproxima do altar, a Igreja entoa o hino que os anjos cantam eternamente junto
ao trono de Deus – “Santo Deus, Santo poderoso, Santo imortal” – e o sacerdote
diz: “Santo Deus, Tu que és celebrado três vezes santo na voz dos Querubins,
que és glorificado pelos Serafins e adorados por todas as potências celestiais”.
Os anjos não estão aqui como decoração ou
inspiração. Eles estão precisamente por causa dos céus, acima e além do qual só
conhecemos uma coisa: que ele ressoa eternamente com os louvores de divina
glória e santidade. “Santo” é o verdadeiro nome de Deus, do Deus “que não é dos
acadêmicos e dos filósofos”, mas do Deus vivo da fé. O conhecimento sobre
Deus resulta em definições e distinções. O conhecimento de Deus conduz apenas
a uma palavra, incompreensível, ainda que óbvia e inescapável: santo. E nessa
palavra expressamos tanto que Deus é Absolutamente Outro, Aquele sobre Quem
nada sabemos, e que Ele é o fim de nossa fome, de todos os nossos desejos, o
inacessível Um que mobiliza nossa vontade, o misterioso tesouro que nos atrai, e
que não há nada para ser conhecido sobre Ele. “Santo” é a palavra, a música, a
“reação” da Igreja na medida em que ela penetra nos céus, na medida em que ela
se coloca diante da glória celestial de Deus.
6
Agora, pela primeira vez desde que se iniciou a
jornada da Eucaristia, o celebrante se volta e encara o povo. Até esse momento,
ele era o encarregado de conduzir a Igreja em sua ascensão, mas agora o
movimento alcançou seu objetivo. E o sacerdote, cuja liturgia, cuja única
função e obediência na Igreja consiste em re-presentar, em tornar presente o
sacerdócio do próprio Cristo, diz ao povo: “A paz esteja convosco”. Em Cristo o
homem retorna a Deus e em Cristo Deus se torna homem. Como o novo Adão, como o
homem perfeito, Ele nos conduz a Deus; como Deus encarnado Ele revela o Pai a
nós e nos reconcilia com Deus. Ele é a nossa paz – a reconciliação com
Deus, o perdão divino, a comunhão. E a paz que o sacerdote anuncia e distribui
a todos é a paz que Cristo estabeleceu entre Deus e Seu mundo, e no qual nós, a
Igreja, acabamos de penetrar.
É dentro dessa paz – “que ultrapassa todo entendimento”
– que agora se inicia a Liturgia do Verbo. Os Cristãos Ocidentais estão tão
acostumados a distinguir o Verbo do sacramento, que pode ser difícil para eles
entender que na perspectiva Ortodoxa a Liturgia do Verbo é tão sacramental quanto
o sacramento é “evangélico”. O sacramento é uma manifestação do Verbo. E, a
menos que seja superada a dicotomia entre o Verbo e o sacramento, o verdadeiro
sentido de ambos, e em especial o verdadeiro sentido do “sacramentalismo” Cristão
não pode ser captado em todas as suas maravilhosas implicações. A proclamação
do Verbo é um ato sacramental por excelência, porque se trata de um ato
transformador. Ele transforma as palavras humanas do Evangelho na Palavra de
Deus e num templo do Espírito. A cada noite de sábado, na solene vigília da
ressurreição, o evangeliário é trazido em procissão solene passando em meio à
congregação, e com essa ação o Dia do Senhor é anunciado e manifestado. Pois o
Evangelho não é apenas um “registro” da ressurreição de Cristo; o Verbo de Deus
constitui a eterna vinda a nós do Senhor Ressuscitado, o próprio poder e a alegria
da ressurreição.
Na Liturgia, a proclamação do Evangelho é precedida
pelo “Aleluia”, a celebração dessa misteriosa palavra “teófora” que constitui a
alegre ação de graças de todos os que veem o Senhor chegar, que têm consciência
de Sua presença, e que expressam sua alegria diante dessa gloriosa “Parusia”.
“Aqui está Ele!”, seria a tradução mais adequada para esse termo intraduzível.
É por isso que a leitura e a pregação do Evangelho
na Igreja Ortodoxa é um ato litúrgico, uma parte integral e essencial do
sacramento. Ele é ouvido como sendo a Palavra de Deus, e é recebido no Espírito
– vale dizer, na Igreja, que é a vida do Verbo e sua “expansão” no mundo.
7
Pão e vinho: para entender seu significado original
e eterno na Eucaristia, revemos esquecer por um tempo as intermináveis
controvérsias que pouco a pouco os transformaram em “elementos” dentro de uma
especulação teológica abstrata. De fato, um dos maiores defeitos da teologia
sacramental é que, ao invés de seguir a jornada eucarística como uma
progressiva revelação de significado, os teólogos aplicaram à Eucaristia um
elenco de questões abstratas para fazê-la caber nos suas próprias estruturas
intelectuais. Desse ponto de vista, o que virtualmente desapareceu da esfera de
interesse e da investigação teológica foi a própria Liturgia, e o que
permaneceu foram “momentos”, “fórmulas” e “condições de validação”. Desapareceu
a Eucaristia, enquanto ação orgânica, como uma ação abarcante e transformadora,
de toda a Igreja, e o que permaneceu foram as partes “essenciais” e “não essenciais”,
os “elementos” a “consagração”, etc. Assim, por exemplo, para explicar e
definir o sentido da Eucaristia do modo como algumas teologias o fazem, não há
necessidade da palavra “eucarístico”: ela se torna irrelevante. Mas para os
antigos Padres ela era a palavra-chave que dava unidade e significado a todos
os “elementos” da Liturgia. Os Padres chamavam de “eucarísticos” o pão e o
vinho da oferenda, assim como sua oferta e consagração e, finalmente, a
comunhão. Tudo isso era a Eucaristia, e só poderia ser entendido dentro da
Eucaristia.
Conforme iniciamos os procedimentos da Liturgia
Eucarística, chega o momento em que oferecemos a Deus a totalidade de nossas
vidas, de nós mesmos e do mundo em que vivemos. Esse é o primeiro significado
de levarmos ao altar os elementos de nossa própria alimentação. Pois sabemos
que o alimento é vida, que ele é o princípio da vida e que todo o mundo foi
criado como alimento para o homem. Sabemos também que oferecer esse alimento,
esse mundo, essa vida a Deus é a função original “eucarística” do homem, sua
plenitude enquanto homem. Sabemos que fomos criados como celebrantes do sacramento
da vida, de sua transformação para vida em Deus, para comunhão com Deus.
Sabemos que a verdadeira vida é “eucarística”, um movimento de amor a adoração
a Deus, o único movimento no qual o sentido e o valor de tudo o que existe pode
ser revelado e preenchido. Sabemos que perdemos nossa vida eucarística, e
sabemos, finalmente, que em Cristo, o novo Adão, o homem perfeito, essa vida
eucarística foi restaurada no homem. Pois Ele próprio é a perfeita Eucaristia;
ele ofereceu a Si mesmo em total obediência, amor e ação de graças a Deus. Deus
é Sua própria vida, e ele ofereceu essa vida perfeita e eucarística a nós.
Nele, Deus se tornou nossa vida.
Dessa maneira, essa oferta de pão e vinho a Deus, do
alimento que precisamos comer para viver, constitui nossa oferta de nós mesmos
a Ele, de nossa vida e de todo o mundo. “Tomamos o mundo nas mãos como se fosse
uma maçã”, disse um poeta russo. Essa é nossa Eucaristia. É esse movimento que
Adão falhou em executar, e em Cristo ele se tornou a própria vida do homem: um
movimento de adoração e louvor no qual toda alegria e sofrimento, toda beleza e
frustração, toda fome e toda satisfação são referenciadas ao seu Fim último, e
finalmente se tornam plenas de significado. É certo que se trata de um sacrifício:
mas o sacrifício é a ação mais natural do homem, a essência mesma de sua vida.
O homem é um ser sacrificial, porque ele encontra sua vida no amor, e o amor é
sacrifício: ele coloca todo valor e todo significado da vida no outro e dá sua
vida por ele, e nesse ato de doação, nesse sacrifício, ele encontra o sentido e
a alegria da vida.
Nós oferecemos o mundo e a nós mesmos a Deus. Mas
fazemos isso em Cristo e em memória Dele. Nós o fazemos em
Cristo, porque Ele próprio já ofereceu tudo o que há para ser oferecido a Deus.
Ele realizou essa Eucaristia de uma vez por todas, e nada existe que não tenha
sido ofertado. Nele estava a Vida – e essa Vida que é de todos nós, a
oferecemos a Deus. A Igreja se compõe de todos aqueles que foram aceitos na
vida eucarística de Cristo. E nós o fazemos em memória Dele porque, na
medida em que oferecemos uma e outra vez nossa vida e nosso mundo a Deus,
descobrimos reiteradamente que não há nada mais a ser oferecido, senão o
próprio Cristo – a Vida do mundo, a plenitude de tudo o que existe. Essa é a
Sua Eucaristia, e Ele é a Eucaristia. Como diz a oração da oferenda – “é Ele
quem oferece e Ele que é oferecido”. A Liturgia nos conduz até essa Eucaristia
total de Cristo, e nos revela que a única Eucaristia, a única oferenda do mundo
é Cristo. Voltamos sempre a oferecer nossas vidas; nós trazemos e “sacrificamos”
– vale dizer, ofertamos a Deus – aquilo que Ele próprio nos deu; e a cada vez
chegamos ao Fim de todos os sacrifícios, de todas as oferendas, de toda
Eucaristia, porque a cada vez se revela a nós que Cristo ofertou tudo o
que existe, e que Ele e tudo o que existe foram ofertados em Sua oferenda de Si
mesmo, Nós nos incluímos na Eucaristia de Cristo, e Cristo é a nossa
Eucaristia.
E na medida em que a procissão perfaz seu movimento,
ela carrega o pão e o vinho até o altar, e assim sabemos que é o próprio Cristo
que nos toma, e toma a totalidade de nossas vidas, e as leva até Deus em Sua
ascensão eucarística. É por isso que nesse momento da Liturgia se comemora e se
recorda: “lembre-se o Senhor em seu Reino...”. Recordar é um ato de amor. Deus
se lembra de nós e Sua lembrança, Seu amor, são o fundamento do mundo. Em
Cristo nos recordamos. Tornamo-nos outra vez seres abertos ao amor, e nos
lembramos. A Igreja, em sua separação “do mundo”, em sua jornada para os
céus, lembra-se do mundo, lembra-se dos homens, lembra-se de toda a
criação, e os apresenta a Deus em amor. A Eucaristia é o sacramento da lembrança
cósmica: de fato, ela é a restauração do amor como a verdadeira vida do mundo.
8
O pão e o vinho estão agora sobre o altar, cobertos,
ocultos, assim como “nossa vida está oculta com Cristo em Deus[8]”.
Ali está, oculta em Deus, a totalidade da vida, que Cristo devolveu a Deus. Então
o celebrante diz: “Amemo-nos mutuamente, para que com uma só mente possamos
dizer...”. e se segue o beijo da paz, uma dos atos fundamentais da Liturgia
Cristã. A Igreja, se quiser ser a Igreja, deve ser a revelação desse Amor que
Deus “derramou em nossos corações”. Sem esse Amor, nada é “válido” na Igreja,
porque nada é possível. O conteúdo da Eucaristia de Cristo é o Amor, e somente
através do amor podemos penetrar nela e nos tornarmos seus participantes. Não
somos capazes desse amor: nós o perdemos. Esse amor, Cristo nos deu, e esse
presente é a Igreja. A Igreja se constitui no amor e através do amor, e ela
constitui o “testemunho” desse Amor no mundo, para re-presentá-lo, para torná-lo
presente. Somente o Amor cria e transforma: ele consiste, assim, no verdadeiro “princípio”
do sacramento.
9
“Elevemos ao alto nossos corações”, diz o
celebrante, e o povo responde: “Já os temos no Senhor”. A Eucaristia é a
anáfora, a “elevação” de nossa oferenda e de nós mesmos. Ela é a ascensão da
Igreja aos céus. “Mas, por que me preocupar com os céus”, diz São João Crisóstomo,
“quando eu mesmo me transformei em céus?”. A Eucaristia já foi explicada muitas
vezes apenas em referência aos dons: os que “acontece” com o pão e o vinho, e
porque, e quando acontece! Mas devemos entender que o que “acontece” ao pão e
ao vinho acontece porque algo aconteceu em primeiro lugar a nós e à Igreja. É porque
nós “constituímos” a Igreja, e porque isso significa que seguimos a Cristo em
sua ascensão; porque Ele nos aceitou em Sua mesa e em Seu Reino; porque, em
termos de teologia, penetramos no Eschaton, e agora nos encontramos além
do tempo e do espaço; porque tudo isso aconteceu conosco em primeiro lugar –
por isso essas coisas acontecem com o pão e o vinho.
“Elevemos ao alto nossos corações”, diz o celebrante,
e o povo responde: “Já os temos no Senhor”. “Demos graças ao Senhor” (Eucharistisomen),
diz o celebrante.
10
Quando o homem se coloca diante de Deus, quando ele
preencheu tudo o que Deus lhe deu para que fosse preenchido, quando todos seus
pecados foram perdoados e toda alegria restaurada, então nada mais lhe resta
senão agradecer. A Eucaristia (ação de graças) é o estado do homem perfeito. A
Eucaristia é a vida doo paraíso. A Eucaristia é a única resposta total e real
do homem à criação de Deus, à redenção e ao dom dos céus. Mas esse homem
perfeito que se coloca diante de Deus é Cristo. Somente Nele tudo o que Deus deu
ao homem se encontra preenchido e levado de volta aos céus. Somente Ele é o
perfeito Ser Eucarístico. Ele é a Eucaristia do mundo. É nessa Eucaristia e
através dessa Eucaristia que toda a criação se torna aquilo que ele sempre
deveria ter sido e que ela falhou em ser.
“É digno e justo”, responde a congregação,
expressando com essas palavras sua “rendição incondicional”, com a qual a
verdadeira “religião” começa. Pois a fé não é fruto de uma busca intelectual,
ou da “aposta” de Pascal. Não se trata de uma solução racional para as
frustrações e ansiedades da vida. Tampouco nasce da “falta” de alguma coisa,
mas, ao contrário, provém de uma plenitude, de um amor e de uma alegria. “É
digno e justo” expressa essas coisas. É a única resposta possível para o
convite divino de viver e receber uma vida em abundância.
Então o sacerdote inicia a Oração Eucarística: “É
digno e justo que Te celebremos, Te bendigamos, Te glorifiquemos, Te
agradeçamos e nos prostremos em todo o Teu Reino. Pois Tu és um Deus inefável,
incompreensível, invisível, inacessível, sempre existente e sempre o mesmo, Tu,
Teu Filho unigênito e Teu Espírito Santo. Tu, que nos tiraste do nada para a
existência, e depois da queda levantaste-nos de novo e não cessas de tudo fazer
para nos reconduzir ao céu e fazer-nos dom do Teu futuro reino; por tudo isto
nós Te damos graças, a Ti, ao Teu Filho unigênito e ao Teu Espírito Santo, e
por todos os benefícios concedidos conhecidos e desconhecidos, visíveis e
invisíveis. Damos-Te graças também por esta liturgia que Te dignaste receber de
nossas mãos, embora disponhas a Teu serviço, de multidões de Arcanjos e de
Anjos, de Querubins e Serafins com seis asas e múltiplos olhos, sublimes e
alados”.
O início da Oração Eucarística é comumente chamado
de “Prefácio”. E, embora esse Prefácio pertença a todos os ritos eucarísticos
conhecidos, pouca atenção costuma ser dada a ele no desenvolvimento da teologia
eucarística. Um “prefácio” é algo que não pertence realmente ao corpo de um
livro. E os teólogos o negligenciam porque estão ansiosos para chegar aos verdadeiros
“problemas”: o da consagração, da transformação dos elementos, do sacrifício e
outros. É aqui que encontramos um dos principais defeitos da teologia Cristã: a
teologia da Eucaristia deixou de ser eucarística e assim ela retirou o espírito
eucarístico de todo o entendimento do sacramento, da verdadeira vida da Igreja.
A longa controvérsia a respeito das palavras da instituição e da invocação do
Espírito Santo (epiclesis) que se estabeleceu por séculos entre o
Oriente e o Ocidente é um bom exemplo desse estágio não-eucarístico na história
da teologia sacramental.
Mas é preciso entender que é precisamente esse prefácio
– essa ação, essas palavras, esse movimento de ação de graças – que realmente “torna
possível” tudo o que virá a seguir. A Eucaristia de Cristo e o Cristo Eucarístico
constituem a “brecha” que nos conduz até a mesa do Reino, que nos eleva até os
céus, e que nos torna partícipes do banquete divino. Pois a Eucaristia – ação de
graças e louvor – é a própria forma e o conteúdo da nova vida que Deus concedeu
a nós quando nos reconciliou consigo mesmo em Cristo. Essa reconciliação, o
perdão, o poder da vida – tudo isso encontra seu propósito e plenitude desse novo
estágio da existência, nesse novo estilo de vida que é a Eucaristia, a única vida
verdadeira da criação com Deus e em Deus, a única relação verdadeira entre Deus
e o mundo.
De fato, ela é o prefácio do mundo por vir, a porta
para o Reino: e é isso que confessamos e proclamamos quando, falando de Reino que
virá, afirmamos que Deus já no-lo concedeu. Esse futuro nos foi dado
no passado, e ele pode se constituir o próprio presente, a vida em si,
agora, da Igreja.
11
E assim o Prefácio se completa no Sanctus – no “Santo,
Santo, Santo” da eterna Doxologia, que é a essência secreta de tudo que existe:
“Os Céus e a terra estão cheios da Tua glória”. Precisamos subir aos Céus em
Cristo para ver e entender a criação em sua verdadeira existência enquanto
glorificação da Deus, como resposta ao amor divino no qual, e somente no qual,
a criação se torna aquilo que é do desejo de Deus: ação de graças, eucaristia,
adoração. É aqui – na dimensão celestial da Igreja, com “milhares de Arcanjos e
miríades de Anjos, com os Querubins e os Serafins, que voam nas alturas e
sustentam com suas asas” – que podemos, finalmente, “nos expressar”. E essa
expressão é: “Santo, Santo, Santo, é o Senhor Sabaoth. Os Céus e a terra
estão cheios de Sua glória. Hosana nas alturas! Bendito o que vem em Nome do
Senhor”.
Essa é a finalidade última de tudo o que existe, o fim,
o objetivo e a plenitude, porque é esse o começo, o princípio da Criação.
12
Mas, na medida em que nos colocamos diante de Deus,
relembrando tudo o que Ele fez por nós, e oferecendo a Ele nossa ação de graças
por todos os Seus benefícios, descobrimos sem sombra de dúvida que o conteúdo
dessa ação de graças e dessa recordação é Cristo. Toda recordação é, em
definitivo, uma recordação de Cristo, e toda ação de graças é uma ação de graças
a Cristo. “Nele estava a vida e essa vida era a luz dos homens”. E, na luz da
Eucaristia, vemos esse Cristo que é de fato vida, luz e tudo o que existe, e a
glória que preenche os céus e a terra. Não há nada além para ser lembrado, nada
mais a agradecer, porque é Nele que tudo encontra sua existência, sua vida, seu
fim.
E, dessa maneira, o Sanctus nos conduz de forma tão
simples e lógica a esse homem, a essa noite, a esse acontecimento no qual o mundo
encontrou de uma vez por todas seu juízo e sua salvação. Não que, ao cantarmos
o Sanctus e confessarmos a majestade da glória divina, coloquemos essas coisas de
lado e prossigamos para a próxima subdivisão da prece, a Lembrança. Não, a Lembrança
é a plenitude da Doxologia, ela é uma vez mais a Eucaristia que “naturalmente”
nos conduz ao próprio coração e ao conteúdo da recordação e da ação de graças.
Tu és Santo, totalmente santo, Tu e o teu Filho
unigênito e o Teu Espírito Santo. Tu és Santo, és totalmente Santo e magnífica
é a Tua glória. Tu amaste tanto o mundo que nos ofereceste o Teu Filho Unigênito,
a fim de que todo aquele que Nele creia não pereça, mas tenha a vida eterna.
Ele veio e cumpriu inteiramente o Teu plano salvífico a nosso respeito. Ele, na
hora em que se entregava para voluntariamente sofrer a morte vivificante pela
vida do mundo, tomou o pão em suas mãos santas e imaculadas e, tendo-o
oferecido a ti, Deus Pai, deu graças, pronunciou as palavras de bênção, o
santificou, o partiu e deu aos seus santos discípulos e apóstolos, dizendo: “Tomai
e comei, isto é o meu corpo que será partido por vós para a remissão dos
pecados”. Do mesmo modo, ao fim da ceia, tomou o cálice dizendo: “Bebei dele
todos, isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, que é derramado por vós e
por muitos para a remissão dos pecados”.
Enquanto estamos diante do Senhor, nada mais existe
a ser recordado, ou que possamos oferecer a Deus, senão esse auto-oferecimento
de Cristo, porque nele toda ação de graças, toda lembrança, toda oferenda –
vale dizer, toda a vida do homem e do mundo – se completa. Então dizemos:
Fazendo pois a anamnese desse mandamento salvador
para nós: a cruz, o sepulcro, a ressurreição ao terceiro dia, a ascensão aos
céus, o trono à direita do Pai, a segunda e gloriosa vinda: Os teus dons, a ti
oferecemos, em tudo e por tudo.
13
Até esse ponto a Eucaristia consistia em nossa
ascensão em Cristo, em nossa entrada, Nele, no “mundo do futuro”. Agora, nessa
oferenda de todas as coisas, em Cristo, ao Um a quem tudo pertence e somente no
qual tudo existe realmente, esse movimento ascensional encontra seu fim.
Estamos na mesa pascal do Reino. Tudo o que oferecemos – nosso alimento, nossa
vida, nós mesmos e todo o mundo – nós oferecemos em Cristo e como Cristo porque
Ele próprio assumiu nossa vida e se tornou nossa vida. E agora tudo isso é devolvido
a nós com o dom de uma nova vida, e, sendo assim – necessariamente – como alimento.
“Esse é meu corpo, esse é meu sangue. Tomai, comei. Bebei...”.
E gerações após gerações de teólogos se fizeram as mesmas questões. Como isso é
possível? Como isso acontece? O que, exatamente, acontece nessa transmutação? E,
exatamente, quando? Qual é sua causa? Nenhuma resposta parece satisfatória.
Símbolo? Mas o que é um símbolo? Substância, acidentes? Sentimos imediatamente
que algo está faltando em todas essas teorias, nas quais o Sacramento é
reduzido às categorias do tempo, da substância, da causalidade, que são as
categorias “desse mundo”.
Algo falta, porque o teólogo pensa no sacramento e
se esquece da liturgia. Como bom cientista ele começa por isolar o objeto de
seu estudo, reduzindo-o a um momento, a um “fenômeno” – e então, procedendo do
geral para o particular, do conhecido para o desconhecido, ela dá uma definição
que, de fato, levanta mais questões do que respostas. Mas através de nosso estudo
o ponto principal sempre foi que a liturgia por inteiro é sacramental,
vale dizer, um ato transformador e um movimento ascendente. E o verdadeiro
objetivo desse movimento de ascensão é o de nos retirar “desse mundo”, e nos tornar
partícipes do “mundo do futuro”. Nesse mundo – o mundo que condenou
Cristo e que, ao fazê-lo, condenou a si próprio – não há pão nem vinho que
possa se transformar no corpo e no sangue de Cristo. Nada que faça parte dele
pode ser “sacralizado”. Mas a liturgia da Igreja constitui sempre uma anáfora,
uma elevação, uma ascensão. A Igreja preenche a si mesma nos céus nesse novo
éon que Cristo inaugurou com Sua morte, ressurreição e ascensão, e que foi
dado à Igreja no dia de Pentecostes como sendo sua vida, como sendo o “fim” em
direção ao qual ela se move. Nesse mundo Cristo é sacrificado, Seu corpo é morto
e Seu sangue é derramado. E é para esse mundo que devemos nos dirigir, devemos
ascender aos céus em Cristo para nos tornamos participantes do mundo que virá.
Mas esse não é um “outro” mundo, diferente daquele
que Deus criou e nos deu. É o mesmo mundo nosso, já perfeccionando em
Cristo, mas ainda não em nós. É o nosso mesmo mundo, redimido e
restaurado, no qual Cristo “preenche todas as coisas Consigo”. E, uma vez que
Deus criou o mundo como alimento para nós e nos deu o alimento como comunhão
com Ele, como vida Nele, o novo alimento da nova vida que recebemos de Deus em Seu
Reino é o próprio Cristo. Ele é nosso pão – porque desde o começo toda nossa
fome era fome por Ele e todo nosso pão não era outra coisa do que um símbolo Dele,
um símbolo que estava destinado e se tornar realidade.
Ele se tornou homem e viveu nesse mundo. Ele comeu e
bebeu, e isso significa que o mundo do qual ele participou, o próprio alimento
de nosso mundo, se tornou Seu corpo, Sua vida. Mas Sua vida era totalmente,
absolutamente eucarística – tudo era transformado em comunhão com Deus e
tudo ascendia aos céus. E agora ele partilha dessa vida glorificada conosco. “Aquilo
que eu fiz, agora vos dou: tomai e comei...”.
Oferecemos o pão em memória de Cristo porque sabemos
que Cristo é Vida, e que assim todo alimento deve nos conduzir a Ele. E agora,
quando recebemos esse pão de Suas mãos, sabemos que Ele tomou toda vida,
preencheu-a Consigo próprio e a tornou aquilo que ela tem que ser: a comunhão
com Deus, o sacramento de Sua presença e amor. Somente no Reino podemos confessar
com São Basílio que “esse pão é em verdade o corpo precioso de nosso Senhor,
que esse vinho é o sangue precioso de Cristo”. O que é “sobrenatural” aqui, nesse
mundo, se revela como “natural” lá. E é sempre capaz de nos conduzir “até
lá” e nos tornar o que temos que ser para que a Igreja realize a si mesma na
liturgia.
14
É o Espírito Santo que manifesta o pão como corpo e
o vinho como sangue de Cristo, conforme a Liturgia de São Basílio: “E faz desse
pão o corpo precioso do Teu Cristo (...) e do que contém esse cálice o sangue
precioso do Teu Cristo...”. A Igreja Ortodoxa sempre insistiu que a transmutação
(metábole) dos elementos eucarísticos é realizada pela epiclese –
a invocação do Espírito Santo – e não pelas palavras da instituição. Essa
doutrina, porém, foi muitas vezes mal compreendida pelos próprios Ortodoxos.
Não se trata de substituir uma “causalidade” – as palavras da instituição – por
outra, por uma “fórmula” diferente. Trata-se de revelar o caráter escatológico
do sacramento. O Espírito Santo veio no “último e grande dia” do Pentecostes.
Ele manifestou o mundo por vir. Ele inaugurou o Reino. Ele sempre nos leva além.
Estar no Espírito implica estar nos céus, pois o Reino de Deus é “alegria e paz
no Espírito Santo”. E assim, na Eucaristia, é Ele quem sela e confirma
nossa ascensão para os céus, que transforma a Igreja no corpo de Cristo e – por
conseguinte – manifesta os elementos de nossa oferenda como comunhão
no Espírito Santo. É nisso que consiste a consagração.
15
Mas antes de partilharmos do alimento celestial
resta ainda uma última ação, absolutamente essencial: a intercessão. Estar
em Cristo significa ser como Ele, significa transformar nosso movimento no
próprio movimento de Sua vida. E como Ele “viveu para interceder” por todos “para
que fossem a Deus por meio Dele[9]”,
então não podemos aceitar Sua intercessão como se fosse nossa. A Igreja não é
uma sociedade escapista – corporativa ou individualmente – desse mundo para experimentar
um aperitivo místico de eternidade. A comunhão não é uma “experiência mística”:
bebemos do cálice de Cristo, e Ele se entrega pela vida do mundo. O pão na patena
e o vinho no cálice nos lembram da encarnação do Filho de Deus, da cruz e da
morte. Assim, é a verdadeira felicidade do Reino que nos faz recordar o mundo e
orar por ele. É a própria comunhão com o Espírito Santo que nos torna capazes
de amar o mundo com o amor de Cristo. A Eucaristia é o sacramento de unidade e
o momento da verdade: aqui vemos o mundo em Cristo, real como ele é, a não de nosso
ponto de vista particular, limitado e parcial. A intercessão começa aqui, na
glória do banquete messiânico, e essa é o único verdadeiro começo para a missão
da Igreja. É quando “colocando de lado todo mundanismo”, parece-nos termos deixado
esse mundo, e assim, de fato, recuperamo-lo em toda sua realidade.
A intercessão constitui, assim a única preparação
real para a comunhão. Pois na comunhão e através da comunhão não apenas nos
tornamos um corpo e um espírito, como somos restaurados nessa solidariedade e
amor que o mundo perdeu. E a grande Oração Eucarística agora se soma à Oração
do Senhor, e cada petição sua implica a total e completa dedicação ao Reino de
Deus no mundo. Essa é a Sua prece, e Ele a dá para nós, Ele faz
dela a nossa prece, assim como fez de Seu Pai o nosso Pai. Ninguém
jamais foi “digno” de receber a comunhão, ninguém foi preparado para tanto.
Nesse ponto, todos os méritos, toda justiça, toda devoção desaparece e se
dissolve. A vida retorna a nós como um Dom, um dom divino e gratuito. É por
isso que na Igreja Ortodoxa chamamos os elementos eucarísticos de Santos Dons. Adão
é reintroduzido no Paraíso, resgatado do nada e coroado rei da criação. Tudo é
gratuito, nada é devido e não obstante tudo é dado. E assim, a maior humildade
e obediência consiste em aceitar o dom, em dizer sim – com alegria e gratidão.
Não há nada que possamos fazer, e mesmo assim nos tornamos tudo o que
Deus quis de nós desde a eternidade, e nos tornamos eucarísticos.
16
E então chega o momento em que devemos retornar
ao mundo. “Ide em paz”, diz o celebrante enquanto deixa o altar, e esse é o
último mandamento da Liturgia. Não devemos permanecer no Monte Tabor, bem
ora saibamos que é bom para nós estar lá. Somos mandados de volta. Mas agora “vimos
a verdadeira Luz, recebemos o Espírito celeste”. E é como testemunhas dessa
Luz, como testemunhas do Espírito, que devemos “retornar” e começar a interminável
missão da Igreja. A Eucaristia foi o fim da jornada, o final do tempo. E
agora estamos novamente no começo, e as coisas que eram impossíveis são
agora reveladas a nós como possíveis. O tempo do mundo se tornou o tempo da
Igreja, o tempo de salvação e redenção. E Deus nos tornou competentes,
como disse Paul Caudel, competentes para sermos testemunho Seu, para realizar o
que Ele fez e continua a fazer. Esse e o sentido da Eucaristia; e é por isso
que a missão da Igreja começa na Liturgia da ascensão, pois somente ela torna
possível a Liturgia da missão.
Deus abençoe a todos do blog.
ResponderExcluirGostaria de contribuir também deixando um artigo aqui bem completo sobre Jesus.
Espero que gostem.
https://conselheirocristao.com.br/jesus/