O TEMPO DA MISSÃO
1
Ao deixarmos a igreja após a Eucaristia dominical,
entramos outra vez no tempo, e o tempo, assim, é o primeiro “objeto” de nossa
Fé e de nossa ação Cristãs. Pois ele é de fato o ícone de nossa realidade
fundamental, do otimismo e do pessimismo de nossas vidas, da vida como vida e
da vida como morte. Através do tempo, por um lado experimentamos a vida como
possibilidade, crescimento, plenitude, como um movimento para o futuro. Através
do tempo, por outro lado, todo futuro é dissolvido em morte e aniquilação. O tempo
é a única realidade da vida, ainda que constitua uma realidade estranhamente
inexistente: ele dissolve a vida constantemente num passado que já não existe,
e num futuro que sempre nos conduz para a morte. Em si mesmo, o tempo não passa
de uma linha de telégrafo suspensa na distância, em algum ponto em nosso
caminho para a morte
Todas as gerações, todos os filósofos estiveram
conscientes dessa ansiedade do tempo, desse paradoxo. Toda filosofia e toda
religião consiste, em última instância, numa tentativa de resolver o “problema
do tempo”. E milhares de livros, Cristãos e não Cristãos, foram escritos a respeito.
Claro, não é nosso proposito acrescentar mais uma “teologia do tempo” a todas
as que já existem. Trata-se mais de descrever de forma sucinta a experiência do
tempo que os Cristãos tiveram desde o início, e que eles ainda têm na Igreja. Aqui,
uma vez mais, o que a Igreja oferece não é uma “solução” do problema
filosófico, mas um dom. e ele se torna solução apenas se for aceito da mesma
forma gratuita e alegre como foi oferecido. Dessa forma, a felicidade desse dom
pode tornar tanto o problema como sua solução tanto desnecessários como
irrelevantes.
2
Para entender esse dom, devemos primeiro nos
voltarmos para a Liturgia e mais uma vez decifrar sua linguagem esquecida. Hoje
em dia, ninguém – exceto essa peculiar e esotérica raça de homens chamados de
“liturgiologistas” – está interessado naquilo que foi no passado a maior
preocupação dos Cristãos: as festas e as estações, os ciclos de orações, um
zelo específico a respeito do kairos, o tempo da celebração litúrgica. Não
apenas os leigos, mas mesmo os teólogos
parecem dizer: o mundo do “simbolismo” Cristão já não é o nosso mundo, tudo
isso acabou, tudo se foi e temos problemas mais sérios a resolver; seria
impensável e ridículo tentar resolver qualquer “questão” real da vida moderna reportando-nos,
digamos, à Páscoa ou ao Pentecostes, ou mesmo ao Domingo.
Sim, mas nesse ponto permitam-me colocar algumas
perguntas. Serão esses “símbolos”, de fato, meramente “simbólicos”? Ou será que
seu abandono pode ser explicado precisamente pelo valor simbólico atribuído a
eles pelos próprios Cristãos, que deixaram de entender sua verdadeira natureza?
E não terão eles deixado de entender sua natureza porque algum dia (seria
demasiado longo elaborar isso aqui) os Cristãos começaram a pensar que a
“religião” nada tinha a ver com o tempo, que de fato ela consistiria em nos
salvar do tempo? Antes de termos o direito de no0s livrarmos do velho
“simbolismo”, temos que entender que a tragédia do Cristianismo não consistiu
em seu “compromisso” com o mundo e com o progressivo “materialismo”, mas ao contrário,
em sua “espiritualização” e em sua transformação em “religião”. E a religião –
tal como a concebemos hoje – passou a significar um mundo de pura espiritualidade,
uma concentração a atenção em matérias concernentes à “alma”. Os Cristão foram
tentados a rejeitar completamente o tempo e a substituí-lo por misticismo e na
busca de “espiritualidades”, a viver como Cristãos fora do tempo e assim
escapar às suas frustrações; foram tentados a insistir que o tempo não possui
um significado real do ponto de vista do Reino que está “além do tempo”. E eles
finalmente conseguiram. Conseguiram retirar do tempo seu significado, embora
ele estivesse cheio de “símbolos” Cristãos. E hoje eles próprios não sabem o
que fazer com esses símbolos. Pois é impossível “colocar Cristo de volta no
Natal”, sem que Ele não conceda a redenção – ou seja, sem que encha de
significado – o próprio tempo.
Temos que entender, assim, que a intensa e quase
patológica preocupação do mundo moderno com o tempo e seu “problema” tem suas
raízes nessa falha especificamente Cristã. É por nossa causa, nós Cristãos, que
o mundo em que vivemos literalmente não tem tempo. Pois não é verdade
que quanto mais inventamos engenhocas para “poupar tempo”, menos tempo temos? Nossa
melancólica pressa é interrompida pelo relaxamento (“sente-se e relaxe!”),
mas é tamanho o horror que temos a esse estranho vazio que se reveste dessa
palavra verdadeiramente diabólica, “relaxamento”, que o homem é obrigado a
tomar pílulas para suportá-lo, e a gastar dinheiro com livros caros a respeito
de como extinguir esse terra de ninguém da “vida moderna”.
Não há tempo porque o Cristianismo, por um lado, tornou
impossível ao homem viver no velho mundo natural, tendo rompido irremediavelmente
o ciclo do eterno retorno. A plenitude dos tempos foi anunciada, o tempo foi
anunciado como história e realização, e isso nos envenenou para sempre com o
sonho de um tempo cheio de significado. Não há tempo, por outro lado, porque, tendo
anunciado tudo isso, o Cristianismo abandonou o tempo, convidando os Cristãos a
deixá-lo e a pensar na eternidade como um descanso eterno (ou até como um eterno
relaxamento). Podemos até adornar ao falta de sentido do tempo com “belos
símbolos” e “ritos coloridos”, de preferência “antigos”. Podemos – a intervalos
regulares e consultando as “rubricas” certas – mudar as cores das vestes litúrgicas,
e temperar o eterno sermão com algumas referências à Páscoa, ao Natal ou à
Epifania. Tudo isso, por “inspirador” e “elevado” que possa parecer, não possui
significado para o tempo real no qual o homem real deve viver, ou antes, para a
ausência de tempo, que torna a vida um pesadelo de alternância entre “pressa” e
“relaxamento”.
E assim, nossa questão é: teria Cristo, o Filho de
Deus, ressuscitado dos mortos no primeiro dia da semana, teria Ele enviado Seu
Espírito no dia de Pentecostes, teria Ele, em outras palavras, penetrado no
tempo apenas para que possamos “simbolizá-lo” em sutis celebrações que, embora
conectadas com dias e horas, não têm poder para dar ao tempo um significado
real, para transformá-lo e redimi-lo?
3
Desde o início os Cristãos tiveram seu próprio dia,
e é em sua natureza peculiar que podemos encontrar a chave para a experiência
Cristã do tempo. Para recuperá-la, entretanto, devemos ir além da legislação
Constantiniana, a qual, tendo instituído compulsoriamente o Domingo como o dia
semanal de descanso, transformou-o no substitutivo Cristão do Sabbath
Judaico. Depois disso, o significado único e paradoxal do Dia do Senhor foi
pouco a pouco esquecido. Mas seu significado provinha precisamente de sua
relação com o Sabbath, ou seja, de uma compreensão total do entendimento
bíblico do tempo. Na experiência religiosa Judaica o Sabbath, o sétimo
dia, tinha uma importância tremenda: nele estava retratada a participação e a
afirmação do homem na sacralidade da criação de Deus. “E Deus viu que isso era
bom (...) e Deus abençoou o sétimo dia, e o santificou: porque nesse dia Ele
descansou de todo o trabalho com que criou e modelou o mundo[1]”.
O sétimo dia constituía assim a alegre aceitação do mundo criado por Deus como
sendo bom. O descanso prescrito para esse dia, e que foi mais tarde
obscurecido por prescrições e tabus mesquinhos e legalistas, não consiste
absolutamente em nosso moderno “relaxamento”, na ausência de trabalho. Trata-se
da participação ativa na “fruição sabática”, na sagrada plenitude da paz divina
como fruto de todo trabalho, como o coroamento de todo o tempo. Ele tem, assim
tanto uma conotação cósmica como escatológica.
Mas esse mundo “bom”, que os Judeus bendizem no
sétimo dia, é ao mesmo tempo o mundo do pecado e da revolta contra Deus, e seu
tempo é o tempo do exílio do homem e de sua alienação em relação a Deus. E
assim, o sétimo dia aponta para um novo Dia do Senhor – o dia da salvação e da
redenção, do triunfo de Deus sobre Seus inimigos. Nos escritos apocalípticos
Judaicos tardios emerge a ideia de um novo dia que é ao mesmo tempo o oitavo
– por estar além das frustrações e das limitações do “sétimo”, o tempo deste
mundo – e o primeiro, porque com ele começa o tempo, o tempo do
Reino. É dessa ideia que nasceu o Domingo Cristão.
Cristo se levantou dos mortos no primeiro dia
após o Sabbath. A vida que irradiou do sepulcro estava além das inescapáveis
limitações do “sétimo”, do tempo que conduz à morte. Ele era assim o início de
uma nova vida e de um novo tempo. Ele era realmente o oitavo e o primeiro dia,
e assim ele se tornou o dia da Igreja. O Cristo ressuscitado, de acordo com o
Quarto Evangelho, apareceu aos seus discípulos no primeiro dia[2],
e em seguida “depois de oito dias[3]”.
Esse é o dia no qual a Igreja celebra a Eucaristia – o sacramento de sua
ascensão ao Reino e de sua participação no banquete messiânico do “século
futuro”, o dia no qual a Igreja realiza a si mesma como nova vida. Os mais
antigos documentos mencionam que os Cristãos reuniam-se em statu die –
num dia fixo – e nada ao longo da história do Cristianismo pode alterar a importância
desse dia fixo.
“Um dia fixo”... Se o Cristianismo fosse uma fé
puramente “espiritual” e escatológica não haveria necessidade de um “dia fixo”,
porque o misticismo não tem interesse no tempo. De fato, para salvar as almas
não existe necessidade de um “calendário”. E, se o Cristianismo não passasse de
uma “nova religião”, ele teria estabelecido seu próprio calendário, com a
oposição costumeira entre os “dias santos” e os “dias profanos” – aqueles que
teriam que ser “guardados” e “observados” e aqueles religiosamente
insignificantes. De fato, esses entendimentos surgiram bem depois. Mas esse
nunca foi o significado do “dia fixo”. Ele não era considerado um “dia santo” oposto
aos dias profanos, uma comemoração no tempo de eventos passados. Seu verdadeiro
significado estava na transformação do tempo, não no calendário. Pois, de um
lado, o Domingo permanecia sendo “um dos dias” (por mais de três séculos
ele não constituiu um dia de descanso), o primeiro da semana, pertencendo
inteiramente a esse mundo. Mas
por outro lado, nesse dia, através da ascensão eucarística, o Dia do Senhor se
revelava e se manifestava em toda sua glória e em seu poder transformados como
o fim desse mundo, como o começo do mundo futuro. E assim, por
meio desse dia, todos os dias, todo o tempo era transformado num tempo de recordação
e expectativa, lembrança de sua ascensão (“vimos a Luz verdadeira”) e
expectativa de sua chegada. Todos os dias e todas as horas passavam a se
referidas a esse fim de toda a vida “natural”, ao começo de uma nova vida. A semana
já não era uma sequência de dias “profanos”, com um descanso num dia
“santificado” ao final. Ela agora era um movimento do Monte Tabor para o mundo,
do mundo para o “dia sem noite” do mundo futuro. Todo dia, toda hora, adquiriam
agora uma nova importância, uma gravidade que nunca tiveram antes: cada dia era
agora um passo desse movimento, um momento de decisão e testemunho, um
tempo de significado definitivo. Assim, o Domingo não era um dia “sagrado” que deveria
ser “observado” à parte em relação aos demais dias, e oposto a eles. Ele não
interrompia o tempo com um êxtase místico “atemporal”. Ele não era uma quebra
numa sequência sem sentido de dias e noites. Ao permanecer como um dos dias
comuns, embora revelando-se através da Eucaristia como o oitavo e o primeiro
dia, ele imprimiu a todos os dias seu verdadeiro sentido. Ele transformou o
tempo desse mundo no tempo do fim, e o tornou simultaneamente o tempo do
começo.
4
Devemos agora nos voltar para a segunda dimensão da experiência
Cristã do tempo – para o chamado “ano Cristão”. Falar a respeito dele, naturalmente,
é bem mais difícil do que falar sobre o Domingo, porque para o Cristão moderno
a relação entre esse “ano Cristão” e o tempo se tornou incompreensível e,
portanto, irrelevante. Em determinadas datas a Igreja comemora certos eventos
do passado – a natividade, a ressurreição, a descida do Espírito Santo. Essas
datas são ocasião para uma “ilustração” de certas afirmações teológicas, mas,
como tais elas não se relacionam com o tempo real, nem são decorrências dele. Dentro
da própria Igreja existem muitas “quebras” na rotina normal de suas atividades,
e muitos Cristãos executivos de negócios e orientados para a ação considera,
secretamente essas festas e celebrações como perda de tempo. E, se outros
Cristãos as saúdam como sendo dias adicionais de descanso e “férias”, o fato é
que ninguém pensa seriamente nelas como sendo o próprio coração da vida e da
missão da Igreja. Em outras palavras, existe uma séria crise na própria ideia
de festa, e é por aqui que devemos começar nossa discussão sobre o ano Cristão.
Festa implica alegria. E, se existe algo que nós –
Cristão adultos sérios e frustrados desse século – vemos com suspeição, essa
coisa é a alegria. Como podemos ser felizes quando tantas pessoas sofrem? Quando
há tantas coisas a serem feitas? Como podemos nos divertir em festas e
celebrações, quando as pessoas esperam de nós respostas “sérias” para seus
problemas? Consciente ou inconscientemente os Cristãos aceitaram todo o ethos
de nossa cultura infeliz e voltada para os negócios. Eles acreditam que a única
maneira de ser levados “a sério” pelos “sérios” – vale dizer, pelo homem
moderno – é ser também sérios, e assim reduzir a um “mínimo” simbólico aquilo
que, no passado, era de forma tão extremada o centro da vida na Igreja – a alegria
das festas. O mundo moderno relegou a alegria às categorias de “diversão” e
“relaxamento”. Somente isso é justificado e permitido em nosso “tempo livre”;
trata-se de uma concessão, de um compromisso. E os Cristãos chegaram a
acreditar em tudo isso, ou antes, deixaram de acreditar que a festa, que a
alegria tivesse algo a ver com os “problemas sérios” da vida em si, que ela
pudesse ser a própria resposta Cristã a eles. Com todas essas conotações
espirituais e culturais, o “ano Cristão” – a sequência das comemorações e celebrações
litúrgicas – deixou de ser o gerador de poder, e agora é visto como uma espécie
de decoração mais ou menos antiquada da religião. É como se fosse um tipo de
ajuda “audiovisual” para a educação religiosa, mas que não constitui nem uma
raiz da vida e ação Cristãs, nem uma “meta” para a qual estejam elas
orientadas.
Para entender a verdadeira natureza – e a “função” –
das festas devemos nos lembrar que o Cristianismo nasceu e pregou, em primeiro
lugar, em culturas nas quais as festas e celebrações possuíam uma parte
essencial e orgânica com toda sua visão de mundo e modo de vida. Pois para o
homem do passado a festa não era algo acidental e “adicional”: era o que dava sentido
à sua vida, liberando-o do ritmo animal de trabalho e descanso. A festa não
constituíam uma simples “quebra” numa vida dura de trabalho – que de outro modo
seria desprovida de significado – mas uma justificativa para esse trabalho, seu
fruto mesmo, sua – por assim dizer – transformação sacramental em alegria e,
portanto, em liberdade. Assim é que a festa era sempre profunda e organicamente
relacionada com o tempo, com os ciclos naturais do tempo, com toda a estrutura
da vida do homem no mundo. E, queiramos ou não, gostemos ou não, o Cristianismo
aceitou e tornou próprio esse fenômeno fundamentalmente humano da festa,
assim como aceitou o homem em sua totalidade e com todas as suas necessidades. Mas,
como tudo o mais, os Cristãos aceitaram a festa não apenas dando a ela um novo
significado, não apenas transformando seu “conteúdo”, como também a tomando,
junto com a totalidade do homem “natural”, através da morte e da ressurreição.
Sim, como já dissemos, o Cristianismo representou,
por um lado, o fim de toda alegria natural. Ele revelou sua impossibilidade,
sua futilidade, sua tristeza – porque, ao revelar o home perfeito ele revelou o
abismo da alienação do homem em relação a Deus e a inexaurível tristeza de sua
alienação. A cruz de Cristo significou um fim de todo regozijo “natural”: de
fato, ela o tornou impossível. Desse ponto de vista a triste “seriedade” do
homem moderno possui certamente uma origem Cristã, ainda que isso tenha sido
esquecido pelos próprios homens. Desde que o Evangelho foi pregado nesse mundo,
todas as tentativas de retorno a uma “alegria pagã”, todos os “renascimentos”, todo
“otimismo saudável” esteve condenado a fracassar. “Só existe uma tristeza”,
disse Leon Bloy, “que é a de não ser santo”. E é essa tristeza que permeia de
forma misteriosa toda a vida do mundo, sua fome e sede desenfreadas e patéticas
pela perfeição, que mata toda alegria. O Cristianismo tornou impossível o
simples regozijo com os ciclos naturais – como as colheitas e os ciclos
lunares. Por ter relegado a perfeição da alegria a um futuro inacessível – como
a meta e a finalidade de todo trabalho – ele transformou toda a vida humana em
“esforço” e “trabalho”.
Mas por outro lado o Cristianismo foi a revelação e
o dom da alegria, e assim, o dom da festa genuína. Toda noite de Sábado, na
vigília da ressurreição, cantamos “pois pela Cruz veio a felicidade para todo o
mundo”. Essa alegria é pura alegria, porque ela não depende de nada desse
mundo, e não consiste na recompensa de nada. Ela é total e absolutamente um
dom, uma charis, uma graça. E, sendo um puro dom, essa alegria possui um
poder transformador, o único poder realmente transformador nesse mundo. Ela
é o “selo” do Espírito Santo na vida da Igreja – na sua fé, esperança e amor.
5
“Pela Cruz veio a alegria para todo o mundo” – e não
apenas para algumas pessoas com se fosse sua alegria pessoa e privada. Mais uma
vez, se o Cristianismo fosse um puro “misticismo”, uma pura “escatologia”, não
haveria necessidade de festas e celebrações. Uma alma santificada poderia se
manter secretamente em festa independentemente do mundo, na medida mesma em que
afastasse, libertando-se de seu tempo. Mas a alegria foi dada à Igreja para
o mundo – para que a Igreja fosse a testemunha disso e para que ela
transformasse o mundo com sua alegria. Essa é a “função” das festas Cristãs e o
significado de sua permanência no tempo.
Para nós, a Páscoa e o Pentecostes – para nos
limitarmos às duas festas iniciais e fundamentais que dão significado a todo o
ano Cristão – eram primitivamente as comemorações de dois eventos do passado: a
ressurreição de Cristo e a descida do Espírito Santo. Mas o que é uma
“comemoração”? Não é a vida inteira da Igreja uma constante rememoração da morte
e da ressurreição de Cristo? Não é sua vida inteira chamada a ser a manifestação
do Espírito Santo? Na Igreja Ortodoxa, cada Domingo é o dia da ressurreição e
cada Eucaristia é um Pentecostes. De fato, o entendimento das festas como
comemorações históricas emergiu pouco a pouco depois que Constantino promoveu
uma transformação em seu significado inicial e, por estranho que pareça, as
divorciou de sua conexão viva com o tempo real. Assim é que hoje na Austrália a
Páscoa é celebrada no outono e ninguém acha isso estranho, porque por muitos
anos o calendário Cristão foi entendido como um sistema de dias santos a
serem observados dentro do tempo, vale dizer, no meio dos dias “profanos”, mas
sem nenhuma relação especial com eles.
Mas se a Igreja primitiva adotou, ou antes,
simplesmente manteve como suas as grandes festas Judaicas do Pessach e do
Pentecostes, não foi porque elas lembrassem a ressurreição de Cristo e a vinda
do Espírito Santo (sua recordação era a própria essência da vida da Igreja como
um todo), mas porque elas eram, mesmo antes de Cristo, o anúncio, a antecipação
dessa experiência do tempo e da vida
no tempo, de que a Igreja era a manifestação
e a plenitude. Elas eram, para usarmos outra imagem, o “material” do sacramento
do tempo que deveria ser realizado pela Igreja. Sabemos que ambas as festas
se originaram como celebrações anuais da primavera e dos primeiros frutos da
natureza. A esse respeito, elas era a própria expressão da alegria dos homens
com a vida. Elas celebravam o mundo que voltava à vida depois da morte do
inverno, tornando-se uma vez mais o alimento e a vida para os homens. E é
significativo que essa festa “natural”, universal e abarcante – a festa da
própria vida – tenha se tornado o ponto de partida e mesmo a fundação da longa
transformação da ideia e da experiência da festa. É também significativo que
nessa transformação cada nova etapa não aboliu ou substituiu a anterior, mas realizou-a
com um significado mais profundo e vasto, até que todo o processo foi consumado
no próprio Cristo. O mistério do tempo natural, a opressão do inverno e
a libertação da primavera, realizou-se no mistério do tempo como história
– a escravidão no Egito e a liberdade da Terra Prometida. E o mistério do tempo
histórico foi transformado no mistério do tempo escatológico, de seu
entendimento como Páscoa – a “passagem” para uma alegria definitiva de salvação
e redenção, como movimento em direção à realização do Reino. E Cristo, “nossa Páscoa[4]”,
realizou Sua passagem para o Pai, assumiu e realizou todos esses
significados – a totalidade do movimento do tempo em todas as suas dimensões; e
no “último e grande dia de Pentecostes” Ele inaugurou o novo tempo, o novo
“Éon” do Espírito.
E assim a Páscoa não constitui a comemoração de um
evento, mas – a cada ano – a plenitude do tempo em si, de nosso tempo real.
Pois ainda vivemos nas mesmas três dimensões do tempo: no mundo da natureza, no
mundo da história e no mundo da expectativa. E em cada um deles o homem
permanece na busca secreta da felicidade, vale dizer, de um sentido definitivo
e perfeito, de uma plenitude definitiva que ele não encontra nunca. O tempo
sempre aponta para uma festa, uma alegria, que ele não pode por si só dar ou
realizar. Tão necessitado de sentido, o tempo se torna a própria forma e
a imagem da falta de sentido.
Mas esse sentido é dado na noite da Páscoa. E ele
não é dado por meio de uma “explanação” ou mesmo de uma “comemoração”, mas como
o próprio dom da alegria, da alegria da participação no novo tempo do Reino.
Para ter essa experiência, a pessoa precisa se dirigir à Igreja Ortodoxa na
noite da Páscoa, depois que a procissão percorreu a volta da igreja e se deteve
na escuridão diante da porta fechada. Então as portas se abrem com o anúncio:
“Cristo ressuscitou!”, e tem início da celebração da Páscoa. Que noite é essa,
que São Gregório de Nissa disse se tornar mais brilhante do que o dia, e que os
Ortodoxos chamam de “noite clara”? Podemos descrever os vários ritos, analisar
os textos, mencionar milhares de detalhes, mas em última análise tudo isso é
secundário. A única realidade é a alegria, e a alegria nos é dada.
Vinde todos, então, para a alegria de nosso
Senhor
Ricos e pobres, dancem com júbilo!
Desfrutemos dos bens da bondade.
Que ninguém se lamente de sua pobreza, pois o
reino universal foi revelado.
E o ofício completo não é senão uma resposta a essa
alegria, sua aceitação, sua celebração, a afirmação de sua realidade.
A Páscoa do Senhor, da morte para a vida,
Da terra para os céus, que Cristo nosso Deus
trouxe para nós...
Agora todas as coisas se enchem de luz,
Os céus e a terra e todos os lugares abaixo da
terra.
Toda a Criação celebra a ressurreição de Cristo
Sobre a qual está fundamentada.
Celebramos a morte da morte,
A aniquilação do inferno,
O começo de uma vida nova e eterna.
E em êxtase cantamos louvores ao seu Autor.
Esse é o dia santo e escolhido,
O único Rei e Senhor dos Sábados,
A Festa das Festas e o Triunfo dos Triunfos.
Ó Cristo, grande e santíssima Páscoa,
Ó Verbo, Sabedoria e Poder de Deus!
Concede que Te comunguemos ainda mais intimamente
No dia do Teu Reino que não conhece o ocaso.
Chamamos a Páscoa de “sacramento do tempo”. De fato,
a felicidade que é concedida nessa noite, a noite que transforma a noite
numa noite “mais clara que o dia”, se torna a alegria secreta e o significado
definitivo de todo o tempo, transformando assim o ano num “ano Cristão”.
Depois da noite da Páscoa vem a manhã, depois outra noite e outro novo dia. O
tempo recomeça, mas agora ele se enche “desde dentro”, com essa experiência
única e escatológica da felicidade. Um raio de sol sobre o sombrio muro de uma
fábrica, o sorriso num rosto humano, cada manhã chuvosa, a fadiga das tardes –
tudo isso passa a ter como referência essa alegria, e não apenas aponta para
além, como também se torna um sinal, uma marca, a “presença” secreta dessa
alegria.
Por cinquenta dias depois da Páscoa nos é concedido
viver nessa felicidade pascal, experimentar esse tempo como festa. E
então chega o “último e grande” dia de Pentecostes, e com ele nosso retorno ao
tempo real desse mundo. Nas Vésperas desse dia é dito aos Cristãos – pela
primeira vez desde a Páscoa – que se ajoelhem. A noite se aproxima, a noite do
tempo e da história, do esforço cotidiano, da fadiga e das tentações, das
inescapáveis responsabilidades da vida. A época da Páscoa chega ao seu fim –
mas na medida em que penetramos na noite, sabemos que o fim se transformou em
começo, que todo o tempo agora se
constitui no tempo depois de Pentecostes (e é por isso que numeramos
todos os Domingos a partir desse ponto até a próxima Pascoa). Esse é o tempo no
qual a alegria do Reino, a “paz e a felicidade” do Espírito Santo, operam. “Não
haverá separação, amigos”, disse Cristo.
O próprio tempo agora passa a ser medido pelo ritmo
de fim e começo, de fim que se transforma em começo, e de começo que anuncia a realização
da plenitude. A Igreja penetra no tempo e sua vida nesse mundo é jejum, vale dizer,
uma vida de esforço, sacrifício, renúncia e morte. A própria missão da Igreja é
de se tornar todas as coisas para todos os homens. Mas como poderia a Igreja
realizar sua missão, como poderia ela ser a salvação do mundo, se não fosse
ela, em primeiro lugar e acima de tudo, o divino dom da Felicidade, a fragrância
do Espírito Santo, a presença no tempo da festa do Reino?
6
Depois da semana e do ano – o dia: a unidade de
tempo mais imediata e direta. É aqui, na realidade da vida cotidiana, que a
teologia do tempo, expressa na experiência do Domingo e da Páscoa, deve
encontrar sua aplicação. Estamos cientes, é claro, que o ciclo diário dos
ofícios, há tempos abandonado, não tem muito como ser restaurado. Mas o que
precisa ser restaurado, ou antes redescoberto, é a relação da Igreja com o
Cristão individual no tempo do dia, a relação que era (e que teoricamente ainda
é) o tema e o conteúdo dos ofícios diários. Pois esse não eram “pausas para
oração”, períodos de refresco espiritual e paz da mente, mas consistiam de fato
em atos litúrgicos, ou seja, em atos realizados em benefício de toda a
comunidade, como uma parte essencial da missão redentora da Igreja.
Contrariamente à nossa experiência secular do tempo,
o dia litúrgico começa nas Vésperas, ou seja, no entardecer. Trata-se, é claro,
de uma reminiscência da frase bíblica: “Fez o entardecer e o amanhecer, e foi o
primeiro dia[5]”.
Mas isso é mais do que uma reminiscência. Na verdade, é o fim de cada “unidade”
do tempo quem revela seu padrão e seu significado, que lhe empresta sua
realidade. O tempo sempre consiste em crescimento, mas somente no final podemos
discernir a direção desse crescimento e ver seus frutos. É no final, e não no
começo de cada dia que Deus viu que Sua criação era boa; foi no final da criação
que Ele a entregou ao homem, e assim, é no final do dia que a Igreja inicia a liturgia
da santificação do tempo.
Chegamos à Igreja, nós que estávamos no mundo tendo
vivido muitas horas cheias, como de hábito, com trabalho e descanso, sofrimento
e alegria, amor e ódio. Homens morreram e homens nasceram. Para alguns foi o
dia mais feliz de suas vidas, um dia para ser lembrado para sempre. Para outros
significou o fim de suas esperanças, a destruição de suas amas. O dia todo está aqui agora – único, irreversível,
irreparável. Ele se foi, mas seus resultados, seus frutos irão conformar o novo
dia, pois o que fizemos permanece para sempre.
Mas o serviço de Vésperas não começa com um
“diálogo” religioso do dia, como uma prece acrescentada a toda a demais
experiência. Ela começa como o início, e isso implica uma
“redescoberta”, em adoração e agradecimento, do mundo como criação de Deus. A
Igreja nos leva como que ao primeiro crepúsculo no qual o homem, chamado por
Deus à vida, abriu seus olhos e viu aquilo que Deus, em Seu amor, lhe havia
dado, viu toda a beleza, toda a glória do templo no qual ele se encontrava, e
deu graças a Deus. E nessa ação de graças ele se tornou ele mesmo.
Bendiz, o minh’alma o Senhor, bendiz ao Senhor...
Ó Senhor, quão maravilhosas são as tuas obras, a
tudo fizeste com sabedoria.
A terra está cheia de Teus benefícios.
Cantarei ao Senhor por toda vida,
Cantarei ao Senhor enquanto eu existir[6].
Assim deve ser. Deve haver alguém nesse mundo – que
rejeitou a Deus, e que, nessa rejeição, nessa blasfêmia, se tornou caos e
escuridão – deve haver alguém que permaneça no seu centro, que distinga, que o
veja outra vez como cheio de divinas riquezas, como uma taça cheia de vida e
alegria, como beleza e sabedoria, e que agradeça a Deus por isso. Esse “alguém”
é Cristo, o novo Adão, que restaura essa “vida eucarística”, que eu, o velho
Adão, rejeitei e perdi; ele que me torna mais uma vez o q eu suo, e restaura o
mundo em mim. E a Igreja está em Cristo, seu ação inicial é sempre uma ação de
graças, o retorno do mundo a Deus.
Através do contraste com a beleza e a maravilha da
criação, descobre-se, por outro lado, a escuridão e a falência do mundo, e esse
é o segundo grande tema das Vésperas. Se o que diz o Salmo 104 é verdade, o
mundo, tal como o conhecemos, é – por contraste – um pesadelo. Pelo fato de que
primeiro vimos a beleza do mundo, podemos agora ver sua feiura, perceber o que
perdemos, o modo como toda a nossa vida (e não um ou outro “deslize”) se tornou
pecado, e podemos nos arrepender disso. Agora as luzes estão apagadas.
As “portas reais” do santuário estão fechadas. O celebrante despiu suas vestimentas;
esse é o homem nu e sofredor que clama do lado de fora do Paraíso, em plena
consciência de seu exílio, de sua traição, de suas trevas, e ele diz ao Senhor:
“Das profundezas eu clamo a Ti, Senhor!”. Diante da glória da criação deve
haver uma enorme tristeza. Deus nos deu um novo dia, e podemos dizer o quanto
destruímos esse dom que nos foi dado. Nós não somos Cristãos “bonzinhos”
separados do resto do mundo mau. Se não nos vemos precisamente como
representantes desse mundo, como o próprio mundo, se não carregamos seu peso
todo nesse dia, nossa “piedade” pode até ser pia, mas não é Cristã.
Agora se inicia o terceiro tema das Vésperas: a redenção.
A luz chega a esse mundo de pecado e escuridão: “Ó luz graciosa da santa glória
do Pai, imortal, celestial, santo e bendito Jesus Cristo”. O mundo se encontra
no entardecer, porque chegou o Único, que dá sentido a tudo; nas trevas desse
mundo, a luz de Cristo revela mais uma vez a verdadeira natureza de todas as
coisas. Não é o mesmo mundo de antes da vinda de Cristo: Sua vinda agora pertence
ao mundo. O acontecimento definitivo do cosmo aconteceu. Sabemos agora que o advento de Cristo deve
transformar tudo o que se relaciona com nossas vidas. É por Sua causa que nosso
coração glorifica a criação no início das Vésperas, apenas por ter Ele nos dado
olhos para “contemplar a beleza das mãos de Deus em todas as Suas obras”. Agora
que chegou o tempo de agradecer a Deus por Cristo, começamos entender que tudo
se transformou, em Cristo, no seu verdadeiro esplendor. Na irradiação de Sua
luz o mundo deixa de ser um lugar comum. O próprio chão sobre o qual estamos é
um milagre de átomos esvoaçando no espaço. A escuridão do pecado é iluminada e seu
peso é assumido. A morte perde sua finalidade, esmagada pela morte de Cristo. Num
mundo no qual tudo o que parece ser presente se torna imediatamente passado,
tudo o que está em Cristo se torna capaz de participar do eterno presente de
Deus. Esse entardecer é o verdadeiro tempo de nossa vida.
E então chegamos ao último tema das Vésperas: o tema
do fim. Ele é anunciado quando cantamos o hino do Velho Simeão (Nunc
Dimittis). Os versos são atribuídos no Evangelho ao velho Simeão, que
passou sua vida na expectativa constante do Messias prometido, porque ele teve
uma visão na qual ele não morreria antes de vê-lo. Quando Maria e José levam o
menino Jesus para ser apresentado a Deus no templo, ele estava lá e O recebeu
em suas mãos, e o Evangelho recorda suas palavras:
Agora, Senhor, podes deixar Teu servo ir em paz,
segundo a Tua palavra, porque meus olhos viram a Salvação que preparastes ante
todos os povos, luz para iluminar as nações e glória de Israel Teu povo.
Simeão esperara toda sua vida, e finalmente o Menino
Cristo foi-lhe entregue: ele segurou a Vida do mundo em suas mãos. Ali ele
permaneceu por todo o mundo em sua expectativa e espera, e as palavras que ele
utilizou para expressar seu agradecimento se tornaram as nossas. Ele pôde
reconhecer o Senhor, porque estava esperando por Ele; ele O tomou em suas mãos
porque era natural receber alguém amado em seus braços; e assim toda sua vida
de espera se completou. Ele contemplou Aquele por quem aguardara tanto tempo. Ele
realizou sua proposta de vida, e estava pronto para morrer.
Mas a morte para ele não representou uma catástrofe.
Foi apenas a expressão natural da completação de sua espera. Ele não estava
fechando seus olhos para a luz que veria pela última vez: sua morte era apenas
o começo de uma visão interior dessa mesma luz. Do mesmo modo, as Vésperas constituem
o reconhecimento de que o crepúsculo desse mundo se torna o anúncio do dia que
não conhece ocaso. Neste mundo, todo dia termina na noite; o próprio mundo está
diante da noite, pois ele não pode durar para sempre. Mas a Igreja segue
afirmando que esse entardecer não é apenas um fim, mas também um começo, assim como
cada entardecer é também o início de um novo dia. Em Cristo e por Cristo ele
pode se tornar o começo de uma nova vida, do dia que não conhece ocaso. Pois
nossos olhos viram a salvação e a luz que jamais se apaga. E por isso, o tempo
desse mundo está prenhe de vida nova. Chegamos à presença de Cristo para
oferecer a Ele nosso tempo, estendemos nossos braços para recebê-Lo. E ele
preenche esse tempo Consigo mesmo, Ele o cura e o transforma – uma e outra vez –
no t empo de salvação.
7
“Houve um entardecer e um amanhecer...”. quando
despertamos, a primeira sensação é sempre a da noite, não da iluminação;
estamos enfraquecidos, desprotegido. É como se fosse a primeira experiência
real de vida de um homem retirado do calor familiar, em todo seu absurdo e toda
sua solidão. A cada manhã descobrimos a inércia da vida em toda sua amorfa
escuridão. Assim é que o primeiro tema das Matinas é, mais uma vez, a chegada
da luz na escuridão. Ela não começa como as Vésperas, com a criação, mas com a
queda. Mas nessa desesperança reside uma expectativa oculta, uma sede e uma fome.
E nesse cenário a Igreja proclama sua alegria, não só contra a semente desse
mundo, mas com sua realização plena. A cada manhã a Igreja anuncia que Deus é o
Senhor, e ela começa a organizar a vida em torno de Deus.
Na Igreja, as primeiras luzes das Matinas são velas,
como uma “antecipação” do sol. Então o próprio sol se levanta, dispersando as
trevas do mundo, e a Igreja vê nisso o raiar da verdadeira Luz do mundo, o
Filho de Deus. Sabemos que nosso Redentor vive, e que no meio do absurdo da
vida Ele novamente se revelará a nós. Embora os azares da vida nos “tirem do
ritmo”, a cada manhã podemos aclamar com o nascer do sol a vinda do longamente
esperado Messias. Apesar de tudo, “esse é o dia que o Senhor preparou – e nele
nos regozijamos e nos alegramos. Bendito o que vem em nome do Senhor”.
Na medida em que cresce a luz, o ofício se refere à
nova manhã de um novo tempo. Assim como as Vésperas se referem ao crepúsculo de
toda a experiência Cristã do mundo como um “ocaso”, também as Matinas se
referem à manhã como sendo a “alvorada” da experiência Cristã da Igreja, como
um início.
Essas duas dimensões complementares e
absolutamente essenciais do tempo moldam nossa vida no tempo e, dando sentido
ao tempo, o transformam e tempo Cristão. Essa dupla experiência é, de fato,
aplicada a tudo o que fazemos. Estamos sempre entre a manhã e a tarde, entre
Domingo e Domingo, entre Páscoa e Páscoa, entre as duas vindas de Cristo. A experiência
do tempo como um fim dá uma importância absoluta a seja o que for que
fazemos agora, e torna isso final, decisivo. A experiência do tempo como
começo enche todo nosso tempo de alegria, por acrescentar a ele o “coeficiente”
de eternidade: “Eu não morrerei, mas viverei e proclamarei as obras do Senhor”.
Estamos a trabalho no mundo, e esse trabalho – em verdade, qualquer trabalho – é
analisado em termos do mundo em si, e se torna sem significado, fútil,
irrelevante. E a cada entardecer existe a corrida das mesmas pessoas, sujas e
cansadas, voltando na direção oposta. Mas há muito, muito tempo um homem sábio
olhou para essa corrida (cuja forma muda sempre, mas que permanece sem sentido)
e disse:
Vaidade das vaidades! É tudo vaidade.
Que proveito retira o homem de todo o seu trabalho
sob o sol?
Uma geração passa, outra vem,
Mas a terra permanece paras sempre.
O olho não se satisfaz com o que vê, nem o ouvido
com o que ouve.
Não há nada de novo sob o sol...[7]
E isso permanece verdadeiro no mundo decaído. Mas nós,
Cristãos, também nos esquecemos de que Deus redimiu o mundo. Por séculos
pregamos a esse povo apressado: sua correria diária não tem sentido, é preciso
aceitar isso – e então você poderá ser recompensado em outro mundo com
um descanso eterno. Mas Deus nos revelou e nos ofereceu essa Vida eterna em
meio ao tempo – e em meio da correria do tempo – como sendo seu segredo e seu
objetivo. E assim Ele transformou o tempo, e nosso trabalho no tempo, no
sacramento do mundo futuro, na liturgia da realização e da ascensão. É quando
encontramos o próprio fim da autossuficiência do mundo que ele recomeça para
nós como a matéria do sacramento que devemos realizar em Cristo.
“Nada há de novo sob o sol”. E cada dia, cada
minuto, ressoa agora como uma afirmação vitoriosa: “Vede, eu fiz novas todas as
coisa, Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim...[8]”.
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