segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Alexander Schmemann - Pela Vida do Mundo - Capítulo VI

 

DESTRUIR A MORTE COM A MORTE

 

1

 

Vivemos hoje em dia numa cultura que nega a morte. Podemos constatar isso pela aparência acolhedora das agências funerárias, que buscam se parecer com as outras lojas. Lá dentro, o organizador do funeral tenta cuidar das coisas de tal modo a que ninguém se dê conta da tristeza presente; e uma sala de estar é desenhada para transformar o funeral em uma experiência na medida do possível agradável. Existe uma estranha conspiração de silêncio concernente ao franco fato da morte, e o próprio cadáver é “embelezado” para disfarçar a morte. Mas existiram no passado, e até hoje existem – mesmo dentro de nosso mundo, que tanto afirma a vida – culturas “centradas na morte”, nas quais a morte é uma das maiores e mais abarcantes preocupações, e em que a vida é concebida principalmente como uma preparação para a morte. Se para algumas pessoas a agência funerária parece espantar os pensamentos da morte, para outras mesmo certas “utilidades”, como uma cama ou uma mesa, se tornam símbolos, lembranças da morte. A cama é vista como uma imagem do sepulcro, enquanto o caixão é posto sobre a mesa.

 

Onde entra o Cristianismo em tudo isso? Não há dúvida, por um lado, de que o “problema da morte” é central e essencial na sua mensagem, conforme anuncia a vitória de Cristo sobre a morte, e que o Cristianismo tem sua fonte nessa vitória. Mas, por outro lado, temos a estranha sensação de que, embora essa mensagem seja certamente ouvida, ela não possui um impacto real nas atitudes humanas básicas em relação à morte. Antes, foi o Cristianismo que se “ajustou” a essas atitudes, aceitando-as como suas. Não é difícil dedicar a Deus – num suave discurso Cristão – novos edifícios e feiras mundiais, ou desfrutar – quando não, promover – as forças progressivas de afirmação da vida que campeiam em nossa “era atômica”, de modo a fazer o Cristianismo passar pela própria fonte dessa atividade frenética e centrada na vida. Igualmente fácil, ao pregar num funeral ou num retiro, é apresentar a vida como um vale de lágrimas e vaidades, e apresentar a morte como uma libertação.

 

Um ministro Cristão, que nisso representa toda a Igreja, deve hoje em dia utilizar-se das duas linguagens, esposando ambas as atitudes. Mas, se ele for sincero, ele deve sentir francamente eu “algo está faltando” nessas atitudes, e o que de fato falta é o próprio elemento Cristão. Pois constitui uma falsificação da mensagem Cristã, apresentar e pregar o Cristianismo como sendo essencialmente uma afirmação da vida – sem referir essa afirmação à morte de Cristo e, portanto, ao próprio fato de morte; passar em silêncio o fato de que para o Cristianismo a morte não é apenas o fim, como a própria realidade desse mundo. Mas “confortar” as pessoas e reconciliá-las com a morte, fazendo desse mundo um cenário sem sentido que serve apenas à preparação individual para a morte também implica falsificá-lo. Pois o Cristianismo proclama que Cristo morreu pela vida do mundo, e não para um “descanso eterno” em relação a ele. Essa “falsificação” faz do próprio sucesso do Cristianismo (de acordo com os dados oficiais, a construção de igrejas e as contribuições dos fiéis nunca estiveram tão em alta) uma profunda tragédia. O homem mundano quer que o ministro seja um camarada otimista, sancionando a fé num mundo progressista e otimista. E o homem religioso o vê como alguém sério, tristemente solene e que denuncia solenemente a vaidade e a futilidade do mundo. O mundo não deseja uma religião, e a religião não deseja o Cristianismo. Um rejeita a morte, outra a vida. Daí provém a imensa frustração tanto com as tendências seculares do mundo que afirma a vida, quanto da mórbida religiosidade daqueles que se opõem a ele.

 

A frustração perdurará enquanto os Cristãos continuarem a entender o Cristianismo como uma religião cujo propósito é o de ajudar, enquanto eles continuarem a manter uma autoconsciência utilitária típica da “velha religião”. Pois essa era, de fato, uma das principais funções das religiões: ajudar, e em especial ajudar as pessoas a morrer. Por esse motivo a religião sempre constituiu uma tentativa de explicar a morte e, ao explicá-la, reconciliar o homem com ela. Platão penou em seu Fédon para mostrar a morte como algo desejável e mesmo bom, e quantas vezes isso ecoou na história das crenças humanas, quando confrontado com a perspectiva de libertação desse mundo de mudanças e sofrimentos! Os homens se consolaram racionalizando que Deus criou a morte e que portanto ela está certa, ou que ela faz parte do padrão da vida; eles encontraram vários significados na morte, e se convenceram de que a morte é preferível a uma idade decrépita; eles formularam doutrinas sobre a imortalidade da alma – ou seja, de que, se o homem morre, pelo menos uma parte sua sobrevive. Tudo isso constituiu uma longa tentativa de retirar a terrível singularidade da experiência da morte.

 

Por ser uma religião, o Cristianismo teve que aceitar essa função fundamental das religiões: “justificar” a morte, para assim ajudar. Ao fazer isso, ademais, ela assimilou em maior ou menor grau as explicações clássicas sobre a morte, comuns a virtualmente todas as religiões. Pois nem a doutrina sobre a imortalidade da alma, baseada na oposição entre o espiritual e o material, nem a da morte como libertação, nem a da morte como punição, são, de fato, doutrinas Cristãs. E sua integração à visão de mundo Cristã mais corrompeu do que iluminou a teologia e a piedade Cristãs. Elas “funcionaram” enquanto o Cristianismo viveu num mundo “religioso” – vale dizer, num mundo centrado na morte. Mas elas deixaram de funcionar assim que o mundo superou essa velha religião centrada na morte e se tornou “secular”. Mas o mundo se tornou secular, não porque tenha se tornado “irreligioso”, “materialista”, “superficial”, não porque tenha “perdido sua religião” – como muitos Cristãos pensam – mas porque as velhas explicações realmente nada explicam. Em geral os Cristãos não se dão conta de que eles próprios, ou melhor, o Cristianismo, foi o principal fato de libertação da velha religião. O Cristianismo, com sua mensagem que oferece a plenitude da vida, contribuiu mais do que qualquer coisa para a libertação do homem dos temores e do pessimismo da religião. O secularismo, nesse sentido, é um fenômeno dentro do mundo Cristão, um fenômeno que seria impossível sem o Cristianismo. O secularismo rejeita o Cristianismo na medida mesma em que o Cristianismo se identifica com a “velha religião”, e tenta impingir ao mundo essas “explicações” e “doutrinas” sobre a vida e a morte que o próprio Cristianismo destruiu.

 

Entretanto, seria um grande erro pensar no secularismo apenas como sendo uma ausência de religião. Ele próprio é, de fato, uma religião, e como tal uma explicação da morte e uma tentativa de reconciliação em relação a ela. Ela é a religião daqueles que estão cansados de ver o mundo explicado em termos de “outro mundo”, a respeito do qual ninguém sabe nada, e a vida explicada em termos de uma “sobrevivência” sobre a qual ninguém tem a menor ideia do que seja; cansados de ver, em outras palavras, a vida receber seu “valor” em termos de morte. O secularismo é uma “explicação” da morte em termos de vida. O único mundo que conhecemos é esse mundo, a única vida que nos foi dada é essa vida – assim pensa o secularista – e depende de nós torná-la tão significativa, rica e feliz quanto possível. A vida termina na morte. Isso é desagradável, mas uma vez que é natural – uma vez que a morte é um fenômeno universal – a melhor coisa que o homem pode fazer é simplesmente aceitá-la como algo natural. Enquanto está vivo, naturalmente, ele não deve pensar a respeito, mas deve viver a vida como se a morte não existisse. A melhor maneira de esquecer a morte é se mantendo ocupado, é ser útil, é se dedicar a coisas grandes e nobres, é construir um mundo cada vez melhor. Se Deus existe (e um grande número de secularistas acredita firmemente em Deus e na utilidade da religião para suas atividades pessoais e corporativas), e se Ele, sem Seu amor e misericórdia (pois todos nós temos nossas deficiências) quiser nos recompensar por nossa vida ocupada, útil e correta com algum tipo de férias eternas, tradicionalmente chamadas de “imortalidade”, isso cabe estritamente à Seu próprio interesse e graça. Mas a imortalidade é um apêndice (embora eterno) dessa vida, na qual estão todos os interesses reais e os verdadeiros valores que valem a pena ser encontrados. A “agência funerária” é de fato o próprio símbolo da religião secularista, porque ela expressa tanto uma tranquila aceitação da morte como algo natural (uma casa entre outras casas sem nada que a distinga particularmente) e a negação da presença da morte na vida.

 

O secularismo é uma religião porque ele é uma fé, com sua própria escatologia e sua própria ética. E ele “funciona” e “ajuda”. E, falando francamente, se “ajudar” é um critério, devemos admitir que o secularismo centrado na vida ajuda de fato mais do que a religião. Para competir com ele, a religião teve que se apresentar como um “ajustamento à vida”, um “enriquecimento”, um “aconselhamento”, ela teve que se anunciar em cartazes no Metrô e nos ônibus como uma valiosa adição ao “banco amigo” e a todos os tipos de “negociantes amigos”: experimente isso, isso ajuda! E o sucesso religioso do secularismo é tão grande que levou alguns teólogos Cristãos a “desistir” da própria categoria de “transcendência”, ou, em termos mais simples, da própria ideia de “Deus”. Esse é o preço que foi preciso pagar para a religião ser “entendida” e “aceita” pelo homem moderno, proclamam os Gnósticos desse século.

 

Mas é aqui que chegamos ao âmago da questão. Pois para o Cristianismo o critério não é ajudar. O critério é a Verdade. O propósito do Cristianismo não é o de ajudar as pessoas reconciliando-as com a morte, mas consiste em revelar a Verdade a respeito da vida e da morte, para que as pessoas possam ser salvas por meio dessa Verdade. A salvação, entretanto, não apenas não é idêntica à ajuda, como, de fato, é oposta a ela. O Cristianismo se opõe à religião e ao secularismo não porque esses ofereçam “pouca ajuda”, mas precisamente porque eles “bastam”, porque eles “satisfazem” as necessidades do homem. Se o propósito do Cristianismo fosse retirar do homem o medo da morte, reconciliá-lo com a morte, não haveria necessidade de Cristianismo, até porque outras religiões o fazem melhor do que ele. E o secularismo é capaz de produzir homens que morrem alegremente, até corporativamente – e não apenas vivem – pelo triunfo da Causa, qualquer que seja ela.

 

O Cristianismo não consiste na reconciliação com a morte, mas com a revelação da morte, e ele revela a morte porque ele é a revelação da Vida. Somente Cristo é Vida, que a morte é aquilo que o Cristianismo proclama como sendo, vale dizer, o inimigo a ser destruído, e não um “mistério” a ser explicado. A religião e o secularismo, tentando explicar a morte, concedem a ela um status, a tornam racional e “normal”. Somente o Cristianismo proclama que ela é anormal e que, portanto, verdadeiramente horrível. Cristo chorou diante do sepulcro de Lázaro, e quando chegou sua própria hora, “ele começou a suar abundantemente”. À luz de Cristo, esse mundo, essa vida estão perdidos e além de uma mera “ajuda”, não porque exista p mudo da morte nele, mas porque ele aceitou e normalizou a morte. Aceitar o mundo de Deus como um cemitério cósmico que deve ser abolido e substituído por “outro mundo”, que se parece igualmente a um cemitério – o “repouso eterno” – e chamar a isso de religião, viver num cemitério cósmico e “dispensar” diariamente milhares de cadáveres, ao mesmo tempo em que nos excitamos com a ideia de uma “sociedade justa” e ainda ficamos alegres – essa é a queda do homem. Não é a imoralidade dos crimes do homem que o mostram como um ser decaído; é seu “ideal positivo” – religioso ou secular – e sua satisfação com esse ideal. Essa queda, é claro, só pode ser verdadeiramente revelada por Cristo, porque somente em Cristo essa a plenitude da vida revelada a nós, e assim a morte se torna “abominável”, a própria queda da vida, o inimigo. É esse mundo (e não algum outro mundo), é essa vida (e não alguma outra vida) que foram dados ao homem para que sejam um sacramento da presença divina, dados como comunhão com Deus, e é somente por intermédio desse mundo, dessa vida, somente transformando-os em comunhão com Deus que o homem se torna o que ele é. O horror da morte é, assim, não o fato de que ela seja o “fim”, não a destruição física. Por ser a separação desse mundo e dessa vida, ela constitui a separação com Deus. A morte não pode glorificar a Deus. Em outras palavras, quando Cristo revela a Vida a nós, é então que podemos ouvir a mensagem Cristã sobre a morte como inimiga de Deus. É quando a Vida chora sobre o sepulcro do amigo, quando ela contempla o horror da morte, é ali que começa a vitória sobre a morte.

 

 

2

 

Mas antes da morte existe o morrer; o avanço da morte sobre nós, pela decadência física e a doença. Aqui, mais uma vez, a perspectiva Cristã não pode ser identificada com nada do mundo moderno, ou com qualquer coisa que caracterize uma “religião”. Para o mundo moderno e secular, a saúde é o único estado normal do homem; assim, a doença deve ser combatida, e o mundo moderno conduz esse combate muito bem. Hospitais e medicina estão entre suas maiores conquistas. Mas a saúde tem um limite, e esse limite á a morte. Chega um momento em que os “recursos da ciência” se esgotam – e isso o mundo moderno aceita tão simples e lucidamente quanto aceita a própria morte. Chega um momento em que o paciente é vencido pela morte, e ele deve ser removido da enfermaria, discretamente, apropriadamente e com toda higiene – como parte da rotina geral. Enquanto o homem está vivo tudo é feito para mantê-lo vivo e, mesmo nos casos em que não há mais esperança, isso não deve lhe ser revelado. A morte nunca deve ser parte da vida. E mesmo sabendo que as pessoas morrem em hospitais, o tome geral e o comportamento ali são de caloroso otimismo. O objeto dos cuidados da moderna e eficiente medicina é a vida, não a vida mortal.

 

A visão religiosa considera a doença, mais do que saúde, como sendo o estado “normal” do homem. Nesse mundo de matéria mutante e mortal o sofrimento, a doença e o luto são as condições normais de vida. Os hospitais e os cuidados médicos devem ser fornecidos, mas por motivos religiosos e não por causa de algum interesse real na saúde em si. A saúde e a cura são sempre considerados como a misericórdia de Deus, do ponto de vista religioso, e uma cura verdadeira é considerada “milagrosa”. E esse milagre é realizado por Deus, e mais uma vez não porque a saúde seja boa, mas porque ele “prova” o poder de Deus e conduz o homem de volta a Deus.

 

Em sua aplicação última, essas duas perspectivas são incompatíveis, e nada mostra melhor a confusão dos Cristão a esse respeito do que o fato de que hoje os Cristãos aceitam ambas como sendo igualmente válidas e verdadeiras. O problema do hospital secular é resolvido nele se estabelecendo uma capelania Cristã, e o problema do hospital Cristão é resolvido tornando-o tão moderno e científico – isso é, “secular” – quanto possível. De fato, porém, existe uma rendição progressiva a perspectiva religiosa perante a secular, por razões que já analisamos acima. O ministro moderno tende a se tornar não só um “assistente” do médico, como um “terapeuta” de seu próprio direito. Todos os tipos de técnicas de terapia pastoral, visitas hospitalares, cuidados com os doentes – que enchem os catálogos dos seminários teológicos – são uma boa indicação disso. Mas será essa perspectiva Cristã (e, se não for, devemos simplesmente retornar à antiga) a única “religiosa”?

 

A resposta é: não, ela não é a única; mas tampouco é o caso de “retornar”. Devemos descobrir a imutável, mas sempre contemporânea, visão sacramental da vida humana, e portanto de seu sofrimento e padecimentos – a visão que foi da Igreja, mesmo que os Cristãos a tenham esquecido e deixado de entender.

 

A Igreja considera a cura como um sacramento. Mas isso foi mal compreendido ao longo de séculos de total identificação da Igreja com a “religião” (uma incompreensão que todos os sacramentos sofreram, como sofreu a própria doutrina dos sacramentos), em que o sacramento do óleo se tornou de fato o sacramento da morte, um dos “últimos ritos” destinados a abrir uma passagem mais ou menos segura do homem para a eternidade. Existe o perigo, hoje em dia, como o crescente interesse dos Cristãos na cura, de que esse sacramento passe a ser entendido como um sacramento de saúde, um “complemento” útil para a medicina secular. E ambas as visões estão erradas, porque ambas esquecem precisamente a natureza sacramental desse ato.

 

Um sacramento – como já sabemos – é sempre uma passagem, uma transformação. Mas não se trata de uma “passagem” para uma “supernatureza”, mas para o Reino de Deus, o mundo por vir, para a verdadeira realidade desse mundo e de sua vida, conforme redimidos e restaurados por Cristo. Trata-se da transformação, não da “natureza” em “supernatureza”, mas do velho no novo. Portanto, um sacramento não é um “milagre”, por meio do qual Deus, por assim dizer, rompe com as “leis da natureza”, mas é a manifestação da Verdade última sobre o mundo e a vida, o homem e a natureza, Verdade essa que é Cristo.

 

E a cura é um sacramento porque seu propósito e finalidade é, não a saúde em si, a restauração da saúde física, mas a entrada do homem na vida do Reino, na “paz e alegria” do Espírito Santo. Em Cristo, tudo nesse mundo, incluindo a saúde e a doença, a alegria e o sofrimento, se torna uma ascensão e uma entrada nessa nova vida, na sua espera e na sua antecipação.

 

Nesse mundo o sofrimento e a doença não de fato “normais”, mas sua própria “normalidade” é anormal. Eles revelam a último e permanente derrota do homem e da vida, uma derrota que nenhuma vitória parcial da medicina, ainda que maravilhosa e quase milagrosa, pode superar em definitivo. Mas em Cristo o sofrimento não apenas é “removido”, como é transformado em vitória. A própria derrota se torna vitória, se torna uma via, uma entrada para o Reino, e essa é a única e verdadeira cura.

 

Eis aqui um homem que sofre em sua cama de dores, e a Igreja chega a ele para realizar o sacramento da cura. Para esse homem, como para todo homem por todo o mundo, o sofrimento representa uma derrota, uma via de rendição completa à treva, ao desespero e à solidão. Isso é morrer no verdadeiro sentido do t ermo. Mas esse também pode ser o momento de uma vitória definitiva para o Homem e para a Vida nele. A Igreja não vem para restaurar a saúde desse homem, simplesmente substituir a medicina onde ela esgotou todas as suas possibilidades. A Igreja vem para conduzir esse homem ao Amor, à Luz e à Vida em Cristo. Ela não vem para meramente “confortá-lo” em seus sofrimentos, não vem para “ajudá-lo”, mas para fazer dele um mártir, uma testemunha de Cristo em seus próprios sofrimentos. Um mártir é alguém que contempla “os céus abertos, e o Filho do Homem colocado à direita de Deus[1]”. Um mártir é alguém para quem Deus não é outra, e última, chance de deter a dor insuportável; Deus é sua própria vida, e assim tudo em sua vida conduz a Deus e ascende para a plenitude do Amor.

 

Nesse mundo é preciso que haja tribulação. Ainda que reduzido ao mínimo pelo próprio homem, ou mitigado pela promessa religiosa de uma recompensa no “outro mundo”, o sofrimento permanece, e segue sendo terrivelmente “normal”. Mas Cristo disse, “tenham coragem, pois Eu venci o mundo[2]”. Através de Seu próprio sofrimento, não apenas todo sofrimento adquiriu significado, como ainda nos foi dado o poder de torná-lo em si um signo, um sacramento, uma proclamação, o “advento” dessa vitória; a derrota do homem, seu falecer se torna um caminho para a Vida.

 

 

3

 

O começo dessa vitória está na morte de Cristo. Esse é o eterno Evangelho – a Boa Nova – e ele continua sendo “loucura”, não só para esse mundo, como para a religião, na medida em que é a religião desse mundo (“...a fim de que não se torne inútil a Cruz de Cristo...[3]”). a liturgia da morte Cristã não começa quando o homem chega ao inescapável fim e seu cadáver jaz na igreja para os últimos ritos enquanto o rodeamos, como tristes e resignadas testemunhas da remoção digna de um homem desse mundo dos vivos. Ela começa a cada Domingo na medida em que a Igreja, ascendendo aos céus, “afasta todos os cuidados mundanos”; ela começa a cada festa da Igreja; ela começa, em especial, na alegria da Páscoa. Toda a vida da Igreja é de certo modo o sacramento de nossa morte, porque todas essas coisas consistem na proclamação da morte do Senhor, na confissão de Sua ressurreição. Mas, ainda assim, o Cristianismo não é uma religião centrada na morte; ele não é uma “culto de mistério” no qual uma doutrina “objetiva” de salvação da morte é oferecida em belas cerimônias, que requerem que se acredite nelas para usufruir de seus “benefícios”.

 

Ser Cristão, acredita em Cristo, significa, como sempre significou, o seguinte: saber, mediante uma fé transracional e absolutamente certa, que Cristo é a Vida de toda vida, que Ele é a própria Vida e, portanto, que Ele é a minha vida. “Nele estava a vida; e a vida era a luz para os homens”. Todas as doutrinas Cristãs – as da encarnação, da redenção, da expiação – constituem explicações, consequências, mas não a “causa” dessa fé. Somente quando acreditamos em Cristo essas afirmações se tornam “válidas” e “consistentes”. Mas a fé em si implica a aceitação, não disso ou dessa “proposição” a respeito de Cristo, mas no próprio Cristo com a Vida e a luz da vida. “Porque a Vida se manifestou, nós a vimos, dela damos testemunho, e lhes anunciamos a Vida Eterna. Ela estava voltada para o Pai e se manifestou a nós[4]”. Nesse sentido a fé Cristã é radicalmente diferente da “crença religiosa”. Seu ponto de partida não está numa “crença”, mas no amor. Em si e por si toda crença é parcial, fragmentária, frágil. “Porque conhecemos em parte, e profetizamos em parte (...) Onde quer que existam profecias, elas poderão falhar; onde existam línguas, elas poderão cessar; onde houver conhecimento, ele poderá se apagar. Somente o amor nunca falha[5]”. E se amar alguém implica que eu coloco nessa pessoa a minha vida, ou antes, que ela se torna o “conteúdo” da minha vida, amar a Cristo significa conhecê-Lo e possuí-Lo como a Vida de minha vida.

 

Somente essa posse de Cristo como Vida, a “paz e a alegria” da comunhão com Ele, a certeza de Sua presença, dá sentido à proclamação da morte de Cristo e à confissão de Sua ressurreição. Nesse mundo a ressurreição de Cristo jamais pode ser um “fato objetivo”. O Senhor ressuscitado apareceu a Maria, e “ela o viu a seu lado mas não soube que era Jesus”. Ele estava na praia junto ao mar de Tiberíades, “mas os discípulos não sabiam que era Jesus”. E no caminho para Emaús os olhos dos discípulos “estavam como que cegados, e eles não o conheceram”. A pregação da ressurreição permanece sendo uma loucura para esse mundo, e não é de admirar que mesmo os próprios Cristãos a “expliquem” reduzindo-a virtualmente às doutrinas pré-Cristãs sobre a imortalidade e a subsistência. E, de fato, se a doutrina da ressurreição não passa de uma “doutrina”, se se deve acreditar nela com um acontecimento do “futuro”, como um mistério de “outro mundo”, ela não é substancialmente diferente das outras doutrinas concernentes ao “outro mundo”, e pode facilmente ser confundida com elas. Seja a imortalidade da alma ou a ressurreição do corpo – nada sabemos a respeito, e toda discussão permanece no campo da mera especulação. A morte continua sendo a mesma misteriosa passagem para um futuro misterioso. A grande alegria que os discípulos sentiram quando viram o Senhor ressuscitado, esse “coração queimando” que eles experimentaram no caminho para Emaús não foi por causa de que mistérios de um “outro mundo” tenham sido revelados a eles, mas porque eles viram o Senhor. E Ele os enviou a pregar e a proclamar, não a ressurreição dos mortos – não uma doutrina da morte – mas o arrependimento e a remissão dos pecados, a nova vida, o Reino. Eles anunciaram aquilo que eles conheciam, que em Cristo a nova vida já havia começado, que Ele é a Vida eterna, a Plenitude, a Ressurreição e a Alegria do mundo.

 

A Igreja é a entrada para a vida ressuscitada de Cristo; ela é a comunhão com a vida eterna, “a paz e a alegria do Espírito Santo”. E é a expectativa do “dia sem ocaso” do Reino – não de algum “outro mundo”, mas a plenitude de todas as coisas e de toda a vida em Cristo. Nele a própria morte mostrou-se um ato de vida, porque Ele a preencheu com Sua Pessoa, com Seu amor e luz. Nele, “tudo pertence a vós (...) o mundo, a vida, a morte, as coisas presentes e aquelas por vir, tudo pertence a vós; e sois de Cristo; e Cristo é de Deus[6]”. E, se eu posso tornar minha essa vida nova, minhas serão a sede e a fome do Reino, minha a espera de Cristo, minha a certeza de que Cristo é Vida, de modo que minha própria morte seja um ato de comunhão com a Vida. Pois nem a vida nem a morte podem nos separar do amor de Cristo. Eu não sei quando, nem como, a plenitude vai chegar. Não sei quando as coisas serão consumadas em Cristo, nada sei a respeito dos “quando” e dos “como”. Mas eu sei que em Cristo essa grande Passagem, essa Páscoa do mundo já começou, que a luz do “mundo por vir” chegou a nós com a alegria e a paz do Espírito Santo, pois Cristo ressuscitou e a Vida reina.

 

Finalmente, eu sei que é essa fé e essa certeza que enchem de alegre significado as palavras de São Paulo que lemos a cada vez que celebramos a “passagem” de um irmão, seu adormecer em Cristo:

 

“De fato, a uma ordem, à voz do arcanjo e ao som da trombeta divina, o próprio Senhor descerá do céu. Então os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; depois nós, os vivos, que estivermos ainda na terra, seremos arrebatados junto com eles para as nuvens, ao encontro do Senhor nos ares. E então estaremos para sempre com o Senhor[7]”.



[1] Atos 7: 56.

[2] João 16: 33.

[3] I Coríntios 1: 17.

[4] I João 1: 2.

[5] I Coríntios 13.

[6] I Coríntios 3: 21-23.

[7] I Tessalonicenses 4: 16-17.

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