DESTRUIR A MORTE COM
A MORTE
1
Vivemos hoje em dia numa cultura que nega a morte. Podemos
constatar isso pela aparência acolhedora das agências funerárias, que buscam se
parecer com as outras lojas. Lá dentro, o organizador do funeral tenta cuidar
das coisas de tal modo a que ninguém se dê conta da tristeza presente; e uma
sala de estar é desenhada para transformar o funeral em uma experiência na
medida do possível agradável. Existe uma estranha conspiração de silêncio
concernente ao franco fato da morte, e o próprio cadáver é “embelezado” para
disfarçar a morte. Mas existiram no passado, e até hoje existem – mesmo dentro
de nosso mundo, que tanto afirma a vida – culturas “centradas na morte”, nas
quais a morte é uma das maiores e mais abarcantes preocupações, e em que a vida
é concebida principalmente como uma preparação para a morte. Se para algumas
pessoas a agência funerária parece espantar os pensamentos da morte, para
outras mesmo certas “utilidades”, como uma cama ou uma mesa, se tornam
símbolos, lembranças da morte. A cama é vista como uma imagem do sepulcro, enquanto
o caixão é posto sobre a mesa.
Onde entra o Cristianismo em tudo isso? Não há
dúvida, por um lado, de que o “problema da morte” é central e essencial na sua
mensagem, conforme anuncia a vitória de Cristo sobre a morte, e que o Cristianismo
tem sua fonte nessa vitória. Mas, por outro lado, temos a estranha sensação de
que, embora essa mensagem seja certamente ouvida, ela não possui um impacto
real nas atitudes humanas básicas em relação à morte. Antes, foi o Cristianismo
que se “ajustou” a essas atitudes, aceitando-as como suas. Não é difícil
dedicar a Deus – num suave discurso Cristão – novos edifícios e feiras
mundiais, ou desfrutar – quando não, promover – as forças progressivas de
afirmação da vida que campeiam em nossa “era atômica”, de modo a fazer o Cristianismo
passar pela própria fonte dessa atividade frenética e centrada na vida. Igualmente
fácil, ao pregar num funeral ou num retiro, é apresentar a vida como um vale de
lágrimas e vaidades, e apresentar a morte como uma libertação.
Um ministro Cristão, que nisso representa toda a Igreja, deve hoje em dia utilizar-se das duas linguagens, esposando ambas as atitudes. Mas, se ele for sincero, ele deve sentir francamente eu “algo está faltando” nessas atitudes, e o que de fato falta é o próprio elemento Cristão. Pois constitui uma falsificação da mensagem Cristã, apresentar e pregar o Cristianismo como sendo essencialmente uma afirmação da vida – sem referir essa afirmação à morte de Cristo e, portanto, ao próprio fato de morte; passar em silêncio o fato de que para o Cristianismo a morte não é apenas o fim, como a própria realidade desse mundo. Mas “confortar” as pessoas e reconciliá-las com a morte, fazendo desse mundo um cenário sem sentido que serve apenas à preparação individual para a morte também implica falsificá-lo. Pois o Cristianismo proclama que Cristo morreu pela vida do mundo, e não para um “descanso eterno” em relação a ele. Essa “falsificação” faz do próprio sucesso do Cristianismo (de acordo com os dados oficiais, a construção de igrejas e as contribuições dos fiéis nunca estiveram tão em alta) uma profunda tragédia. O homem mundano quer que o ministro seja um camarada otimista, sancionando a fé num mundo progressista e otimista. E o homem religioso o vê como alguém sério, tristemente solene e que denuncia solenemente a vaidade e a futilidade do mundo. O mundo não deseja uma religião, e a religião não deseja o Cristianismo. Um rejeita a morte, outra a vida. Daí provém a imensa frustração tanto com as tendências seculares do mundo que afirma a vida, quanto da mórbida religiosidade daqueles que se opõem a ele.
A frustração perdurará enquanto os Cristãos continuarem
a entender o Cristianismo como uma religião cujo propósito é o de ajudar,
enquanto eles continuarem a manter uma autoconsciência utilitária típica da “velha
religião”. Pois essa era, de fato, uma das principais funções das religiões:
ajudar, e em especial ajudar as pessoas a morrer. Por esse motivo a religião
sempre constituiu uma tentativa de explicar a morte e, ao explicá-la, reconciliar
o homem com ela. Platão penou em seu Fédon para mostrar a morte como algo
desejável e mesmo bom, e quantas vezes isso ecoou na história das crenças
humanas, quando confrontado com a perspectiva de libertação desse mundo de
mudanças e sofrimentos! Os homens se consolaram racionalizando que Deus criou a
morte e que portanto ela está certa, ou que ela faz parte do padrão da vida;
eles encontraram vários significados na morte, e se convenceram de que a morte
é preferível a uma idade decrépita; eles formularam doutrinas sobre a
imortalidade da alma – ou seja, de que, se o homem morre, pelo menos uma parte
sua sobrevive. Tudo isso constituiu uma longa tentativa de retirar a terrível
singularidade da experiência da morte.
Por ser uma religião, o Cristianismo teve que aceitar
essa função fundamental das religiões: “justificar” a morte, para assim ajudar.
Ao fazer isso, ademais, ela assimilou em maior ou menor grau as explicações
clássicas sobre a morte, comuns a virtualmente todas as religiões. Pois nem a
doutrina sobre a imortalidade da alma, baseada na oposição entre o espiritual e
o material, nem a da morte como libertação, nem a da morte como punição, são,
de fato, doutrinas Cristãs. E sua integração à visão de mundo Cristã mais
corrompeu do que iluminou a teologia e a piedade Cristãs. Elas “funcionaram”
enquanto o Cristianismo viveu num mundo “religioso” – vale dizer, num mundo
centrado na morte. Mas elas deixaram de funcionar assim que o mundo superou
essa velha religião centrada na morte e se tornou “secular”. Mas o mundo se
tornou secular, não porque tenha se tornado “irreligioso”, “materialista”, “superficial”,
não porque tenha “perdido sua religião” – como muitos Cristãos pensam – mas porque
as velhas explicações realmente nada explicam. Em geral os Cristãos não se dão
conta de que eles próprios, ou melhor, o Cristianismo, foi o principal fato de
libertação da velha religião. O Cristianismo, com sua mensagem que oferece a plenitude
da vida, contribuiu mais do que qualquer coisa para a libertação do homem dos temores
e do pessimismo da religião. O secularismo, nesse sentido, é um fenômeno dentro
do mundo Cristão, um fenômeno que seria impossível sem o Cristianismo. O secularismo
rejeita o Cristianismo na medida mesma em que o Cristianismo se identifica com
a “velha religião”, e tenta impingir ao mundo essas “explicações” e “doutrinas”
sobre a vida e a morte que o próprio Cristianismo destruiu.
Entretanto, seria um grande erro pensar no
secularismo apenas como sendo uma ausência de religião. Ele próprio é, de fato,
uma religião, e como tal uma explicação da morte e uma tentativa de reconciliação
em relação a ela. Ela é a religião daqueles que estão cansados de ver o mundo
explicado em termos de “outro mundo”, a respeito do qual ninguém sabe nada, e a
vida explicada em termos de uma “sobrevivência” sobre a qual ninguém tem a
menor ideia do que seja; cansados de ver, em outras palavras, a vida receber
seu “valor” em termos de morte. O secularismo é uma “explicação” da morte em
termos de vida. O único mundo que conhecemos é esse mundo, a única vida que nos
foi dada é essa vida – assim pensa o secularista – e depende de nós torná-la tão
significativa, rica e feliz quanto possível. A vida termina na morte. Isso é
desagradável, mas uma vez que é natural – uma vez que a morte é um fenômeno universal
– a melhor coisa que o homem pode fazer é simplesmente aceitá-la como algo
natural. Enquanto está vivo, naturalmente, ele não deve pensar a respeito, mas
deve viver a vida como se a morte não existisse. A melhor maneira de esquecer a
morte é se mantendo ocupado, é ser útil, é se dedicar a coisas grandes e
nobres, é construir um mundo cada vez melhor. Se Deus existe (e um grande
número de secularistas acredita firmemente em Deus e na utilidade da religião
para suas atividades pessoais e corporativas), e se Ele, sem Seu amor e misericórdia
(pois todos nós temos nossas deficiências) quiser nos recompensar por nossa vida
ocupada, útil e correta com algum tipo de férias eternas, tradicionalmente chamadas
de “imortalidade”, isso cabe estritamente à Seu próprio interesse e graça. Mas a
imortalidade é um apêndice (embora eterno) dessa vida, na qual estão todos os interesses
reais e os verdadeiros valores que valem a pena ser encontrados. A “agência funerária”
é de fato o próprio símbolo da religião secularista, porque ela expressa tanto
uma tranquila aceitação da morte como algo natural (uma casa entre outras casas
sem nada que a distinga particularmente) e a negação da presença da
morte na vida.
O secularismo é uma religião porque ele é uma fé, com
sua própria escatologia e sua própria ética. E ele “funciona” e “ajuda”. E, falando
francamente, se “ajudar” é um critério, devemos admitir que o secularismo
centrado na vida ajuda de fato mais do que a religião. Para competir com
ele, a religião teve que se apresentar como um “ajustamento à vida”, um “enriquecimento”,
um “aconselhamento”, ela teve que se anunciar em cartazes no Metrô e nos ônibus
como uma valiosa adição ao “banco amigo” e a todos os tipos de “negociantes
amigos”: experimente isso, isso ajuda! E o sucesso religioso do
secularismo é tão grande que levou alguns teólogos Cristãos a “desistir” da própria
categoria de “transcendência”, ou, em termos mais simples, da própria ideia de “Deus”.
Esse é o preço que foi preciso pagar para a religião ser “entendida” e “aceita”
pelo homem moderno, proclamam os Gnósticos desse século.
Mas é aqui que chegamos ao âmago da questão. Pois para
o Cristianismo o critério não é ajudar. O critério é a Verdade. O propósito
do Cristianismo não é o de ajudar as pessoas reconciliando-as com a morte, mas
consiste em revelar a Verdade a respeito da vida e da morte, para que as pessoas
possam ser salvas por meio dessa Verdade. A salvação, entretanto, não apenas não
é idêntica à ajuda, como, de fato, é oposta a ela. O Cristianismo se opõe à
religião e ao secularismo não porque esses ofereçam “pouca ajuda”, mas
precisamente porque eles “bastam”, porque eles “satisfazem” as necessidades do
homem. Se o propósito do Cristianismo fosse retirar do homem o medo da morte,
reconciliá-lo com a morte, não haveria necessidade de Cristianismo, até porque
outras religiões o fazem melhor do que ele. E o secularismo é capaz de produzir
homens que morrem alegremente, até corporativamente – e não apenas vivem – pelo
triunfo da Causa, qualquer que seja ela.
O Cristianismo não consiste na reconciliação com a
morte, mas com a revelação da morte, e ele revela a morte porque ele é a
revelação da Vida. Somente Cristo é Vida, que a morte é aquilo que o
Cristianismo proclama como sendo, vale dizer, o inimigo a ser destruído, e não
um “mistério” a ser explicado. A religião e o secularismo, tentando explicar a
morte, concedem a ela um status, a tornam racional e “normal”. Somente o
Cristianismo proclama que ela é anormal e que, portanto, verdadeiramente
horrível. Cristo chorou diante do sepulcro de Lázaro, e quando chegou sua
própria hora, “ele começou a suar abundantemente”. À luz de Cristo, esse mundo,
essa vida estão perdidos e além de uma mera “ajuda”, não porque exista p
mudo da morte nele, mas porque ele aceitou e normalizou a morte. Aceitar o
mundo de Deus como um cemitério cósmico que deve ser abolido e substituído por “outro
mundo”, que se parece igualmente a um cemitério – o “repouso eterno” – e chamar
a isso de religião, viver num cemitério cósmico e “dispensar” diariamente
milhares de cadáveres, ao mesmo tempo em que nos excitamos com a ideia de uma “sociedade
justa” e ainda ficamos alegres – essa é a queda do homem. Não é a imoralidade
dos crimes do homem que o mostram como um ser decaído; é seu “ideal positivo” –
religioso ou secular – e sua satisfação com esse ideal. Essa queda, é claro, só
pode ser verdadeiramente revelada por Cristo, porque somente em Cristo essa a
plenitude da vida revelada a nós, e assim a morte se torna “abominável”, a própria
queda da vida, o inimigo. É esse mundo (e não algum outro mundo),
é essa vida (e não alguma outra vida) que foram dados ao homem para
que sejam um sacramento da presença divina, dados como comunhão com Deus, e é somente
por intermédio desse mundo, dessa vida, somente transformando-os em comunhão
com Deus que o homem se torna o que ele é. O horror da morte é, assim,
não o fato de que ela seja o “fim”, não a destruição física. Por ser a separação
desse mundo e dessa vida, ela constitui a separação com Deus. A morte não pode
glorificar a Deus. Em outras palavras, quando Cristo revela a Vida a nós, é então
que podemos ouvir a mensagem Cristã sobre a morte como inimiga de Deus. É quando
a Vida chora sobre o sepulcro do amigo, quando ela contempla o horror da morte,
é ali que começa a vitória sobre a morte.
2
Mas antes da morte existe o morrer; o avanço da morte
sobre nós, pela decadência física e a doença. Aqui, mais uma vez, a perspectiva
Cristã não pode ser identificada com nada do mundo moderno, ou com qualquer
coisa que caracterize uma “religião”. Para o mundo moderno e secular, a saúde é
o único estado normal do homem; assim, a doença deve ser combatida, e o mundo
moderno conduz esse combate muito bem. Hospitais e medicina estão entre suas
maiores conquistas. Mas a saúde tem um limite, e esse limite á a morte. Chega um
momento em que os “recursos da ciência” se esgotam – e isso o mundo moderno
aceita tão simples e lucidamente quanto aceita a própria morte. Chega um
momento em que o paciente é vencido pela morte, e ele deve ser removido da enfermaria,
discretamente, apropriadamente e com toda higiene – como parte da rotina geral.
Enquanto o homem está vivo tudo é feito para mantê-lo vivo e, mesmo nos casos
em que não há mais esperança, isso não deve lhe ser revelado. A morte nunca
deve ser parte da vida. E mesmo sabendo que as pessoas morrem em hospitais, o
tome geral e o comportamento ali são de caloroso otimismo. O objeto dos
cuidados da moderna e eficiente medicina é a vida, não a vida mortal.
A visão religiosa considera a doença, mais do que
saúde, como sendo o estado “normal” do homem. Nesse mundo de matéria mutante e
mortal o sofrimento, a doença e o luto são as condições normais de vida. Os hospitais
e os cuidados médicos devem ser fornecidos, mas por motivos religiosos e não
por causa de algum interesse real na saúde em si. A saúde e a cura são sempre
considerados como a misericórdia de Deus, do ponto de vista religioso, e uma
cura verdadeira é considerada “milagrosa”. E esse milagre é realizado por Deus,
e mais uma vez não porque a saúde seja boa, mas porque ele “prova” o poder de Deus
e conduz o homem de volta a Deus.
Em sua aplicação última, essas duas perspectivas são
incompatíveis, e nada mostra melhor a confusão dos Cristão a esse respeito do
que o fato de que hoje os Cristãos aceitam ambas como sendo igualmente válidas
e verdadeiras. O problema do hospital secular é resolvido nele se estabelecendo
uma capelania Cristã, e o problema do hospital Cristão é resolvido tornando-o tão
moderno e científico – isso é, “secular” – quanto possível. De fato, porém, existe
uma rendição progressiva a perspectiva religiosa perante a secular, por razões
que já analisamos acima. O ministro moderno tende a se tornar não só um “assistente”
do médico, como um “terapeuta” de seu próprio direito. Todos os tipos de
técnicas de terapia pastoral, visitas hospitalares, cuidados com os doentes –
que enchem os catálogos dos seminários teológicos – são uma boa indicação
disso. Mas será essa perspectiva Cristã (e, se não for, devemos
simplesmente retornar à antiga) a única “religiosa”?
A resposta é: não, ela não é a única; mas tampouco é
o caso de “retornar”. Devemos descobrir a imutável, mas sempre contemporânea,
visão sacramental da vida humana, e portanto de seu sofrimento e
padecimentos – a visão que foi da Igreja, mesmo que os Cristãos a tenham esquecido
e deixado de entender.
A Igreja considera a cura como um sacramento. Mas isso
foi mal compreendido ao longo de séculos de total identificação da Igreja com a
“religião” (uma incompreensão que todos os sacramentos sofreram, como sofreu a
própria doutrina dos sacramentos), em que o sacramento do óleo se tornou de
fato o sacramento da morte, um dos “últimos ritos” destinados a abrir uma
passagem mais ou menos segura do homem para a eternidade. Existe o perigo, hoje
em dia, como o crescente interesse dos Cristãos na cura, de que esse sacramento
passe a ser entendido como um sacramento de saúde, um “complemento” útil para a
medicina secular. E ambas as visões estão erradas, porque ambas esquecem precisamente
a natureza sacramental desse ato.
Um sacramento – como já sabemos – é sempre uma passagem,
uma transformação. Mas não se trata de uma “passagem” para uma “supernatureza”,
mas para o Reino de Deus, o mundo por vir, para a verdadeira realidade desse mundo
e de sua vida, conforme redimidos e restaurados por Cristo. Trata-se da
transformação, não da “natureza” em “supernatureza”, mas do velho no novo.
Portanto, um sacramento não é um “milagre”, por meio do qual Deus, por assim
dizer, rompe com as “leis da natureza”, mas é a manifestação da Verdade última
sobre o mundo e a vida, o homem e a natureza, Verdade essa que é Cristo.
E a cura é um sacramento porque seu propósito e
finalidade é, não a saúde em si, a restauração da saúde física, mas a
entrada do homem na vida do Reino, na “paz e alegria” do Espírito Santo. Em Cristo,
tudo nesse mundo, incluindo a saúde e a doença, a alegria e o sofrimento, se
torna uma ascensão e uma entrada nessa nova vida, na sua espera e na sua
antecipação.
Nesse mundo o sofrimento e a doença não de fato “normais”,
mas sua própria “normalidade” é anormal. Eles revelam a último e permanente
derrota do homem e da vida, uma derrota que nenhuma vitória parcial da medicina,
ainda que maravilhosa e quase milagrosa, pode superar em definitivo. Mas em Cristo
o sofrimento não apenas é “removido”, como é transformado em vitória. A própria
derrota se torna vitória, se torna uma via, uma entrada para o Reino, e essa é
a única e verdadeira cura.
Eis aqui um homem que sofre em sua cama de dores, e
a Igreja chega a ele para realizar o sacramento da cura. Para esse homem, como
para todo homem por todo o mundo, o sofrimento representa uma derrota, uma via
de rendição completa à treva, ao desespero e à solidão. Isso é morrer no
verdadeiro sentido do t ermo. Mas esse também pode ser o momento de uma vitória
definitiva para o Homem e para a Vida nele. A Igreja não vem para restaurar a saúde
desse homem, simplesmente substituir a medicina onde ela esgotou todas as suas possibilidades.
A Igreja vem para conduzir esse homem ao Amor, à Luz e à Vida em Cristo. Ela não
vem para meramente “confortá-lo” em seus sofrimentos, não vem para “ajudá-lo”,
mas para fazer dele um mártir, uma testemunha de Cristo em seus
próprios sofrimentos. Um mártir é alguém que contempla “os céus abertos, e o
Filho do Homem colocado à direita de Deus[1]”.
Um mártir é alguém para quem Deus não é outra, e última, chance de deter a dor
insuportável; Deus é sua própria vida, e assim tudo em sua vida conduz a Deus e
ascende para a plenitude do Amor.
Nesse mundo é preciso que haja tribulação. Ainda que
reduzido ao mínimo pelo próprio homem, ou mitigado pela promessa religiosa de
uma recompensa no “outro mundo”, o sofrimento permanece, e segue sendo
terrivelmente “normal”. Mas Cristo disse, “tenham coragem, pois Eu venci o
mundo[2]”.
Através de Seu próprio sofrimento, não apenas todo sofrimento adquiriu
significado, como ainda nos foi dado o poder de torná-lo em si um signo, um
sacramento, uma proclamação, o “advento” dessa vitória; a derrota do homem, seu
falecer se torna um caminho para a Vida.
3
O começo dessa vitória está na morte de Cristo. Esse
é o eterno Evangelho – a Boa Nova – e ele continua sendo “loucura”, não só para
esse mundo, como para a religião, na medida em que é a religião desse mundo (“...a
fim de que não se torne inútil a Cruz de Cristo...[3]”).
a liturgia da morte Cristã não começa quando o homem chega ao inescapável fim e
seu cadáver jaz na igreja para os últimos ritos enquanto o rodeamos, como tristes
e resignadas testemunhas da remoção digna de um homem desse mundo dos vivos. Ela
começa a cada Domingo na medida em que a Igreja, ascendendo aos céus, “afasta
todos os cuidados mundanos”; ela começa a cada festa da Igreja; ela começa, em
especial, na alegria da Páscoa. Toda a vida da Igreja é de certo modo o
sacramento de nossa morte, porque todas essas coisas consistem na proclamação
da morte do Senhor, na confissão de Sua ressurreição. Mas, ainda assim, o Cristianismo
não é uma religião centrada na morte; ele não é uma “culto de mistério” no qual
uma doutrina “objetiva” de salvação da morte é oferecida em belas cerimônias,
que requerem que se acredite nelas para usufruir de seus “benefícios”.
Ser Cristão, acredita em Cristo, significa, como
sempre significou, o seguinte: saber, mediante uma fé transracional e absolutamente
certa, que Cristo é a Vida de toda vida, que Ele é a própria Vida e, portanto,
que Ele é a minha vida. “Nele estava a vida; e a vida era a luz para os
homens”. Todas as doutrinas Cristãs – as da encarnação, da redenção, da expiação
– constituem explicações, consequências, mas não a “causa” dessa fé. Somente quando
acreditamos em Cristo essas afirmações se tornam “válidas” e “consistentes”. Mas
a fé em si implica a aceitação, não disso ou dessa “proposição” a respeito de Cristo,
mas no próprio Cristo com a Vida e a luz da vida. “Porque a Vida se manifestou,
nós a vimos, dela damos testemunho, e lhes anunciamos a Vida Eterna. Ela estava
voltada para o Pai e se manifestou a nós[4]”.
Nesse sentido a fé Cristã é radicalmente diferente da “crença religiosa”. Seu ponto
de partida não está numa “crença”, mas no amor. Em si e por si toda crença é parcial,
fragmentária, frágil. “Porque conhecemos em parte, e profetizamos em parte
(...) Onde quer que existam profecias, elas poderão falhar; onde existam
línguas, elas poderão cessar; onde houver conhecimento, ele poderá se apagar.
Somente o amor nunca falha[5]”.
E se amar alguém implica que eu coloco nessa pessoa a minha vida, ou antes, que
ela se torna o “conteúdo” da minha vida, amar a Cristo significa conhecê-Lo e
possuí-Lo como a Vida de minha vida.
Somente essa posse de Cristo como Vida, a “paz e a
alegria” da comunhão com Ele, a certeza de Sua presença, dá sentido à
proclamação da morte de Cristo e à confissão de Sua ressurreição. Nesse
mundo a ressurreição de Cristo jamais pode ser um “fato objetivo”. O Senhor
ressuscitado apareceu a Maria, e “ela o viu a seu lado mas não soube que era
Jesus”. Ele estava na praia junto ao mar de Tiberíades, “mas os discípulos não
sabiam que era Jesus”. E no caminho para Emaús os olhos dos discípulos “estavam
como que cegados, e eles não o conheceram”. A pregação da ressurreição permanece
sendo uma loucura para esse mundo, e não é de admirar que mesmo os próprios
Cristãos a “expliquem” reduzindo-a virtualmente às doutrinas pré-Cristãs sobre a
imortalidade e a subsistência. E, de fato, se a doutrina da ressurreição não
passa de uma “doutrina”, se se deve acreditar nela com um acontecimento do “futuro”,
como um mistério de “outro mundo”, ela não é substancialmente diferente das
outras doutrinas concernentes ao “outro mundo”, e pode facilmente ser
confundida com elas. Seja a imortalidade da alma ou a ressurreição do corpo –
nada sabemos a respeito, e toda discussão permanece no campo da mera especulação.
A morte continua sendo a mesma misteriosa passagem para um futuro misterioso. A
grande alegria que os discípulos sentiram quando viram o Senhor ressuscitado,
esse “coração queimando” que eles experimentaram no caminho para Emaús não foi
por causa de que mistérios de um “outro mundo” tenham sido revelados a eles,
mas porque eles viram o Senhor. E Ele os enviou a pregar e a proclamar, não a
ressurreição dos mortos – não uma doutrina da morte – mas o arrependimento e a
remissão dos pecados, a nova vida, o Reino. Eles anunciaram aquilo que eles
conheciam, que em Cristo a nova vida já havia começado, que Ele é a Vida
eterna, a Plenitude, a Ressurreição e a Alegria do mundo.
A Igreja é a entrada para a vida ressuscitada de Cristo;
ela é a comunhão com a vida eterna, “a paz e a alegria do Espírito Santo”. E é
a expectativa do “dia sem ocaso” do Reino – não de algum “outro mundo”, mas a
plenitude de todas as coisas e de toda a vida em Cristo. Nele a própria morte
mostrou-se um ato de vida, porque Ele a preencheu com Sua Pessoa, com Seu amor
e luz. Nele, “tudo pertence a vós (...) o mundo, a vida, a morte, as coisas
presentes e aquelas por vir, tudo pertence a vós; e sois de Cristo; e Cristo é
de Deus[6]”.
E, se eu posso tornar minha essa vida nova, minhas serão a sede e a fome do
Reino, minha a espera de Cristo, minha a certeza de que Cristo é Vida, de modo
que minha própria morte seja um ato de comunhão com a Vida. Pois nem a vida nem
a morte podem nos separar do amor de Cristo. Eu não sei quando, nem como, a
plenitude vai chegar. Não sei quando as coisas serão consumadas em Cristo, nada
sei a respeito dos “quando” e dos “como”. Mas eu sei que em Cristo essa grande
Passagem, essa Páscoa do mundo já começou, que a luz do “mundo por vir” chegou a
nós com a alegria e a paz do Espírito Santo, pois Cristo ressuscitou e a Vida
reina.
Finalmente, eu sei que é essa fé e essa certeza que
enchem de alegre significado as palavras de São Paulo que lemos a cada vez que
celebramos a “passagem” de um irmão, seu adormecer em Cristo:
“De fato, a uma ordem, à voz do arcanjo e ao som
da trombeta divina, o próprio Senhor descerá do céu. Então os mortos em Cristo
ressuscitarão primeiro; depois nós, os vivos, que estivermos ainda na terra,
seremos arrebatados junto com eles para as nuvens, ao encontro do Senhor nos
ares. E então estaremos para sempre com o Senhor[7]”.
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