SOMOS AS TESTEMUNHAS
DESSAS COISAS
1
Não há necessidade de repetir aquilo que já foi dito
tantas vezes e tão bem nos últimos anos: que a Igreja é missão e que ser missão
constitui sua verdadeira essência, sua verdadeira vida. Mas é preciso, por
outro lado, lembrar que algumas “dimensões” da missão cristã foram várias vezes
esquecidas desde que a Igreja aceitou seu estabelecimento no mundo, sua
respeitável posição como “religião do mundo”.
Mas comecemos com algumas palavras a respeito de
nossa atual situação missionária. Quaisquer que tenham sido as realizações da
missão cristã no passado, hoje devemos, com toda honestidade, admitir um duplo
fracasso: fracassamos em obter qualquer “vitória” substancial sobre as demais
grandes religiões do mundo, e fracassamos em superar o crescimento e o prevalecimento
do secularismo em nossa cultura. Em relação às demais religiões, o Cristianismo
continua sendo simplesmente uma a mais, e certamente foi-se o tempo em que os cristãos
poderiam considerá-las como “primitivas” e destinadas a desaparecer diante da supostamente
evidente “superioridade” do Cristianismo. Não apenas elas não desapareceram,
como hoje mostram uma notável vitalidade, e “proselitizam” mesmo dentro das autodenominadas
sociedades “cristãs”. Quanto ao secularismo, nada demonstra melhor nossa
inabilidade em competir com ele quanto a confusão e a divisão que ele provoca
entre os próprios cristãos: a total e violenta rejeição do secularismo entre
todas as variedades de “fundamentalismo” cristão colide com sua igualmente
entusiástica aceitação por numerosos intérpretes cristãos do “mundo moderno” e
do “homem moderno”. Daí as intermináveis reavaliações, por parte dos cristãos,
de seus métodos missionários, de seu lugar e sua função no mundo.
Aqui podemos discernir duas grandes tendências. Em primeiro
lugar, existe a perspectiva religiosa de que falamos no primeiro capítulo.
O objeto da missão é pensado como sendo a propagação de uma religião,
considerada como uma necessidade essencial do homem. O que é significativo aqui
é que mesmo as igrejas mais tradicionais, confessionais e “exclusivas” igrejas
aceitam a ideia de um modus vivendi com outras religiões, com todos os
tipos de “diálogos” e “aproximações”. Existe – esse é o pressuposto – uma
religião básica, alguns “valores espirituais” e “religiosos”, e esses devem ser
defendidos contra o ateísmo, o materialismo e outras formas de irreligião. Não
apenas os cristãos “liberais” e “não denominacionais”, como também os
conservadores, estão prontos a desistir da ideia de uma missão pregadora da
única e verdadeira religião, que, como tal, se opõe a todas as outras
religiões, e a substituí-la por uma frente comum contra o inimigo: o
secularismo. Uma vez que todas as religiões estão ameaçadas por seu crescimento
vitorioso, uma vez que a religião e os “valores espirituais” estão em declínio,
os homens religiosos de todas as crenças devem esquecer suas diferenças e se
unir para defender esses valores.
Mas quais são esses “valores religiosos básicos”? Se
os analisarmos honestamente, não encontraremos um sequer que seja radicalmente
diferente do que aquilo que o secularismo também proclama oferecer ao homem.
Ética? Busca pela verdade? Fraternidade humana, solidariedade? Justiça?
Abnegação? Com toda honestidade, existe mais interesse passional por todos
esses “valores” dentre os “secularistas” do que nos corpos religiosos
organizados, que com tanta facilidade se amoldam ao minimalismo ético, à
indiferença intelectual, às superstições, ao tradicionalismo morto. O que resta
é a famosa “ansiedade” e os inúmeros “problemas pessoais” com os quais a religião
declara ser supremamente competente. Mas mesmo aqui, não é significativo – e já
falamos a esse respeito – que, ao lidar com esse assuntos a religião é obrigada
a emprestar todo o arsenal terminológico das diversas “terapêuticas” seculares?
Não são, por acaso, os “valores” apresentados nos manuais de felicidade
conjugal, tanto religiosos como seculares, idênticos de fato, em sua linguagem,
imagens e técnicas?
Parece paradoxal, mas a religião básica que tem sido
pregada e aceita como o único meio de combater o secularismo é, na verdade, uma
rendição ao secularismo. Essa rendição pode acontecer – como de fato acontece –
em todas as confissões cristãs, embora com um “colorido” diferente conforme
seja uma “igreja comunitária” suburbana não denominacional ou uma paróquia
litúrgica, confessional, hierárquica e tradicional. Pois a rendição consiste
não em desistir dos credos, tradições, símbolos e costumes (coisas pelas quais
o homem secular, cansado de seu ofício funcional, mostra às vezes grande
atração), mas em aceitar a própria função da religião em termos de promoção do
valor secular de ajuda, seja a ajuda na construção do caráter, para a
paz mental, ou para a segurança de uma salvação eterna. É nessa “chave” que se
dá a pregação da religião, e na qual ela é hoje aceita por milhões e milhões de
crentes “medianos”. E é verdadeiramente notável quão pouca diferença existe na
autoconsciência religiosa dos membros de confissões cujos dogmas parecem estar
em radical oposição umas com as outras. Pois mesmo que um homem mude de
religião, isso se dá normalmente porque ele encontra uma oferta maior de
“ajuda” – não uma verdade maior. Enquanto os líderes religiosos discutem o
ecumenismo no topo, existe na base uma ecumenismo de fato nessa “religião
básica”. É aqui, nessa “chave” que encontramos a fonte do aparente sucesso das
religiões em algumas partes do mundo, como na América do Norte, onde o “boom”
religioso se deve principalmente à secularização da religião. Essa é também a
fonte do declínio da religião nas partes do mundo onde o homem já não tem
tempos para uma análise constante de suas ansiedades e onde o “secularismo”
ainda mantém a grande promessa de pão e liberdade.
Mas se isso é religião, seu declínio continuará,
seja tomando a forma de um abandono direto da religião ou a do entendimento da
religião como um apêndice de um mundo que há muito deixou de referenciar, tanto
a si mesmo como a toda sua atividade, a Deus. E nesse declínio geral da
religião, as “grandes religiões” não cristãs possuem ainda maiores chances de sobrevivência.
Pois podemos nos perguntar em que medida algumas “tradições espirituais”
não-cristãs não constituem uma “grande ajuda” do ponto de vista daquilo que o
homem de hoje espera de uma religião. O Islamismo e o Budismo oferecem uma
excelente “satisfação” e “ajuda” não apenas para o homem primitivo, como também
para o homem sofisticado e intelectual. Não é verdade que a sabedoria e
o misticismo Orientais sempre exerceram uma atração quase irresistível
para as pessoas religiosas em toda parte? É de se temer que alguns aspectos
“místicos” da Ortodoxia devem sua crescente popularidade no Ocidente por causa
de sua fácil – embora errônea – identificação com o misticismo Oriental. Os
escritos ascéticos da Filocalia fazem tremendo sucesso em alguns grupos
esotéricos que são supremamente indiferentes à vida, morte e ressurreição de
Jesus Cristo. E as preocupações espirituais desses grupos esotéricos são, em
última análise, pouco diferentes daquelas dos pregadores mais enfaticamente
cristocêntricos quando falam da salvação pessoas e da “garantia da vida eterna”.
Em ambos os casos o q eu se oferece é uma “dimensão espiritual” da vida que
deixa intacta e inalterada a “dimensão material” – vale dizer, o próprio mundo
– e os deixa intactos sem nenhum problema de consciência. Trata-se de uma
questão muito séria, de fato, até que ponto, sob essa cobertura aparentemente tradicional,
algumas formas da missão cristã contemporânea não estão de fato pavimentando o
caminho para uma “religião mundial”, que na verdade terá pouquíssimo em comum
com a fé que um dia venceu o mundo.
2
A segunda tendência consiste na aceitação do
secularismo, de acordo com os ideólogos de um Cristianismo não religioso”, o
secularismo não é o inimigo, ele não é o fruto da perda trágica da religião
pelo homem, não um pecado ou uma tragédia, mas simplesmente o mundo que “chegou
ao tempo” em que o Cristianismo deve reconhecê-lo e aceitá-lo como
perfeitamente normal: “A honestidade pede que reconheçamos que devemos viver
num mundo como se não existisse Deus”. Esse ponto de vista foi recentemente
desenvolvido em muitos livros notáveis e não há necessidade de desenvolvê-lo
aqui. O que importa para nós é que essa missão é entendida aqui primariamente
em termos de solidariedade humana. Um cristão é um “homem devotado aos outros”.
Ele partilha incondicionalmente e por completo da vida humana dentro de uma
perspectiva conferida a ele pela história de Jesus de Nazaré. A missão cristã
não consiste em pregar a Cristo, mas em ser cristão na vida.
Sem dúvida, existe uma “ênfase” valiosa nessa tendência.
E, antes de tudo, o secularismo deve de fato reconhecê-la como um fenômeno
“cristão”, como resultado de uma revolução cristã. Ele só pode ser explicado no
contexto da história que começa no encontro entre Atenas e Jerusalém. De fato,
um dos mais graves erros do antissecularismo religioso está em que ele não vê
que o secularismo é feito de “verdades cristãs tornadas tolices”, de verdades
cristãs que “enlouqueceram”, e, ao simplesmente rejeitar o secularismo, ele
está de fato rejeitando junto algumas aspirações e esperanças fundamentalmente
cristãs. É verdade que é por intermédio da “secularização”, e não num encontro
religioso direto com o Cristianismo, que os homens das demais “grandes religiões”
podem entender determinadas dimensões do pensamento e da experiência, sem as
quais o Cristianismo não pode ser “ouvido”. É verdade também que em seu
desenvolvimento histórico, o Cristianismo voltou às dicotomias pré-cristãs e
fundamentalmente não cristãs entre o “sagrado” e o “profano”, o espiritual e o
material, etc., tendo assim estreitado e viciado sua própria mensagem.
Ainda assim, quando tudo isso é reconhecido,
permanece a verdade última, em relação à qual os partidários cristãos da secularização
parece ser cegos. Essa verdade é que o secularismo – precisamente devido à sua
origem “cristã”, ao selo cristã indelével que carrega – constitui uma tragédia
e um pecado. Ele é uma tragédia porque, tendo provado do bom vinho, o
homem preferiu e ainda prefere voltar à água; tendo visto a verdadeira luz,
escolheu a luz de sua própria lógica. É também característico que os profetas e
pregadores do “Cristianismo secularizado” constantemente se refiram ao “homem
moderno” como sendo aquele que “usa a eletricidade”, que foi moldado pela
“industrialização” e pela “visão científica do mundo”. A poesia e a arte, a
música e a dança não se incluem aqui. O “homem moderno” “chegou à idade” como
um adulto mortalmente sério, cônscio de todos os seus sofrimentos e alienações –
mas não da alegria –, do sexo – mas não do amor –, da ciência – mas não do
“mistério”. Uma vez que ele sabe que “não existe o céu”, ele é incapaz de compreender
a prece ao nosso Pai que está nos céus, e a afirmação de que os céus e a terra
estão cheios de sua glória. Mas a tragédia é também um pecado, porque o
secularismo consiste numa mentira a respeito do mundo. “Viver no mundo
como se não houvesse Deus” – mas a fidelidade ao Evangelho, a toda a tradição
cristã, à experiência de todos os santos e de todo o mundo da liturgia cristã
exige exatamente o oposto: viver num mundo vendo todas as coisas como uma revelação
de Deus, um sinal de Sua presença, a alegria de Seu advento, o chamado para a
comunhão com Ele, a esperança da plenitude Nele. Desde o dia de Pentecostes
existe um selo, um raio, um sinal do Espírito Santo em tudo para aqueles que
acreditam em Cristo e que sabem que Ele é a vida do mundo – e que Nele o mundo,
em sua totalidade, se tornou outra vez uma liturgia, uma comunhão, uma ascensão.
Aceitar o secularismo como a verdade sobre o mundo é, assim, alterar a fé
cristã original tão profunda e radicalmente, que é preciso que se responda à
questão: estamos nós falando do mesmo Cristo?
3
O único objetivo desse livro tem sido o de mostrar,
ou melhor, de “assinalar” que a escolha entre essas duas reduções do
Cristianismo – seja à “religião”, seja ao “secularismo” – não constitui a única
escolha, e que na verdade se trata de um falso dilema. “Somos testemunhas
dessas coisas...” – mas, de que coisas? Numa linguagem não muito adequada,
tentamos falar a respeito disso. E estamos certos de que é na ascensão da
Igreja para Cristo, na alegria do mundo futuro, na Igreja como o sacramento – o
dom, início, presença, promessa, realidade, antecipação – do Reino, que está a
fonte e o começo de toda a missão cristã. Somente quando retornamos da luz e da
alegria da presença de Cristo podemos recuperar o mundo como um campo cheio de
sentido de nossa ação cristã, que podemos ver a verdadeira realidade do mundo e
então descobrir o que devemos fazer. A missão cristã está sempre nos seus
começos. É hoje que sou enviado ao mundo em paz e alegria, “tendo visto
a verdadeira luz”, tendo partilhado do Espírito Santo, tendo sido uma
testemunha do divino Amor.
O que farei? O que deve a Igreja e cada cristão
fazer nesse mundo? Qual é a nossa missão?
Não existem receitas práticas para responder a essas
questões. “Tudo depende” de milhares de fatores – e, para termos certeza, todas
as nossas faculdades humanas de inteligência e sabedoria, de organização e
planejamento, têm que ser postas em ação. Mas – e esse é o ponto que quisemos
frisar nessas páginas – “tudo depende” basicamente de que sejamos testemunhas
reais da alegria e da paz do Espírito Santo, da nova vida da qual nos tornamos
parte através da Igreja. A Igreja é o sacramento do Reino – não porque ela
possua atos divinamente instituídos chamados de “sacramentos”, mas porque,
antes de tudo, ela é a possibilidade dada ao homem de ver, no mundo e através
do mundo, o “mundo do futuro”, de vê-lo e de “vivê-lo” em Cristo. Somente quando,
na escuridão desse mundo, discernimos que Cristo já “preencheu todas as coisas Consigo
mesmo”, é que essas coisas, quaisquer que sejam, se tornam reveladas e dadas a nós
plenas de significado e beleza. Um cristão é alguém que, para onde quer que
olhe, encontra Cristo e se regozija Nele. E essa alegria transforma todos os
seus planos e programas humanos, todas as suas ações e decisões, transformando
toda sua missão no sacramento do retorno do mundo para Aquele que é a vida
desse mundo.
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