segunda-feira, 29 de junho de 2020

Nikolai Berdiaev - Espírito e Liberdade - Capítulo III: A Revelação, a Fé e os graus de Consciência





I


A distinção tradicional estabelecida entre as religiões “reveladas” e as religiões “naturais” não é das mais profundas, ela não passa de exotérica. Todas as religiões nas quais divisamos um lampejo do divino são reveladas. Onde quer que o divino se manifeste, existe revelação e o divino se manifesta igualmente nas religiões pagãs; e ele se revela pela natureza nas religiões da natureza.

A antiga doutrina ensinada nos seminários, que tentava provar que Deus não se revelara no mundo pré-cristão senão ao povo israelita, através da Antiga Aliança, e que o paganismo estava mergulhado em total escuridão, não conhecendo mais do que demônios, já não se sustenta hoje em dia. Toda a diversidade da vida religiosa da humanidade não é outra coisa do q eu uma ascensão contínua em direção à única revelação cristã. E quando os especialistas da história científica das religiões se esforçam por demonstrar que o Cristianismo não é original, que as religiões pagãs conheciam antes o deus sofredor (Osíris, Adônis, Dionísio e outros), que o culto totêmico conhecia a eucaristia, a comunhão com a carne e o sangue do animal, que podemos encontrar na religião persa, na religião egípcia ou no orfismo a maior parte dos elementos do Cristianismo, eles não compreendem o sentido daquilo que se revela aos seus olhos. A revelação cristã é universal e tudo o que é análogo a ela nas demais religiões não passa de uma parte de sua revelação. O Cristianismo não é uma religião de mesma ordem que as outras; ele é, no dizer de Schleiermacher, a religião das religiões. Pouco importa se no Cristianismo, visto naquilo que ele tem de diferente, não existe nada original, fora a vinda do Cristo e sua personalidade! Nessa particularidade original é que precisamente se realiza a esperança de todas as outras religiões. As revelações anteriores não eram senão uma antecipação, um pressentimento da revelação cristã.

 O Egito estava irresistivelmente orientado para a imortalidade e nos mistérios de Osíris a morte e a Ressurreição de Cristo estavam prefigurados. Mas a Ressureição ontologicamente real, só se realizou em Cristo; é por meio dele que a morte foi vencida e que a vida eterna se tornou acessível. Na religião egípcia, havia uma revelação do divino; o pressentimento e o símbolos estavam refletidos no mundo natural. E o Cristianismo apareceu no mundo precisamente como a realização de todos os pressentimentos e de todas as prefigurações.

Quando, por oposição às religiões reveladas, falamos de religiões naturais, queremos dizer que nessas não existem manifestações dos outros mundos, que nelas não nos são dados mais do que os estados humanamente naturais: as ilusões do pensamento primitivo e da criação dos mitos, o reflexo do medo e da opressão provocados pelas forças ameaçadoras da natureza, ou bem a manifestação das forças da natureza não divina na consciência humana. Mas não existe natureza totalmente desprovida de divino, e todo o mundo natural não é mais do que o simbolismo dos outros mundos. A revelação da natureza não passa de um estágio na revelação de Deus.

A distinção estabelecida entre as religiões da natureza e as do espírito é mais profunda e mais justa. Essas religiões pertencem a estágios diferentes da revelação no mundo. Sua diferença corresponde à diferença fundamenta que existe entre o mundo natural e o mundo espiritual. Deus se revela na natureza e no espírito, ele se revela ao homem, como ser natural e espiritual. A revelação da divindade na natureza não passa do reflexo, da projeção e da objetivação de um acontecimento que se realiza no mundo espiritual, pois a revelação, por sua essência, é um evento da vida espiritual e a religião é uma manifestação do espírito.

A religião é a revelação de Deus e da vida divina no homem e no mundo. A vida religiosa consiste na obtenção, para o homem, do parentesco com Deus; assim ele sai do seu estado de isolamento, de solidão, de afastamento dos fundamentos da existência. Mas Deus tanto pode se revelar na vida religiosa, como pode se ocultar. A revelação não elimina o mistério: ela revela sua profundidade inefável. A revelação é o antípoda do pensamento racional; ela não implica que Deus seja acessível à razão e ao conceito; é por isso que nela sempre subsiste um mistério. A religião é a união paradoxal daquilo que é revelado com aquilo que permanece oculto. Paralelamente ao exotérico, existe sempre o esotérico. O exoterismo religioso busca a afirmação do finito, enquanto que o esoterismo pressupõe sempre o infinito. A interpretação da revelação num espírito de realismo e de naturalismo simplista constitui sempre um exoterismo, no qual a profundidade da revelação é incapaz de se revelar. A revelação de Deus não é um evento transcendente que se realizaria numa realidade objetiva e natural, ela não é uma luz projetada desde o exterior. Ela é um evento que se desenrola no mundo interior, uma luz que brota de uma profundidade abissal, um fato da vida espiritual que não tem nenhuma relação com a percepção das realidades exteriores.

A revelação não se dirige do objeto para o sujeito e, no entanto, sua natureza não é de modo algum subjetiva. A oposição entre sujeito e objeto não é exclusiva do fenômeno original da vida religiosa; ela desaparece na profundeza da experiência espiritual. A interpretação objetivista, transcendente e realista da revelação constitui um naturalismo que equivale a rejeitá-la e lançá-la fora. A revelação não se realiza no mundo objetivo, tampouco no mundo subjetivo e psíquico, que não passa de uma parte do mundo natural. A revelação se realiza no espírito, ela consiste na integração do mundo espiritual no nosso mundo, na nossa vida natural. Mas o mundo espiritual, no qual nasce a luz da revelação, não é um mundo objetivo indeterminado em relação ao nosso mundo subjetivo. Suas relações não podem ser identificadas com as que existem na realidade natural e psíquica, pois elas não são acessíveis senão a uma forma de pensamento simbólico.

Nos eventos da revelação, não existe distinção entre o que vem de fora e o que surge de dentro, entre o que emana do objeto e o que procede do sujeito; tudo é absorvido pela profundeza e não pode senão ser simbolizado exteriormente. A revelação não pode ser concebida como algo unicamente transcendente, ou como unicamente imanente, pois ela é a um só tempo imanente e transcendente, ou antes, ela não é nem uma coisa nem outra, porque essa distinção é secundária. É nas profundezas que o espírito de Deus se revela a Moisés; esse último escuta uma voz que provém de uma distância inefável. Mas a projeção e a objetivação naturalistas da revelação, seu reflexo na natureza do velho Adão, nos fazem ouvir a voz de Deus percutindo sobre o Monte Sinai, como se a luz da revelação viesse de fora.

Nos primeiros graus da consciência religiosa da humanidade, a revelação era concebida sob o ângulo do naturalismo, como um acontecimento que se desenrolava no mundo natural objetivo. O Pai se revelou na natureza objetiva antes de se revelar pelo Filho nas profundezas do espírito. Ele se manifestou antes de tudo como “força” e não como “verdade”. a força é uma categoria natural, enquanto que a verdade é uma categoria espiritual. Foi somente no Filho, em Cristo, que se revelou a natureza interior do Pai Celeste. Mas, para o pensamento naturalista, ele personifica o mestre, o soberano, e os traços dessa antiga concepção subsistem até hoje dentro do próprio Cristianismo. E, no entanto, a revelação da trindade não é a de uma monarquia celeste, o que seria uma heresia; ela é a revelação do amor celeste, do ecumenismo divino. no Filho se revela um outro aspecto Pai, o de Deus que ignora o Filho. Não podemos conhecer o Filho que anuncia a vontade do Pai, não podemos conhecer a Cristo nos acontecimentos objetivos, naturais e históricos do Evangelho, a menos que ele se revele nas profundezas do espírito, nos acontecimentos da experiência espiritual; e o conhecimento de Cristo pelo espírito pressupõe a ação do Espírito Santo. O mundo e o homem naturais deixam sua marca limitada e finita na revelação do Espírito no espírito.

A refração no mundo limitado da natureza, na antiga natureza do homem, cria os graus da revelação; as limitações da revelação geram o exoterismo. A verdade absoluta e a luz se refratam no homem natural, e passam pelo meio “obscuro” que torna a luz opaca. Todas as palavras que exprimem a verdade da revelação são imperfeitas e inadequadas. O absoluto da revelação é limitado pela relação recíproca entre sujeito e objeto, que reflete um determinado estado do mundo espiritual, mas que não exprime o fenômeno primordial da revelação. Deus é obrigado a se dissimular ao mundo natural. A luz divina teria cegado o olhar natural, se se derramasse sobre ele com todo seu poder. O Homem da Antiga Aliança não podia contemplar a Deus. A luz se difundia por graus, e se enfraquecia pelo fato de que o homem não estava preparado para recebê-la.

O Deus da Antiga Aliança, Javé, não constituía a revelação divina em sua natureza interior e secreta. Ele não passava de uma expressão exotérica da Face divina, tal como a podia entrever a consciência israelita. A cólera do deus bíblico não passava de um tema exotérico, uma réplica da cólera do povo judeu. Deus Pai se revelou no Filho como amor infinito. O politeísmo pagão era também uma revelação, mas a divindade se fraccionava na consciência pagã da humanidade antiga. O monoteísmo não podia ser discernido, devido ao estado interior da natureza humana. A vida esotérica de Deus não se revela senão exotericamente na vida religiosa da humanidade natural.

E somente em um ponto do mundo se entreabriu a vida secreta, esotérica da Trindade divina: ela apareceu no Filho, como Amor infinito, como o drama do amor e da liberdade. Entretanto, mesmo esse mistério do Cristianismo permaneceu, até um certo tempo, oprimido pela lei, devido a uma compreensão exotérica que limitou o infinito com o finito. A revelação cristã absoluta continua a agir num mundo natural relativo; ela é acolhida pelo homem natural e recebe, em consequência, o selo de sua limitação. Mesmo no Cristianismo a luz se difunde por graus e se refrata no meio obscuro que a recebe. É por isso que o Cristianismo possui suas épocas, suas idades, seus graus hierárquicos. O Cristianismo não pode ser contido por nenhum sistema jurídico, ele não pode ser relacionado a uma simples doutrina. A constituição espiritual do homem é móvel, dinâmica, e não se pode erigir em verdade última aquilo que não corresponde senão a uma constituição espiritual de tipo médio, a uma consciência amarrada ao finito. A submissão ao finito testemunha um “espírito burguês” na vida religiosa.

A revelação espiritual interior precede, numa continuidade ideal que não é necessariamente cronológica, a revelação exterior histórica. Não podemos compreender e acolher as revelações religiosas que provêm do mundo histórico, se não se realizar uma revelação nas profundezas do espírito, se a própria historicidade não foi percebida como uma manifestação do espiritual. Todos os acontecimentos, assim como as palavras e os gestos exteriores, permanecem ininteligíveis para nós, a menos que se revelem por meio de palavras e acontecimentos interiores, a menos que sejam decifrados nas profundezas do espírito. Nada se revela para mim que não se revele em mim. Só faz sentido para mim um acontecimento que se produza em mim. A revelação religiosa é um acontecimento que tem lugar, não apenas para mim, mas também comigo; é uma catástrofe interior, espiritual, que se realiza em mim; se eu não os viver, então os acontecimentos de que estamos falando como sendo revelações de Deus não terão para mim significado algum. Eu não posso decifrar o Evangelho senão à luz de acontecimentos espirituais de minha experiência íntima. Fora desses eventos interiores, o Evangelho não possui mais significado do que qualquer outro acontecimento da história.

Podemos ir mais longe, e dizer que a história não pode ser compreendida senão na sua experiencia espiritual, unicamente como reflexo das manifestações do espírito. Se não atribuímos à história esse significado interior e espiritual, ela se transforma numa matéria empírica desprovida de sentido e de encadeamento. A revelação é sempre a revelação de um sentido, e esse sentido só se encontra no espírito; não existe sentido nos eventos exteriores, a menos que sejam decifrados pelo espírito. Eis porque a fé precede sempre espiritualmente a autoridade. A interpretação da revelação que vê nela uma autoridade, é uma forma de materialismo. Quando acolhemos os dogmas cristãos com nossa consciência religiosa, estamos supondo que essa consciência, vale dizer o espírito em sua vida interior, precede a revelação exterior dos dogmas.

Quando nos levantamos contra a liberdade de consciência, partindo da necessidade objetiva da revelação, esquecemo-nos de que Deus não pode se revelar senão a uma consciência religiosa, que o Espírito não se revela senão ao espírito, que o Sentido não se revela senão ao sentido, que a revelação pressupõe a iluminação interior. Deus não pode se revelar à matéria impenetrável, ao objeto inanimado. A revelação é um processo bilateral e teândrico, ela é o encontro de duas naturezas interiormente aparentadas, e, para ser recebida, ela necessita de um meio favorável ao qual o divino não seja estranho; pois uma natureza que não tivesse nada de divino não poderia recebê-la. Não podemos conceber como sendo transcendentes as relações entre a divindade que se revela e o homem que a percebe. Deus não pode se revelar ao homem que não se coloca diante dele. A revelação pressupõe a presença da fé no homem, em sua natureza elevada, que torna possível a comoção religiosa da revelação, o nascimento de Deus no homem, o encontro do homem com Deus. Isso significa que a revelação implica a imanência da divindade no espírito humano, no espírito e não na alma. Na revelação, o transcendente se torna imanente. A negação da natureza espiritual suprema no homem, daquela que o torna semelhante a Deus, desemboca na negação da própria possibilidade da revelação, pois ela não teria onde se manifestar. Deus não teria seu outro “ele mesmo”, ele seria solitário.

Os teólogos católicos afirmam que o homem só é um ser espiritual e semelhante a Deus pela graça, e não por sua natureza; mas essa é uma terminologia convencional, e essa distinção só existe sobre um plano exterior. O homem foi criado à imagem de Deus, e à Sua semelhança. A revelação, enquanto fenômeno do espírito, como evento interior, não pode ser compreendida a não ser sob a luz da imanência espiritual, que afirma a imagem e a semelhança divinas no homem. negar completamente a imanência e reconhecer a pura transcendência implica cair no deísmo, vale dizer, na negação da relação interior existente entre Deus e o homem. A pura transcendência constitui uma ruptura dualista entre o mundo divino e o mundo humano, ela torna impossível o teandrismo. É por isso que é necessário começar, em teologia e em filosofia, não por Deus, nem pelo homem, mas pelo Deus-homem, pela natureza teândrica que domina essa oposição.

A revelação é de certo modo para o homem a restituição do espírito, que permanecia fechado à sua consciência, aprisionado na natureza material. A revelação é a profundeza do espírito que se abre, uma escavação que religa essa profundeza à superficialidade da alma. Minha experiência religiosa pessoal é sempre imanente. Só é transcendente aquilo que não foi vivido e experimentado por mim. Semelhante transcendência não existe senão na experiência psíquica, pois na experiência espiritual não existem limites intransponíveis entre a minha experiência e a experiência do outro. Minha experiência espiritual é a mesma de São Paulo, e acontece no mesmo e único modo espiritual, quaisquer que sejam as diferenças que existem entre nós. A experiência mística, que é a forma suprema da experiência espiritual, constitui uma vitória definitiva sobre a transcendência e uma aquisição da imanência perfeita.

A afirmação do transcendente na consciência religiosa é uma forma de objetivação naturalista, que limita a vida interior do espírito. O imanentismo não caracteriza nossa consciência contemporânea; ao contrário, esta manifesta, nas suas formas mais evidentes, uma tendência extremamente forte para o transcendente; ela separa Deus do homem, isola esse último em si mesmo, cria uma ruptura entre o espírito e a alma; ela se constitui num agnosticismo. O imanentismo espiritual e místico não tem nenhuma relação com aquele da filosofia contemporânea que afirma que o ser é imanente à consciência e que consiste num fenomenismo e num positivismo.

Mas existe outro imanentismo no qual a consciência é imanente ao ser. O sujeito conhecedor está mergulhado na vida infinita do espirito. Os limites da consciência se afastam, a fronteira entre o espírito e a alma é abolida, os dois mundos se penetram reciprocamente. O que se realiza no sujeito conhecedor, em minha consciência, se realiza no ser e com ele, na profundeza da vida espiritual. O transcendente não passa de uma parte do imanente, ele não é mais do que um evento do caminho espiritual, não mais do que um desdobramento do espirito oposto a si mesmo. Nesse desdobramento, a revelação aparece como sendo transcendente e se objetiva. Mas, por sua natureza interior, ela é inteiramente imanente ao espírito, ela constitui seu evento interior.


II

A revelação consiste numa transformação da consciência, numa modificação de sua estrutura, na formação de novos órgãos orientados para um outro mundo, ela é uma catástrofe da consciência. A revelação não é uma evolução, mas uma revolução da consciência. Ela opera uma mudança nas relações recíprocas entre o subconsciente (ou o supraconsciente) e o consciente; ela insere a esfera do subconsciente (ou do supraconsciente) na consciência. Sob a luz da revelação, os limites da consciência se desmancham; sua dureza se funde sob o fogo da revelação. A consciência se eleva ao supraconsciente, ela se expande e se aprofunda indefinidamente. A mônada psico-corporal isolada se entreabre, e o espírito sonolento desperta. A revelação significa sempre um despertar do espírito e se faz acompanhar de uma orientação da consciência para um outro mundo. A compleição da consciência e a elaboração de seus órgãos são sempre determinadas pelas diretrizes do espírito, pela vontade espiritual que elege e rejeita. Os limites da consciência resultam do grau de experiência espiritual. Suas formas são secundárias, não primitivas, e são determinadas pela contração e a expansão dos mundos, segundo o que decidiu a vontade espiritual inicial. Aquilo que se realiza na própria vida original determina a orientação da consciência, abrindo-se a um mundo e se fechando ao outro.

O próprio fato da revelação e a possibilidade da experiência religiosa, da penetração no outro mundo, não podem ser compreendidos senão com a ajuda de uma consciência dinâmica. Porém, a maior parte das escolas filosóficas e teológicas compreende estaticamente a natureza da consciência, e teme o dinamismo. A consciência mediana, submetida à razão, confinada à ordem natural da mônada psicofísica, não é irredutível, nem é a única possível. A consciência pessoal não consiste na limitação do espírito pelo corpo, como pensavam Hartmann, Drevs e outros. Os limites entre a consciência e o inconsciente não aparecem como imutáveis, fixos e absolutamente estáticos. O ser é anterior à consciência, e o que se produz nele modifica também a estrutura dessa última. O Logos, o Sentido do mundo, é absoluto, enquanto que a consciência está sujeita à mudança e é relativa em seus limites. O entendimento da consciência racionalizada não pode se identificar com o Logos do mundo. A consciência é ativa e dinâmica, porque o espírito que a criou é ativo e dinâmico. Na vida original, na vontade espiritual, pode haver uma orientação para um mundo novo, que irá elaborar novos órgãos para a consciência.

O positivismo, o materialismo, o naturalismo racionalista identificam uma parte limitada da consciência com o ser integral. A consciência, depois de estabelecer limites à receptividade do ser, se considera como refletindo esse ser na sua totalidade. O kantismo, que representa uma forma do espírito mais refinada d que o positivismo e o materialismo, se esforça por afirmar os limites inabaláveis e imutáveis de uma consciência fundamentalmente estática, que ele qualifica como transcendental. Essa já está irremediavelmente fechada. Para ela, ou bem o ser se torna uma coisa em si (Dang an sich), ou bem ele desaparece por completo. A experiência espiritual não pode ultrapassar os limites da consciência transcendental, sem se evadir da esfera das formas logicamente obrigatórias. Mas a consciência transcendental não é responsável pela limitação na qual se encontra mergulhada a vida espiritual do homem; ela não faz mais do que refletir o estado da vida, da experiência, da direção da vontade original.

A consciência teológica, mesmo lutando contra a filosofia kantiana, evolui em realidade na mesma esfera isolada e não reconhece a infinitude da experiência espiritual, a possibilidade de um crescimento da consciência. A infinitude da experiência espiritual e a possibilidade para a consciência de se elevar à supraconsciência, não são reconhecidas senão pelos místicos. Os teólogos oficiais reconduzem os mistérios da vida divina ao nível da consciência mediana, vale dizer, da consciência transcendental universalmente imposta.

Mas seria um erro crer que o evolucionismo naturalista interpreta dinamicamente a consciência. Ele não admite senão uma modificação e um desenvolvimento dentro dos limites de suas formas fixas, submetidas à ordem natural. A evolução do homem não se liberta do endurecimento, do estado estático da consciência. Esse endurecimento, esse estado estático, garantem que tudo se realizará dentro dos limites da ordem natural. A consciência imutável determina limites intangíveis dessa ordem, ela garante com isso o caráter natural de toda evolução, de toda modificação dentro do mundo. O evolucionismo naturalista se recusa a admitir que os limites da consciência e do ser possam se expandir. Ele prevê apriorística e definitivamente o que pode e o que não pode se realizar no ser, refletindo sobre ele a natureza submetida à consciência normal. Nesse caminho, toda evolução em direção a outros mundos se torna impossível por princípio.

Os teosofistas[1], distinguindo-se dos evolucionistas de tipo naturalista, admitem que a consciência pode evoluir, ou seja, ela pode se abrir a outros mundos. Essa noção do teosofismo contém em si um elemento indiscutível de verdade, ainda que essa verdade não tenha sido descoberta, mas apenas vulgarizada por ele. Podemos admitir uma modificação da consciência individualmente isolada e a possibilidade de uma consciência cósmica e de uma supraconsciência. A experiencia espiritual da humanidade atesta a existência de uma consciência cósmica, que possui órgãos diferentes daqueles da consciência individual.

O empirismo habitual é também tão pouco dinâmico em seu ponto de vista sobre a consciência quanto o evolucionismo habitual. Ele coloca a priori limites à experiência e distingue o que é possível ou o que é impossível nela. Seus limites não são determinados pela própria experiência, que possui uma natureza infinita, mas pela consciência racionalista. O empirismo possui um caráter nitidamente racionalista e não admite senão uma experiência racional; a experiência, ilimitada em suas possibilidades, é inacessível para ele. Ele ignora a experiência que mergulha no mundo espiritual infinito, e não conhece outra coisa que a experiência psíquica e sensível, orientada para o mundo natural e limitada pela consciência racional. O empirismo, assim como o evolucionismo, considera a organização da consciência de um ponto de vista estático; seus sistemas são caracterizados pela convicção de que os limites do ser correspondem aos limites da consciência fixa; eles evoluem, como no racionalismo, dentro de um círculo vicioso[2]. Somente o empirismo místico admite a possibilidade da plenitude e da infinitude da experiência e nos reconduz à vida original. Mas ele não possui quase nada em comum com o empirismo predominante, que nega toda possibilidade de comunicação entre os dois mundos.

O racionalismo, o idealismo transcendental, o empirismo, o evolucionismo, o positivismo teológico, são tendências nas quais se manifesta o caráter opressor da consciência estática. Eles não admitem que a consciência possa se expandir, que ela possa se abrir para a vida cósmica e a vida divina; eles negam a possibilidade da experiência espiritual, aquela da vida original. Trata-se de diferentes expressões de um só e mesmo processo, de uma mesma via, o reflexo de uma mesma experiência limitada. Daí nasce uma interpretação transcendente e exterior da revelação, deita de um realismo simplista e naturalista.

A concepção dinâmica admite a existência de diferentes graus para a consciência. A revelação indica aí precisamente um novo grau, uma modificação dinâmica de sua extensão. A consciência não é determinada pela realidade de um modo passivo; ela está ativamente dirigida para uma realidade ou para a outra. Às diferentes orientações da consciência correspondem diversas realidades. Zimmel explica bem porque elas são múltiplas: a ciência cria a sua, a arte e a religião possuem as suas. Essa teoria se reveste, em Zimmel, de um caráter relativista, mas ela conserva sua força independentemente de todo relativismo. Nós evoluímos em mundos diferentes e dependemos de orientações escolhidas por nossa vontade espiritual. O mundo da experiencia cotidiana é criado pela orientação ativa de nossa consciência, pela escolha de uma coisa e a rejeição de outra; ele não pode pretender uma realidade superior à de outros mundos.

A consciência média é determinada por seu encadeamento à realidade habitual, por sua incapacidade de se concentrar sobre outra realidade, de se voltar para um outro mundo. O universo religioso é criado por outra aspiração do espírito, por outra eleição da vontade; podemos dizer aqui que a consciência se liga ao objeto do qual ela se desviava habitualmente e que ela rejeita o objeto sobre o qual estava concentrada. A compleição da consciência implica sempre uma seleção, ela é determinada pela realidade à qual aspira, ela obtém o que ela deseja, ela é cega e surda para as coisas contra as quais se volta.

Nossa consciência se abre a determinados modos, elaborando um órgão receptivo correspondente; ela também se fecha a mundos inteiros, dos qu8ais ela se protege por meio de muralhas. Estamos sempre cercados por um mundo que tememos, sendo incapazes de manter sobre eles o olhar, e nos defendemos desse infinito temível por meio de nossa surdez e cegueira. Tememos ficar cegos e surdos por ele, e opomos a ele a limitação, o endurecimento e a inércia. É preciso que caia fogo do céu para refundir nossa consciência paralisada.

É falsa a suposição largamente difundida de que a realidade em si é acessível a uma consciência estática e passiva. O ser precede a consciência e não a determina num sentido ingenuamente realista, que implica sempre a crença em seu estado estático e passivo. O ser determina a consciência desde dentro e das profundezas, não desde o exterior.  Não se trata dessa parcela limitada do ser se revelando à consciência restrita, enquanto realidade objetiva por excelência, que precede a consciência, mas a plenitude do ser, vale dizer a vida espiritual infinita. Essa plenitude não pode ser recebida e percebida por uma consciência passiva e estática. Ela não pode se abrir, enquanto vida espiritual, senão a própria vida espiritual, senão à consciência orientada para essa vida, e que criou para si novos órgãos receptivos; ela não pode se revelar senão à supraconsciência. A faculdade de contemplação intuitiva constitui um órgão novo; ela não existe na consciência normal, ela não se revela senão à atividade intensa do espírito.

 É impossível considerar a existência de uma realidade objetiva colocando-se do ponto de vista da consciência estática e passiva, pois uma realidade desse gênero não existe em si mesma. A realidade é a vida infinita, sempre ativa e dinâmica, e ela não pode se revelar senão a uma vida que possua as mesmas propriedades. A realidade do mundo espiritual não pode provir do exterior, ela não pode provir senão do interior, como uma vida espiritual profunda. Eu mesmo devo descobrir a realidade do mundo espiritual, discerni-la em minha vida, em minha experiência, e não esperar que ela me seja assinalada desde fora. A experiência depende dos limites da consciência, e esses resultam da atitude do espírito, vale dizer, de um processo que se realiza na própria vida original. Mundos inteiros permanecem inacessíveis à nossa experiencia, porque damos as costas a eles, porque o muro de nossa consciência nos separa deles, porque escolhemos outro mundo, que é limitado. Para que esses mundos se manifestem a nós, nossa consciência deve sofrer uma catástrofe, o fogo da lava espiritual deve purificá-la.

A uma profundidade inefável do espírito, onde os limites estabelecidos entre mim e o mundo espiritual desaparece, se desenrola um acontecimento que sacode todo meu ser e transforma a estrutura de minha consciência. Nesse acontecimento, que é o fenômeno original da vida religiosa, de dá o encontro de dois movimentos: um que provém da vida divina e vem para mim, e outro que vai de mim para a vida divina. A revelação é o fogo que sai do mundo divino, que abrasa nossa alma, refunda nossa consciência, que varre seus limites. A revelação emana no mundo divino e se dirige para o mundo humano, implicando nele um movimento interior. Para sua percepção, ela pressupõe uma certa maturidade, uma Sede e uma Fome espirituais no homem que, profundamente decepcionado pelo mundo inferior, se põe em busca do mundo superior. A vida divina se revela por um movimento bilateral, provindo simultaneamente de duas naturezas, por uma modificação da natureza que pressupõe a ação da g raça divina e a da liberdade humana. O fenômeno da revelação necessita do fenômeno da fé. A revelação é impossível sem o acontecimento da experiência espiritual a que chamamos Fé, assim como a fé é impossível sem o evento do mundo espiritual a que chamamos Revelação. A fé real e objetiva pressupõe a revelação, o movimento proveniente do mundo divino, mas a revelação não pode penetrar no mundo a não ser que ela seja acolhida pela fé, enquanto acontecimento da vida espiritual do homem.


III

O fenômeno da fé na vida espiritual da humanidade pressupõe igualmente um dinamismo da consciência, sua separação do mundo natural e seu retorno ao outro mundo. Se, por um lado, podemos negar o objeto da fé, por outro é impossível negar sua existência na vida interior do homem. e esse fato, que tem uma imensa repercussão na história da humanidade, testifica que é possível uma modificação da consciência humana. O fato de que o mundo religioso se abre e se cria por uma determinada orientação de nosso espírito é igualmente tão inegável quando o fato de o mundo “empírico” se abrir e se criar por uma orientação diferente do espírito. A experiência religiosa não é inferior à experiência “empírica”. O mundo “empírico” não pode pretender para si uma realidade particular.  Os homens são obcecados por essa realidade “empírica”, e sua orientação para as realidades de outro mundo necessita para eles um trabalho de despertar desse sono hipnótico. A orientação da vontade humana criou uma atração magnética insuperável para o mundo “empírico” endurecido, cuja experiência é extremamente
limitada. O “mundo” consiste precisamente no endurecimento de uma certa experiência.

Na base do fenômeno da fé reside o retorno, a orientação da vontade primitiva, que se encontra em estado latente na vida original do espírito, para uma outra direção, para um outro mundo, vale dizer, para uma extensão inédita da experiência. A vontade primitiva elege e rejeita todo o tempo, ela escolhe um mundo e recusa outros, ela transforma a extensão da experiência. Na origem da fé repousa a vontade espiritual primitiva, não a vontade psíquica. A orientação da consciência e a extensão da experiência não são determinadas na esfera psíquica, mas na esfera espiritual. A fé não está dirigida para essa realidade que constitui já o resultado do endurecimento e da submissão da experiência habitual e indefinidamente reiterada. Ela não é uma obrigação imposta pela realidade. Ela é, segundo a eterna definição de São Paulo, uma demonstração das coisas invisíveis que não nos obriga a que as reconheçamos exteriormente. Ela está sempre orientada para o mundo misterioso e escondido.

O conhecimento da realidade que se revela à consciência média é uma demonstração das coisas visíveis. O mundo “empírico” que me rodeia, me obriga a reconhecê-lo; ele penetra em mim à força e eu não posso me recusar a vê-lo. O mundo das coisas visíveis, demonstradas pela experiência cotidiana, que são conhecidas pela experiência científica, não me dá liberdade de escolha. A consequência da escolha anterior foi uma obrigação de minha percepção e de meu conhecimento. A fé é um ato de liberdade do espírito, ela é obra de uma eleição e de um amor livres. Nenhuma realidade visível ou objetiva pode me obrigar ao ato da fé, que é uma invocação do mundo espiritual, misteriosa e íntima, que se abre à liberdade e se fecha à necessidade.

A percepção e o conhecimento do mundo natural “empírico”, do mundo das coisas visíveis, não exigem uma transformação radical da consciência, eles não esperam da vontade espiritual uma reeleição do mundo. Essa percepção e esse conhecimento se realizam, não no primitivo, mas no secundário, eles se efetuam na esfera determinada anteriormente pela vida original do espirito. A percepção e o conhecimento da realidade palpável e visível, que nos cerca de todos os lados, não exigem uma livre intensidade do espírito para estabelecer o objeto, que é a própria realidade.

Devemos, por meio de uma livre atividade do espirito, nos separar do mundo para nos dirigir a outro mundo. Devemos nos libertar da obsessão massacrante do mundo das coisas visíveis, que vela aos nossos olhos o mundo das coisas invisíveis. Quando ficamos confinados na consciência média fixada, somente o mundo “empírico” nos aparece, enquanto que o mundo espiritual permanece fechado. Nenhuma obrigação e nenhuma violência emanam do mundo invisível e misterioso. Inacreditável é a possibilidade do ateísmo, desse estado de consciência que nega a realidade de Deus, fonte de toda existência. Eu não posso negar a realidade da mesa sobre a qual escrevo, nem da cadeira em que me sento, mas posso negar a realidade de Deus. Mas, enquanto que o solipsismo permanece sendo um jogo do espírito, o ateísmo acaba por determinar toda a vida do homem. Deus não nos obriga, não nos constrange a reconhecê-lo, Ele está orientado para a liberdade do espírito, ele não se revela senão à vida livre do espírito.

“Bem-aventurados os que não viram, mas creram[3]”. Essa felicidade é ignorada por aqueles que não conhecem mais do que o mundo visível, que não creem senão no que são obrigados a crer. Mas bem-aventurados são os que creram no mundo invisível, naquilo que não são forçados a crer. Nessa liberdade de escolha, nessa liberdade de espírito reside o ato heroico da fé, que pressupõe o mistério e que não pode existir sem ele. O conhecimento da realidade visível está ao abrigo de todo perigo, ele está garantido pela força da obrigação. A fé na realidade invisível e misteriosa comporta um risco: é preciso aceitar atirar-se num abismo misterioso. A fé não conhece garantias exteriores; falo da fé enquanto experiência original da vida do espírito. Não é senão na esfera secundária, exotérica, da vida religiosa, que aparecem as garantias e que se organiza uma necessidade geral da fé.

Exigir garantias e provas da fé equivale a não compreender sua natureza, é negar o ato voluntário e heroico que ela inspira. Na experiência religiosa autêntica e original, cujo testemunho nos foi legado pela história do espírito humano, a fé nasce sem garantias, sem provas necessariamente convincente, sem obrigação exterior, sem autoridade; ela nasce da fonte interior; ela consente antes a loucura do que a sabedoria desse mundo; ela aceita as maiores antinomias, os maiores paradoxos. A fé necessita do sacrifício da razão inferior e é somente por meio desse sacrifício que se adquire a razão superior, que o Logos, o sentido do Mundo, se revela.

“Se qualquer um dentre vós pensa ser sábio, segundo o século, que se torne louco, a fim de se tornar sábio! Pois a sabedoria desse mundo é loucura diante de Deus[4]”.

A “sabedoria desse mundo” está ligada à consciência média orientada para o mundo das coisas visíveis. Essa consciência se funde outra vez no fogo da experiência espiritual a que chamamos de fé, e o homem passa necessariamente pela loucura.

O fenômeno da fé é muitas vezes descrito como um estado absolutamente passivo do homem, como um silêncio e uma dormência da natureza humana, como a ação exclusiva da graça divina. Encontramos essa interpretação do fenômeno da fé em certas formas do protestantismo e da mística quietista, mas essa não é a verdade última. É a descrição do fenômeno da fé na esfera psíquica, é o home psíquico, natural, que se cala e adormece. Mas é além que reside dissimulada a grande atividade criativa do homem espiritual. Na vida original do espírito a fé pressupõe uma imensa atividade e uma intensidade criativa infinita. O homem psíquico fica paralisado, abandona sua vontade natural. Mas o home espiritual interior leva sua atividade, sua liberdade primitiva, ao máximo da intensidade. Um estado exteriormente passivo frequentemente não passa da expressão de uma atividade interior. A ação da graça divina pressupõe a ação da liberdade humana. Somente a doutrina de Calvin sobre a predestinação nega com extremismo essa ação da liberdade humana, esse fenômeno bilateral da fé. Nas profundezas do espírito, nos rincões ocultos da vida e da experiência espirituais, existe sempre um encontro e uma ação recíproca entre a natureza divina e a natureza humana. Ficar obcecado por uma das naturezas, tanto pela natureza divina quanto pelo mundo das coisas visíveis, equivale a permanecer fechado na esfera psíquica. Entretanto, sua ação recíproca no mundo espiritual não implica a transcendência de uma natureza em relação à outra. Essa transcendência exterior não existe no mundo espiritual, ela é sempre exotérica e psíquica.

A fé é um ato de liberdade do espírito; sem liberdade não pode haver fé. É por isso mesmo que a fé se distingue do conhecimento, mas esse pressupõe sempre uma fé, vale dizer, uma intuição primitiva da realidade para a qual o espírito de dirige, e que ele mesmo escolhe. Também nós acreditamos no mundo natural empírico, no mundo das coisas visíveis, antes de tê-lo conhecido. O mundo das coisas visíveis nos força e nos obriga a conhecê-lo, porque nós o elegemos, porque a ele ligamos nosso destino. Nós nos separamos do mundo divino e nos encontramos no mundo natural, que se tornou para nós o único visível e acessível, o único que somos obrigados a reconhecer. Acreditamos por demais nesse mundo, e é por isso que ele está completamente aberto para nós. Demos as costas ao mundo divino e ele se fechou para nós, ele se tornou invisível. De certa forma, perdemos nosso próprio espirito, e só conservamos a alma e o corpo; organizamos nossa consciência conforme o mundo natural, criando órgãos receptivos para ele. Esquecemos o espírito e deixamos de conhecê-lo, pois o semelhante só pode ser conhecido pelo semelhante.

É pela fé, por uma livre eleição, que poderemos outra vez nos dirigir ao mundo espiritual, ao mundo divino. Deus não se revela senão na experiência da liberdade e do amor livre. Ele aguarda esse amor por parte do homem. a fé procede das profundezas do subconsciente, ou da elevação do supraconsciente, e ela revira todas as formas de consciência previamente estabelecidas. Graças a essa experiência, uma nova possibilidade se oferece a nós, para que conheçamos o mundo espiritual e divino. A gnose superior não é amarrada pela fé que, ao contrário, lhe abre o caminho para a experiência; mas essa gnose não constitui uma demonstração racional e lógica da existência do ser divino. tal demonstração a identificaria com os objetos do mundo visível e natural que nos forçam a reconhecê-los. Deus é Espírito e ele se revela na contemplação intuitiva do espírito. A gnose é precisamente o conhecimento espiritual, baseado na contemplação viva do mundo espiritual, totalmente diferente do mundo natural.


IV

A existência de uma obrigação lógica universal e a existência de provas racionais são resultado de um certo grau de união espiritual, de uma certa catolicidade das consciências. Quando, na fé religiosa, exige-se uma demonstração logica, costuma-se estabelecê-la no nível mais baixo da união espiritual. A necessidade científica, assim como a necessidade jurídica, representa um grau inferior de união espiritual, ou, mais exatamente, a desunião própria ao mundo natural. Somente os homens distanciados pelo espírito e interiormente desunidos recorrem a provas cientificas e jurídicas para se convencer mutuamente. A alguém que me é caro em espírito, a um amigo, eu não tenho necessidade de provar certas coisas, nem tenho que obrigá-lo a crer nelas, mas ambos vemos uma só e mesma verdade e nos unimos nessa verdade.

Mas, mesmo para o mundo natural desunido e dividido, deve haver uma união na verdade, uma certa possibilidade de compreensão recíproca e de vida comum. O que é lógica e cientificamente obrigatório, nas verdades que nos orienta, no mundo natural e histórico, não constitui mais do que uma união reduzida, ou, no mínimo, em seus começos. As verdades dos matemáticos, das ciências da natureza e da história possuem um caráter comprovativo e obrigatório, porque elas devem ser reconhecidas indiferentemente por homens de espírito oposto e que estão totalmente desunidos interiormente. A união científica e lógica, no domínio dessas verdades, não necessita mais do que uma forme elementar e inferior de união. As leis lógicas, o ser ideal de Husserl, pertencem também ao “mundo visível”, ao mundo universalmente obrigatório. O crente e o ateu, o conservador e o revolucionário, estão igualmente obrigados a reconhecer as verdades matemáticas, as da lógica e as da física. O mesmo podemos dizer da necessidade jurídica.

Não existe necessidade de união, de catolicidade, de comunhão de espírito para reconhecer um mínimo de direitos nas relações dos seres entre si. Não há necessidade de comunhão espiritual no amor para reconhecer as verdades gerais da ciência e do direito. Seu caráter obrigatório se adapta precisamente a uma sociedade na qual os homens não se amam mutuamente, na qual são hostis uns em relação aos outros, na qual eles não se encontram unidos em espírito. É preciso apresentar provas aos inimigos, enquanto que nos unimos aos amigos na contemplação e na realização da verdade única. A validade lógica necessária e universal, e a necessidade de prova ligada a ela, possuem uma natureza social. Elas oferecem o meio de reunir o mundo dividido, de manter a unidade por meio da obrigação, preservando-a assim da cisão definitiva. A ciência positiva e o direito positivo nasceram na atmosfera do mundo desagregado, e têm como missão manter a unidade no ambiente de animosidade e de divisão que nele reina. A obrigação de se submeter às verdades da ciência do direito jamais teria nascido numa atmosfera de união espiritual e de amor, na qual o conhecimento consistiria na contemplação ecumênica da verdade, e onde as relações entre os homens seria determinada, não pelas normas jurídicas, mas pelo próprio amor, pela união no espírito. Não haveria necessidade de provar seja lá o que for a seja lá quem for, nem de obrigar algo a alguém, pois todo homem se encontraria entre seres espiritualmente próximos, aparentados, e não entre estranhos e forasteiros.

Já as verdades de ordem moral ou os ensinamentos de caráter filosófico, supõem um alto grau de união espiritual e possuem um aspecto menos obrigatório do que as verdades matemáticas, as da ciência positiva ou dos elementos do direito. A comunhão no conhecimento filosófico pressupõe um parentesco espiritual maior do que a comunhão no conhecimento científico. No conhecimento filosófico, aqueles que estão distantes e reciprocamente estranhos não podem convencer uns aos outros, não podem se obrigar mutuamente a reconhecer uma verdade única. Pois aqui é necessária uma unidade de intuição; assim é que os platônicos de todas as eras constituem, de certa forma, uma só sociedade espiritual na qual a contemplação do mundo das ideias é sempre idêntica. Eles não podem provar a existência desse mundo aos que não fazem parte de sua união espiritual. As verdades de ordem moral repousam sobre uma existência espiritual comum, sobre a visão de uma verdade única, e é difícil as impor àqueles que se acham fora da experiência de sua união espiritual. As verdades da religião e da revelação pressupões um máximo de comunhão espiritual, seu grau último, elas pressupõem uma catolicidade das consciências. Elas são pouco convincentes, contestáveis e inúteis para aqueles que são estranhos e distantes, e que se mantêm fora da associação espiritual. Fora dessa experiência espiritual, única e comum, essas verdades são mortas.

Dar um sentido lógico e jurídico às verdades religiosas, não passa de conferir a elas um valor social exotérico. É assim que o mundo espiritual se rebaixa até o mundo natural e se adapta às formas de união desse mundo dividido. O homem natural ainda precisa das necessidades lógicas e jurídicas, ele identifica a vida religiosa à vida desse mundo, o Reino de Deus ao reino de César. Mas no mundo espiritual trata-se de outra coisa. A doutrina da autoridade como critério supremo da verdade, nasce da identificação da ordem do outro mundo com a desse mundo, da necessidade de conservar ara ele uma base intangível. A doutrina da autoridade talvez seja necessária para o homem psíquico e o mundo natural, para certos estágios de sua evolução. Mas ele reflete a fraqueza na fé, a insuficiência da experiência espiritual, a incapacidade de contemplar a verdade e de ver a realidade.

Não pode haver critério de conhecimento de Deus fora dele próprio. O mesmo acontece com a experiência espiritual, que não pode se apoiar senão sobre as profundezas pessoais, a experiência espiritual é a um tempo individual e supraindividual, ela não é jamais unicamente a “minha experiencia”. A busca de critérios transcendentais resulta do isolamento do mundo psíquico. No fenômeno da fé, meu amor, minha atividade, minha eleição, são dados e se unem misteriosamente à ação da graça divina, do amor e do impulso divinos em relação a mim. A fé é a aquisição da graça, que não conhece a necessidade no sentido lógico e jurídico do termo; ela nos revela uma união de outra ordem, ela é o oposto do que é lógico e jurídico. A teofania nos é dada, antes de tudo, na liberdade, e não na autoridade.


V

A revelação é adaptada à estrutura da consciência, proporcional aos graus que ela atinge. Existem, portanto, graus na revelação. A efusão da luz divina corresponde às transformações sofridas pela consciência, às diversas tendências e às múltiplas eclosões do espírito. Nos graus da revelação, não apenas o homem, como o próprio mundo se modifica, aparecem novas épocas na vida original, na vida universal do espírito. A revelação da Antiga Aliança, limitada à vida do povo israelita, correspondeu ao grau de consciência do povo de Israel. A luz da revelação são se distribui senão proporcionalmente à capacidade da consciência, ao grau de receptividade do homem natural para com o mundo espiritual. Jacob Boehme dizia que o amor divino se refrata nos elementos sombrios sob a forma de ira divina, de fogo devorador. O próprio Deus é Amor absoluto na Trindade divina, mas pode ser concebido como a ira de um elemento separado de Deus e desprovido de amor. A antiga imagem de Javé não passa de uma revelação exotérica de Deus refratada no obscuro elemento natural.

  Mesmo na revelação primitiva e naturalista da Antiga Aliança, existem estágios; a revelação de Deus aos hebreus foi politeísta, como aos povos pagãos. O monoteísmo é fruto de um desenvolvimento espiritual mais tardio. A aparição da consciência monoteísta foi de certa forma pré-datada, e somente mais tarde ela foi aplicada ao passado. Mas na revelação do Deus único, existem diferentes estágios e graus. A revelação de Moisés representa uma época histórica totalmente diferente da dos profetas. A consciência do Deus único, como Deus nacional judeu, é completamente diferente da do Deus universal, o Deus de todos os povos. E a consciência da Antiga Aliança passou por um estágio de politeísmo pagão e de nacionalismo naturalista.

Uma profunda crise espiritual teve que se realizar nos profetas, a consciência judaica teve que passar pelo individualismo, pela separação em relação à religião nacional e racial, por processos espirituais que se refletiram no livro de Jó e nos livros de Salomão, e, paralelamente ao enrijecimento da religião da lei, apareceu uma intensa atmosfera apocalíptica. Sobre o terreno do individualismo, na época helenística, nasceu um sentimento de universalismo, a fim de que se criasse uma ambiência espiritual que permitisse à luz da Nova Aliança resplandecer. Existe aí uma história da consciência extremamente complexa, que reflete as lutas do espírito, o aprofundamento e o alargamento da experiência espiritual. Não encontramos aí nada de estático, tudo aí é dinâmico. O estágio superior da revelação compreende sempre a criação espiritual do estágio precedente. A revelação pressupõe necessariamente processos de desenvolvimento no mundo, ela implica um movimento dinâmico da consciência.

Tais processos de evolução espiritual aconteceram igualmente no mundo pagão. Ao modificar sua consciência, expandindo e aprofundando sua experiência, também ele se preparou para receber a luz de Cristo. Nos grandes momentos espirituais do paganismo helênico, no dionisismo, no Orfismo, nos mistérios, na tragédia e na filosofia gregas, em Heráclito, Pitágoras, Platão, deu-se uma vitória sobre o naturalismo pagão, a consciência se desenvolveu, o espírito se revelou. O paganismo também conheceu penetrações do mundo espiritual, ele também possuiu seus estágios da revelação de Deus. A sede de ressurreição entre os egípcios, o dualismo da consciência religiosa entre os persas, a denúncia do mal, da mentira, da inanidade do mundo natural pela consciência religiosa da Índia, todas essas coisas constituem outros tantos momentos importantes na história do espírito, no desenvolvimento da consciência, na revelação do divino ao mundo.

Mas o próprio Cristianismo tem graus de elevação, idades e épocas; o destino da Cristandade tem seus éons. A profundeza e a plenitude da verdade cristã são refratadas pelas diversas estruturas de consciência e por diferentes graus de espiritualidade. Existem idades do Cristianismo, não somente na vida dos indivíduos, como também na história universal. Existem diferentes graus no desenvolvimento da consciência e nas manifestações da espiritualidade, que não são de modo algum resultado da aquisição individual da santidade. Existe uma perfeição e uma santidade de espírito, uma perfeição e uma santidade da alma, uma consciência esotérica e uma consciência exotérica. A verdade cristã se revela num processo dinâmico e criativo, e esse processo permanece inacabado no mundo, ele não pode se realizar antes do final dos tempos. A revelação da verdade cristã na humanidade pressupõe uma eterna dinâmica da consciência, uma eterna tensão criativa do espírito.

Mas a revelação da Nova Aliança permanece ainda oprimida pela natureza do Velho Adão, por formas de consciência pagãs. O mundo espiritual não penetrou definitivamente o mundo natural. O infinito permanece encravado no finito. O mistério se revela exotericamente. É por isso que o Cristianismo frequentemente não passa, no mundo, de um “pagano-Cristianismo”. A revelação bíblica e o processo cosmogônico e antropogônico, que aí estão descritos de forma simbólica, são compreendidos no espírito da Antiga Aliança. O Cristianismo, na sua maior parte, permanece submetido à lei, ele se refrata no mundo natural como religião da lei e não como religião da graça e da liberdade; ele adquiriu a forma da vida natural desse mundo e de suas necessidades inelutáveis. O próprio mistério da graça foi naturalizado, objetivado, racionalizado, assimilado à força que age no mundo natural. É isso que aparece claramente na organização da teologia católica.

O Cristianismo passa, de certo modo, em seu desenvolvimento, por uma fase na qual predomina a lei, ou seja, por um paganismo judaico. O espirito profético é muitas vezes negado aí. O Cristianismo se transforma então num sistema estático, fixo, em doutrinas teológicas, em cânones e numa organização exterior. Nós nos representamos a Igreja como um edifício acabado, recoberto por um domo. O infinito do mundo espiritual se fecha, a lei e o farisaísmo cristãos começam a dominar. O dinamismo criativo da consciência provoca medo e opomos limites a ele. os cristãos igrejeiros se assimilam muitas vezes aos positivistas, por sua compreensão estática da consciência, que eles cercam com muralhas intransponíveis.


VI
Os graus e as épocas da revelação não manifestam apenas uma transformação da consciência e de suas capacidades receptivas, mas refletem também um processo teogônico, divino. As épocas da revelação manifestam igualmente a vida íntima da divindade, as relações interiores da Trindade. A vida misteriosa e oculta de Deus se reflete em nosso mundo humano. Os momentos essenciais, fundamentais, do desenvolvimento da consciência humana, ou seja, as épocas do processo antropogônico, indicam também momentos interiores da vida divina. O homem nasce na revelação; não apenas a natureza divina, mas também a natureza humana se revela aí. Os graus da revelação designam também os graus de desenvolvimento do homem.

A revelação é sempre de Deus e do homem, vale dizer, uma revelação teândrica. Esse caráter da revelação encontra sua expressão definitiva no Cristianismo. Em Cristo, Deus-homem, não apenas nos é dada a revelação de Deus, mas também a de seu outro Si-mesmo, ou seja, do Homem. A Segunda Hipóstase da Santa Trindade é o Homem Absoluto, e Sua revelação corresponde à aparição de um novo homem espiritual, do homem eterno.

Mas esse novo homem espiritual ainda não está definitivamente manifestado. Uma nova revelação é possível, em princípio, dentro do Cristianismo. Contra essa possibilidade não é possível alegar objeção alguma. Só se pode objetar uma coisa, a saber, que a nova revelação fará desaparecer a antiga; mas, em realidade, ela não poderia ser outra coisa que não sua continuação e sua realização. O processo criador no mundo deve seguir sua marcha irresistível, pode toda detenção significaria para ele o adormecimento e a extinção do espírito. A revelação é a vida, ela é um processo teândrico dirigido para a infinitude do mundo espiritual, e não o ensinamento de verdades abstratas e de fórmulas fixas. A consciência do homem é capaz de atingir o infinito divino ou cósmico. Mas o homem se defende contra o poder desse infinito, assim como contra o dos elementos naturais pelo isolamento de sua consciência. No mundo pagão o homem estava mais aberto à vida interior da natureza, aos mistérios do cosmos, do que no mundo cristão, onde o home libertou seu espírito do poder dos elementos, impondo limites à sua consciência. Mas se, numa dada época, existiu a necessidade de proteger o homem do infinito cósmico, se graças a isso seu espírito pôde se libertar e se voltar para Deus, também pode haver um momento em que o homem se arrisque a afirmar seu isolamento e sua separação do mundo divino. o mundo natural se formou inicialmente pela compreensão transcendente da revelação, e a seguir pela negação dessa revelação. Mas atualmente a concepção naturalista do mundo passa por uma crise e se produz assim um retorno ao mundo espiritual.

Entre o Oriente e o Ocidente existe uma diferença muito original. No Oriente, na Índia, afirma-se uma grande mobilidade na organização da consciência humana e o nascimento de uma consciência cósmica não parece tão inverossímil como no Ocidente. O homem se vê, por isso mesmo, mergulhado no cosmo incomensurável. Ao contrário, a cultura do Ocidente repousa sobre um dinamismo histórico intenso e sobre a imutabilidade da consciência. A cultura do Oriente ignora o dinamismo histórico, mas admite o da consciência humana, vale dizer, uma transformação que lhe permite descobrir os mundos espirituais. Tal divergência não poderá subsistir eternamente. No Ocidente o homem se formou com o molde de uma consciência perfeitamente estável, que o protege do infinito cósmico e, ao mesmo tempo, sob a pressão de um dinamismo da história que o empurra para o futuro.

Mas essa via conduziu a humanidade a uma crise. A revelação cristã, que ultrapassa tudo o que havia no mundo, acabou por se petrificar, e às vezes parece que todo espírito se separou do mundo cristão. É preciso que se crie um mundo espiritual único, no qual o dinamismo da consciência e a aparição de uma consciência cósmica não transformem o homem num joguete do infinito. A fé na revelação cristã garante que o homem não está destinado a desaparecer. Quando a própria revelação cristã for compreendida mais interiormente, de um modo mais esotérico e místico, ter-se-á realizado um progresso na manifestação do homem espiritual e isso corresponderá ao advento de um novo período do Cristianismo. A verdadeira cultura intelectual, o conhecimento autêntico, colaborarão para o advento dessa época. Existe uma cultura artificial sempre destrutiva, por causa de suas consequências para a vida religiosa; e existe também uma luz autêntica do conhecimento, uma iluminação real da consciência, um triunfo sobre esse obscurantismo que retém o Cristianismo no degrau mais baixo, e que o submete às superstições e aos preconceitos. A verdade da revelação deve libertar da morsa que sujeita a consciência ao finito, e uma luz infinitamente mais radiante deve jorrar do mundo espiritual.



[1] Berdiaev se refere aqui ao Teosofismo, pseudo-religião inventada por Elena Blavatsky, e não à Teosofia de Jacob Boehme. Ver Theosophy  And  Anthroposophy in Russia, 1916.
[2] Essa incapacidade de admitir uma modificação essencial da consciência se manifesta nas análises sobre a religião dos povos não civilizados. Taylor e Fraser atribuem aos selvagens as propriedades de sua própria consciência e de sua formação de espírito. Lévy Bruhl, em seu livro Les fonctions mentales dans les sociétés inferieures trata essa questão de modo bastante interessante.
[3] João 20: 20.
[4] I Coríntios 3: 18-19.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Nikolai Berdiaev - Espírito e Liberdade - Capítulo II: Símbolo, Mito e Dogma




I

“Tudo o que vemos não passa de um reflexo,
de uma sombra daquilo que é invisível aos olhos”
Wladimir Solovieff

Segundo sua etimologia, a palavra símbolo possui o sentido de intermediário e de signo, e caracteriza, ao mesmo tempo, uma relação e uma ligação. O símbolo pressupõe a existência de dois mundos, de duas ordens de existência, e ele não encontraria espaço caso houvesse apenas um. O símbolo nos ensina que o sentido do mundo reside num outros, e que esse próprio sentido nos e dado por esse último. Plotino compreendia o símbolo como a união de dois em um. O símbolo constitui o ponto que liga dois mundos. O ser não é isolado: o símbolo evoca para nós não apenas a existência de dois mundos, como também a possibilidade de uma aliança entre eles, ele nos prova que esses dois mundos não estão definitivamente cindidos. Ele os delimita, ao mesmo tempo em que os religa.

Nosso mundo natural empírico não possui em si mesmo nem significado, nem orientação; ele adquire essas qualidades na medida em que constitui um símbolo do espírito. Ele não possui em si mesmo a fonte da vida capaz de dar sentido à existência, ele a recebe simbolicamente do mundo espiritual. O Logos que existe nesse último não faz senão se refletir, vale dizer, se simbolizar, no mundo natural. Tudo o que possui um significado em nossa vida não passa de um indício, de um símbolo de outro mundo, no qual esse sentido tem suas raízes. Tudo o que é importante em nossa vida é “significativo”, é simbólico. O encadeamento simbólico dos fatos, tanto em nossa vida como na vida desse nosso mundo, saturado de nonsense e de futilidade, só nos é dado como um encadeamento a um outro mundo, o qual possui uma orientação, um significado, porque se trata do mundo espiritual.

No mundo e na vida da natureza, que constituem um mundo e uma vida fechados, tudo é acidental, sem encadeamento, privado de significado; o homem, enquanto ser natural, é desprovido de sentido e de profundidade, e sua vida natural carece de um encadeamento significativo, na vida do homem, considerado como um fragmento do mundo natural, não é possível descobrir o Logos, e sua própria razão não passa de uma adaptação à gravitação desse mundo. Uma consciência orientada exclusivamente para o mundo natural concentrado em si mesmo, tocada pela inépcia, pelo caráter acidental e insignificante da existência. Ela é oprimida, incapaz de dissipar as trevas do mundo natural, no qual não se pode discernir os sinais de um outro mundo.

Mas o homem, enquanto imagem de um ser divino, vale dizer, enquanto símbolo da divindade, possui um significado preciso e um sentido absoluto. A consciência orientada para o mundo divino descobre em todas as coisas um encadeamento interior e um significado; a ela são dados os indícios de um outro mundo. Essa consciência é livre, e traz consigo um sentido à inanidade aparente do mundo natural. É impossível demonstrar a existência de um sentido na vida universal, não podemos induzi-lo racionalmente a partir do exame do mundo natural. A finalidade do processo da natureza nos parece muito contestável. Não podemos descobrir o sentido, a menos que o tenhamos vivido por meio de uma experiência espiritual, senão nos referenciando ao mundo espiritual. Ele não pode ser demonstrado, a não ser por uma vida penetrada de sentido, por uma consciência simbólica capaz de assinalar, de religar, de significar.

A concepção e a contemplação simbólicas do mundo são as únicas profundas, as únicas capazes de fazer sentir e perceber p abismo misterioso da existência. Toda nossa vida natural aqui em baixo não faz sentido, a menos que seja simbolicamente santificada; mas tanto podemos ser conscientes dessa santificação da vida, como podemos ser inconscientes dela. Podemos viver superficialmente esse sentido simbólico da vida natural, ou seja, ele pode se objetivar na consciência e ser percebido no sentido de um realismo ingênuo. Os homens podem viver de símbolos, tomando-os por realidades, e a natureza simbólica de tudo o que dá sentido e que é sagrado em suas vidas pode lhes escapar. Então eles mergulham no mundo natural objetivo, e aí veem a encarnação imediata daquilo que é sagrado, e, num realismo ingênuo, eles amarram o espírito à carne desse mundo.

Ao materialismo e ao realismo ingênuos, muitas vezes inerentes, são apenas à consciência sem religião, como também à consciência religiosa, devemos opor, não um espiritualismo ou um idealismo, uma espiritualidade abstrata ou ideias abstratas, mas antes um simbolismo. O espiritualismo e o idealismo não são estados religiosos da consciência, nem orientações religiosas do espírito, mas teorias metafísicas, enquanto que o simbolismo é religioso por sua própria essência. Mas é preciso distinguir o simbolismo realista do simbolismo idealista. Esse último, que encontramos frequentemente nos meios cultos da humanidade contemporânea, não constitui um simbolismo autêntico que une e religa dois mundos, mas o simbolismo da cisão desesperada desses dois mundos, do isolamento de nosso mundo interior. A filosofia de Kant, mais do que qualquer outra, se baseia nesse simbolismo, sendo a expressão desse estado, no qual o homem se encontra separado da profundidade da existência e mergulhado em seu mundo subjetivo. Esse é o simbolismo da profunda solidão espiritual do homem moderno, de seu desdobramento e de sua fragmentação. Ele encontra sua expressão contundente na arte contemporânea. A concepção simbólica do mundo era aquela típica da Idade Média. Encontramos um exemplo característico disso na mística de Hugues e de Richard Saint-Victor.

Nossa época perdeu o sentido dos fenômenos. O simbolismo idealista é subjetivo e convencional, ele não vê nas coisas senão o reflexo de experiências psíquicas, não mais do que os estados de um sujeito destacado do mundo espiritual e da fonte original da vida. Encontramos em Schleiermacher a própria expressão desse simbolismo idealista subjetivo, que nos é oferecido também pelo símbolo-fideísmo de Sabatier. Nesses símbolos, não existe necessidade ontológica; na realidade, Schleiermacher contradiz profundamente a própria natureza do símbolo, que consiste numa ligação, num traço de união, a existência autêntica de um signo de um outro mundo. Quando o simbolismo idealista tenta comentar as verdades da religião, ele sempre se inclina a lhes atribuir não mais do que um valor subjetivo; na experiência espiritual, ele deixa o homem encerado em si mesmo, separado das realidades do mundo do espírito; ele não compreende a natureza da experiência e da vida espiritual.

O simbolismo realista é o único autêntico, que religa e une dois mundos assinalando a existência do mundo espiritual e da realidade divina. Nos símbolos nos são dados, não os indícios convencionais da vida afetiva do homem, mas sinais indispensáveis da vida original, do próprio espirito em sua realidade primitiva; neles nós discernimos as vias que religam o mundo natural ao mundo espiritual. Para o simbolismo realista, a carne do mundo não é nem um fenômeno desprovido de realidade, nem uma ilusão subjetiva, mas antes uma encarnação simbólica das realidades espirituais. O simbolismo realista liberta e não escraviza, religa e não desune. Ele é profundamente oposto ao realismo ingênuo, objetivo, mas também é contrário ao idealismo subjetivo, ao simbolismo idealista. Ele reside além da divisão gnoseológica que existe entre sujeito e objeto, além da absorção da realidade pelo mundo do sujeito e pelo mundo do objeto.

A experiência espiritual, sobre a qual repousa o simbolismo realista, está fora das oposições entre sujeito e objeto, de sua concepção substancialista. A vida espiritual não nem subjetiva, nem objetiva. Sua simbolização, sua encarnação nos signos e nas formas do mundo natural, podem ser compreendidas como uma objetivação, mas é precisamente por causa disso que ela não é objetiva no sentido racionalista do termo. A consciência simbólica absorve o sujeito e o objeto numa profundidade infinitamente maior. Se a objetivação não passa de uma simbolização, então, por isso mesmo, todo racionalismo objetivo, toda concepção ingênua de um objeto-substância, deixam de ser justificados. Aquilo a que chamamos de realidades objetivas não passa de realidades de ordem secundária, e não de ordem primordial; trata-se de realidades simbólicas, e não das realidades em si mesmas. Mas as realidades subjetivas, como a da vida afetiva, a da pessoa e de seu mundo subjetivo, tampouco são primordiais, mas são também secundárias, também são simbólicas.

Não existe nisso uma restauração, sob uma forma diferente, da antiga distinção entre o noúmeno e o fenômeno, dessa distinção que constitui toda a teoria do conhecimento, baseada na oposição entre sujeito e objeto. Seria inexato dizer que o mundo espiritual é uma coisa em si, e que o mundo natural não é senão aparente. Nesse tipo de distinção e de oposição, o noúmeno é concebido sob o ângulo do naturalismo, como um legado seu. O noúmeno aparece como uma realidade análoga às do mundo objetivo natural. A coisa em si não é a vida, ela não é dada na experiência de vida, ela é coisa, objeto. A vida espiritual nada tem em comum com o noúmeno dos metafísicos e dos teóricos do conhecimento. A doutrina da “coisa em si” não supõe a existência da experiência espiritual, como experiência primordial de vida; ela nasce, na metafísica naturalista, da impotência em decifrar racionalmente o enigma da vida. Quando Fichte eliminou como sendo inútil a concepção do noúmeno, ele deu um grande passo adiante. Ele buscava o ato primordial da vida, o ato e não a coisa. Mas ele foi enganado pelo perigo de hipostasiar o sujeito. O idealismo subjetivo não pode ser a doutrina da vida espiritual. Ao contrário, o simbolismo está orientado para a vida e a experiência espiritual. Encontramos exemplos clássicos de simbolismo, não entre os filósofos, mas entre os místicos, entre os artistas e nas descrições da experiência espiritual.

II

Existem duas concepções de mundo que deixaram sua marca nas formas da consciência religiosa. Uma delas vê por toda parte no mundo as realidades em si, inserindo integralmente o infinito no finito, e o espírito na carne desse mundo natural; essa concepção submete o divino à carne finita, ela está sempre pronta a ver no transitório o absoluto e o permanente, ela transforma o processo da vida em categorias ontológicas fixas. Essa concepção do mundo gerou as doutrinas do positivismo e do materialismo religioso, e determinou os sistemas teológicos dominantes. A experiência que se encontra na base dessa concepção se tornou a fonte de sentimentos conservadores, hostis ao movimento, e reacionários. Os homens que aderiram a ela amam a autoridade e alimentam uma desconfiança contra todo gênio criador. Existe aí uma concepção tolamente realista e materialista do mundo (malgrado sua forma religiosa), uma concepção positivista oprimida pelo finito, que teme o infinito, e que vê na carne natural e histórica, relativa e transitória, o absoluto e o infinito.

Essa concepção de mundo é estática e hostil a todo dinamismo. Ela resulta do fato de que o centro de gravidade da vida foi transposto para o mundo natural. Ela santifica de modo absoluto a “carne” histórica. Os hábitos e costumes nacionais, as formas da monarquia, as da autoridade eclesiástica, que amarram a Igreja e o Estado, os sistemas teológicos, tudo isso adquire um significado sagrado, absoluto e imutável; o divino deve se submeter a eles. Constitui-se uma carne sagrada e escraviza e muitas vezes extingue o espírito. Sobre esse terreno nascem o materialismo e o positivismo antirreligioso e ateu. O espirito se distancia e desaparece, pois a carne em si mesma é santificada. Essa escola subordina o espírito à carne desse mundo, ela nos habitua a ver a realidade acima de tudo no finito, no mundo natural histórico.

Mas chega a hora em que a carne santificada da monarquia se corrompe, quando se constitui uma carne sagrada do socialismo, sobre a qual se transportam todos os sentimentos que antes eram dedicados à monarquia sagrada. Entre essas duas carnes se estabelece uma luta mortal, mas o espírito não estará ao lado de uma nem de outra, pois ele não admite que se faça do relativo um absoluto. O espírito é infinito, ele sopra onde quer. Ele transforma seu simbolismo conforme a dinâmica da vida espiritual. Ele é dinâmico pela própria natureza, ele não pode tolerar uma sujeição estática. O espírito não pode se encarnar em costumes tradicionais. O processo orgânico constitui precisamente uma correlação entre o exterior e o interior, entre o simbolismo natural e histórico da carne e a vida do espírito. Quando o simbolismo carnal, exterior, já não mais exprime a vida interior do espírito, sua santidade se modifica, os reinos e as civilizações se arruínam, arrastando em sua queda todas as formas de vida que tinha neles sua base. Um novo simbolismo se torna indispensável doravante, que irá exprimir um estado de espírito diferente, um estado organicamente novo, vale dizer, que corresponda à realidade da vida interior. A carne do mundo pode envelhecer e definhar, e o espírito pode abandoná-la. Mas extinção do espírito, o pecado contra o Espírito Santo, se manifesta por um desejo de salvaguardar a todo custo essa carne decomposta, à qual o espírito estava sujeitado. A vida espiritual recusa ser acorrentada à carne natural; sua realidade infinita não se manifesta integralmente nesse mundo histórico, no qual sua presença jamais passa de simbólica.

 Mas existe outra concepção de mundo que expressa a natureza dinâmica do espírito. É a que entrevê em toda parte no mundo os sinais e os símbolos de um outro mundo, aquela que percebe o divino, além de tudo o que é finito e transitório, como mistério e infinito. Nada de relativo e de passageiro é considerado por ela como sendo absoluto e permanente. Essa concepção simbólica transporta o centro de gravidade da vida para um outro mundo, espiritual, dinâmico e infinito; ela recusa ver as realidades últimas nesse mundo, em sua carne natural. 

Essa aspiração ao infinito encontrou sua expressão notável num drama de Ibsen: A Senhora do Mar. O infinito, a imensidão, o mistério do mundo divino e espiritual não admitem senão uma compreensão simbólica de tudo o que é finito e natural. A concepção de que tratamos aqui aceita e exige uma santificação da vida natural e histórica, desde que ela seja simbólica. Ora, essa santificação não pode venerar a carne do mundo como se fosse uma realidade absoluta e sagrada, encerrando em si a plenitude do divino.

Toda a vida espiritualmente criativa da humanidade, toda a dinâmica do Cristianismo, estiveram ligadas a essa segunda concepção de mundo. Toda a vida da Igreja de Cristo foi um mito criado na história, um simbolismo realista que exprimiu e encarnou a dinâmica do espírito. A vida e o espírito só foram intensos e poderosos na Igreja na medida em que foi possível realizar esse processo de criação de motos, essa concepção de símbolos cada vez mais ricos. Os dogmas da Igreja, seu culto, suas tradições, a vida dos seus santos e seus ascetas, proclamam esse dinamismo do espírito. Mas seus costumes tradicionais, a sujeição de sua vida ao reino de César, a cristalização de seus sistemas teológicos, a autoridades de seus cânones erigidos indevidamente em leis absolutas, a criação de uma carne sagrada inalterável, tudo isso gerou, com frequência, uma ossificação do espírito dentro da Igreja, uma extinção espiritual, uma detenção do dinamismo e uma vida que já não era mais do que um reflexo da energia criativa das gerações anteriores.

Somente a concepção simbólica do mundo nos indica o caminho da vida do espírito, somente ela torna possível a continuidade do processo de criação dos mitos, garantindo a continuidade da vida tradicional que religa o passado ao futuro. Segundo Creuzer o simbolismo é a visão do infinito no finito. Ele é a imagem visível das coisas invisíveis e misteriosas. O símbolo, por sua natureza, não submete o infinito ao finito. Ele torna o finito transparente e permite distinguir nele o infinito. No mundo do finito, não existe horizonte que seja absolutamente fechado; a carne simbolicamente santificada ignora o peso, a inércia, o isolamento do mundo natural. A realidade autêntica está sempre situada mais longe e a uma profundidade maior do que o que está aparente na carne natural.  O movimento criador do espírito não pode ser entravado pela carne impenetrável, que se pretende uma realidade absoluta.

A encarnação de Deus no mundo, a vinda do Filho de Deus na carne desse mundo, demonstra a abertura possível da carne, e não seu caráter incoercível, a infiltração do infinito no finito, a penetração do mundo espiritual no mundo natural, a manifestação divina da ligação que une os dois mundos, a vitória da graça sobre a concretude do mundo natural, o desamarrar desse mundo. A vinda de Cristo, na genealogia de Adão, é a kenosis, a humilhação, o rebaixamento de Deus, que se realiza a fim de libertar essa carne do peso e de sua escravização, a fim de iluminá-la e transfigurá-la, e não com o objetivo de afirmá-la ou de santificá-la de um modo absoluto.

O materialismo religioso que confere um valor absoluto à carne do mundo constitui uma deformação do mistério da encarnação divina, uma negação de seu caráter simbólico. O Nascimento do Filho de Deus no mundo, sua Vida, sua Morte sobre a cruz e sua Ressurreição são fatos que constituem, por seu significado, um símbolo único, central, absoluto, de um acontecimento do mundo espiritual, da vida espiritual interior. Esse símbolo nos liberta do poder do mundo. O fato de que o Filho de Deus viveu na carne natural nos permite esperar que ela será vencida em seu temível realismo, que ela poderá ser iluminada por um outro mundo e transfigurada em carne espiritual.

Toda a carne do mundo é símbolo do espírito, reflexo, imagem e signo de outra realidade situada infinitamente mais longe e mais profundamente. Tudo aquilo a que chamamos natureza criada não é uma realidade em si mesma, mas uma realidade simbólica, um reflexo dos caminhos luminosos do mundo espiritual. O endurecimento da carne do mundo não passa do sinal das quedas que se deram no mundo espiritual. Mas a iluminação da carne, manifestada pela vida terrestre do Filho de Deus, é o indicador de uma ascensão realizada no mundo espiritual. A carne não é uma ilusão e uma isca, ela é o reflexo simbólico das realidades do mundo espiritual. A aliança entre os dois mundos, a possibilidade de sua interpenetração, a transfusão das energias de um mundo para o outro, nos são dadas nesse signo simbólico. O símbolo nos revela a vida de Deus, nos aponta a passagem da energia divina para a vida desse mundo natural. Mas ele sempre protege o mistério infinito, e afirma a impossibilidade de remeter a uma medida comum a vida do mundo e a vida do espírito. O simbolismo não admite o endurecimento definitivo e o isolamento da carne e do mundo natural, endurecimento e isolamento que têm como consequência transformá-los em realidades impenetráveis à infinitude de Deus e do Espírito.

A concepção substancialista do mundo natural, imutável em seu princípio não divino, representa exatamente um naturalismo religioso, que irá gerar em seguida o naturalismo materialista e positivista, quando Deus for definitivamente separado do mundo natural, e o espírito estiver irremediavelmente extinto. No desenvolvimento contínuo da metafísica naturalista, o teísmo dualista, que rejeita o laço simbólico que religa o mundo divino ao mundo natural, desemboca primeiramente no ateísmo em relação ao mundo, e depois no ateísmo em relação a Deus. A essa concepção se opõe a concepção simbólica que admite o laço que existe entre os dois mundos, que não considera o mundo natural como não sendo divino, mas que, ao contrário, nele vê os signos do mundo divino, os reflexos dos acontecimentos, das quedas e das ascensões da vida espiritual. A ordem natural não é eterna e imutável, ele não expressa mais do que um momento que simboliza a vida do espírito. Por conseguinte, podem brotar forças das profundezas do espirito que a transfigurarão e a libertarão do poder que a escraviza.


III

Existem três concepções possíveis das relações entre o mundo divino e o nosso mundo natural: 1) a cisão dualista entre Deus e o mundo, o agnosticismo, o idealismo subjetivo que se encerra dentro do sujeito, o simbolismo idealista que não admite senão a simbolização do mundo objetivo da vida afetiva, separada do seio da existência; 2) a hipótese racionalista que supõe que o mistério da existência divina é acessível à conceituação, o realismo objetivo que considera as realidades do mundo natural como absolutas; e 3) o simbolismo que admite a transfusão da energia divina para esse mundo, que desliga e religa dois mundos, e que reconhece que a existência divina não faz outra coisa senão simbolizar a si mesma, ao mesmo tempo em que permanece inesgotável e misteriosa.

O dualismo e o racionalismo, o falso dualismo e o falso monismo, afastam igualmente o homem do mundo divino, fechando esse mundo para ele, e preparam o positivismo e o materialismo, para eles, não existem relações misteriosas entre os dois mundos, nem transfusão de energia de um para o outro, nem sinais enviados por outros mundos. Mas o mundo divino se fecha e desparece também quando é considerado inacessível ao conceito racional, quando se constrói uma realidade objetiva do mundo natural e se separa a existência divina do mundo subjetivo, condenando assim o homem ao isolamento de sua vida emocional. O idealismo subjetivo e o realismo objetivo constituem duas tendências gnosiológicas que refletem, na mesma medida, mas de modo diametralmente oposto, a cisão entre o mundo divino e o mundo natural, o desdobramento do espírito humano. A objetivação da vida divina, sua identificação com o mundo natural, é a negação do mistério e da infinitude de Deus. Encontramos essa mesma negação quando se faz da vida divina uma realidade subjetiva, quando ela é assimilada à vida afetiva. O dualismo gera o positivismo agnóstico e o psicologismo. O racionalismo gera o naturalismo e o materialismo.

Essas duas concepções que tentam explicar as relações entre os dois mundos predominam na consciência de hoje em dia. E a religião se torna exclusivamente uma categoria psicológica. A razão da história contemporânea protesta contra a tentação de expressar a existência divina por meio de conceitos racionais. Por meio do deísmo, da religião natural, a razão desemboca no ateísmo, na negação da religião. O deísmo é o fruto fatal do teísmo racionalista, que une em si o dualismo abstrato ao monismo abstrato. Somente o simbolismo é capaz de expressar e salvaguardar a profundidade, o mistério da infinitude do mundo divino, sua distinção em relação ao mundo natura e sua aliança com esse. A vida espiritual não se revela, nem se percebe nesse mundo, senão por intermédio do simbolismo. Esse último pode ser difícil de conceber, ele pode ser deformado por princípios heterogêneos, racionalistas e dualistas, mas é organicamente inerente à vida religiosa.

Não podemos conceber a Deus senão simbolicamente; somente com o auxílio do símbolo é possível penetrar seu mistério. A divindade não pode ser determinada racionalmente, ela permanece inacessível ao conceito lógico. Isso é o que afirmaram sempre os grandes pensadores religiosos, os grandes místicos e os teósofos cristãos; e nenhuma teologia escolástica ou metafísica pode contestar essa grande verdade. Para além da ideia religiosa de Deus, está sempre o abismo, a profundeza do irracional e do suprarracional. Esse abismo misterioso e irracional determina o simbolismo, a única via que conduz ao conhecimento e à sabedoria divinos. Todas as categorias conceituais e racionais de Deus e da vida divina, todas as da teologia catafática, não exprimem a realidade última do divino, pois elas são todas relativas, orientadas para o mundo e o homem naturais, e adaptadas às suas limitações.

A concepção racionalista é a reação positivista do homem perante o mundo natural. E essa reação não é outra coisa que a refração do divino nos limites do mundo natural. A vida divina em si mesma, e seu inesgotável mistério não correspondem às afirmações dos conceitos racionais. A lógica não é o Logos, entre eles se estende um abismo intransponível, uma solução de continuidade. É impossível aprisionar o infinito no finito, o divino no natural.

O Apóstolo Paulo nos legou uma expressão eterna do simbolismo autêntico no conhecimento da divindade: “Hoje vemos como num espelho, confusamente; mas então veremos face a face. Hoje eu não conheço senão imperfeitamente; mas então eu conhecerei assim como sou conhecido[1]”.

Nós conhecemos a Deus por meio de um espelho, de uma maneira obscura, vale dizer, de modo simbólico. O conhecimento definitivo de Deus, sua visão face a face, está reservada a um outro plano, à vida mística em Deus. O racionalismo, no conhecimento divino, recusa admitir que esse espelho é confuso; para ele, o conceito racional é capaz de refletir a essência autêntica de Deus, e capaz de penetrar a divindade.

A teologia apofática do Pseudo-Dionísio Areopagita se opõe a essa doutrina. Os maiores pensadores religiosos se unem à verdade enunciada por Nicolas de Cusa, que vê na divindade a coincidentia oppositorum. A identidade dos contrários é uma antinomia para a razão. O entendimento não está adaptado a uma forma de realidade na qual os contrários são compatíveis. Ele está submetido às leis lógicas da identidade e da contradição. Mas essas leis lógicas não podem jamais traduzir a natureza da divindade. E todos os dogmas do Cristianismo que exprimem os fatos e os eventos da experiencia espiritual possuem um caráter supralógico e suprarracional, eles ultrapassam a lei da identidade e a da contradição.

O conhecimento religioso sempre foi simbólico, indo de encontro a toda teologia e toda metafísica racional, a toda escolástica. O conhecimento de Deus não foi, nem nunca pôde ter sido um conhecimento racional, abstratamente intelectual, ao contrário, ele sempre bebeu de outra fonte. E todos os sistemas de teologia escolástica e de metafísica racional possuem um caráter limitado, todos estão adaptados ao mundo e ao homem naturais, e não possuem senão um valor pragmático e jurídico. Somente os fatos místicos são absolutos no Cristianismo; o pensamento que os comenta é sempre relativo.

O simbolismo se justifica pelo fato de que Deus é ao mesmo tempo cognoscível e incognoscível. A divindade é um objeto de conhecimento infinito e inesgotável, eternamente misterioso em sua profundidade. Da mesma forma, esse conhecimento é um processo dinâmico que não termina em nenhuma categoria fixa e estática da ontologia. Os limites estabelecidos pelo agnosticismo não existem. A gnose que busca sempre cada vez mais longe e cada vez mais fundo, é de fato possível, pois o conhecimento de Deus é um movimento infinito do espírito. Essa verdade se exprime pelo símbolo, que escapa a toda compreensão do entendimento, o qual sempre é limitador, exigindo um fim além do qual não exista mais mistério. Onde termina o domínio do conhecimento racional e o entendimento lógico – os quais só são aplicáveis ao mundo natural e limitado – começa o domínio do conhecimento simbólico, e do símbolo aplicável ao mundo divino.

É impossível elaborar um conceito positivo do ser absoluto, pois, no que lhe diz respeito, todos os conceitos positivos se desmancham em contradições inconciliáveis. Podemos pensar a vida interior da divindade por analogia com os afetos humanos. Os atributos de Deus, dos quais nos fala a teologia catafática, são logicamente contraditórios e provocam objeções por parte da razão. O conceito, por sua incapacidade de conhecer a Deus, se torna inevitavelmente ateu, se for negada a existência de outras vias de conhecimento.

A teologia religiosa acadêmica é impotente diante das objeções da razão, diante das reações do pensamento racional. O racionalismo e o naturalismo são transferidos, do domínio religioso, teológico, para o do ser natural e aí eles se encontrarão definitivamente consolidados. Então surge um conflito no qual se enfrentam o conhecimento e a fé, a ciência e a religião. Aqui a ciência obterá a vitória e reclamará para si domínios cada vez mais extensos. Esse processo não pode ser detido artificialmente, não é possível limitá-lo por processos que provenham de uma teologia naturalista e racionalista. Ao afirmar o dualismo entre dois mundos, Kant tentou defender o domínio da fé e da religião, transferindo-o para a esfera do sujeito. Mas nesse caminho a fé se extingue e a religião se vê oprimida e relegada a um espaço estreito e obscuro. Somente o simbolismo, delimitando as esferas do espírito e da natureza, limitando a competência do conhecimento racional, abrindo novos caminhos de conhecimento, salvaguarda os direitos imprescritíveis e as verdades eternas da vida religiosa.

A teologia racional acadêmica, de um lado, transgride os limites de sua competência quando reconhece os mistérios da vida divina como sendo-lhe perfeitamente acessíveis, e, de outro lado, assinala limites fixos à experiência e às vias espirituais do conhecimento divino quando sustenta o agnosticismo. O sistema da teologia dogmática acadêmica, ingenuamente realista e não simbolista, é incapaz de expressar a verdade ontológica última da vida divina. Para além dos conceitos e das fórmulas da teologia dogmática encontram-se a infinitude a o mistério da vida divina, que não são perceptíveis senão pela experiência espiritual e na sua expressão simbólica. O simbolismo restringe as pretensões do conhecimento racional com seu domínio do conceito, mas não coloca nenhum limite à experiência espiritual em si; ele de modo algum afirma em principio o agnosticismo; ele admite a diversidade infinita dos caminhos do conhecimento. A sabedoria e o conhecimento de Jacob Boehme penetram profundamente nos mistérios da vida divina, eles revelam a gnose, que ignora limites, mas trata-se de um conhecimento simbólico e não conceitual da divindade.

O conhecimento tem uma importância considerável na vida espiritual, um valor iluminador. Devemos amar a Deus com todo nosso pensamento, e esse conhecimento deve ser livre, nenhum limite lhe pode ser imposto desde fora. O conhecimento deve poder se desenvolver ao infinito, tanto na ciência positiva como na gnose religiosa e filosófica.

O conhecimento simbólico de Deus está profundamente enraizado no solo da tradição cristã. A teologia negativa apofática, que aparece nas obras do Areopagita, é simbólica. Essa teologia simbólica e mística nos ensina que Deus é incognoscível e que as definições positivas não podem expressar os mistérios da vida divina. Não podemos nos aproximar do mistério da divindade, senão pela via das locuções negativas. Deus não é nada que seja, ele é o não-ser. Os maiores pensadores ensinaram a teologia negativa, desde o pagão Plotino até o cristão Nicolas de Cusa. A teologia negativa nos mostra precisamente que o ser divino não é o ser na acepção do mundo natural, onde tudo é positiva e limitativamente determinável. A existência divina é uma realidade de outra ordem, e, se o mundo natural é o ser, então Deus será o não-ser, o nada, ele será superior ao ser, será o “supra-ser”. A teologia negativa reconhece o mistério insondável de Deus, a impossibilidade de esgotar sua natureza por meio de definições afirmativas, ela reconhece a oposição, a antinomia que a natureza divina apresenta para a nossa razão. Ela se opõe à naturalização e à racionalização do ser divino.

Mas é a teologia afirmativa, catafática, que predomina na teologia acadêmica. Essa teologia é racionalista e antissimbólica. Ela admite a possibilidade de atingir, por meio de locuções positivas, um sistema perfeito de conhecimento divino. ela possui uma compreensão naturalista do ser divino, pois ela considera sua realidade como sendo semelhante à da natureza do mundo, ela encara a Deus como um ser, e não como o não-ser. Ela se recusa a ver o “supra-ser” da divindade, ela nega seu mistério e sua insondabilidade. A teologia afirmativa é a teologia do finito e não a do infinito. É uma teologia exotérica que confunde a reflexão e a refração de Deus no mundo natural com a natureza divina em si. Suas definições afirmativas, emprestadas do mundo natural, são transferidas ao mundo divino. ela toma os símbolos por realidades.

O conhecimento da teologia afirmativa, que é pragmático e jurídico, exotérico e social, organiza a vida religiosa coletiva das massas, mas não constitui a gnose autêntica. A gnose penetra mais profundamente os mistérios da vida divina, reconhecendo-os onde a teologia positiva os nega. O conhecimento simbólico da teologia mística desce ao abismo do mistério e o protege. A teologia afirmativa não é um conhecimento, pois seu resultado pode ser previsto desde o início, mas ela precede o próprio processo do conhecimento e essa teologia não passa da codificação das verdades dogmáticas da revelação. O conhecimento de Deus não pode ser senão uma teologia espiritual experimental e simbólica. Pois todas as aquisições autênticas no conhecimento de Deus repousam sempre sobre uma experiência espiritual e sobre a expressão simbólica dessa experiência. A teologia dos místicos cristãos sempre foi experimental, ela foi uma expressão simbólica do caminho espiritual. O simbolismo pressupõe o abismo, o Ungrund da vida divina, o infinito que se dissimula além de tudo o que é finito, a vida esotérica de Deus, que não está submetida às garras da inteligência e não pode ser formulada logica e juridicamente. O Absoluto dos filósofos não é o Deus da religião. O Deus da Bíblia não é o Absoluto na acepção do conceito filosófico.



IV

O fundamento do conhecimento místico e simbólico não é uma proposição filosófica, mas uma representação mitológica. O conceito gera a proposição filosófica e religiosa, o símbolo produz a representação mitológica. O conhecimento filosófico é religioso, chegando ao ponto culminante da gnose, se liberta do jugo dos conceitos e se orienta para o mito. A filosofia religiosa está sempre saturada de mitos e não pode se livrar deles sem eliminar a si mesma, sem abandonar sua função. A filosofia religiosa é, por si mesma, uma criação de mitos, uma “imaginação”.

De Platão e Plotino a Schelling e Hartmann, todos os pensadores de tipo gnóstico procederam por meio de representações mitológicas. Toda a gnose de Boehme é mitológica, toda a filosofia do inconsciente em Hartmann, que tenta construir uma pura religião do espírito liberta de todo mito, é também inteiramente mitológica. Ela repousa sobre o mito da divindade inconsciente que teria, num acesso de loucura, criado a infelicidade do ser e se libertaria dos sofrimentos desse ser pela plena consciência que o homem poderia adquirir sobre si mesmo. Platão, em seus diálogos mais admiráveis e melhor elaborados, no Fedro, n o Banquete, no Fédon, e em outros ainda, afirma que o mito é o caminho do conhecimento. A filosofia de Platão está saturada de mitos órficos. Na base da filosofia cristã, embora essa proceda por conceitos, se encontra o mito mais importante da humanidade, o da Redenção e do Redentor. A teologia racional mais árida, assim como a metafísica, ambas se alimentam de mitos religiosos. A metafísica pura, abstrata, totalmente livre de todo mitologismo, é a morte do conhecimento vivo, uma separação em relação à existência. O conhecimento vivo é mitológico. Precisamos estar claramente cientes disso, e nos darmos conta do que significa o mito.

O mito é uma realidade incomensuravelmente maior do que o conceito. É tempo de deixar de identificar o mito com a invenção, com a ilusão de uma mentalidade primitiva, com alguma coisa que, em sua essência mesma, seria oposta à realidade. Pois é esse o sentido que damos às palavras “mito” e “mitologia” na linguagem corrente. Ora, por trás dos mitos estão dissimuladas as grandes realidades, os fenômenos originais da vida espiritual. A criação dos mitos dentre os povos denota uma vida espiritual real, mais real do que aquela dos conceitos abstratos e do que aquela do pensamento racional. O mito é sempre concreto e exprime melhor a vida do que o pensamento abstrato é capaz de fazê-lo; sua natureza está ligada a natureza do símbolo. O mito é um relato concreto, gravado na língua, na memória e na criação populares, no qual se exprimem os acontecimentos e os fenômenos originais da vida espiritual simbolizados no mundo natural. A realidade original preexiste no mundo espiritual numa profundidade misteriosa. Mas os símbolos, os signos, as imagens e os reflexos dessa realidade primitiva nos são dados nesse mundo natural. O mito nos apresenta o sobrenatural no natural, o suprassensível no sensível, a vida espiritual na vida na carne: ele religa simbolicamente dois mundos.

O grande mito ariano de Prometeu simboliza de um modo sensível, sobre o plano natural, certos acontecimentos da vida espiritual do homem, de seu destino e de suas relações com a natureza. O princípio prometeico é o princípio eterno da natureza espiritual do homem. podemos dizer o mesmo do mito dionisíaco, que se reflete mitologicamente no mundo sensível. O mito da queda de Adão e Eva, fundamental para a consciência cristã, exprime a maior das realidades do mundo espiritual. A separação do homem e do mundo para com Deus faz parte dos fenômenos originais da vida espiritual, ela pertence às profundezas do espírito, numa profundidade que precede a origem das coisas. Mas esse acontecimento espiritual se simboliza no mundo natural e sensível. O sentido da queda se revela na experiência espiritual, mas esse evento se expressa por meio de um mito concreto, o de Adão e Eva, que fala de um fato realizado sobre nossa terra e em nosso tempo. O mito representa sempre uma realidade, mas sua realidade é simbólica.

A doutrina de Schelling sobre a mitologia é genial: ele a considera como a pré-história da humanidade, como o reflexo de um processo teogônico e cosmogônico na consciência humana. A filosofia da mitologia, ligada aos trabalhos de Creuzer, envelheceu em relação às últimas investigações feitas nesse domínio, mas o núcleo filosófico da doutrina de Schelling sobre a mitologia mantém um significado indefectível.

Quando o conhecimento pretende se libertar definitivamente dos mitos religiosos, ele se submete aos mitos antirreligiosos. O materialismo também oferece uma forma de criação mitológica, pois ele vive do mito da matéria e da natureza material. O positivismo vive do mito da ciência enquanto conhecimento universal. Esses mitos não exprimem realidades profundas da vida espiritual, eles não expressam mais do que certas etapas do caminho seguido pelo homem. O Cristianismo é inteiramente mitológico, como toda religião, e os mitos cristãos expressam as realidades mais profundas e mais centrais do mundo espiritual. Chegou o tempo de não se ter mais vergonha de uma mitologia cristã, de não mais separar o Cristianismo do mito. Nenhum sistema conceitual teológico ou metafísico poderá fazer desaparecer a mitologia do Cristianismo, pois é precisamente esse conjunto de mitos que constitui sua maior realidade, e o Cristianismo se torna abstrato assim que o separamos dele. Mas é preciso captar espiritualmente o sentido interior do mito e do símbolo, a fim de se liberar de seu poder realista e ingênuo, que gera a superstição e a escravidão do espirito. Somente assim se abrirá a via que deverá conduzir às realidades espirituais.

A mitologia formou-se na aurora da consciência humana, quando o espírito estava mergulhado na natureza, quando o homem natural ainda não havia se endurecido e as fronteiras entres os dois mundos não estavam claramente delimitadas. A consciência do homem estava sonolenta, pois o momento de seu despertar ainda não havia soado. Nossa língua, nossas ideias, trazem a marca dessa consciência mitológica primitiva. A essência do homem estava ainda mergulhada numa inconsciência e numa subconsciência de onde provinha a criação mitológica. A delimitação do espírito e da natureza é fruto de uma evolução mais tardia. E o retorno a essa criação mitológica não pôde se produzir senão no terreno de uma nova espiritualidade.

A filosofia pura se liberou do mito e da experiência religiosa, assim como a teologia que, procedendo por conceitos, não é capaz de conhecer a Deus. Toda tentativa de conhecimento racional da divindade corre o risco de cair no monismo ou no dualismo abstratos. Toda concepção da natureza divina que não é contraditória e paradoxal está desesperadamente afastada dos mistérios da vida divina. Nem o teísmo dualista que se opõe radicalmente ao Criador e à criação, nem o panteísmo monista que os identifica, são capazes de expressar os mistérios da vida divina, pois as relações entre o Criador e a criação são contraditórios e paradoxais para a razão. Um entendimento natural não pode captar e traduzir por conceitos a natureza de Deus e suas relações com o mundo. A vida divina, o esoterismo da existência divina, não admitem ser tratados pela razão. Mas a razão possui a força de perceber o paradoxo e a antinomia que para ela apresenta a existência divina; ela pode admitir a existência de um suprarracional. É esse o sentido da doutrina de Nicolas de Cusa sobre a sábia ignorância.

O grande mérito do pensamento alemão, que se liga aqui à sua mística, consiste pre3cisamente em que ele reconhece a profundidade insondável e a irracionalidade de Deus, fundamento primeiro da existência. É a Gottheit de Eckhart, situada mais profundamente do que o próprio Deus, o Ungrund de Boehme. A divindade não pode ser percebida pelas categorias da razão, mas por revelações da vida espiritual. O caráter trinitário de Deus é inacessível ao pensamento racional. A razão, não iluminada pela fé, aspira naturalmente ao monismo e ao dualismo, e o caráter mitológico da Trindade cristã a inquieta e chega mesmo a indigná-la, pois ela está pronta para ver aí um politeísmo. Diante do mistério da Trindade, somente o mito e o símbolo são possíveis, jamais o conceito. Mas esse mito e esse símbolo refletem, não meus sentimentos religiosos, nem meus estados psíquicos interiores, como pensam os novos simbolistas do tipo subjetivo e idealista, mas antes a própria profundeza do ser, os mistérios mais profundos da vida. Somente na Trindade divina pode existir uma vida interior que escape aos conceitos.

Da mesma forma, é impossível formar uma concepção da natureza teândrica de Cristo. A razão pende naturalmente para o monofisismo, para o reconhecimento de uma só natureza; o mistério da unidade das duas naturezas numa só personalidade é inconcebível para ela. É por isso que, no que diz respeito à natureza teândrica de Cristo, da mesma forma não são possíveis outra coisa que o mito e o símbolo.

Quando o pensamento se esforça para penetrar os mistérios últimos da vida divina, ele provoca necessariamente uma catástrofe da consciência, uma iluminação espiritual, que transforma a própria natureza da razão. A razão iluminada é agora uma nova razão, que já não é desse mundo, nem desse século. Deus é imanente a essa razão iluminada, esclarecida e espiritualmente integral, mas Ele permanece transcendente, inacessível à antiga razão, à do homem natural, do primeiro Adão. Somente a sabedoria de Cristo torna possível a percepção imanente da divindade. Mas a aquisição dessa sabedoria comporta uma solução de continuidade em nosso pensamento natural. A descontinuidade no pensamento do divino consiste precisamente no abandono do conceito, substituindo-o pelo símbolo e o mito. Do ponto de vista de nossa razão natural, nosso próprio pensamento se torna mitológico; mas isso prova que realidades autênticas começam a se revelar à nossa consciência. O caráter trinitário de Deus, a natureza teândrica de Cristo, são realidades iniciais da vida espiritual. Essas realidades se revelam quando a consciência se desvia do mundo natural para se orientar para um outro mundo, quando nossa consciência, conformando-se com as mudanças dessa consciência, deixa de ser oprimida por um conceito. Então a vida se revela. Ora, somente o mito é suscetível de explicar a vida, que é sempre inesgotável e insondável.

Na experiência espiritual, na vida espiritual, produz-se um movimento infinito para as profundezas da vida divina, e esse movimento jamais pode ser encerrado num conceito, nas categorias teológicas e metafísicas fixadas. Isso não implica a negação do conhecimento religioso e filosófico, nem de seu valor efetivo, nem a afirmação do agnosticismo. A docta ignorantia, segundo a doutrina genial de Nicolas de Cusa, é o conhecimento da ignorância. Existe uma possibilidade de conhecimento por meio do paradoxo e da antinomia. Em nosso reconhecimento do caráter inacessível da divindade, da impossibilidade de um conhecimento racional da vida divina, existe igualmente um conhecimento e uma filosofia religiosos. Uma teologia negativa é também um conhecimento da verdade. a afirmação dos limites da razão pressupõe sua acuidade e sua intensidade; a razão iluminada, mergulhada no espírito, chega ao seu grau supremo, não à sua negação.

Mas, para renascer, é preciso morrer, é preciso um sacrifício. A gnose religiosa sempre foi, é e será simbólica e mitológica. E a tarefa da gnose cristã consiste em expressar o simbolismo cristão e em extrair seu alimento do mito cristão. Na gnose de Valentim e de Basilide, esse mito estava ainda sufocado por mitos pagãos, o espírito estava mergulhado na natureza, no infinito cósmico. Daí provém a confusão da gnose.

Mas hoje em dia, quando falamos do simbolismo das verdades religiosas, surge um perigo de outra ordem: trata-se da tendência modernista, que chamamos de “símbolo-fideísta” (Sabatier), que não vê nos símbolos senão o reflexo da fé, o reflexo de nosso sentimento subjetivo. Já Schleiermacher via nos dogmas uma simbólica do sentimento religioso. Essa concepção marca uma ruptura entre os dois mundos, ela aprisiona o homem em seu mundo subjetivo, em sua fé e em seus sentimentos. Mas os símbolos e os mitos não refletem em realidade a fé, nem o sentimento religioso do homem, mas antes a vida divina, as profundezas do ser na experiência espiritual; essa se distingue da experiência psíquica na medida em que apresenta, não a fé do homem no divino, mas o divino em si. Quando tomamos o símbolo como sendo a realidade última, o mundo espiritual se vê submetido ao mundo natural.


V

Não se deve confundir e identificar os dogmas da Igreja com a teologia dogmática, com as doutrinas teológicas. Existe nos dogmas uma verdade absoluta e indefectível, mas essa verdade não está necessariamente ligada a uma doutrina qualquer. A verdade dos dogmas é a verdade da vida e da experiência religiosas. Seu significado não é moral e pragmático, como pensam certos católicos modernistas, mas religioso e místico, ele expressa o princípio da vida espiritual. Os dogmas não adquirem um caráter racionalista senão nas doutrinas teológicas, nas quais eles estão frequentemente presos ao realismo e o naturalismo mais grosseiros. Os dogmas são úteis e salutares na media em que mostram o caminho espiritual que é a verdade e a vida, e não porque a salvação e a vida necessitem da confissão de certas doutrinas.

Não pode ser indiferente para minha vida e para meu destino, que um ser humano, que me é mais caro dentre todos, exista ou deixe de existir. Da mesma forma, não é indiferente para minha vida e meu destino, que Cristo, meu Salvador, exista ou não. Mas Cristo não existe a menos que Ele seja o Filho de Des, consubstancial ao Pai (homoousios). O dogma da consubstancialidade do Filho com o Pai não é uma doutrina, mas a expressão de um fato místico indispensável à minha vida. Os dogmas não são doutrinas teológicas, eles são fatos místicos da experiência e da vida espirituais, os indícios dos encontros religiosos autênticos com o mundo divino. os dogmas são símbolos que indicam o caminho espiritual, mitos que exprimem os acontecimentos do mundo espiritual, absolutos por sua importância.

Não pode ser indiferente a mim que um acontecimento, do qual depende toda minha vida e meu destino, não somente no tempo, mas na eternidade, aconteça ou deixe de acontecer no mundo espiritual. Deus existe ou não existe? Ele é uma realidade viva ou uma ideia abstrata? Aqui existe, para mim, uma questão de vida ou morte, e não um problema de confissão de tal ou qual doutrina teológica ou metafísica. Se Deus não existe, tampouco existe o homem, eu mesmo não existo, toda minha vida se transforma numa ilusão insensata, gerada por momentos de algum obscuro processo natural. Se Cristo não ressuscitou, então não posso esperar a vitória sobre a morte e a vida natural. Para minha Ressurreição para a vida eterna, não é a doutrina da Ressurreição de Cristo que me é indispensável, mas antes o fato de que esse evento realmente aconteceu. Não pode ser indiferente a mim que esse fato místico tenha ou não se realizado, enquanto que eu posso ser indiferente à doutrina teológica e metafísica da Ressurreição. Quem nega o acontecimento místico da Ressurreição de Cristo nega para mim a vida eterna, e isso eu não posso admitir friamente.

Não, o dogma não é uma doutrina, mas um símbolo e um mito que exprimem os acontecimentos do mundo espiritual absolutos e fundamentais por sua importância. O dogma simboliza a experiência espiritual e a vida espiritual por meio de representações mitológicas e não por meio de conceitos. Mas essa experiência, essa vida, não são estados de alma do homem, nem sua fé, nem seu sentimento religioso, mas antes a realidade ontológica, a própria vida original, a existência original. Quando Santo Atanásio o Grande combateu a heresia de Arius, dele defendeu, não as doutrinas, mas a vida e a via autênticas, os encontros reais do mundo espiritual.

Os anais do espírito humano nos contam um evento particularmente impressionante da via espiritual de um homem: o encontro de Saulo com Cristo. Esse encontro místico, que transformou Saulo em Paulo, constitui precisamente o fundamento da fé cristã no Redentor e na Redenção. Esse encontro é o que cada homem pode experimentar. A transformação de Saulo em Paulo consiste no novo nascimento, no segundo nascimento espiritual. Mas o encontro autêntico com a realidade divina não consiste num estado de alma, nem numa experiência psicológica. As emoções psíquicas mantêm o homem encerrado em si mesmo, absorvido em seus sentimentos e suas crenças, que são coisas separadas das realidades divinas. Somente a experiência espiritual pode libertar a alma humana e transformar seus sentimentos subjetivos em encontros ontologicamente reais com o mundo espiritual. Os dogmas são dados, não de uma natureza psicológica e naturalista, mas de uma natureza espiritual.

As fórmulas dogmáticas, na história da consciência da Igreja, possuem antes de tudo um papel negativo. Elas denunciam, não as doutrinas errôneas, mas uma falsa orientação da experiência espiritual, um desvio do caminho espiritual. Elas nos mostram aquilo que traz consigo a vida e aquilo que traz a morte. Os dogmas têm acima de tudo um valor espiritual e pragmático, mas não doutrinal e gnóstico. O mal não consiste no fato de que as heresias sejam doutrinas erradas, mas no fato de que elas testemunham uma deformação da experiência espiritual. A negação de Cristo enquanto Filho de Deus, consubstancial ao Pai, enquanto Deus-homem, que une em uma personalidade única duas naturezas, duas vontades – a divina e a humana – (negações que são as do arianismo, do monofisismo, do monotelismo e do nestorianismo), equivale a uma deformação da experiência espiritual. Existe aí um pseudo-simbolismo dos acontecimentos do mundo espiritual, uma orientação nefasta do espírito, que não permite ao homem unir-se perfeitamente a Deus. O mal não reside no fato de que as doutrinas gnósticas sejam falsas, incapazes de fornecer um conhecimento autêntico, mas em que elas manifestam uma experiência e uma via espirituais nas quais o mundo inferior não pode ser iluminado e transfigurado em mundo superior.

O símbolo é importante enquanto indício dos eventos que se realizam no mundo espiritual, eventos que conduzem ao Reino de Deus, à união do homem com Deus, à transfiguração e à deificação do mundo. Mas os dogmas não exprimem o conhecimento último da existência divina; por si sós, eles não constituem ainda a gnose definitiva, ainda que tenham uma importância preponderante, pois essa deve se alimentar dos fatos da experiência espiritual. Conciliar a gnose e os dogmas não consiste em submeter exteriormente o conhecimento a determinadas doutrinas teológicas, mas sim em recorrer à experiencia espiritual, à fonte vital do conhecimento divino. a gnose é livre, mas a liberdade do conhecimento deve conduzi-la às fontes da vida. Os dogmas são símbolos do mundo espiritual e os acontecimentos desse mundo desempenham um papel importante no seu conhecimento, pois eles revelam sua unidade e sua integralidade, por oposição ao papel fragmentado e acidental dos acontecimentos dos mundos psíquico e natural.

Pouco importa que os sistemas teológicos e dogmáticos sejam exotéricos, que, por perseguirem um objetivo de organização social, eles dirijam a experiencia espiritual da humanidade; nem por isso deixa de ser uma verdade esotérica que o mundo do espírito é o mundo ecumênico (soborni), que a experiência espiritual não é individual e isolada, que na vida espiritual acontecem encontros com uma só e mesma realidade divina, na qual se revela o Cristo único. O ecumenismo procede da natureza do espírito.

A teoria sustentada por Harnack, que tenta demonstrar que a elaboração dos dogmas constitui um processo de helenização, uma inserção da filosofia grega no Cristianismo, não corresponde à realidade. Os dogmas relativos à Trindade divina, à natureza teândrica de Cristo, à Redenção pelo mistério da cruz, foram e continuaram sendo uma loucura para a razão helênica. Não há nada de racional neles, de acessível à inteligência. Ao contrário, as heresias sempre melhor correspondem à compreensão do entendimento. O arianismo, notadamente, era perfeitamente racional, e assim ele teve como adeptos todos os que frequentavam a razão e a filosofia helênicas. É mais fácil afirmar apenas uma natureza e uma vontade em Cristo, como o fizeram os monofisitas e os monotelitas, do que afirmar, com o dogma, a fusão antinômica e paradoxal de duas naturezas e de duas vontades. O Cristianismo ensina a loucura da cruz, incompatível com a razão do mundo natural. É por isso que ele é uma revelação de um outro mundo, uma verdade que não é daqui de baixo.

A adaptação do Cristianismo a razão desse mundo constitui seu elemento exotérico, resultando da tarefa patética que ele se impôs no mundo natural, para a massa da humanidade média. É para essa massa que foram construídos os sistemas teológicos, que foram criados os cânones imutáveis. As formas autoritárias da consciência são inevitáveis para a direção religiosa das massas populares. A consciência religiosa heterônoma e autoritária possui uma natureza e um significado sociais, ela é exotérica, e não exprime, em si mesma, a verdade última. A profundidade da experiência espiritual se revela por degraus e pressupõe uma hierarquia. A vida religiosa dos povos cristãos pressupõe que existam dentre eles homens que, não possuindo uma experiência pessoal, vivam da experiência de outros, essa é também uma forma de experiência religiosa, embora seja a mais primitiva. O esoterismo sempre pressupõe e justifica o exoterismo.

A consciência da Igreja exprime e salvaguarda de um modo organizado a unidade da experiência espiritual de todas as gerações cristãs, ela garante um só e mesmo encontro com Cristo e indica os caminhos de salvação a toda a massa da humanidade, a todos os que se encontram ainda nos degraus inferiores da espiritualidade. É por isso que a consciência da Igreja observa sempre um justo meio: nela existe simultaneamente uma revelação e um mistério. É isso que explica a dificuldade que ela tem em manter em harmonia os princípios conservadores e os elementos criativos.


VI

A luta contra os gnósticos foi uma luta contra a mitologia pagã e a demonolatria e não uma luta contra o mito, uma luta contra um falso conhecimento e não contra a gnose em geral, uma luta em nome da expressão autêntica e pura dos eventos do mundo espiritual. A consciência da Igreja sempre temeu uma antecipação do tempo para as massas; ela mantém o equilíbrio, evitando grandes elevações e grandes depressões.

O conservadorismo da Igreja tem uma natureza democrática, ele “preserva”, em nome do homem médio e da massa. O espírito criativo na vida religiosa possui uma natureza aristocrática, ele ousa afirmar aquilo que não de revela senão a uma minoria eleita, da mais alta qualidade. O primeiro espirito é por excelência sacramental. O segundo é essencialmente profético, o primeiro se manifesta pela coletividade, o segundo, pelo indivíduo. O desenvolvimento criativo na Igreja se manifesta sempre por rupturas de equilíbrio entre a minoria e a maioria, pela ação de personalidades criativas que se separam da Igreja da massa média.  O sacerdócio é o princípio conservador da vida religiosa, a profecia é seu princípio criativo. A missão profética é sempre realizada por inspirações individuais. O espírito profético resiste a toda teologia e a toda metafísica do finito, a toda materialização do espírito, a toda tentativa de transformação do relativo em absoluto. Negar o desenvolvimento criativo na vida da Igreja, na dogmática, equivale a negar o espirito profético, a reservar exclusivamente ao sacerdote toda iniciativa da vida religiosa. O Espírito divino é exercido de forma diferente através do sacerdote e através do profeta. Na consciência e na missão proféticas, a infinitude do mundo espiritual se entreabre, e os limites desse mundo finito desaparecem.

Os dogmas, nos quais os eventos absolutos da vida espiritual encontraram sua expressão simbólica adequada, não podem ser modificados e transformados. O caráter trinitário de Deus, a natureza teândrica de Cristo, são fatos místicos eternos: Cristo é o Filho único de Deus pelos séculos dos séculos. Mas o significado dos dogmas pode ser aprofundado de maneira diferente, ele pode ser posto em relevo por uma nova gnose, certos acontecimentos da vida espiritual podem encontrar sua expressão simbólica em novas fórmulas dogmáticas.

O processo da criação mitológica na vida da Igreja é um movimento continuo que segue uma marcha irresistível. Trata-se de um processo de vida. Não se pode viver exclusivamente da experiência de outrem, dos mitos criados pelas gerações anteriores, mas é preciso possuir uma vida pessoal. Nossa vida e nossa criação mitológica não podem ser separadas da vida e da criação de nossos pais e de nossos ancestrais. Trata-se de uma vida criativa que prossegue sem interrupção, ao mesmo tempo individual e supraindividual, vida ecumênica na qual o passado e o futuro, a tradição e a criação se unem na eternidade.

Somente a consciência simbólica permanece fiel aos acontecimentos e aos encontros do mundo espiritual, somente ela corresponde à profundeza inefável e insondável da vida original. A consciência simbólica comporta uma libertação para o espírito: ela lhe permite adquirir uma liberdade interior, libertando-a da magia do mundo finito. Alles vergängliche ist nur ein Gleichnis[2]. E assim eu não posso ser submetido a nada de transitório.

O centro de gravidade da vida autêntica se transporta para mim a um outro mundo. Eu passo pela vida desse mundo, com meu olhar voltado para profundezas inefáveis; por toda parte toco mistérios e entrevejo lampejos que provêm de outros mundos. Nada está acabado, nada está definitivamente submetido nesse mundo. Ele é translúcido, seus limites se dispersam, ele penetra outros mundos e outros mundo o penetram. Não existe nele endurecimento sobre o qual não se possa triunfar. Sua pesandez e sua obscuridade não são realidades objetivas, elas não passam de indícios do que acontece nas suas profundezas. Tudo o que acontece exteriormente no mundo natural e objetivo se produz também nas profundezas da vida espiritual, se efetua também em mim, na medida em que sou um ser espiritual, e, por conseguinte, não pode ser para mim algo intoleravelmente estranho. Todo exterior não passa de um sinal do interior. Todo processo universal e histórico não é mais do que o reflexo simbólico de um acontecimento interior em meu espírito. Esse acontecimento não é subjetivo ou psíquico, mas espiritual: ele pertence ao mundo do espírito, no qual o “eu” e a existência não são nem divididos, nem “extrínsecos”, pois eu estou dentro da existência e a existência está em mim.

A partir daí, podemos perceber o Cristianismo como uma luz interior e como um mistério do espírito, que não faz outra coisa do que se refletir simbolicamente no mundo natural e histórico. O Cristianismo místico não nega nem elimina o Cristianismo exterior, mas o percebe sob outro prisma e lhe confere outro sentido. Todo o mundo natural não passa de um momento interior do mistério do espírito refletido em mim, do mistério da vida original. Ele deixa de ser uma realidade exterior que oprime o espírito. A concepção mística e simbólica do mundo não nega o mundo: ela o absorve. A lembrança é precisamente a ligação interior que une misteriosamente a história de meu espírito à história do mundo, sendo essa simplesmente o símbolo da pré-história de meu espírito. O processo cosmogônico e antropogônico se desenvolve em mim e comigo, na medida em que eu sou um ser espiritual. Nada me é absolutamente exterior, superficial ou estranho ao meu espírito, mas tudo lhe é interior, tudo é seu.

A heterogeneidade e a superficialidade não passam de símbolos do desdobramento do espírito, dos processos interiores de desmembramento que se efetuam na vida espiritual. Tudo o que se realiza nos cumes se realiza também nos vales. A própria Trindade divina se encontra em toda parte no mundo. É da profundeza que nasce a superficialidade, é da divisibilidade da vida interior que provém a heterogeneidade. O mundo, a natureza, a história, não são mais do que o caminho do espírito, não passam de um momento de sua vida interior. A vida do espírito é a minha vida, mas é ao mesmo tempo a vida de todos os homens, a vida divina e a vida de todo o universo. Na vida do espírito, em meu caminho espiritual, eu não rejeito nada, no mundo objetivado, mundo dos símbolos, e eu reintegro novamente a profundidade, a realidade e a vida originais. Assim se cumpre o mistério da vida. À primeira vista, a relação que existe entre os símbolos e as realidades parece ser extraordinariamente paradoxal. Mas é precisamente a consciência simbólica que nos conduz às realidades originais, enquanto que o tolo realismo que nos mascara essas realidades e nos submete aos símbolos. a consciência simbólica nos liberta dos símbolos tomados pelas realidades exteriores.

Essa consciência faz uma distinção entre o símbolo e a realidade, e é por isso que ela nos orienta em direção à realização da vida espiritual. O verdadeiro simbolismo marca o retorno a um realismo espiritual autêntico, no qual os símbolos são trocados pelas realidades, um retorno à transfiguração da vida, à perfeição espiritual, aquela do Pai Celeste. É precisamente o simbolismo que aspira ao realismo: esse reside no reino dos símbolos.

A consciência realista confunde os símbolos e as realidades. Ela nos submete aos símbolos e nos impede de atingir as realidades, ou seja, a transfiguração real da vida. Essa verdade, que parece paradoxal, é essencial para a compreensão da vida espiritual. O realismo simplista, objetivo, está condenado a viver dentro de um simbolismo natural: ele não crê na possibilidade de alcançar efetivamente a vida espiritual, pois, para ele, o espírito é transcendente em relação ao homem.

A religião na cultura, na história, se reveste de um caráter simbólico, ela reflete a vida espiritual no mundo natural e histórico. Os dogmas, o culto, são simbólicos por natureza. Esse simbolismo é realista, ele dissimula as realidades da vida espiritual original, mas não deixa por isso de ser um simbolismo, ainda que não constitua um realismo místico. O realismo definitivo não pode ser adquirido na mística, mergulhada no abismo do espírito, na própria vida original. Toda a cultura espiritual é simbólica por sua natureza; sua importância reside em que ela permite distinguir nesse mundo as infiltrações de um outro mundo.

Mas a cultura ainda não é a transfiguração da vida, a obtenção da existência suprema, ela não passa do anúncio dessa. E, para o simbolismo da cultura, a arte – que é simbólica por excelência – é particularmente significativa. A arte autointitulada realista é aquela que não busca nenhuma realidade e que é ingenuamente, inconscientemente, submetida ao símbolo, enquanto que a arte conscientemente simbólica aspira ao realismo místico, a obtenção da vida original. A arte de Dante ou de Goethe nos aproxima da vida original em muito maior medida do que a arte realista do século XIX. O simbolismo consciente da cultura tenta destruir os limites do simbolismo, tenta escapar para as realidades originais.

O objetivo essencial parece ser a transfiguração da cultura em existência, dos símbolos em realidades, vale dizer, a iluminação do mundo. Nossa cultura, mesmo religiosa, é uma aquisição que se refere à vida superior, uma santificação simbólica da vida; mas devemos reconhecer que essa simbolização frequentemente não passa de uma simulação. Os sinais da vida original nos são sados, mas essa vida em si não, porque o mundo natural não é capaz de a conter; é impossível adquirir nela a transfiguração da vida. Somente no mundo espiritual a regeneração real da vida se torna acessível. Ela consiste na absorção da natureza pelo espírito, na vitória sobre a pesandez, sobre a inércia, sobre a impenetrabilidade e o estado de esgarçamento do mundo natural.

Aqui em baixo, o espírito se reveste com a forma da cultura, vale dizer, do simbolismo, e o mistério do espírito se objetiva no culto religioso. No sacramento da Eucaristia, o pão e o vinho se transformam no corpo e no sangue de Cristo. Mas essa é uma transubstanciação realista e simbólica, além da qual reside o mistério do espírito, o mistério da vida original: pois é nas profundidades do ser que o Cordeiro é oferecido em sacrifício pelos pecados do mundo. É por intermédio do sacramento que o outro mundo penetra o nosso, mas a energia divina aparece refletida sobre o plano desse mundo natural: o corpo e o sangue de Cristo são apresentados sob a forma do pão e do vinho.

A transubstanciação deve ser compreendida dentro do espírito do simbolismo realista, e não no do simbolismo idealista e subjetivo. Esse sacramento é o reflexo de um acontecimento do mundo espiritual, que possui um significado absoluto, que não é desse mundo subjetivo, mas da própria vida original. Tampouco ele pode ser concebido no espírito de um realismo simplista objetivado. O sacrifício de Cristo e o resgate dos pecados se realizam eternamente no mundo espiritual. Esse é o fenômeno inicial da v ida do espírito, a matéria do sacramento não é acidental, mas está simbolicamente ligada ao próprio fenômeno espiritual original. A concepção simbólica do sacramento não tem nenhuma relação com o simbolismo contemporâneo, que rejeita sua realidade e não vê nele mais do que a expressão convencional das emoções religiosas da alma. O símbolo não é uma alegoria, e o sacramento possui uma natureza cósmica, porque ele não se realiza apenas para a alma humana. Seu simbolismo é real e absoluto. Mas sua realidade original repousa no mundo espiritual e não em nosso mundo real. Toda carne sagrada do mundo, tudo o que é santificado aqui em baixo, não constitui uma realidade em si, mas apenas uma realidade simbólica.

A carne sagrada da monarquia teocrática não apresenta senão um simbolismo do sagrado, mas ela não comporta uma regeneração real, em que a vida se transfiguraria em Reino de Deus. A realidade original e autêntica não é dada senão na vida transfigurada do espírito. Mas quando se faz passar o simbolismo transitório como sendo uma realidade eterna, quando o sagrado é submetido à carne do mundo natural, então a via que dá acesso à transfiguração real da vida, a obtenção das realidades espirituais, se fecha. O falso conservadorismo que oprime o espírito criativo alardeia que o simbolismo se substituiu à realidade, que o espírito está subordinado à carne natural. Mas assim que o simbolismo deixa de expressar os eventos do mundo espiritual, tão logo a energia do espírito deixa de estar presente nos seus símbolos, ele se desagrega fatalmente, produzem-se catástrofes e assistimos à ruína do regime existente.

O que existe de verdadeiro e bom na laicização, é a exigência da consciência que quer ver o sagrado definitivamente libertado de toda simulação exterior. Um novo simbolismo deve a partir dai se impor, e pode chegar um tempo em que o real, a transfiguração da vida, a obtenção da existência autêntica, sejam exigidos. É nesses momentos que surgem as crises do Estado e da cultura, que se realizam as grandes revoluções do espírito. A simbolização convencional da vida perfeita é impossível, ela deve se realizar por meio de uma transfiguração efetiva do mundo natural em mundo espiritual, nela, a forma ideal da carne será conservada, mas sua pesandez e sua materialidade desaparecerão. Toda teocracia simbólica, por não admitir senão os signos exteriores do Reino de Deus, se torna doravante incapaz de saciar sua sede. É preciso realizar o próprio Reino, é preciso alcançar a perfeição, uma perfeição análoga à do Pai Celeste. Então terminará a época do simbolismo, e o mundo penetrará num período novo.

O advento dessa nova era de espiritualidade, desse novo realismo, exigirá do simbolismo que ele liberte o espirito humano do falso realismo, fixado ao mundo natural pelo símbolo. A consciência simbólica, por um lado, dá significado à vida, pois ela entrevê por toda parte os signos de um outro mundo, e, de outro lado, ela permite alcançar uma separação em relação a esse mundo de vaidade, de aprisionamento e de miséria. Nada de absoluto, nada do que é sagrado, pode ser acorrentado ao “mundo”, que é incapaz de conter integralmente o espírito. O Reino de Deus não é desse mundo, ele não é o reino da natureza e ele não pode se manifestar dentro de seus limites, onde somente os símbolos de outros mundos são possíveis.

E, no entanto, o Reino de Deus se realiza a cada instante da vida.



[1] I Coríntios 13: 12.
[2] “Qualquer coisa passageira é apenas uma parábola”.