segunda-feira, 29 de junho de 2020

Nikolai Berdiaev - Espírito e Liberdade - Capítulo III: A Revelação, a Fé e os graus de Consciência





I


A distinção tradicional estabelecida entre as religiões “reveladas” e as religiões “naturais” não é das mais profundas, ela não passa de exotérica. Todas as religiões nas quais divisamos um lampejo do divino são reveladas. Onde quer que o divino se manifeste, existe revelação e o divino se manifesta igualmente nas religiões pagãs; e ele se revela pela natureza nas religiões da natureza.

A antiga doutrina ensinada nos seminários, que tentava provar que Deus não se revelara no mundo pré-cristão senão ao povo israelita, através da Antiga Aliança, e que o paganismo estava mergulhado em total escuridão, não conhecendo mais do que demônios, já não se sustenta hoje em dia. Toda a diversidade da vida religiosa da humanidade não é outra coisa do q eu uma ascensão contínua em direção à única revelação cristã. E quando os especialistas da história científica das religiões se esforçam por demonstrar que o Cristianismo não é original, que as religiões pagãs conheciam antes o deus sofredor (Osíris, Adônis, Dionísio e outros), que o culto totêmico conhecia a eucaristia, a comunhão com a carne e o sangue do animal, que podemos encontrar na religião persa, na religião egípcia ou no orfismo a maior parte dos elementos do Cristianismo, eles não compreendem o sentido daquilo que se revela aos seus olhos. A revelação cristã é universal e tudo o que é análogo a ela nas demais religiões não passa de uma parte de sua revelação. O Cristianismo não é uma religião de mesma ordem que as outras; ele é, no dizer de Schleiermacher, a religião das religiões. Pouco importa se no Cristianismo, visto naquilo que ele tem de diferente, não existe nada original, fora a vinda do Cristo e sua personalidade! Nessa particularidade original é que precisamente se realiza a esperança de todas as outras religiões. As revelações anteriores não eram senão uma antecipação, um pressentimento da revelação cristã.

 O Egito estava irresistivelmente orientado para a imortalidade e nos mistérios de Osíris a morte e a Ressurreição de Cristo estavam prefigurados. Mas a Ressureição ontologicamente real, só se realizou em Cristo; é por meio dele que a morte foi vencida e que a vida eterna se tornou acessível. Na religião egípcia, havia uma revelação do divino; o pressentimento e o símbolos estavam refletidos no mundo natural. E o Cristianismo apareceu no mundo precisamente como a realização de todos os pressentimentos e de todas as prefigurações.

Quando, por oposição às religiões reveladas, falamos de religiões naturais, queremos dizer que nessas não existem manifestações dos outros mundos, que nelas não nos são dados mais do que os estados humanamente naturais: as ilusões do pensamento primitivo e da criação dos mitos, o reflexo do medo e da opressão provocados pelas forças ameaçadoras da natureza, ou bem a manifestação das forças da natureza não divina na consciência humana. Mas não existe natureza totalmente desprovida de divino, e todo o mundo natural não é mais do que o simbolismo dos outros mundos. A revelação da natureza não passa de um estágio na revelação de Deus.

A distinção estabelecida entre as religiões da natureza e as do espírito é mais profunda e mais justa. Essas religiões pertencem a estágios diferentes da revelação no mundo. Sua diferença corresponde à diferença fundamenta que existe entre o mundo natural e o mundo espiritual. Deus se revela na natureza e no espírito, ele se revela ao homem, como ser natural e espiritual. A revelação da divindade na natureza não passa do reflexo, da projeção e da objetivação de um acontecimento que se realiza no mundo espiritual, pois a revelação, por sua essência, é um evento da vida espiritual e a religião é uma manifestação do espírito.

A religião é a revelação de Deus e da vida divina no homem e no mundo. A vida religiosa consiste na obtenção, para o homem, do parentesco com Deus; assim ele sai do seu estado de isolamento, de solidão, de afastamento dos fundamentos da existência. Mas Deus tanto pode se revelar na vida religiosa, como pode se ocultar. A revelação não elimina o mistério: ela revela sua profundidade inefável. A revelação é o antípoda do pensamento racional; ela não implica que Deus seja acessível à razão e ao conceito; é por isso que nela sempre subsiste um mistério. A religião é a união paradoxal daquilo que é revelado com aquilo que permanece oculto. Paralelamente ao exotérico, existe sempre o esotérico. O exoterismo religioso busca a afirmação do finito, enquanto que o esoterismo pressupõe sempre o infinito. A interpretação da revelação num espírito de realismo e de naturalismo simplista constitui sempre um exoterismo, no qual a profundidade da revelação é incapaz de se revelar. A revelação de Deus não é um evento transcendente que se realizaria numa realidade objetiva e natural, ela não é uma luz projetada desde o exterior. Ela é um evento que se desenrola no mundo interior, uma luz que brota de uma profundidade abissal, um fato da vida espiritual que não tem nenhuma relação com a percepção das realidades exteriores.

A revelação não se dirige do objeto para o sujeito e, no entanto, sua natureza não é de modo algum subjetiva. A oposição entre sujeito e objeto não é exclusiva do fenômeno original da vida religiosa; ela desaparece na profundeza da experiência espiritual. A interpretação objetivista, transcendente e realista da revelação constitui um naturalismo que equivale a rejeitá-la e lançá-la fora. A revelação não se realiza no mundo objetivo, tampouco no mundo subjetivo e psíquico, que não passa de uma parte do mundo natural. A revelação se realiza no espírito, ela consiste na integração do mundo espiritual no nosso mundo, na nossa vida natural. Mas o mundo espiritual, no qual nasce a luz da revelação, não é um mundo objetivo indeterminado em relação ao nosso mundo subjetivo. Suas relações não podem ser identificadas com as que existem na realidade natural e psíquica, pois elas não são acessíveis senão a uma forma de pensamento simbólico.

Nos eventos da revelação, não existe distinção entre o que vem de fora e o que surge de dentro, entre o que emana do objeto e o que procede do sujeito; tudo é absorvido pela profundeza e não pode senão ser simbolizado exteriormente. A revelação não pode ser concebida como algo unicamente transcendente, ou como unicamente imanente, pois ela é a um só tempo imanente e transcendente, ou antes, ela não é nem uma coisa nem outra, porque essa distinção é secundária. É nas profundezas que o espírito de Deus se revela a Moisés; esse último escuta uma voz que provém de uma distância inefável. Mas a projeção e a objetivação naturalistas da revelação, seu reflexo na natureza do velho Adão, nos fazem ouvir a voz de Deus percutindo sobre o Monte Sinai, como se a luz da revelação viesse de fora.

Nos primeiros graus da consciência religiosa da humanidade, a revelação era concebida sob o ângulo do naturalismo, como um acontecimento que se desenrolava no mundo natural objetivo. O Pai se revelou na natureza objetiva antes de se revelar pelo Filho nas profundezas do espírito. Ele se manifestou antes de tudo como “força” e não como “verdade”. a força é uma categoria natural, enquanto que a verdade é uma categoria espiritual. Foi somente no Filho, em Cristo, que se revelou a natureza interior do Pai Celeste. Mas, para o pensamento naturalista, ele personifica o mestre, o soberano, e os traços dessa antiga concepção subsistem até hoje dentro do próprio Cristianismo. E, no entanto, a revelação da trindade não é a de uma monarquia celeste, o que seria uma heresia; ela é a revelação do amor celeste, do ecumenismo divino. no Filho se revela um outro aspecto Pai, o de Deus que ignora o Filho. Não podemos conhecer o Filho que anuncia a vontade do Pai, não podemos conhecer a Cristo nos acontecimentos objetivos, naturais e históricos do Evangelho, a menos que ele se revele nas profundezas do espírito, nos acontecimentos da experiência espiritual; e o conhecimento de Cristo pelo espírito pressupõe a ação do Espírito Santo. O mundo e o homem naturais deixam sua marca limitada e finita na revelação do Espírito no espírito.

A refração no mundo limitado da natureza, na antiga natureza do homem, cria os graus da revelação; as limitações da revelação geram o exoterismo. A verdade absoluta e a luz se refratam no homem natural, e passam pelo meio “obscuro” que torna a luz opaca. Todas as palavras que exprimem a verdade da revelação são imperfeitas e inadequadas. O absoluto da revelação é limitado pela relação recíproca entre sujeito e objeto, que reflete um determinado estado do mundo espiritual, mas que não exprime o fenômeno primordial da revelação. Deus é obrigado a se dissimular ao mundo natural. A luz divina teria cegado o olhar natural, se se derramasse sobre ele com todo seu poder. O Homem da Antiga Aliança não podia contemplar a Deus. A luz se difundia por graus, e se enfraquecia pelo fato de que o homem não estava preparado para recebê-la.

O Deus da Antiga Aliança, Javé, não constituía a revelação divina em sua natureza interior e secreta. Ele não passava de uma expressão exotérica da Face divina, tal como a podia entrever a consciência israelita. A cólera do deus bíblico não passava de um tema exotérico, uma réplica da cólera do povo judeu. Deus Pai se revelou no Filho como amor infinito. O politeísmo pagão era também uma revelação, mas a divindade se fraccionava na consciência pagã da humanidade antiga. O monoteísmo não podia ser discernido, devido ao estado interior da natureza humana. A vida esotérica de Deus não se revela senão exotericamente na vida religiosa da humanidade natural.

E somente em um ponto do mundo se entreabriu a vida secreta, esotérica da Trindade divina: ela apareceu no Filho, como Amor infinito, como o drama do amor e da liberdade. Entretanto, mesmo esse mistério do Cristianismo permaneceu, até um certo tempo, oprimido pela lei, devido a uma compreensão exotérica que limitou o infinito com o finito. A revelação cristã absoluta continua a agir num mundo natural relativo; ela é acolhida pelo homem natural e recebe, em consequência, o selo de sua limitação. Mesmo no Cristianismo a luz se difunde por graus e se refrata no meio obscuro que a recebe. É por isso que o Cristianismo possui suas épocas, suas idades, seus graus hierárquicos. O Cristianismo não pode ser contido por nenhum sistema jurídico, ele não pode ser relacionado a uma simples doutrina. A constituição espiritual do homem é móvel, dinâmica, e não se pode erigir em verdade última aquilo que não corresponde senão a uma constituição espiritual de tipo médio, a uma consciência amarrada ao finito. A submissão ao finito testemunha um “espírito burguês” na vida religiosa.

A revelação espiritual interior precede, numa continuidade ideal que não é necessariamente cronológica, a revelação exterior histórica. Não podemos compreender e acolher as revelações religiosas que provêm do mundo histórico, se não se realizar uma revelação nas profundezas do espírito, se a própria historicidade não foi percebida como uma manifestação do espiritual. Todos os acontecimentos, assim como as palavras e os gestos exteriores, permanecem ininteligíveis para nós, a menos que se revelem por meio de palavras e acontecimentos interiores, a menos que sejam decifrados nas profundezas do espírito. Nada se revela para mim que não se revele em mim. Só faz sentido para mim um acontecimento que se produza em mim. A revelação religiosa é um acontecimento que tem lugar, não apenas para mim, mas também comigo; é uma catástrofe interior, espiritual, que se realiza em mim; se eu não os viver, então os acontecimentos de que estamos falando como sendo revelações de Deus não terão para mim significado algum. Eu não posso decifrar o Evangelho senão à luz de acontecimentos espirituais de minha experiência íntima. Fora desses eventos interiores, o Evangelho não possui mais significado do que qualquer outro acontecimento da história.

Podemos ir mais longe, e dizer que a história não pode ser compreendida senão na sua experiencia espiritual, unicamente como reflexo das manifestações do espírito. Se não atribuímos à história esse significado interior e espiritual, ela se transforma numa matéria empírica desprovida de sentido e de encadeamento. A revelação é sempre a revelação de um sentido, e esse sentido só se encontra no espírito; não existe sentido nos eventos exteriores, a menos que sejam decifrados pelo espírito. Eis porque a fé precede sempre espiritualmente a autoridade. A interpretação da revelação que vê nela uma autoridade, é uma forma de materialismo. Quando acolhemos os dogmas cristãos com nossa consciência religiosa, estamos supondo que essa consciência, vale dizer o espírito em sua vida interior, precede a revelação exterior dos dogmas.

Quando nos levantamos contra a liberdade de consciência, partindo da necessidade objetiva da revelação, esquecemo-nos de que Deus não pode se revelar senão a uma consciência religiosa, que o Espírito não se revela senão ao espírito, que o Sentido não se revela senão ao sentido, que a revelação pressupõe a iluminação interior. Deus não pode se revelar à matéria impenetrável, ao objeto inanimado. A revelação é um processo bilateral e teândrico, ela é o encontro de duas naturezas interiormente aparentadas, e, para ser recebida, ela necessita de um meio favorável ao qual o divino não seja estranho; pois uma natureza que não tivesse nada de divino não poderia recebê-la. Não podemos conceber como sendo transcendentes as relações entre a divindade que se revela e o homem que a percebe. Deus não pode se revelar ao homem que não se coloca diante dele. A revelação pressupõe a presença da fé no homem, em sua natureza elevada, que torna possível a comoção religiosa da revelação, o nascimento de Deus no homem, o encontro do homem com Deus. Isso significa que a revelação implica a imanência da divindade no espírito humano, no espírito e não na alma. Na revelação, o transcendente se torna imanente. A negação da natureza espiritual suprema no homem, daquela que o torna semelhante a Deus, desemboca na negação da própria possibilidade da revelação, pois ela não teria onde se manifestar. Deus não teria seu outro “ele mesmo”, ele seria solitário.

Os teólogos católicos afirmam que o homem só é um ser espiritual e semelhante a Deus pela graça, e não por sua natureza; mas essa é uma terminologia convencional, e essa distinção só existe sobre um plano exterior. O homem foi criado à imagem de Deus, e à Sua semelhança. A revelação, enquanto fenômeno do espírito, como evento interior, não pode ser compreendida a não ser sob a luz da imanência espiritual, que afirma a imagem e a semelhança divinas no homem. negar completamente a imanência e reconhecer a pura transcendência implica cair no deísmo, vale dizer, na negação da relação interior existente entre Deus e o homem. A pura transcendência constitui uma ruptura dualista entre o mundo divino e o mundo humano, ela torna impossível o teandrismo. É por isso que é necessário começar, em teologia e em filosofia, não por Deus, nem pelo homem, mas pelo Deus-homem, pela natureza teândrica que domina essa oposição.

A revelação é de certo modo para o homem a restituição do espírito, que permanecia fechado à sua consciência, aprisionado na natureza material. A revelação é a profundeza do espírito que se abre, uma escavação que religa essa profundeza à superficialidade da alma. Minha experiência religiosa pessoal é sempre imanente. Só é transcendente aquilo que não foi vivido e experimentado por mim. Semelhante transcendência não existe senão na experiência psíquica, pois na experiência espiritual não existem limites intransponíveis entre a minha experiência e a experiência do outro. Minha experiência espiritual é a mesma de São Paulo, e acontece no mesmo e único modo espiritual, quaisquer que sejam as diferenças que existem entre nós. A experiência mística, que é a forma suprema da experiência espiritual, constitui uma vitória definitiva sobre a transcendência e uma aquisição da imanência perfeita.

A afirmação do transcendente na consciência religiosa é uma forma de objetivação naturalista, que limita a vida interior do espírito. O imanentismo não caracteriza nossa consciência contemporânea; ao contrário, esta manifesta, nas suas formas mais evidentes, uma tendência extremamente forte para o transcendente; ela separa Deus do homem, isola esse último em si mesmo, cria uma ruptura entre o espírito e a alma; ela se constitui num agnosticismo. O imanentismo espiritual e místico não tem nenhuma relação com aquele da filosofia contemporânea que afirma que o ser é imanente à consciência e que consiste num fenomenismo e num positivismo.

Mas existe outro imanentismo no qual a consciência é imanente ao ser. O sujeito conhecedor está mergulhado na vida infinita do espirito. Os limites da consciência se afastam, a fronteira entre o espírito e a alma é abolida, os dois mundos se penetram reciprocamente. O que se realiza no sujeito conhecedor, em minha consciência, se realiza no ser e com ele, na profundeza da vida espiritual. O transcendente não passa de uma parte do imanente, ele não é mais do que um evento do caminho espiritual, não mais do que um desdobramento do espirito oposto a si mesmo. Nesse desdobramento, a revelação aparece como sendo transcendente e se objetiva. Mas, por sua natureza interior, ela é inteiramente imanente ao espírito, ela constitui seu evento interior.


II

A revelação consiste numa transformação da consciência, numa modificação de sua estrutura, na formação de novos órgãos orientados para um outro mundo, ela é uma catástrofe da consciência. A revelação não é uma evolução, mas uma revolução da consciência. Ela opera uma mudança nas relações recíprocas entre o subconsciente (ou o supraconsciente) e o consciente; ela insere a esfera do subconsciente (ou do supraconsciente) na consciência. Sob a luz da revelação, os limites da consciência se desmancham; sua dureza se funde sob o fogo da revelação. A consciência se eleva ao supraconsciente, ela se expande e se aprofunda indefinidamente. A mônada psico-corporal isolada se entreabre, e o espírito sonolento desperta. A revelação significa sempre um despertar do espírito e se faz acompanhar de uma orientação da consciência para um outro mundo. A compleição da consciência e a elaboração de seus órgãos são sempre determinadas pelas diretrizes do espírito, pela vontade espiritual que elege e rejeita. Os limites da consciência resultam do grau de experiência espiritual. Suas formas são secundárias, não primitivas, e são determinadas pela contração e a expansão dos mundos, segundo o que decidiu a vontade espiritual inicial. Aquilo que se realiza na própria vida original determina a orientação da consciência, abrindo-se a um mundo e se fechando ao outro.

O próprio fato da revelação e a possibilidade da experiência religiosa, da penetração no outro mundo, não podem ser compreendidos senão com a ajuda de uma consciência dinâmica. Porém, a maior parte das escolas filosóficas e teológicas compreende estaticamente a natureza da consciência, e teme o dinamismo. A consciência mediana, submetida à razão, confinada à ordem natural da mônada psicofísica, não é irredutível, nem é a única possível. A consciência pessoal não consiste na limitação do espírito pelo corpo, como pensavam Hartmann, Drevs e outros. Os limites entre a consciência e o inconsciente não aparecem como imutáveis, fixos e absolutamente estáticos. O ser é anterior à consciência, e o que se produz nele modifica também a estrutura dessa última. O Logos, o Sentido do mundo, é absoluto, enquanto que a consciência está sujeita à mudança e é relativa em seus limites. O entendimento da consciência racionalizada não pode se identificar com o Logos do mundo. A consciência é ativa e dinâmica, porque o espírito que a criou é ativo e dinâmico. Na vida original, na vontade espiritual, pode haver uma orientação para um mundo novo, que irá elaborar novos órgãos para a consciência.

O positivismo, o materialismo, o naturalismo racionalista identificam uma parte limitada da consciência com o ser integral. A consciência, depois de estabelecer limites à receptividade do ser, se considera como refletindo esse ser na sua totalidade. O kantismo, que representa uma forma do espírito mais refinada d que o positivismo e o materialismo, se esforça por afirmar os limites inabaláveis e imutáveis de uma consciência fundamentalmente estática, que ele qualifica como transcendental. Essa já está irremediavelmente fechada. Para ela, ou bem o ser se torna uma coisa em si (Dang an sich), ou bem ele desaparece por completo. A experiência espiritual não pode ultrapassar os limites da consciência transcendental, sem se evadir da esfera das formas logicamente obrigatórias. Mas a consciência transcendental não é responsável pela limitação na qual se encontra mergulhada a vida espiritual do homem; ela não faz mais do que refletir o estado da vida, da experiência, da direção da vontade original.

A consciência teológica, mesmo lutando contra a filosofia kantiana, evolui em realidade na mesma esfera isolada e não reconhece a infinitude da experiência espiritual, a possibilidade de um crescimento da consciência. A infinitude da experiência espiritual e a possibilidade para a consciência de se elevar à supraconsciência, não são reconhecidas senão pelos místicos. Os teólogos oficiais reconduzem os mistérios da vida divina ao nível da consciência mediana, vale dizer, da consciência transcendental universalmente imposta.

Mas seria um erro crer que o evolucionismo naturalista interpreta dinamicamente a consciência. Ele não admite senão uma modificação e um desenvolvimento dentro dos limites de suas formas fixas, submetidas à ordem natural. A evolução do homem não se liberta do endurecimento, do estado estático da consciência. Esse endurecimento, esse estado estático, garantem que tudo se realizará dentro dos limites da ordem natural. A consciência imutável determina limites intangíveis dessa ordem, ela garante com isso o caráter natural de toda evolução, de toda modificação dentro do mundo. O evolucionismo naturalista se recusa a admitir que os limites da consciência e do ser possam se expandir. Ele prevê apriorística e definitivamente o que pode e o que não pode se realizar no ser, refletindo sobre ele a natureza submetida à consciência normal. Nesse caminho, toda evolução em direção a outros mundos se torna impossível por princípio.

Os teosofistas[1], distinguindo-se dos evolucionistas de tipo naturalista, admitem que a consciência pode evoluir, ou seja, ela pode se abrir a outros mundos. Essa noção do teosofismo contém em si um elemento indiscutível de verdade, ainda que essa verdade não tenha sido descoberta, mas apenas vulgarizada por ele. Podemos admitir uma modificação da consciência individualmente isolada e a possibilidade de uma consciência cósmica e de uma supraconsciência. A experiencia espiritual da humanidade atesta a existência de uma consciência cósmica, que possui órgãos diferentes daqueles da consciência individual.

O empirismo habitual é também tão pouco dinâmico em seu ponto de vista sobre a consciência quanto o evolucionismo habitual. Ele coloca a priori limites à experiência e distingue o que é possível ou o que é impossível nela. Seus limites não são determinados pela própria experiência, que possui uma natureza infinita, mas pela consciência racionalista. O empirismo possui um caráter nitidamente racionalista e não admite senão uma experiência racional; a experiência, ilimitada em suas possibilidades, é inacessível para ele. Ele ignora a experiência que mergulha no mundo espiritual infinito, e não conhece outra coisa que a experiência psíquica e sensível, orientada para o mundo natural e limitada pela consciência racional. O empirismo, assim como o evolucionismo, considera a organização da consciência de um ponto de vista estático; seus sistemas são caracterizados pela convicção de que os limites do ser correspondem aos limites da consciência fixa; eles evoluem, como no racionalismo, dentro de um círculo vicioso[2]. Somente o empirismo místico admite a possibilidade da plenitude e da infinitude da experiência e nos reconduz à vida original. Mas ele não possui quase nada em comum com o empirismo predominante, que nega toda possibilidade de comunicação entre os dois mundos.

O racionalismo, o idealismo transcendental, o empirismo, o evolucionismo, o positivismo teológico, são tendências nas quais se manifesta o caráter opressor da consciência estática. Eles não admitem que a consciência possa se expandir, que ela possa se abrir para a vida cósmica e a vida divina; eles negam a possibilidade da experiência espiritual, aquela da vida original. Trata-se de diferentes expressões de um só e mesmo processo, de uma mesma via, o reflexo de uma mesma experiência limitada. Daí nasce uma interpretação transcendente e exterior da revelação, deita de um realismo simplista e naturalista.

A concepção dinâmica admite a existência de diferentes graus para a consciência. A revelação indica aí precisamente um novo grau, uma modificação dinâmica de sua extensão. A consciência não é determinada pela realidade de um modo passivo; ela está ativamente dirigida para uma realidade ou para a outra. Às diferentes orientações da consciência correspondem diversas realidades. Zimmel explica bem porque elas são múltiplas: a ciência cria a sua, a arte e a religião possuem as suas. Essa teoria se reveste, em Zimmel, de um caráter relativista, mas ela conserva sua força independentemente de todo relativismo. Nós evoluímos em mundos diferentes e dependemos de orientações escolhidas por nossa vontade espiritual. O mundo da experiencia cotidiana é criado pela orientação ativa de nossa consciência, pela escolha de uma coisa e a rejeição de outra; ele não pode pretender uma realidade superior à de outros mundos.

A consciência média é determinada por seu encadeamento à realidade habitual, por sua incapacidade de se concentrar sobre outra realidade, de se voltar para um outro mundo. O universo religioso é criado por outra aspiração do espírito, por outra eleição da vontade; podemos dizer aqui que a consciência se liga ao objeto do qual ela se desviava habitualmente e que ela rejeita o objeto sobre o qual estava concentrada. A compleição da consciência implica sempre uma seleção, ela é determinada pela realidade à qual aspira, ela obtém o que ela deseja, ela é cega e surda para as coisas contra as quais se volta.

Nossa consciência se abre a determinados modos, elaborando um órgão receptivo correspondente; ela também se fecha a mundos inteiros, dos qu8ais ela se protege por meio de muralhas. Estamos sempre cercados por um mundo que tememos, sendo incapazes de manter sobre eles o olhar, e nos defendemos desse infinito temível por meio de nossa surdez e cegueira. Tememos ficar cegos e surdos por ele, e opomos a ele a limitação, o endurecimento e a inércia. É preciso que caia fogo do céu para refundir nossa consciência paralisada.

É falsa a suposição largamente difundida de que a realidade em si é acessível a uma consciência estática e passiva. O ser precede a consciência e não a determina num sentido ingenuamente realista, que implica sempre a crença em seu estado estático e passivo. O ser determina a consciência desde dentro e das profundezas, não desde o exterior.  Não se trata dessa parcela limitada do ser se revelando à consciência restrita, enquanto realidade objetiva por excelência, que precede a consciência, mas a plenitude do ser, vale dizer a vida espiritual infinita. Essa plenitude não pode ser recebida e percebida por uma consciência passiva e estática. Ela não pode se abrir, enquanto vida espiritual, senão a própria vida espiritual, senão à consciência orientada para essa vida, e que criou para si novos órgãos receptivos; ela não pode se revelar senão à supraconsciência. A faculdade de contemplação intuitiva constitui um órgão novo; ela não existe na consciência normal, ela não se revela senão à atividade intensa do espírito.

 É impossível considerar a existência de uma realidade objetiva colocando-se do ponto de vista da consciência estática e passiva, pois uma realidade desse gênero não existe em si mesma. A realidade é a vida infinita, sempre ativa e dinâmica, e ela não pode se revelar senão a uma vida que possua as mesmas propriedades. A realidade do mundo espiritual não pode provir do exterior, ela não pode provir senão do interior, como uma vida espiritual profunda. Eu mesmo devo descobrir a realidade do mundo espiritual, discerni-la em minha vida, em minha experiência, e não esperar que ela me seja assinalada desde fora. A experiência depende dos limites da consciência, e esses resultam da atitude do espírito, vale dizer, de um processo que se realiza na própria vida original. Mundos inteiros permanecem inacessíveis à nossa experiencia, porque damos as costas a eles, porque o muro de nossa consciência nos separa deles, porque escolhemos outro mundo, que é limitado. Para que esses mundos se manifestem a nós, nossa consciência deve sofrer uma catástrofe, o fogo da lava espiritual deve purificá-la.

A uma profundidade inefável do espírito, onde os limites estabelecidos entre mim e o mundo espiritual desaparece, se desenrola um acontecimento que sacode todo meu ser e transforma a estrutura de minha consciência. Nesse acontecimento, que é o fenômeno original da vida religiosa, de dá o encontro de dois movimentos: um que provém da vida divina e vem para mim, e outro que vai de mim para a vida divina. A revelação é o fogo que sai do mundo divino, que abrasa nossa alma, refunda nossa consciência, que varre seus limites. A revelação emana no mundo divino e se dirige para o mundo humano, implicando nele um movimento interior. Para sua percepção, ela pressupõe uma certa maturidade, uma Sede e uma Fome espirituais no homem que, profundamente decepcionado pelo mundo inferior, se põe em busca do mundo superior. A vida divina se revela por um movimento bilateral, provindo simultaneamente de duas naturezas, por uma modificação da natureza que pressupõe a ação da g raça divina e a da liberdade humana. O fenômeno da revelação necessita do fenômeno da fé. A revelação é impossível sem o acontecimento da experiência espiritual a que chamamos Fé, assim como a fé é impossível sem o evento do mundo espiritual a que chamamos Revelação. A fé real e objetiva pressupõe a revelação, o movimento proveniente do mundo divino, mas a revelação não pode penetrar no mundo a não ser que ela seja acolhida pela fé, enquanto acontecimento da vida espiritual do homem.


III

O fenômeno da fé na vida espiritual da humanidade pressupõe igualmente um dinamismo da consciência, sua separação do mundo natural e seu retorno ao outro mundo. Se, por um lado, podemos negar o objeto da fé, por outro é impossível negar sua existência na vida interior do homem. e esse fato, que tem uma imensa repercussão na história da humanidade, testifica que é possível uma modificação da consciência humana. O fato de que o mundo religioso se abre e se cria por uma determinada orientação de nosso espírito é igualmente tão inegável quando o fato de o mundo “empírico” se abrir e se criar por uma orientação diferente do espírito. A experiência religiosa não é inferior à experiência “empírica”. O mundo “empírico” não pode pretender para si uma realidade particular.  Os homens são obcecados por essa realidade “empírica”, e sua orientação para as realidades de outro mundo necessita para eles um trabalho de despertar desse sono hipnótico. A orientação da vontade humana criou uma atração magnética insuperável para o mundo “empírico” endurecido, cuja experiência é extremamente
limitada. O “mundo” consiste precisamente no endurecimento de uma certa experiência.

Na base do fenômeno da fé reside o retorno, a orientação da vontade primitiva, que se encontra em estado latente na vida original do espírito, para uma outra direção, para um outro mundo, vale dizer, para uma extensão inédita da experiência. A vontade primitiva elege e rejeita todo o tempo, ela escolhe um mundo e recusa outros, ela transforma a extensão da experiência. Na origem da fé repousa a vontade espiritual primitiva, não a vontade psíquica. A orientação da consciência e a extensão da experiência não são determinadas na esfera psíquica, mas na esfera espiritual. A fé não está dirigida para essa realidade que constitui já o resultado do endurecimento e da submissão da experiência habitual e indefinidamente reiterada. Ela não é uma obrigação imposta pela realidade. Ela é, segundo a eterna definição de São Paulo, uma demonstração das coisas invisíveis que não nos obriga a que as reconheçamos exteriormente. Ela está sempre orientada para o mundo misterioso e escondido.

O conhecimento da realidade que se revela à consciência média é uma demonstração das coisas visíveis. O mundo “empírico” que me rodeia, me obriga a reconhecê-lo; ele penetra em mim à força e eu não posso me recusar a vê-lo. O mundo das coisas visíveis, demonstradas pela experiência cotidiana, que são conhecidas pela experiência científica, não me dá liberdade de escolha. A consequência da escolha anterior foi uma obrigação de minha percepção e de meu conhecimento. A fé é um ato de liberdade do espírito, ela é obra de uma eleição e de um amor livres. Nenhuma realidade visível ou objetiva pode me obrigar ao ato da fé, que é uma invocação do mundo espiritual, misteriosa e íntima, que se abre à liberdade e se fecha à necessidade.

A percepção e o conhecimento do mundo natural “empírico”, do mundo das coisas visíveis, não exigem uma transformação radical da consciência, eles não esperam da vontade espiritual uma reeleição do mundo. Essa percepção e esse conhecimento se realizam, não no primitivo, mas no secundário, eles se efetuam na esfera determinada anteriormente pela vida original do espirito. A percepção e o conhecimento da realidade palpável e visível, que nos cerca de todos os lados, não exigem uma livre intensidade do espírito para estabelecer o objeto, que é a própria realidade.

Devemos, por meio de uma livre atividade do espirito, nos separar do mundo para nos dirigir a outro mundo. Devemos nos libertar da obsessão massacrante do mundo das coisas visíveis, que vela aos nossos olhos o mundo das coisas invisíveis. Quando ficamos confinados na consciência média fixada, somente o mundo “empírico” nos aparece, enquanto que o mundo espiritual permanece fechado. Nenhuma obrigação e nenhuma violência emanam do mundo invisível e misterioso. Inacreditável é a possibilidade do ateísmo, desse estado de consciência que nega a realidade de Deus, fonte de toda existência. Eu não posso negar a realidade da mesa sobre a qual escrevo, nem da cadeira em que me sento, mas posso negar a realidade de Deus. Mas, enquanto que o solipsismo permanece sendo um jogo do espírito, o ateísmo acaba por determinar toda a vida do homem. Deus não nos obriga, não nos constrange a reconhecê-lo, Ele está orientado para a liberdade do espírito, ele não se revela senão à vida livre do espírito.

“Bem-aventurados os que não viram, mas creram[3]”. Essa felicidade é ignorada por aqueles que não conhecem mais do que o mundo visível, que não creem senão no que são obrigados a crer. Mas bem-aventurados são os que creram no mundo invisível, naquilo que não são forçados a crer. Nessa liberdade de escolha, nessa liberdade de espírito reside o ato heroico da fé, que pressupõe o mistério e que não pode existir sem ele. O conhecimento da realidade visível está ao abrigo de todo perigo, ele está garantido pela força da obrigação. A fé na realidade invisível e misteriosa comporta um risco: é preciso aceitar atirar-se num abismo misterioso. A fé não conhece garantias exteriores; falo da fé enquanto experiência original da vida do espírito. Não é senão na esfera secundária, exotérica, da vida religiosa, que aparecem as garantias e que se organiza uma necessidade geral da fé.

Exigir garantias e provas da fé equivale a não compreender sua natureza, é negar o ato voluntário e heroico que ela inspira. Na experiência religiosa autêntica e original, cujo testemunho nos foi legado pela história do espírito humano, a fé nasce sem garantias, sem provas necessariamente convincente, sem obrigação exterior, sem autoridade; ela nasce da fonte interior; ela consente antes a loucura do que a sabedoria desse mundo; ela aceita as maiores antinomias, os maiores paradoxos. A fé necessita do sacrifício da razão inferior e é somente por meio desse sacrifício que se adquire a razão superior, que o Logos, o sentido do Mundo, se revela.

“Se qualquer um dentre vós pensa ser sábio, segundo o século, que se torne louco, a fim de se tornar sábio! Pois a sabedoria desse mundo é loucura diante de Deus[4]”.

A “sabedoria desse mundo” está ligada à consciência média orientada para o mundo das coisas visíveis. Essa consciência se funde outra vez no fogo da experiência espiritual a que chamamos de fé, e o homem passa necessariamente pela loucura.

O fenômeno da fé é muitas vezes descrito como um estado absolutamente passivo do homem, como um silêncio e uma dormência da natureza humana, como a ação exclusiva da graça divina. Encontramos essa interpretação do fenômeno da fé em certas formas do protestantismo e da mística quietista, mas essa não é a verdade última. É a descrição do fenômeno da fé na esfera psíquica, é o home psíquico, natural, que se cala e adormece. Mas é além que reside dissimulada a grande atividade criativa do homem espiritual. Na vida original do espírito a fé pressupõe uma imensa atividade e uma intensidade criativa infinita. O homem psíquico fica paralisado, abandona sua vontade natural. Mas o home espiritual interior leva sua atividade, sua liberdade primitiva, ao máximo da intensidade. Um estado exteriormente passivo frequentemente não passa da expressão de uma atividade interior. A ação da graça divina pressupõe a ação da liberdade humana. Somente a doutrina de Calvin sobre a predestinação nega com extremismo essa ação da liberdade humana, esse fenômeno bilateral da fé. Nas profundezas do espírito, nos rincões ocultos da vida e da experiência espirituais, existe sempre um encontro e uma ação recíproca entre a natureza divina e a natureza humana. Ficar obcecado por uma das naturezas, tanto pela natureza divina quanto pelo mundo das coisas visíveis, equivale a permanecer fechado na esfera psíquica. Entretanto, sua ação recíproca no mundo espiritual não implica a transcendência de uma natureza em relação à outra. Essa transcendência exterior não existe no mundo espiritual, ela é sempre exotérica e psíquica.

A fé é um ato de liberdade do espírito; sem liberdade não pode haver fé. É por isso mesmo que a fé se distingue do conhecimento, mas esse pressupõe sempre uma fé, vale dizer, uma intuição primitiva da realidade para a qual o espírito de dirige, e que ele mesmo escolhe. Também nós acreditamos no mundo natural empírico, no mundo das coisas visíveis, antes de tê-lo conhecido. O mundo das coisas visíveis nos força e nos obriga a conhecê-lo, porque nós o elegemos, porque a ele ligamos nosso destino. Nós nos separamos do mundo divino e nos encontramos no mundo natural, que se tornou para nós o único visível e acessível, o único que somos obrigados a reconhecer. Acreditamos por demais nesse mundo, e é por isso que ele está completamente aberto para nós. Demos as costas ao mundo divino e ele se fechou para nós, ele se tornou invisível. De certa forma, perdemos nosso próprio espirito, e só conservamos a alma e o corpo; organizamos nossa consciência conforme o mundo natural, criando órgãos receptivos para ele. Esquecemos o espírito e deixamos de conhecê-lo, pois o semelhante só pode ser conhecido pelo semelhante.

É pela fé, por uma livre eleição, que poderemos outra vez nos dirigir ao mundo espiritual, ao mundo divino. Deus não se revela senão na experiência da liberdade e do amor livre. Ele aguarda esse amor por parte do homem. a fé procede das profundezas do subconsciente, ou da elevação do supraconsciente, e ela revira todas as formas de consciência previamente estabelecidas. Graças a essa experiência, uma nova possibilidade se oferece a nós, para que conheçamos o mundo espiritual e divino. A gnose superior não é amarrada pela fé que, ao contrário, lhe abre o caminho para a experiência; mas essa gnose não constitui uma demonstração racional e lógica da existência do ser divino. tal demonstração a identificaria com os objetos do mundo visível e natural que nos forçam a reconhecê-los. Deus é Espírito e ele se revela na contemplação intuitiva do espírito. A gnose é precisamente o conhecimento espiritual, baseado na contemplação viva do mundo espiritual, totalmente diferente do mundo natural.


IV

A existência de uma obrigação lógica universal e a existência de provas racionais são resultado de um certo grau de união espiritual, de uma certa catolicidade das consciências. Quando, na fé religiosa, exige-se uma demonstração logica, costuma-se estabelecê-la no nível mais baixo da união espiritual. A necessidade científica, assim como a necessidade jurídica, representa um grau inferior de união espiritual, ou, mais exatamente, a desunião própria ao mundo natural. Somente os homens distanciados pelo espírito e interiormente desunidos recorrem a provas cientificas e jurídicas para se convencer mutuamente. A alguém que me é caro em espírito, a um amigo, eu não tenho necessidade de provar certas coisas, nem tenho que obrigá-lo a crer nelas, mas ambos vemos uma só e mesma verdade e nos unimos nessa verdade.

Mas, mesmo para o mundo natural desunido e dividido, deve haver uma união na verdade, uma certa possibilidade de compreensão recíproca e de vida comum. O que é lógica e cientificamente obrigatório, nas verdades que nos orienta, no mundo natural e histórico, não constitui mais do que uma união reduzida, ou, no mínimo, em seus começos. As verdades dos matemáticos, das ciências da natureza e da história possuem um caráter comprovativo e obrigatório, porque elas devem ser reconhecidas indiferentemente por homens de espírito oposto e que estão totalmente desunidos interiormente. A união científica e lógica, no domínio dessas verdades, não necessita mais do que uma forme elementar e inferior de união. As leis lógicas, o ser ideal de Husserl, pertencem também ao “mundo visível”, ao mundo universalmente obrigatório. O crente e o ateu, o conservador e o revolucionário, estão igualmente obrigados a reconhecer as verdades matemáticas, as da lógica e as da física. O mesmo podemos dizer da necessidade jurídica.

Não existe necessidade de união, de catolicidade, de comunhão de espírito para reconhecer um mínimo de direitos nas relações dos seres entre si. Não há necessidade de comunhão espiritual no amor para reconhecer as verdades gerais da ciência e do direito. Seu caráter obrigatório se adapta precisamente a uma sociedade na qual os homens não se amam mutuamente, na qual são hostis uns em relação aos outros, na qual eles não se encontram unidos em espírito. É preciso apresentar provas aos inimigos, enquanto que nos unimos aos amigos na contemplação e na realização da verdade única. A validade lógica necessária e universal, e a necessidade de prova ligada a ela, possuem uma natureza social. Elas oferecem o meio de reunir o mundo dividido, de manter a unidade por meio da obrigação, preservando-a assim da cisão definitiva. A ciência positiva e o direito positivo nasceram na atmosfera do mundo desagregado, e têm como missão manter a unidade no ambiente de animosidade e de divisão que nele reina. A obrigação de se submeter às verdades da ciência do direito jamais teria nascido numa atmosfera de união espiritual e de amor, na qual o conhecimento consistiria na contemplação ecumênica da verdade, e onde as relações entre os homens seria determinada, não pelas normas jurídicas, mas pelo próprio amor, pela união no espírito. Não haveria necessidade de provar seja lá o que for a seja lá quem for, nem de obrigar algo a alguém, pois todo homem se encontraria entre seres espiritualmente próximos, aparentados, e não entre estranhos e forasteiros.

Já as verdades de ordem moral ou os ensinamentos de caráter filosófico, supõem um alto grau de união espiritual e possuem um aspecto menos obrigatório do que as verdades matemáticas, as da ciência positiva ou dos elementos do direito. A comunhão no conhecimento filosófico pressupõe um parentesco espiritual maior do que a comunhão no conhecimento científico. No conhecimento filosófico, aqueles que estão distantes e reciprocamente estranhos não podem convencer uns aos outros, não podem se obrigar mutuamente a reconhecer uma verdade única. Pois aqui é necessária uma unidade de intuição; assim é que os platônicos de todas as eras constituem, de certa forma, uma só sociedade espiritual na qual a contemplação do mundo das ideias é sempre idêntica. Eles não podem provar a existência desse mundo aos que não fazem parte de sua união espiritual. As verdades de ordem moral repousam sobre uma existência espiritual comum, sobre a visão de uma verdade única, e é difícil as impor àqueles que se acham fora da experiência de sua união espiritual. As verdades da religião e da revelação pressupões um máximo de comunhão espiritual, seu grau último, elas pressupõem uma catolicidade das consciências. Elas são pouco convincentes, contestáveis e inúteis para aqueles que são estranhos e distantes, e que se mantêm fora da associação espiritual. Fora dessa experiência espiritual, única e comum, essas verdades são mortas.

Dar um sentido lógico e jurídico às verdades religiosas, não passa de conferir a elas um valor social exotérico. É assim que o mundo espiritual se rebaixa até o mundo natural e se adapta às formas de união desse mundo dividido. O homem natural ainda precisa das necessidades lógicas e jurídicas, ele identifica a vida religiosa à vida desse mundo, o Reino de Deus ao reino de César. Mas no mundo espiritual trata-se de outra coisa. A doutrina da autoridade como critério supremo da verdade, nasce da identificação da ordem do outro mundo com a desse mundo, da necessidade de conservar ara ele uma base intangível. A doutrina da autoridade talvez seja necessária para o homem psíquico e o mundo natural, para certos estágios de sua evolução. Mas ele reflete a fraqueza na fé, a insuficiência da experiência espiritual, a incapacidade de contemplar a verdade e de ver a realidade.

Não pode haver critério de conhecimento de Deus fora dele próprio. O mesmo acontece com a experiência espiritual, que não pode se apoiar senão sobre as profundezas pessoais, a experiência espiritual é a um tempo individual e supraindividual, ela não é jamais unicamente a “minha experiencia”. A busca de critérios transcendentais resulta do isolamento do mundo psíquico. No fenômeno da fé, meu amor, minha atividade, minha eleição, são dados e se unem misteriosamente à ação da graça divina, do amor e do impulso divinos em relação a mim. A fé é a aquisição da graça, que não conhece a necessidade no sentido lógico e jurídico do termo; ela nos revela uma união de outra ordem, ela é o oposto do que é lógico e jurídico. A teofania nos é dada, antes de tudo, na liberdade, e não na autoridade.


V

A revelação é adaptada à estrutura da consciência, proporcional aos graus que ela atinge. Existem, portanto, graus na revelação. A efusão da luz divina corresponde às transformações sofridas pela consciência, às diversas tendências e às múltiplas eclosões do espírito. Nos graus da revelação, não apenas o homem, como o próprio mundo se modifica, aparecem novas épocas na vida original, na vida universal do espírito. A revelação da Antiga Aliança, limitada à vida do povo israelita, correspondeu ao grau de consciência do povo de Israel. A luz da revelação são se distribui senão proporcionalmente à capacidade da consciência, ao grau de receptividade do homem natural para com o mundo espiritual. Jacob Boehme dizia que o amor divino se refrata nos elementos sombrios sob a forma de ira divina, de fogo devorador. O próprio Deus é Amor absoluto na Trindade divina, mas pode ser concebido como a ira de um elemento separado de Deus e desprovido de amor. A antiga imagem de Javé não passa de uma revelação exotérica de Deus refratada no obscuro elemento natural.

  Mesmo na revelação primitiva e naturalista da Antiga Aliança, existem estágios; a revelação de Deus aos hebreus foi politeísta, como aos povos pagãos. O monoteísmo é fruto de um desenvolvimento espiritual mais tardio. A aparição da consciência monoteísta foi de certa forma pré-datada, e somente mais tarde ela foi aplicada ao passado. Mas na revelação do Deus único, existem diferentes estágios e graus. A revelação de Moisés representa uma época histórica totalmente diferente da dos profetas. A consciência do Deus único, como Deus nacional judeu, é completamente diferente da do Deus universal, o Deus de todos os povos. E a consciência da Antiga Aliança passou por um estágio de politeísmo pagão e de nacionalismo naturalista.

Uma profunda crise espiritual teve que se realizar nos profetas, a consciência judaica teve que passar pelo individualismo, pela separação em relação à religião nacional e racial, por processos espirituais que se refletiram no livro de Jó e nos livros de Salomão, e, paralelamente ao enrijecimento da religião da lei, apareceu uma intensa atmosfera apocalíptica. Sobre o terreno do individualismo, na época helenística, nasceu um sentimento de universalismo, a fim de que se criasse uma ambiência espiritual que permitisse à luz da Nova Aliança resplandecer. Existe aí uma história da consciência extremamente complexa, que reflete as lutas do espírito, o aprofundamento e o alargamento da experiência espiritual. Não encontramos aí nada de estático, tudo aí é dinâmico. O estágio superior da revelação compreende sempre a criação espiritual do estágio precedente. A revelação pressupõe necessariamente processos de desenvolvimento no mundo, ela implica um movimento dinâmico da consciência.

Tais processos de evolução espiritual aconteceram igualmente no mundo pagão. Ao modificar sua consciência, expandindo e aprofundando sua experiência, também ele se preparou para receber a luz de Cristo. Nos grandes momentos espirituais do paganismo helênico, no dionisismo, no Orfismo, nos mistérios, na tragédia e na filosofia gregas, em Heráclito, Pitágoras, Platão, deu-se uma vitória sobre o naturalismo pagão, a consciência se desenvolveu, o espírito se revelou. O paganismo também conheceu penetrações do mundo espiritual, ele também possuiu seus estágios da revelação de Deus. A sede de ressurreição entre os egípcios, o dualismo da consciência religiosa entre os persas, a denúncia do mal, da mentira, da inanidade do mundo natural pela consciência religiosa da Índia, todas essas coisas constituem outros tantos momentos importantes na história do espírito, no desenvolvimento da consciência, na revelação do divino ao mundo.

Mas o próprio Cristianismo tem graus de elevação, idades e épocas; o destino da Cristandade tem seus éons. A profundeza e a plenitude da verdade cristã são refratadas pelas diversas estruturas de consciência e por diferentes graus de espiritualidade. Existem idades do Cristianismo, não somente na vida dos indivíduos, como também na história universal. Existem diferentes graus no desenvolvimento da consciência e nas manifestações da espiritualidade, que não são de modo algum resultado da aquisição individual da santidade. Existe uma perfeição e uma santidade de espírito, uma perfeição e uma santidade da alma, uma consciência esotérica e uma consciência exotérica. A verdade cristã se revela num processo dinâmico e criativo, e esse processo permanece inacabado no mundo, ele não pode se realizar antes do final dos tempos. A revelação da verdade cristã na humanidade pressupõe uma eterna dinâmica da consciência, uma eterna tensão criativa do espírito.

Mas a revelação da Nova Aliança permanece ainda oprimida pela natureza do Velho Adão, por formas de consciência pagãs. O mundo espiritual não penetrou definitivamente o mundo natural. O infinito permanece encravado no finito. O mistério se revela exotericamente. É por isso que o Cristianismo frequentemente não passa, no mundo, de um “pagano-Cristianismo”. A revelação bíblica e o processo cosmogônico e antropogônico, que aí estão descritos de forma simbólica, são compreendidos no espírito da Antiga Aliança. O Cristianismo, na sua maior parte, permanece submetido à lei, ele se refrata no mundo natural como religião da lei e não como religião da graça e da liberdade; ele adquiriu a forma da vida natural desse mundo e de suas necessidades inelutáveis. O próprio mistério da graça foi naturalizado, objetivado, racionalizado, assimilado à força que age no mundo natural. É isso que aparece claramente na organização da teologia católica.

O Cristianismo passa, de certo modo, em seu desenvolvimento, por uma fase na qual predomina a lei, ou seja, por um paganismo judaico. O espirito profético é muitas vezes negado aí. O Cristianismo se transforma então num sistema estático, fixo, em doutrinas teológicas, em cânones e numa organização exterior. Nós nos representamos a Igreja como um edifício acabado, recoberto por um domo. O infinito do mundo espiritual se fecha, a lei e o farisaísmo cristãos começam a dominar. O dinamismo criativo da consciência provoca medo e opomos limites a ele. os cristãos igrejeiros se assimilam muitas vezes aos positivistas, por sua compreensão estática da consciência, que eles cercam com muralhas intransponíveis.


VI
Os graus e as épocas da revelação não manifestam apenas uma transformação da consciência e de suas capacidades receptivas, mas refletem também um processo teogônico, divino. As épocas da revelação manifestam igualmente a vida íntima da divindade, as relações interiores da Trindade. A vida misteriosa e oculta de Deus se reflete em nosso mundo humano. Os momentos essenciais, fundamentais, do desenvolvimento da consciência humana, ou seja, as épocas do processo antropogônico, indicam também momentos interiores da vida divina. O homem nasce na revelação; não apenas a natureza divina, mas também a natureza humana se revela aí. Os graus da revelação designam também os graus de desenvolvimento do homem.

A revelação é sempre de Deus e do homem, vale dizer, uma revelação teândrica. Esse caráter da revelação encontra sua expressão definitiva no Cristianismo. Em Cristo, Deus-homem, não apenas nos é dada a revelação de Deus, mas também a de seu outro Si-mesmo, ou seja, do Homem. A Segunda Hipóstase da Santa Trindade é o Homem Absoluto, e Sua revelação corresponde à aparição de um novo homem espiritual, do homem eterno.

Mas esse novo homem espiritual ainda não está definitivamente manifestado. Uma nova revelação é possível, em princípio, dentro do Cristianismo. Contra essa possibilidade não é possível alegar objeção alguma. Só se pode objetar uma coisa, a saber, que a nova revelação fará desaparecer a antiga; mas, em realidade, ela não poderia ser outra coisa que não sua continuação e sua realização. O processo criador no mundo deve seguir sua marcha irresistível, pode toda detenção significaria para ele o adormecimento e a extinção do espírito. A revelação é a vida, ela é um processo teândrico dirigido para a infinitude do mundo espiritual, e não o ensinamento de verdades abstratas e de fórmulas fixas. A consciência do homem é capaz de atingir o infinito divino ou cósmico. Mas o homem se defende contra o poder desse infinito, assim como contra o dos elementos naturais pelo isolamento de sua consciência. No mundo pagão o homem estava mais aberto à vida interior da natureza, aos mistérios do cosmos, do que no mundo cristão, onde o home libertou seu espírito do poder dos elementos, impondo limites à sua consciência. Mas se, numa dada época, existiu a necessidade de proteger o homem do infinito cósmico, se graças a isso seu espírito pôde se libertar e se voltar para Deus, também pode haver um momento em que o homem se arrisque a afirmar seu isolamento e sua separação do mundo divino. o mundo natural se formou inicialmente pela compreensão transcendente da revelação, e a seguir pela negação dessa revelação. Mas atualmente a concepção naturalista do mundo passa por uma crise e se produz assim um retorno ao mundo espiritual.

Entre o Oriente e o Ocidente existe uma diferença muito original. No Oriente, na Índia, afirma-se uma grande mobilidade na organização da consciência humana e o nascimento de uma consciência cósmica não parece tão inverossímil como no Ocidente. O homem se vê, por isso mesmo, mergulhado no cosmo incomensurável. Ao contrário, a cultura do Ocidente repousa sobre um dinamismo histórico intenso e sobre a imutabilidade da consciência. A cultura do Oriente ignora o dinamismo histórico, mas admite o da consciência humana, vale dizer, uma transformação que lhe permite descobrir os mundos espirituais. Tal divergência não poderá subsistir eternamente. No Ocidente o homem se formou com o molde de uma consciência perfeitamente estável, que o protege do infinito cósmico e, ao mesmo tempo, sob a pressão de um dinamismo da história que o empurra para o futuro.

Mas essa via conduziu a humanidade a uma crise. A revelação cristã, que ultrapassa tudo o que havia no mundo, acabou por se petrificar, e às vezes parece que todo espírito se separou do mundo cristão. É preciso que se crie um mundo espiritual único, no qual o dinamismo da consciência e a aparição de uma consciência cósmica não transformem o homem num joguete do infinito. A fé na revelação cristã garante que o homem não está destinado a desaparecer. Quando a própria revelação cristã for compreendida mais interiormente, de um modo mais esotérico e místico, ter-se-á realizado um progresso na manifestação do homem espiritual e isso corresponderá ao advento de um novo período do Cristianismo. A verdadeira cultura intelectual, o conhecimento autêntico, colaborarão para o advento dessa época. Existe uma cultura artificial sempre destrutiva, por causa de suas consequências para a vida religiosa; e existe também uma luz autêntica do conhecimento, uma iluminação real da consciência, um triunfo sobre esse obscurantismo que retém o Cristianismo no degrau mais baixo, e que o submete às superstições e aos preconceitos. A verdade da revelação deve libertar da morsa que sujeita a consciência ao finito, e uma luz infinitamente mais radiante deve jorrar do mundo espiritual.



[1] Berdiaev se refere aqui ao Teosofismo, pseudo-religião inventada por Elena Blavatsky, e não à Teosofia de Jacob Boehme. Ver Theosophy  And  Anthroposophy in Russia, 1916.
[2] Essa incapacidade de admitir uma modificação essencial da consciência se manifesta nas análises sobre a religião dos povos não civilizados. Taylor e Fraser atribuem aos selvagens as propriedades de sua própria consciência e de sua formação de espírito. Lévy Bruhl, em seu livro Les fonctions mentales dans les sociétés inferieures trata essa questão de modo bastante interessante.
[3] João 20: 20.
[4] I Coríntios 3: 18-19.

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