I
O espírito é liberdade, ele desconhece a obrigação, o constrangimento
das coisas objetivas; nele, tudo é determinado pelo interior, pela
profundidade. Estar no espírito equivale a estar em si mesmo. A necessidade do
mundo natural não é, para o espírito, mais do que o reflexo de seus processos
interiores. O pathos religioso da liberdade é um pathos de
espiritualidade; adquirir a liberdade autêntica implica penetrar no mundo
espiritual.
A liberdade significa a liberdade de espírito, e é ilusório e
quimérico buscá-la exclusivamente no mundo natural. Pois a ordem da liberdade e
a ordem da natureza se opõem uma à outra. E os pensadores mais profundos
tiveram consciência da diferença que existe entre elas. A natureza e sempre um
determinismo, e minha própria natureza não pode ser a fonte da minha liberdade.
As tentativas feitas com vistas a fundar e afirmar a liberdade na metafísica naturalista
foram sempre artificiais; elas são análogas às tentativas feitas para fundar ou
afirmar a imortalidade sobre o terreno da metafísica naturalista. Na alma, no
homem e no mundo da natureza, é tão difícil encontrar a liberdade quanto a imortalidade.
É preciso distinguir e manifestar a liberdade na vida e na experiência
espirituais; jamais podemos demonstrá-la ou deduzi-la da natureza das coisas. Em
cada objeto conhecido por nós, na medida em que seja um objeto natural, a
liberdade desaparece e se torna impalpável. Toda racionalização da liberdade mata
a liberdade.
O problema religioso e espiritual da liberdade não pode ser identificado
com a questão do livre arbítrio. A liberdade está enraizada, não na vontade,
mas no espírito; e o homem se liberta, não pelo esforço da vontade abstrata,
mas pelo esforço da consciência integral. Quando existe interesse nas provas da
existência do livre arbítrio, nunca é questão do pathos da liberdade. Temos
necessidade do livre arbítrio a fim de justificar os méritos ligados às boas
obras, a fim de motivar os castigos desse mundo e do mundo do além. O interesse
que temos pelo livre arbítrio é pedagógico e utilitário, mas não essencialmente
espiritual.
A metafísica espiritualista, que tantas vezes foi a filosofia oficial
e predominante, sempre inseria nos seus programas a defesa do livre arbítrio,
mas ela jamais foi uma filosofia da liberdade. A doutrina substancialista da
alma pretendia fundamentar a imortalidade e o livre arbítrio, mas ela era uma
forma de naturalismo, uma compreensão racionalista da vida espiritual. A natureza
substancial aparece como a fonte do determinismo, não da liberdade. A doutrina
da liberdade de escolha, compreendida como liberdade de indiferença, é
evidentemente a que nos satisfaz ainda menos.
É interessante constatar que, nas polêmicas sobre a conciliação entre
o livre arbítrio e a graça, que dividiram o pensamento religioso ocidental a
partir de Santo Agostinho e Pelágio, foram os jesuítas, provados do pathos
da liberdade de espírito e que rejeitavam a liberdade de consciência, que se
tornaram os partidários mais ferrenhos do livre arbítrio. Os jansenistas, assim
como Lutero, negavam o livre arbítrio e remetiam tudo à graça, mas eles reconheciam
a liberdade religiosa bem mais do que os jesuítas. Pelágio, partidário fanático
do livre natural e inalterável, era um racionalista incapaz de compreender o mistério
da liberdade. A própria oposição entre a liberdade e a graça continha em si um
vício e um erro, uma racionalização da liberdade, que se encontrava remetida à
ordem do mundo natural.
Essa falsa oposição entre liberdade e graça introduziu a divisão entre
o protestantismo e o catolicismo. Nesse choque se manifestaram diferenças paradoxais.
O protestantismo proclamava a todo tempo o princípio da liberdade de
consciência e defendia a liberdade religiosa, ao mesmo tempo em que negava o
livre arbítrio em favor da graça; ele recusava reconhecer a liberdade do homem
em relação a Deus.
O catolicismo, ao contrário, nega a liberdade da consciência religiosa
– esse princípio foi formalmente condenado pelo Vaticano como princípio de liberalismo
– e sustenta o livre arbítrio, no mesmo nível que a ação da graça. É sobre esse
terreno que se desenrola da controvérsia sobre a fé e as obras. O protestantismo
e o catolicismo opuseram sem querer a liberdade à graça, as ações à fé. O problema
religioso da liberdade do espírito se encontra assim mal colocado e
insuficientemente esclarecido. A questão da liberdade não é absolutamente a
questão da liberdade do querer, segundo a definição que dão a ela uma
psicologia naturalista e uma pedagogia moralizante. É a questão do princípio
fundamental do ser e da vida. A própria percepção do ser depende da liberdade. A
qual é anterior ao ser. A liberdade é uma categoria espiritual e religiosa e
não naturalista e metafísica. Sobre a questão da liberdade, as tendências filosóficas
e as doutrinas religiosas se dividem. Em Dostoievsky, esse problema da
liberdade do espírito alcança toda sua profundidade e agudeza. Mas o que torturava
Dostoievsky não era a questão do livre arbítrio, mas um problema infinitamente
mais profundo.
A ideia da liberdade é uma das ideias centrais do Cristianismo. Sem ela,
a criação do mundo, a queda e a Redenção são incompreensíveis, e o fenômeno da
fé permanece inexplicável. Sem a liberdade, a teodiceia é impossível, o processo
universal e desprovido de sentido. O espírito de liberdade infinita inunda nos Evangelhos
e as Epístolas católicas. A liberdade não deve ser unicamente o objeto de nossa
investigação, mas em nossas buscas devemos manifestar a liberdade de espírito,
devemos colocar o problema da liberdade na atmosfera espiritual que lhe seja
favorável.
“Assim os filhos são livres[1]”.
“Assim, se o Filho vos libertar, sereis realmente livres[2]”.
“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará[3]”.
“Já não vos chamo mais servidores, porque o servidor não sabe o que faz seu
mestre, mas vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que aprendi de
meu Pai[4]”.
“Quem pousar seus olhos na lei perfeita, a lei da liberdade...[5]”.
“Vos fostes resgatados por um alto preço, não vos torneis mais escravos dos
homens[6]”.
“Onde estiver o Espírito do Senhor, ali estará a liberdade[7]”.
“Não és mais escravo, mas filho[8]”.
“Irmãos, fostes chamados à liberdade[9]”.
“Ele não deseja que ninguém seja Seu escravo contra sua vontade ou por
constrangimento; mas quer que todos O sirvamos livre e voluntariamente, sabendo
da doçura de servi-Lo[10]”.
“Eu jamais obrigo a quem não quer, mas desejo que o serviço daqueles que Me
obedecem seja livre e espontâneo[11]”.
E em Dostoievsky, o Grande Inquisidor diz a Cristo: “Tu desejaste o livre amor
do homem, a fim de que ele vá livremente a Ti, seduzido e cativado por Ti”.
Aqui não se trata de uma questão diferencial de livre arbítrio, mas da
questão integral da liberdade do espírito. Aqui, a liberdade é toda a atmosfera
da vida espiritual, ela é seu princípio essencial. À liberdade se liga uma
certa espécie de sentimento e de compreensão da vida. O Cristianismo pressupõe
o espírito de liberdade e a liberdade de espírito; sem essa atmosfera
espiritual, ele não existe, e fica desprovido de todo sentido.
II
O problema religioso da liberdade de espírito não pode ser resolvido
por uma filosofia racional. Os melhores pensadores tiveram consciência de seu mistério
insondável. Bergson disse que todas as definições de liberdade racionalizam e
conduzem à sua desaparição. É impossível elaborar um conceito lógico e positivo
da liberdade, capaz de penetrar inteiramente em seu mistério. A liberdade é a
vida, a qual não é acessível senão dentro da experiência da vida, pois em seu
mistério interior ela escapa às categorias da razão. A filosofia racional
desemboca na doutrina estática da liberdade, enquanto que esta é dinâmica por
essência, e só pode ser concebida dinamicamente. É preciso analisar a liberdade
em seu destino interior, em sua dialética trágica, em suas diferentes épocas
espirituais e nos meandros nos quais ela se arruína e se transmuta em seu
contrário.
A liberdade não é uma categoria fixa e estática, ela é a dinâmica interior
do espírito, o mistério irracional do ser, o mistério da vida e do destino. Isso
não quer dizer que ela seja incognoscível e que seja preciso se reconciliar com
o agnosticismo. Mas os caminhos que conduzem ao seu conhecimento são complexos
e em nada se assemelham àqueles seguidos pela metafísica naturalista, que conduz
às doutrinas do determinismo e do livre arbítrio. Na realidade, o determinismo tem razão quando
se trata da física e da metafísica do mundo natural; nesses casos, é quase
impossível refutá-lo pela via racional.
Fora do Cristianismo não existe
liberdade; o determinismo sempre obtém a vitória. A liberdade do espírito, como
a imortalidade, não é um estado natural do homem, ela é um novo nascimento e
nela aparece o homem espiritual, pois ela só se revela na experiência e na vida
espirituais. Sua fonte não reside na alma, e menos ainda no corpo do homem, em
seu ser natural, sempre submetido as leis da natureza e limitado de todos os
lados por forças exteriores determinantes, mas no espírito, na aquisição da
vida espiritual, a liberdade é uma penetração em uma outra ordem de existência
e do ser, numa ordem espiritual.
Existe uma definição clássica da liberdade que permanece
indiscutivelmente verdadeira, ainda que seja incapaz de nos dar a percepção
positiva de seu mistério. A liberdade é uma autodeterminação nascida de dentro,
das profundezas, e ela se opõe a toda determinação exterior que constitui para
ela própria uma necessidade. Hegel a definiu nesses termos: Freiheit ist bei
sich selbst zu sein[12].
A autodeterminação é precisamente aquilo que procede das profundezas do
espírito, da força espiritual, e não de um impulso natural exterior, sob a pressão
de uma natureza que me é estranha, nem mesmo sob a pressão de minha própria
natureza; eu determino a mim mesmo desde a profundeza de minha vida espiritual,
a partir de minha própria energia de espírito; eu me encontro em meu próprio
mundo espiritual.
A causalidade física não nos oferece nenhuma explicação relativa ao encadeamento
interior de suas causas e de seus efeitos. Ela segue sendo uma lei totalmente
exterior. Não é sem razão que Mach propõe substituir o princípio da
causalidade, princípio mitológico, pelo das relações funcionais. As ciências que
tratam do mundo físico nunca chegam ao núcleo do ser, elas procuram no meio
exterior as causas de tudo o que se produz. O mundo natural nos parece
desprovido de toda energia interior: nele, o ser que age a partir de sua
própria profundidade não existe. Na busca das causas eficientes da realidade
física, vamos cada vez mais para o exterior. A necessidade reinante no mundo
físico é precisamente essa determinação que provém do exterior. Consideramos o
fenômeno como algo que pertence ao mundo físico e material, porque ele é determinado
por uma causalidade exterior, porque nele não se revela nenhuma energia criadora
que aja interiormente.
Quando virmos na natureza uma força interior, e compreendermos seus
eventos como sendo manifestações da energia íntima criadora, ela deixará de ser
física e material., e penetrará no mundo espiritual. A natureza física,
material, com seu peso, sua impenetrabilidade, com a exterioridade recíproca de
suas partes constituintes, constitui um distanciamento dos centros interiores
do ser, uma desagregação de um todo em elementos a um tempo inertes uns em
relação aos outros, e re3ciprocamente coercitivos. O mundo material constitui a
perda da liberdade de espírito. É por essa razão que nele age uma causalidade física
exterior, que criou a ordem indispensável da natureza, o determinismo.
Na causalidade psíquica que descobrimos nos fenômenos da alma, que
ainda fazem parte do mundo natural, a conexão interior das coisas, o
encadeamento que existe entre causas e efeitos, pode ser percebida de antemão. Mas
a realidade psíquica, estando ainda sujeita à realidade material, à vida do
corpo, permite que as causas exteriores continuem a agir sobre ela; ela
consiste ainda numa realidade dividida e isolada em si mesma, e é por isso que
ela encontra por toda parte a oposição de uma natureza estranha à sua, e se vê
submetida à ação da necessidade. A liberdade se manifesta na realidade psíquica
na medida em que o mundo espiritual se manifesta nela.
A alma humana é uma arena de ações recíprocas na qual se enfrentam a
liberdade e a necessidade, o mundo espiritual e o mundo natural. Quando o
espiritual age na psique, a liberdade de espírito se revela; quando é o natural
que age, a necessidade reclama seus direitos. O homem determina a si mesmo
desde dentro, das profundezas, na medida em que o espírito triunfa nele sobre
os elementos psíquicos e naturais, na medida em que a alma é absorvida pelo
espírito e quando o espírito penetra na alma. A liberdade não pertence senão
aos fenômenos da vida psíquica que podem ser qualificados como fenômenos
espirituais.
A causalidade psíquica não passa ainda de uma variedade da causalidade
natural; nela, um fenômeno da alma determina outro; isso significa que a
necessidade ainda age aí, ainda que seja mais complexa e interior do que aquela
que age no mundo material. A causalidade psíquica não manifesta ainda a
profundidade da energia criativa do ser; ela apenas faz com que um fenômeno
psicológico se distinga de outro. Como dois eventos ligados a ela pertencem à
vida de minha alma, o encadeamento já é mais interior do que o dos fenômenos físicos,
mas a liberdade de espírito ainda não se manifesta aí.
A energia interior, profunda, oculta e misteriosa, aquela que cria a
vida, não aparece senão na causalidade espiritual. Nela, a oposição entre
liberdade e causalidade desaparece; na determinação dos eventos e dos fenômenos
da vida, já não existe “extrinsecismo”. NA vida espiritual, a causa age desde o
interior, ela determina a si própria, o encadeamento misterioso da vida
universal se revela, e o núcleo interior do ser, que estava mascarado pelos
símbolos do mundo natural, aparece.
A liberdade de espírito, que engendra ela própria o efeito, que cria a
vida, se revela a nós como uma profundidade insondável. Não podemos alcançar o
fundo; não encontramos terreno firme em parte alguma, nenhum ponto de apoio que
a determine desde o exterior. Nossa natureza substancial não é capaz de
servir-lhe de fundamento, pois, ao contrário, é ela que engendra toda a
natureza. A liberdade não se ergue até a natureza, mas até a ideia divina, até
o abismo anterior ao ser. Ela tem suas raízes no não-ser. O ato da liberdade é
inicial e inteiramente irracional; toda concepção racional que se possa dar a
ela se identifica com os fenômenos da natureza.
O mundo determinado, aquela da causalidade física e psíquica é um mundo
secundário, parido pela liberdade. Não é a liberdade que é resultado da
necessidade, como afirmam muitos pensadores, mas a necessidade que é resultado
da liberdade, a consequência de sua orientação. O mundo natural, psíquico e físico,
é gerado pelos eventos e os atos do mundo espiritual. A separação em relação a
Deus, em relação à fonte original da vida do mundo espiritual, a desunião e a
divisão do ser, produzidas por uma orientação irracional da liberdade, se refletem
no mundo psíquico e material. Vivemos num mundo secundário e reflexo, e a
necessidade que o aprisiona e filha de nossa liberdade mal orientada.
Na liberdade se revela e se percebe o movimento interior da vida
universal. A experiência da liberdade é conhecida de todo ser que possua uma
vida espiritual. O mistério da ação e das relações de causa e efeito não se
revela a nós por intermédio da causalidade física, e o faz apenas parcialmente
pela causalidade psíquica. Os fenômenos originais da ação, da criação, de seu
dinamismo, nos são dados pela vida do espírito, e é somente sob seus aspectos
secundários que os entrevemos no mundo natural e determinado, no mundo da
causalidade exterior. Isso significa que a liberdade possui um caráter dinâmico
no mais alto grau. Ela só é perceptível em seu movimento interior, e é
inacessível a um estado petrificado. Uma liberdade fixada degenera em
necessidade e isso nos obriga a constatar que existem diversas concepções da
liberdade e que essa possui diferentes estágios.
III
Santo Agostinho já nos falava de duas liberdades: libertas major
e libertas minor. Podemos perceber, com efeito, que a palavra “liberdade”
possui dois sentidos diferentes. Entendemos por liberdade tanto a liberdade irracional
inicial que precede o bem e o mal e determina sua escolha, como a liberdade
inteligente, a liberdade final para o bem, para a verdade. por conseguinte, a
liberdade pode ser compreendida, seja como o ponto de partida e como caminho,
seja como objetivo e finalidade.
Sócrates e os gregos não reconheciam senão a existência da segunda
liberdade, aquela que nos é dada pela razão, a verdade e o bem. Nas palavras
evangélicas: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará[13]”,
é igualmente dela que se trata, ou seja, da liberdade na verdade e pela
verdade. Quando dizemos que um homem atingiu a liberdade autêntica, depois de
ter vencido em si mesmo os elementos inferiores, depois de tê-los submetido ao
supremo princípio espiritual, ou seja, à verdade e ao bem, temos sempre em
vista essa segunda liberdade. Quando dizemos, falando de um indivíduo ou de um
povo, que ele deve se libertar da servidão espiritual e alcançar a liberdade
autêntica, é ainda dessa liberdade que se trata. É a liberdade para a qual se
dirige o homem, o cume e o coroamento da vida, o objetivo final, é ela que deve
existir, e por meio dela será alcançado o triunfo dos princípios superiores da
vida.
Mas existe outra liberdade, da qual o homem procede, pela qual ele
escolhe seu caminho e acolhe a verdade e o bem. Existe uma liberdade que é, de
certa forma, a fonte obscura da vida, a experiência original, o abismo que se
encontra a uma profundidade maior do que a existência e por meio do qual o ser
e determinado. O homem sente em si mesmo, no princípio de seu ser, essa liberdade
irracional e insondável; ela está ligada à energia potencial. E o tomismo, com
sua doutrina aristotélica da potência e do ato, foi levado ao final de contas a
negar a liberdade, como se ela fosse uma imperfeição.
A liberdade é expressa de modo genial em Dostoievsky pelo herói de O
Espírito subterrâneo. O homem é um ser irracional e, mais do que qualquer
outra coisa, ele tenta viver segundo sua própria vontade. Ele consente no sofrimento
em nome dessa livre vontade. Ele está pronto para revirar toda a ordem racional
da vida, toda harmonia, se ela ameaçar privá-lo de sua liberdade de escolher,
se ele lhe for imposta.
Se só admitirmos a liberdade dada pela verdade, dada por Deus, e
rejeitarmos a liberdade de escolher e de receber a verdade, seremos fatalmente arrastados
para a tirania, e a liberdade de espírito será substituída pela organização do
espírito. Admitamos que a liberdade autêntica não é possível senão em Cristo e
por Cristo; Cristo não deve ser menos livremente aceito, é o ato da liberdade de
espírito que deve nos conduzir até Ele. ele tem necessidade que O aceitemos
livremente, Ele deseja o livre amor do homem. ele jamais pode obrigar ao que
quer que seja, pois Sua Face está sempre voltada para nossa liberdade. Deus só
acolhe os que são livres. Deus espera do homem seu livre amor, e o homem espera
de Deus a liberdade, vale dizer, que a verdade divina o liberte.
Deus espera a liberdade do homem; Ele espera sua livre resposta ao chamado
divino. a liberdade autêntica é aquela que Deus exige de mim, e não aquela que
eu exijo de Deus. É sobre essa profundeza que está fundamentada a liberdade do
homem; ela se encontra em estado latente em seu abismo insondável. A verdade
nos concede a liberdade suprema, mas a liberdade é necessária na aceitação dessa
verdade. a verdade não pode obrigar, nem se impor, ela não pode conferir
liberdade ao homem pela violência. Não é suficiente receber a Verdade – ou seja,
Deus – mas é preciso recebê-la livremente. A liberdade não pode resultar de uma
obrigação, de um constrangimento, mesmo que essa obrigação e esse
constrangimento sejam divinos. Não é possível alcançar a liberdade a partir de
um estado de vida organizado, harmônico e perfeito, pois é esse estado que deve
resultar da liberdade. A salvação virá da Verdade que nos concede a liberdade,
e uma salvação imposta é impossível e inútil. A salvação não pode se realizar
sem a liberdade do homem, pois ela consiste na sua libertação da Verdade, em Deus;
e, por obrigação, sem liberdade, essa libertação não pode se realizar.
Quando afirmamos a segunda liberdade como liberdade única, estamos
afirmando a liberdade divina. Mas a liberdade de espírito não é somente a
liberdade de Deus, ela é também a do homem. a liberdade humana não se resume à
liberdade em Deus, mas também à liberdade em relação a Deus. O homem deve ser
livre diante de Deus, do mundo e se sua própria natureza. A liberdade na
aceitação da Verdade não pode ser obtida da própria Verdade, pois ela lhe é
anterior. A liberdade não é idêntica ao bem, à perfeição da vida; é essa confusão
e essa identificação que foram causa de sua incompreensão e de sua negação. O bem
e a perfeição da vida devem ser atingidos livremente. É no fato de serem
acolhidos e atingidos livremente que reside a dignidade e a originalidade qualitativas
da vida espiritual, religiosa e moral.
O grande mistério da liberdade não se encontra onde se costuma buscá-lo,
onde se costuma estabelece-lo. A liberdade do homem não constitui uma
reivindicação e uma pretensão de sua parte. O homem renuncia facilmente à
liberdade, em nome de sua tranquilidade e de sua felicidade, ele suporta com
dificuldade seu fardo excessivo, e está sempre pronto a abandoná-la a espáduas
mais robustas. Em seu destino individual e histórico, ele muitas vezes renuncia
à liberdade e escolhe de preferência a quietude e o sossego na necessidade. Vemos
essa abdicação do homem à liberdade, essa preferência concedida à obrigação,
tanto na antiga ideia teocrática como na nova ideia socialista.
A liberdade de espírito pressupõe um abrasamento do espírito. Ora,
esse abrasamento não se encontra com muita frequência e tal não é o fundamento
habitual das sociedades humanas. Os hábitos, os costumes e as sociedades
normalmente se enfraquecem e se cristalizam devido à extinção do fogo espiritual.
O homem pode passar sem a liberdade, e a reivindicação da liberdade de
espírito, que gera o trágico e os sofrimentos da vida, não é uma reivindicação
humana, mas divina. Não é o homem, mas Deus que não pode passar sem a liberdade
humana. Deus exige do homem a liberdade de espírito; ele não precisa senão do
homem livre de espírito. O desígnio divino do homem e do mundo não pode se
encarnar sem a liberdade do homem, sem a liberdade de espírito. A liberdade
humana tem como fundamento a exigência da vontade divina.
Não basta dizer que o homem deve cumprir a vontade divina, é preciso
também encontrar no que consiste essa vontade. Se a Deus agrada que o homem
seja livrem então a afirmação da liberdade do homem constitui o cumprimento da
vontade divina. É em nome de Deus, em nome da realização de seu desígnio
relativo ao mundo e ao homem, que se deve afirmar a liberdade do homem, não
apenas a segunda forma de liberdade, como também a primeira, não apenas a
liberdade em Deus, como também a
liberdade na aceitação de Deus.
É nessa profundidade que repousa a liberdade enquanto princípio do ser
e da existência, que precede toda vida organizada e perfeitamente desenvolvida.
A liberdade está ligada, não à forma, mas à matéria da vida, àquilo que a vida
contém de irracional; ela está ligada à infinitude, ao abismo do ser e da vida.
Essa infinitude, esse abismo, ainda estavam fechados para a consciência
helênica, e é por essa razão que ela não foi capaz de conceber a ideia da liberdade.
Essa infinitude desabrochou no mundo cristão, no mundo espiritual revelado pelo
cristianismo. A liberdade está ligada à energia potencial do espírito. A negação
da liberdade constitui sempre uma sujeição ao finito.
Santo Agostinho não reconhecia em realidade senão a segunda liberdade,
aquela que Deus, que é a Verdade, nos concede. A liberdade inicial teria sido,
segundo ele, definitivamente perdida pela queda, e ele não colocava o problema
da liberdade senão em relação ao pecado: Posse non peccare, non posse non
peccare, non posse peccare. A luta contra o naturalismo racionalisya de
Pelágio o levou a diminuir a liberdade. Assim é que mais tarde o
semi-pelagianismo dos Jesuítas viria a provocar a reação de Pascal e dos
Jansenistas. O próprio problema da liberdade estava reduzido e deformado. Coagir
alguém a colocar falsamente um problema equivale a conduzi-lo a dar uma
resposta errada. Pelágio encarava o problema da liberdade de um ponto de vista
racionalista e Santo Agostinho renunciava à liberdade. E liberdade e a graça se
encontraram opostas uma à outra. Os que tinham uma disposição de espírito
racionalista se pronunciaram pela liberdade, os que tinham uma disposição
mística optaram em favor da graça.
Mas existe uma mística da liberdade, porque ela é um mistério, o mistério
da profundidade infinita do espírito. Não é a graça que se opõe à liberdade,
mas a necessidade. O reino do espírito é o reino da liberdade e da graça, por
oposição ao reino da natureza, da necessidade e da coerção. O erro que Santo
Agostinho cometeu na solução do problema da liberdade teve, assim, consequências
fatais. Ela desembocou na justificação do constrangimento nas questões da fé,
na negação da liberdade de consciência, da possibilidade de supliciar os
heréticos, e sancionou o caminho que mais tarde levaria à Inquisição. Foi a
experiência da luta contra os donatistas que levou Santo Agostinho por esse
caminho perigoso. A liberdade o induziu em tentação.
Também São Tomás de Aquino rejeitou, ao final de contas, a liberdade;
seu sistema escolástico não lhe reserva nenhum lugar. O amor a Deus é para ele
uma necessidade, a liberdade está ligada à imperfeição. Semelhante noção de
liberdade teve consequências desastrosas: a negação da liberdade de espírito na
vida religiosa e social. Estimava-se que a imperfeição resultante da liberdade
deveria cessar, a fim de que o amor obrigatório a Deus começasse a se
manifestar. A segunda liberdade foi aqui confundida com a necessidade divina.
Sobre o caminho da negação da liberdade, podemos ser seduzidos pelo
espírito do Grande Inquisidor. A teocracia católica e bizantina, assim como o
socialismo ateu, estão naturalmente inclinados a negar a liberdade do homem, a
constranger e organizar a vida humana para o bem, vale dizer, a identificar a
liberdade, seja com a necessidade da organização divina, seja com a necessidade
da organização social da vida. A negação da liberdade pela consciência cristã é
uma consequência extrema da doutrina da queda, da negação da natureza
espiritual, da imagem divina no homem. A teologia católica tende a crer que o
homem não foi criado à semelhança de Deus e que Adão teria recebido suas
qualidades superiores pela ação específica da graça. Ao se separar de Deus, o
homem perdeu sua liberdade inicial e somente pela ação da graça ele pode
obtê-la de novo. A graça age sobre ele, e por sua ação organizada ele pode encontrar
a liberdade, vale dizer, recebê-la de Deus, da Verdade.
Tudo isso prova que a liberdade foi compreendida unicamente em seu
segundo sentido. A primeira liberdade humana se encontra num estado que Santo
Agostinho caracterizou com as seguintes palavras: Non posse non peccare.
Não existe liberdade humana, só existe a liberdade divina. A oposição entre a
liberdade e a graça se estabeleceu porque a graça foi considerada como uma
força transcendente que age sobre o homem desde o exterior. Ela foi objetivada,
de certo modo, excluída da vida interior do espírito. Criou-se um abismo entre
o ato criador de Deus que edificou a natureza e a ação de Deus repartindo a
graça. O pensamento cristão jamais aprofundou suficientemente esse problema.
Se a natureza humana foi definitivamente deformada e a liberdade de
espírito definitivamente extinta, não haveria no homem um órgão receptor capaz
de acolher a verdade da revelação, e ele seria insensível à ação da graça. Mas o
homem, ainda que enfermo e destruído, segue sendo um ser espiritual, e
conservou sua consciência religiosa; a palavra de Deus não poderia ser
endereçada a um ser que fosse desprovido dela. A liberdade precede no homem a
ação da revelação e da graça. A ação da graça pressupõe a liberdade do homem, e
assim ela se distingue inclusive do ato da criação do mundo. Um transcendentalismo
consequente, levado até o fim, é impossível; ele negaria a possibilidade de uma
vida religiosa, e a compreensão jurídica das relações entre Deus e o homem
demonstram plenamente o resultado disso. O próprio fato da experiência
religiosa já pressupõe um certo imanentismo, a existência da consciência religiosa
e a liberdade de espírito na natureza humana.
O homem traz em si o sinal da imagem divina, ele é a ideia divina, o desígnio
divino, sem, entretanto, ser divino por natureza, pois senão ele não seria
livre. A liberdade do homem pressupõe a possibilidade de sua divinização e a
possibilidade de negação, de sua parte, da ideia e da imagem divinas. O homem
privado da liberdade do mal não passaria de um autômato do bem.
IV
A liberdade e dinâmica por sua própria natureza. Ela possui seu
próprio destino; não é possível compreendê-la a menos que penetremos em sua dialética
trágica. A existência de duas liberdades que possuem sentidos diferentes nos
foi revelada; e cada uma dessas liberdades possui sua dialética fatal, na qual
ela pode degenerar em seu contrário: em necessidade e escravidão. Em verdade, é
trágico o destino da liberdade, assim como é trágico o da vida humana. A primeira
liberdade, a liberdade inicial, irracional e insondável, não garante por si só
que o homem seguirá o caminho do bem, que ele irá a Deus, que a Verdade triunfará
em sua vida, que a liberdade suprema e final obterá a vitória no mundo. Forças infinitas
revelam a possibilidade das mais variadas atualizações, e das mais opostas.
A primeira liberdade não pressupõe necessariamente uma adesão à vida
na Verdade, à vida em Deus. Ela pode escolher a vida da discórdia e do ódio, da
afirmação de uma parte do ser contra a outra, a via de desunião do mundo
espiritual – vale dizer, a via do mal. A liberdade inicial não foi santificada
no amor, ela não é iluminada pela luz interior da Verdade.
Quando a liberdade precipita o homem no mundo da divisão e da
afirmação egoísta de si próprio, ele cai necessariamente sob as leis da
necessidade natural, e se torna escravo dos elementos inferiores. A liberdade
contém, ocultos nela, venenos destruidores. Nós sabemos disso, por tê-lo
experimentado em nosso destino individual. Sabemos como nossa liberdade irracional
nos reduz à escravidão, nos submete à necessidade inelutável. O destino
histórico dos povos nos ensina: revoluções destrutivas, geradas pela liberdade
irracional, nos precipitam na anarquia; essa, por sua vez, gera a escravidão e
a tirania. O destino da necessidade assinala aos povos golpes terríveis. Sabemos
por experiência que a anarquia de nossas paixões e das tendências mais baixas
de nossa natureza, que vivem cada qual por sua conta, nos escraviza, nos prova
da liberdade de espírito, nos submete à necessidade da natureza inferior. O perigo
da anarquia, ou seja, da desagregação definitiva, espreita a liberdade inicial
abandonada a si mesma.
Forças infinitas, para o bem e para o mal, se encontram em estado latente
na primeira liberdade. É dentro do sombrio abismo do bem e do mal que reside a
energia latente atualizada pela primeira liberdade. O mito da queda está ligado
a essa liberdade inicial, e não pode ser explicado sem ela. Essa liberdade e a
cisão gerada por ela em relação ao centro divino da vida, constituem um dos estágios
primitivos da dinâmica do espírito, um dos momentos do mistério da vida
original. Esse processo acontece nas profundezas mais íntimas do mundo
espiritual e não faz mais do que se refletir no mundo natural. Esse mundo,
submetido às leis da necessidade, que é ao mesmo tempo o mundo da desunião, da divisão
e da engrenagem, do encadeamento mecânico, constitui desde logo o produto
secundário da dialética interior da liberdade no mundo espiritual. A dialética
da liberdade inicial gera a tragédia do processo universal, na qual não existe
saída, nem por intermédio dessa liberdade, nem por meio da necessidade que ela
gera. Quanto à segunda liberdade, comportará ela uma saída?
A segunda liberdade, tomada em si mesma, possui também seu destino
fatal, sua dialética interior inelutável; ela está igualmente ameaçada pelo
perigo de degenerar em seu contrário. Considerada sem a primeira, ela conduz ao
constrangimento e ao arbitrário na verdade e no bem, à virtude imposta, vale
dizer, à negação da liberdade de espírito, à organização tirânica da vida
humana. Se a primeira liberdade gera a anarquia, que acaba por negá-la, a
segundo, ao contrário, gera uma organização arbitrária, teocrática ou
comunista, da vida, na qual a liberdade de espírito, a liberdade de
consciência, é extinta de uma vez por todas. O produto da segunda liberdade considerada
abstratamente é um tipo de sociedade autoritária.
A vida humana, individual ou social, é submetida por imposição à
verdade e ao bem. Seja essa verdade teocrática, papal, imperial ou comunista, a
liberdade de espírito é igualmente rejeitada nela, e não subsiste nenhuma
possibilidade de escolher livremente a verdade e o bem. A liberdade obtida pela
organização arbitrária da vida é a única reconhecida. Também os comunistas admitem
que uma liberdade superior e definitiva será alcançada por toda a humanidade,
mas ela o será por meio da “doma” da natureza humana, pela sua submissão à verdade
e ao bem comunistas, fora de que não existe liberdade. É assim que pensam
também os católicos, quando negam a liberdade de consciência. Eles rejeitam a
liberdade do mal, mas afirmam a liberdade do bem no bem. A liberdade se torna então
o resultado de uma necessidade: para alguns seres, a da necessidade divina, da
graça organizada, enquanto que para outros a necessidade social, a de uma
sociedade organizada, racionalizada e submetida a regras. O bem se torna
automático. A segunda liberdade é iludida pela tentação do Grande Inquisidor,
que pode tanto se revestir de um caráter de extrema “direita” como de extrema “esquerda”.
O homem é desembaraçado do fardo da liberdade de escolha em nome da
tranquilidade e da felicidade social, em nome da organização da vida humana. O infinito
do mundo espiritual desaparece. Todo o pathos é transposto para a organização
do finito.
O comunismo é o produto do trágico da liberdade, tanto quanto a
anarquia. Se na existência dos povos as revoluções começam por afirmar que a
primeira liberdade é ilimitada, elas terminam reclamando para a segunda as mesmas
prerrogativas. Isso significa que a liberdade, em sua dinâmica e em sua
dialética interior, desemboca numa tirania e numa autodestruição. A primeira
liberdade conduz à divisão e à desunião. A segunda pretende submeter essa
divisão e essa desunião à verdade e ao bem organizados, para assim conduzir o
mundo à ordem, ao encadeamento e à engrenagem imposta e arbitrária; ela
pretende criar uma liberdade necessária na necessidade, e que derive dessa. Não
entrevemos saída dessa tragédia da liberdade; ela parece condenada a perecer,
porque ela encerra em seu seio a causa de sua própria destruição. A dialética
da primeira e da segunda liberdade se desenrola num mundo que se encontra já
separado do eixo divino. o que há de mais perturbador, é que o próprio
Cristianismo foi constantemente induzido ao erro pela liberdade: nós o constatamos
no pelagianismo, em Santo Agostinho, no jansenismo, no calvinismo, na negação
do princípio da liberdade de consciência na Igreja. A tragédia do processo
universal é a tragédia da liberdade.
V
Nenhuma metafísica naturalista pode nos indicar a saída natural dessa
tragédia na qual a liberdade nega a si própria. O homem natural passa da
primeira liberdade para a segunda, e da segunda para a primeira, mas por toda
parte o veneno interior extermina sua liberdade. O conflito entre a liberdade e
a necessidade parece insuperável, pois a liberdade gesta a necessidade no seu
próprio seio. A necessidade não nega o veneno da liberdade, pois ela é sua
própria consequência imediata. Como tornar inofensivo esse veneno, sem limitar
a liberdade por uma imposição exterior? Como livrá-la do mal que ela gerou, sem
aniquilá-la?
Esse é o problema universal que não encontra solução senão na vinda de
Cristo. Somente o advento do Novo Adão, do Homem Espiritual, nos fornece a
saída para essa tragédia da liberdade, e o triunfo no conflito entre a
liberdade e a necessidade. O Filho de Deus desce ao “nada”, vale dizer, à
liberdade inicial. Somente o Novo Adão pode extrair o veneno da liberdade sem a
comprometer. Isso era impossível na geração d antigo Adão. Nela, o triunfo sobre
o mal acabava por atingir a própria liberdade. Em Cristo, nos é revelada uma
terceira liberdade, que concilia as duas outras. A graça de Cristo é a
iluminação interior da liberdade, sem nenhuma imposição exterior, sem nenhuma
violência. A verdade de Cristo, que torna os homens livres, não constrange
ninguém; nisso ela difere das verdades desse mundo que, organizando a vida por
imposição, acabam por nos privar da liberdade de espírito. A luz de Cristo ilumina
as trevas irracionais da liberdade, sem limitá-la desde fora. A graça de Cristo
é uma vitória sobre a má liberdade e sobre a boa necessidade. O mistério do
Cristianismo, religião do Deus feito Homem, é antes de tudo o mistério da
liberdade.
Os sistemas de metafísica racional são incapazes de fundamentar e
justificar a liberdade das duas naturezas, divina e humana, e tampouco
conseguem entender seu encontro. São muito numerosas as doutrinas de liberdade
que, pecando por uma tendência monofisista, professam a liberdade divina,
enquanto que a liberdade humana lhes escapa. Somente a revelação cristã, a
religião do Deus-Homem, pode conciliar em si as duas liberdades. A Redenção
libera precisamente a liberdade humana do mal que a destrói, e isso não pela
via da necessidade e da imposição, mas pela graça, que é uma força que age
dentro da própria liberdade. É por isso que a doutrina cristã da graça
constitui a doutrina autêntica da liberdade.
A fonte da liberdade humana não pode residir no homem natural, porque
ele não é um ser absoluto, bastando a si mesmo, possuindo em si a fonte da
vida. A fonte da vida remonta à fonte
original do ser, vale dizer, a Deus. Assim é que chegamos à conclusão de que é
em Deus que está a origem da liberdade do homem, que extrai sua liberdade da
fonte da qual ele, homem, recebe sua vida. Ao se afastar de Deus, ou seja, da
fonte original da vida, o homem perde também sua liberdade.
Mas se formos mais longe no caminho dessas considerações, desembocamos
no monofisismo, ao reconhecimento da liberdade de Deus e à negação da liberdade
do homem. o homem recebe uma liberdade de Deus, mas ele não possui aquela que o
orienta para Deus. A livre resposta que o homem deve dar ao chamado divino se
torna impossível, e Deus responde a si mesmo. A tragédia da qual dois seres participam
se transforma numa tragédia que não comporta mais do que um só em ação. Com semelhante
concepção de liberdade, o fenômeno original da vida religiosa se torna
incompreensível. Como salvar a liberdade do homem? Possuirá ele em si mesmo,
enquanto criatura, a fonte insondável do ser? Não seria o homem unicamente uma
criatura? Teria a vida humana o valor de um acontecimento que se realiza no
próprio centro da vida divina?
A doutrina panteísta, que considera o homem como uma manifestação da divindade,
não apenas é incapaz de nos ajudar, como nos conduzirá à abolição definitiva da
liberdade. O panteísmo é um monofisismo puro, para o qual somente existe a liberdade
de Deus, uma liberdade idêntica à necessidade; esse sistema não deixa espaço
algum à liberdade humana. A liberdade humana é negada mesmo no dualismo teísta,
que não vê no homem mais do que uma criatura que não possui em si a fonte da
existência; ela é negada também pelo monismo panteísta que não vê no homem
outra coisa do que uma parcela da divindade. O pensamento se recusa a encontrar
um ponto de apoio sobre o qual possa fundamentar a liberdade humana. O dualismo,
filosofia da transcendência, assim como o monismo, filosofia da imanência, remete
a liberdade a Deus enquanto fonte original do ser e da existência.
Somente o Cristianismo conhece o mistério do fundamento da liberdade
humana, ligada à unidade das duas naturezas de Cristo Deus-Homem, unidade que
não exclui sua distinção. A FONTE DA LIBERDADE DO HOMEM RESIDE EM DEUS, NÃO EM
DEUS PAI, MAS EM DEUS FILHO. ORA, O FILHO NÃO É SOMENTE DEUS, MAS TAMBÉM UM
HOMEM ESPIRITUAL ABSOLUTO, HOMEM POR TODA ETERNIDADE. A liberdade do Filho é
aquela na qual e por meio da qual pode se efetuar a livre resposta a Deus, a
livre orientação para Deus. Ela é a fonte de liberdade de todo o gênero humano,
pois esse último não é somente o do Adão natural, mas também o do Adão espiritual,
de Cristo. É no Filho que é dada a livre resposta ao chamado do amor divino, à
necessidade que Deus tem de seu outro Si-mesmo. Ela repercute no mundo celeste,
espiritual, e repercute no mundo terrestre, natural. A liberdade do Filho de Deus
possui sua fonte em si mesma, nele próprio, é a liberdade da espiritualidade
absoluta, que ignora toda determinação exterior. Mas toda a geração de Adão
reside no Filho de Deus; é nele que ela encontra a fonte de sua liberdade, não
apenas da liberdade segundo Deus, como da liberdade em relação a Deus, na sua
atitude perante Deus. Receber a liberdade de Cristo equivale a não apenas receber
a liberdade de Deus, como também receber, pela participação na natureza humana
de Cristo, a liberdade de nos orientarmos para Deus. Isso significa podermos
ser filhos livres e responder à necessidade que Deus tem de nosso amor.
Já não e trata nem de um monismo, nem de um dualismo, mas do mistério da
natureza teândrica, o mistério das duas naturezas de Cristo e, por conseguinte,
das duas naturezas do homem. é preciso procurar o mistério da liberdade humana
e a solução da tragédia que ela comporta, no dogma da natureza teândrica de
Cristo. Somente uma consciência cristológica pode triunfar sobre o monofisismo,
para o qual nosso pensamento se inclina instintivamente. Cristo é o Homem
Absoluto, ele não é unicamente Deus, e é por isso que Nele age também a
liberdade da natureza humana. Na obre que Ele realizou, não apenas a natureza
divina agia, como também a natureza humana, a do Adão Celeste.
A humanidade inteira participa, por intermédio de Cristo, da obra de
salvação e de libertação do mundo. Todo o gênero humano oferece em Cristo uma
livre resposta a Deus. Pertencemos à geração de Cristo e, por Sua humanidade,
estamos associados à Sua liberdade, à liberdade humana. Por meio de Cristo participamos
da Segunda Hipóstase, do mistério divino que se desenrola nas profundezas da
Trindade.
O homem espiritual desfruta da liberdade, porque ele pertence à
geração do Filho. Nele se revela a fonte da liberdade humana, liberdade que
provém de Cristo. A liberdade do Filho se apoia sobre a profundeza insondável
da Hipóstase humana no ser divino. A liberdade dos que pertencem à geração do
Novo Adão está associada ao amor, ela é o livre amor, a liberdade no amor;
nela, foi arrancado o aguilhão do mal, seu veneno mortal foi vencido. Perceber o
mistério da liberdade humana equivale a triunfar sobre o monismo e o dualismo,
é comungar do mistério da unidade das duas naturezas, que constitui o mistério
do Cristianismo.
DEUS QUER QUE O HOMEM SEJA, Ele não deseja apenas uma natureza divina,
como também uma natureza humana. Deus não criou a natureza humana para que ela
seja extinta. Ele sofre por seu outro Si-mesmo, o amante e o amado, pois Deus é
Amor Infinito e o Amor não pode permanecer fechado em si mesmo, ele vai sempre
ao encontro do outro. Deus encontra em Seu Filho o amigo amante e amado. É n o
Filho que se efetua a resposta do Homem Celeste ao amor divino. mas o amor não
pode ser senão livre, e é desse amor que Deus precisa. O ato de livre amor, que
provém da profundeza insondável, se realiza no Filho, e é por meio dele, por
Cristo, que essa experiência se realiza em toda a geração espiritual de Adão. No
Filho, o único homem espiritual e toda a raça espiritual dos homens se
encontram misteriosamente unidos. Aqui é impossível o isolamento
individualista. O Homem Celeste absoluto é ao mesmo tempo o Homem único e toda
a humanidade ecumênica. Não apenas a liberdade derrubada e perdida do antigo Adão
se encontra restabelecida em Cristo, como também uma liberdade superior nos é
revelada Nele, a do Novo Adão.
Essa liberdade é completamente diferente da primeira; ela está unida
ao amor, interiormente iluminada por ele. a liberdade do Adão espiritual é
santificada pela graça, e é por intermédio do Filho que o homem a recebe. Essa graça
não é uma obrigação exercida sobre a liberdade do homem; ela não é imposta a
ele por nenhuma autoridade exterior. Na graça que procede do Filho age não
somente a energia divina, como também a energia humana. A graça age como uma
terceira liberdade superior. O mistério da graça e de sua unidade interior com
a liberdade, constitui ainda o mistério do estado teândrico, o da unidade das
duas naturezas. A graça procede não apenas da natureza divina de Cristo, mas
também da natureza humana, de sua humanidade celeste. Nela, iluminada, age a
liberdade do homem, a terceira liberdade. Essa é precisamente a liberdade unida
à graça, o amor santificado pela graça. Aquilo que se efetua no tempo e sobre a
terra se efetua igualmente no céu e na eternidade. A humanização de Deus se
realiza de modo exotérico sobre a terra, num processo temporal, e se realiza esotericamente
no céu, na eternidade. É o mistério do espírito, no qual o Filho nasce
eternamente do Pai.
A graça é o reino da terceira Hipóstase, a do Espírito Santo. Nesse reino
do Espírito Santo, a liberdade de Deus não se opõe à do homem, a liberdade não
se opõe à graça, a qual age desde dentro da própria liberdade. O mistério divino
da vida se completa. Deus reencontra o amado, e a reciprocidade de Seu amor é
infinitamente livre. O mistério da unidade das duas pessoas encontra sua
solução na Trindade. As relações entre Deus e o homem não podem ser resolvidas
senão na Terceira Pessoa, no Espírito que é o Amor realizado. O reino do amor
na liberdade é o reino da Trindade. A experiência da liberdade e de sua
tragédia imanente nos remete à Trindade. Somente no Cristianismo subsiste a
plenitude da liberdade humana; nada de exterior é capaz de absorvê-la. Um monoteísmo
abstrato é sempre uma tirania e um despotismo; ele considera a Deus como um
monarca absoluto e não deixa espaço algum à liberdade. Somente a religião do Deus
em três pessoas triunfa definitivamente sobre essa concepção monarquista ou
imperialista de Deus, e revela a vida de Deus enquanto Trindade divina, justificando
assim a liberdade.
O mistério da Crus, o do Gólgota, é o mistério da liberdade. O Filho
de Deus, sob os traços de um escravo crucificado, não obriga ninguém a reconhecê-lo
por um poder exterior. Sua força e sua
glória divinas se manifestam no ato de fé e de livre amor. O Crucificado se
dirige à liberdade do espírito humano; é preciso um livre heroísmo para Nele
reconhecer seu Deus. O Deus crucificado não apenas se revela, mas ele também se
oculta. Toda imposição do mundo natural desaparece na revelação da divindade;
tudo é orientado para a liberdade interior. A visão do homem natural, obcecado
pelas forças do mundo exterior, não vê no Crucificado mais do que um homem
humilhado e torturado, nada além do fracasso e da desaparição da verdade no
mundo. A verdade divina parece impotente e débil. Seria possível que Deus tenha
aparecido aqui em baixo, não como uma força poderosa e um poder transfigurador
da vida, triunfando sobre ela, mas como uma crucificação, como uma impotência e
uma fraqueza aparentes diante das forças desse mundo?
É isso que induziu à tentação o povo judeu, que se recusou a
reconhecer no Crucificado o Messias aguardado, o Filho de Deus. Para ele, o
verdadeiro Messias deveria aparecer em sua força e sua glória, deveria fundar
um poderoso reino de Israel, deveria por fim aos sofrimentos e ao mal
existente. A Cruz do Gólgota foi uma tentação para os judeus, e continua sendo
até nossos dias, inclusive para muitos homens de raça ariana, porque esses
esperam a manifestação da verdade divina através da força, da vitória exterior
da verdade sobre esse mundo. Essa tentação constitui precisamente uma renúncia
a toda liberdade de espírito, uma recusa e uma incapacidade de entrever além da
humilhação material e do fracasso, o triunfo invisível espiritual da verdade
divina. A vinda do Filho de Deus, do Messias, em sua força e sua glória, como
rei do mundo e vencedor, teria marcado o fim da liberdade do espírito humano, a
realização do Reino de Deus por meio da necessidade e da imposição.
O comunismo ateu, que tende a suplantar o Cristianismo, pretende
realizar sobre a terra o reino da justiça, realizar aqui em baixo o Reino de Deus
sem crer em Deus, sem a Cruz e a crucificação. Mas a religião da verdade
crucificada é a religião da liberdade de espírito. A verdade crucificada não
possui imposição lógica ou jurídica, ela se mostra no mundo como amor infinito,
e o amor não obriga a nada; ele torna tudo infinitamente livre. No amor, tudo
se torna próximo em espírito; no amor, eu me livro de ser estranho e hostil, e
assim adquiro a liberdade suprema. A liberdade deve me conduzir ao amor, e o
amor deve me tornar livre. A graça de Cristo constitui precisamente o mistério da
liberdade que ama e do amor que liberta. Ela apareceu na Cruz. No livre
sofrimento do Deus-Homem voltado para a liberdade humana, se oculta todo o mistério
do amor cristão.
VI
Na vida social exotérica e histórica da Igreja a autoridade desempenha
um papel preponderante. As formas autoritárias heteronômicas da consciência
religiosa predominam na existência histórica dos povos cristãos. Mas, como
explicar a autoridade no Cristianismo, na religião da liberdade? Do ponto de
vista da fenomenologia da experiência religiosa, a autoridade constitui um
fenômeno secundário e não primitivo, ele pressupõe sempre diante de si o
fenômeno da fé e o ato da liberdade.
A autoridade do Papa ou do Concílio não representa uma realidade
exterior que pode nos forçar a reconhecê-la. A obrigação material, no que
concerne à fé, foi uma traição manifesta em relação ao princípio cristão. Se eu
não creio no Papa e no Concílio, se neles não enxergo as realidades
espirituais, então eles não possuem nenhuma autoridade sobre mim. Eu considerarei
suas pretensões a meu respeito como uma imposição exterior do mundo material e
natural, como um golpe de bastão ou a queda de uma pedra. Eu devo, num ato de
fé, dotar o Concílio ou o Papa de atributos de autoridade, a fim de que eles
tenham autoridade sobre mim. Se o Papa condena um livro ou a opinião de um
católico fervoroso, esse ato possui, para esse último, uma importância e um
sentido profundo, por emanar de uma autoridade reconhecida como tal. Mas se o
Papa condena o livro ou a opinião de um homem que não crê na Igreja católica,
então esse ato será desprovido de sentido, e não terá nenhum valor para o homem
em questão.
É absolutamente impossível conceber e justificar a noção ingenuamente
realista, que concede à autoridade a primazia sobre a liberdade de espírito. Uma
consciência autoritária, que rejeita a liberdade, dá sempre provas de um
realismo simplista; para ela a autoridade é uma realidade exterior, objetiva, semelhante
às realidades do mundo material. Ela revela sempre um materialismo religioso. A
autoridade do Papa possui para essa consciência um direito de imposição análoga
àquela dos objetos materiais. O espírito permanece passivo à percepção e à
aceitação dessa autoridade. Mas o espírito não permanece passivo senão à
percepção dos objetos que pertencem ao mundo empírico exterior, pois, para
conceber e reconhecer esses objetos, a atividade livre do espírito não é
indispensável. Mas o espírito é ativo quando se trata de perceber ou aceitar as
realidades do mundo espiritual. Aqui, todo realismo simplista se torna
impossível.
O Papa não é uma realidade empírica exterior, e assim ele não pode ser
aceito, em sua autoridade qualitativa, fora dos acontecimentos ativos da vida
espiritual. Sua autoridade é algo invisível e, como todas as coisas invisíveis,
ele não pode ser demonstrado senão pela fé; ela não possui nenhuma prova
exterior, materialmente tangível, de sua autenticidade. Somente o Concílio, no
qual o Espírito Santo age, é autêntico e pode reivindicar sua autoridade; mas a
ação do Espírito Santo não pode ser demonstrada por provas exteriores. O Concílio
é reconhecido como autêntico e investido de autoridade pelo espírito ecumênico
do povo cristão. E, mesmo dentro do catolicismo, que representa a forma de
consciência mais autoritária, a infalibilidade do Papa deve, apesar de tudo,
ser proclamada pelo Concílio Vaticano, vale dizer, ser reconhecida pelo mundo
católico, a fim de desfrutar de autoridade. Existe aí, no próprio conceito de
autoridade e de infalibilidade, uma contradição interior que deve ser superada.
A liberdade de espírito precede interior e idealmente a autoridade (o que não
significa que ela o faça sempre do ponto de vista psicológico e social). A liberdade
é mais original, mas inicial, do que a autoridade, pois ela é a geratriz da
autoridade. A fonte da autoridade não está no objeto, mas no sujeito. A autoridade
significa, ou bem minha livre aceitação de um dado princípio, ou bem minha
escravidão espiritual.
A autoridade não fornece exteriormente nenhuma prova de verdade que
seja inabalável, tangível, capaz de se impor; ela não se livra do fardo da
liberdade. Os sinais e os critérios da verdade religiosa que lhe são concedidos
como constituindo autoridade, ou seja, que são exibidos ingenuamente como sendo
realidades empíricas, devem ser capazes de convencer, são sempre chamarizes e
ilusões; eles são reflexos de eventos interiores da experiência espiritual. Não
existem, nem podem existir, provas materialmente definitivas da Verdade
religiosa. O critério reside em mim, jamais fora de mim. A autoridade dos
Concílios ecumênicos, fonte da verdade da Ortodoxia, exige igualmente minha
sanção, meu ato de liberdade, meu ato de fé, minha experiência e minha vida
espirituais. Sempre voltamos à liberdade como fonte original de toda vida, de
todo ser. A autoridade não passa de uma projeção dos acontecimentos da vida
espiritual no mundo natural exterior. O Concílio ecumênico não constitui para
mim a verdade senão na medida em que se torna um evento interior de meu mundo
espiritual, uma experiência vivida em mim, nas profundezas de meu espírito. O Concílio,
na medida em que é uma projeção no mundo exterior e histórico, é algo de
secundário, reflexo. Não possui autoridade sobre mim senão o que é reconhecido
em meu próprio mundo espiritual como Verdade, como encontro com a realidade
original, gerada pela liberdade de meu espírito, liberdade que é sempre
primitiva e inicial.
O papismo não sai mais do que ilusoriamente das insuperáveis
dificuldades ligadas à ideia da autoridade exterior, de uma autoridade que
possuiria provas tangíveis de verdade. ele evolui num mundo secundário e não
original. Que se considere a infalibilidade papal como um critério inabalável
de todas as verdades religiosas, vá lá que seja, mas a verdade referente a essa
infalibilidade não pode se apoiar sobre nenhuma autoridade exterior inabalável,
pois ela é gerada no próprio seio da liberdade, eleita pela própria liberdade. Ao
penetrar nos domínios dos critérios de autoridade, eu não posso me mover senão
num plano secundário. A verdade da supremacia da liberdade sobre a autoridade
não é uma verdade psicológica – os processos psicológicos são diversos e
complexos – mas é uma verdade do espírito, a verdade da própria vida original,
de seu fenômeno inicial. O primeiro e último critério do conhecimento de Deus
reside no próprio Deus. A consciência autoritária busca critérios de Deus no
mundo natural inferior, por não ter fé naqueles do mundo divino. Essa consciência
assimila o mundo espiritual ao mundo natural, o Reino de Deus ao reino de
César. A aplicação dos princípios de uma consciência desse tipo conduz sempre à
sujeição da Igreja ao Estado e pressupõe uma maior fé no Estado do que na
Igreja.
Na Ortodoxia, a concepção de autoridade não foi aprofundada, e sua
superioridade sobre o Catolicismo provém de sua maior liberdade de espírito.
Khomiakoff rejeitava totalmente a autoridade na Ortodoxia, e oferecia a
liberdade como fundamento da autoridade. O principio da liberdade na Ortodoxia não
está ligado ao individualismo, à afirmação do direito de liberdade do indivíduo
isolado; a liberdade está ligada ao ecumenismo; trata-se de uma liberdade no
amor. Entretanto, na Ortodoxia, a autoridade dos costumes era tão forte quanto
a união entre a Igreja e o Estado, que a havia submetido. A autoridade repousa sobre
a Igreja, que é um organismo místico, espiritual, cuja autoridade não é exterior
e material, mas interior, fazendo parte da vida espiritual ecumênica.
A autoridade interior pressupõe a liberdade e repousa sobre ela. A recusa,
pelo mundo cristão, da liberdade de espírito, é uma tentação diabólica, uma das
tentações recusadas por Cristo no deserto. A Verdade deve corresponder tanto à
minha natureza, como à minha vida espirituais. Ela não pode ser-me exterior,
ela não pode se impor a mim pela violência. No mundo espiritual, não existe
despotismo, e toda imposição é impossível. O mistério deve estar próximo de
mim, deve ser-me interiormente aparentado. A Verdade da vida divina não pode
ser imposta a mim, porque o sentido dessa verdade pressupõe minha liberdade. A escravidão do espírito, refletida nas formas
puramente autoritárias da consciência religiosa, não passa do produto da liberdade
arrasada por um mal interior. Fora da liberdade não existe espírito, e fora do
espírito não existe liberdade. Uma forma de piedade autoritária não passa da expressão
de um estágio inferior de espiritualidade, uma forma de religiosidade “psíquica”.
Nos estágios superiores triunfa-se sobre essa consciência autoritária. Mas isso
não significa que as formas autoritárias da vida religiosas tenham sido
desprovidas de sentido nos destinos históricos dos povos cristãos, nem que elas
devam ser renegadas. É impossível vencer exteriormente as formas exteriores da
religião, elas têm que ser rejeitadas pela força. Elevar-se acima delas constitui
um processo espiritual interior. Não se pode receber a liberdade desde fora. A liberdade
na ciência, na arte, na sociedade, no amor, não pode ser alcançada senão por um
espírito livre. As almas escravas não podem criar nada que seja livre.
Seja qual for o grau alcançado pelo homem enquanto ser psico-corporal,
ele não pode pretender possuir a autonomia pura; essa última só pode ser
manifestada pelo estado espiritual do homem. Ter pretensão à liberdade em geral
constitui um engano, pois a liberdade deve ser manifestada através da experiência
e da vida espirituais, e não pode ser objeto de declarações exteriores. Eis
porque a liberdade que as revoluções exigem acaba desembocando em novas formas
de tirania e escravidão. Não se pode exigir a liberdade de espírito pela força,
é preciso possuí-la em si, descobri-la interiormente. A passagem das formas
heteronômicas da religião para as formas autônomas não pode ser outra coisa que
o resultado de um crescimento espiritual. A experiência cristã não é
exclusivamente pessoal, individual, ela é ecumênica, coletiva. O mundo cristão
representa um organismo espiritual, integral, e, como todo organismo, ele possui
uma estrutura hierárquica. O que acontece no plano superior da vida espiritual
tem também uma importância nos escalões mais baixos, e de certa forma alimenta
todos os graus da vida espiritual.
A heteronomia possui antes de tudo um sentido social e histórico, ela
não se refere à Verdade em si, mas à sua ação na história, no meio social. A heteronomia
deve ser vista à luz da autonomia, assim como a necessidade deve ser encarada
sob o ângulo da liberdade, mas a própria noção de autonomia é elaborada pela
filosofia, a qual já vem arrasada pelo mal do individualismo, fruto da divisão;
a autonomia se afirma contra a heteronomia, como uma sublevação da
personalidade religiosa contra a sociedade religiosa, a afirmação da liberdade
religiosa no protestantismo encerra em si uma verdade indiscutível, mas, do
ponto de vista ortodoxo, essa liberdade se afirmou no “protesto”, de uma
maneira que foi mais negativa do que positiva, e o problema da liberdade em si não
foi suficientemente aprofundado. A consciência protestante se inclina para o
individualismo. A vida do espírito é a vida da alma, que se abre para o mundo
espiritual, que não conhece divisões nem “extrinsecismos”. O mal não reside no
fato de que o protestantismo afirme exageradamente a liberdade do espírito humano,
mas em que ele não o afirme de forma mais radical e profunda. O protestantismo
se inclina para o monofisismo, a negação do homem e da liberdade humana, a
oposição extrema entre a liberdade e a graça. O idealismo alemão, que se
desenvolveu sobre o terreno espiritual do protestantismo, prestou serviços
relevantes na luta em favor da liberdade do espírito, e revelou e justificou a
ideia da autonomia (Kant, Fichte, Hegel). Mas o idealismo alemão também está
contaminado pela heresia do monofisismo, e assim ele conhece a liberdade
divina, mas ignora a liberdade humana. O mérito dos grandes idealistas alemães
consiste em entender por liberdade o fruto de uma espiritualidade superior, e
não na pretensão inteiramente exterior de ser arrasados pela servidão do espírito.
É forçoso reconhecer que a controvérsia entre a consciência autônoma e
a consciência heterônoma acontece na esfera secundária e não primitiva. A autonomia
é correlativa à heteronomia. Não existe autonomia formal na profundidade da
liberdade espiritual, pois ali não existe distinção entre autonomia e teonomia.
A consciência teonômica livre se eleva ao mesmo tempo acima da autonomia e da
heteronomia. A autonomia é ainda uma noção inteiramente formal da liberdade, e
ela afirma essa última em função do Adão natural, ignorando o porquê de ser ela
necessária. A autonomia e a heteronomia são categorias jurídicas, e não
espirituais; elas se constituíram para um mundo dividido, no qual reina a obrigação.
Mas a liberdade é uma categoria espiritual, ela reside numa profundidade maior
do que toda controvérsia sobre autonomia e heteronomia. Um mundo no qual a
autonomia se afirme contra a heteronomia perdeu sua liberdade de espírito. A
consciência autônoma consiste numa consciência formal. Ela corresponde a esse
estágio da vida espiritual no qual a liberdade tão tem objeto, onde ela ainda
não se encontra orientada para um objetivo determinado, onde eu quer ser livre
de toda obrigação e de todo arbítrio exterior, onde eu quero determinar a mim
mesmo por minha própria vontade, onde eu quero viver segundo a minha lei. A autonomia
se opõe não somente à heteronomia, no que ela está certa, mas também à teonomia,
no que ela está errada.
Uma verdade positiva mais profunda reside no fato de que eu não posso
viver unicamente segundo minha fé, que minha liberdade não pode permanecer
negativa, formal e sem objeto, que ela é necessária à resposta que eu devo dar
ao chamado divino, à minha conversão à vida divina. A liberdade do antigo Adão,
do homem natural, é ainda infantil e sem objetivo, ela não passa de um desejo
de fugir dos cueiros. A liberdade do novo Adão, do homem espiritual, é uma liberdade
com conteúdo: ela é positiva, interior, ela consiste no desejo de viver para
Deus e em Deus.
Na realidade a consciência, seja heteronômica ou autônoma, constitui
um estado de não-maturidade, ela não possui em si a verdadeira liberdade de espírito.
Ela não compreende que a liberdade não é nem uma pretensão, nem um direito, mas
um fardo e um dever; ela não capta a ideia de que Deus necessita da liberdade
humana para realizar o desígnio que ele concebeu para o homem. A liberdade é
uma “concentração” e não uma “dissipação” do espírito; ela é austera e difícil.
O caminho livre é o mais complexo; a vida fácil é a que se desenrola na
necessidade e na obrigação. A liberdade gera o sofrimento e a tragédia. A renúncia
à liberdade gera um alívio aparente dos sofrimentos e do trágico da vida. A consciência
heteronômica representa a Deus como um déspota oriental, que exige de parte de
seu escravo uma submissão servil. É assim que Deus se reflete no homem natural,
no elemento do pecado.
Essa concepção de Deus penetrou profundamente até no mundo cristão e
continua a seduzi-lo até os nossos dias. O homem é escravo de Deus, servo de um
potentado autocrata, que deve realizar a vontade do Mestre, seja ela qual for. A
queda é uma transgressão formal da vontade do Senhor, uma desobediência à lei
do Mestre da vida. Uma interpretação formal e jurídica da queda desemboca numa
interpretação igualmente jurídica da redenção. Deus, personificado como
autocrata e déspota com poderes ilimitados, exige do homem, não a realização da
verdade e da justiça, que teriam para ele um sentido, e que correspondem à sua
natureza espiritual, mas a realização de Sua vontade formal, de Sua ordem,
mesmo que ela seja desprovida de sentido e totalmente transcendente à natureza humana.
Considera-se que o homem deve cumprir a vontade de Deus, sem mesmo se perguntar
em que consiste essa vontade, e qual é seu sentido. Mas o cumprimento da vontade
divina não nos esclarece a respeito de sua natureza. Aqui ainda a questão é
colocada de um modo formal e jurídico. Eu consinto, por difícil que seja para
mim, em realizar a vontade divina, se Deus é amor infinito; mas se Deus é ódio,
eu me recuso a cumprir essa vontade, mesmo que isso seja mais fácil. Na representação
que eu tenho de Deus, eu não posso separá-Lo da Ideia de Deus, da Inteligência,
do Amor, da Verdade, da Justiça e da Beleza. Essa separação conduz a uma
escravização do espírito; Deus se transforma num déspota assírio.
A controvérsia que se estende sobre a seguinte questão: estará Deus submetido
à verdade e à justiça, como pensava Platão, ou será ele absolutamente livre, e
a verdade e a justiça não passam de coisas que Ele deseja, como pensava Duns
Scott, é uma polêmica baseada sobre a divisão de algo que é indivisível. Não podemos
dizer que Deus esteja submetido à verdade a ao bem, como se esses fossem princípios
que o dominassem, e tampouco podemos dizer que a verdade e o bem não sejam mais
do que coisas que Deus deseja. Semelhante dissociação não pode ser aplicada à
natureza da divindade, e é tão impossível conceber a Deus sob o ângulo da nossa
moral humana, como considerá-lo como um déspota. Deus não pode desejar o
nonsense, não porque Ele seja limitado pela verdade, o bem e a beleza, mas
porque Ele é a Verdade, o Bem e a Beleza, porque a liberdade e a necessidade da
Verdade, do Bem e da Beleza se encontram identificadas Nele. Deus não pode
desejar o nonsense porque Ele é o Sentido, porque o Sentido é Sua ideia
imanente. A Sabedoria é inerente a Deus, que não pode desejar a escravidão,
porque essa constitui um mal. Deus não pode desejar senão a liberdade, porque
ela constitui Sua Ideia, Seu desígnio para o mundo. Ele não pode desejar que
realizemos sua vontade formalmente, submetendo-nos a ela cegamente, porque não
pode existir uma vontade separada da ideia de Deus, do Sentido, da Verdade, da
Justiça e da Liberdade, sem a qual não existe nem Sentido, nem Justiça. Deus,
acima de tudo, espera a liberdade de parte do homem.
Essa é a vontade divina inseparável da ideia divina, e essa vontade deve
se cumprir. Em nome da realização dessa vontade, eu não tenho o direito de ser escravo,
eu devo ser livre de espirito. É na plena liberdade de espírito, como um ser
espiritual, e não servilmente, que eu devo me submeter à vontade de Deus. Já não
somos escravos, mas filhos livres, e nossa liberdade foi resgatada a um alto
preço. O Pai se revelou no Filho como amor infinito. A personificação de Deus como
soberano a exigir o cumprimento de Sua vontade, a submissão formal ao seu
poder, desaparece por ser o resultado da opressão exercida pelo pecado sobre o
homem natural.
Se a liberdade não pode ser oposta à graça, ela tampouco pode ser
oposta à humildade, que é um fenômeno íntimo do espírito e que se produz na
liberdade. Sem liberdade não pode haver humildade, ou essa última não teria
nenhum valor; só tem valor o que ilumina a natureza do homem. a humildade é a
vitória voluntária e livre sobre todo orgulho proveniente da afirmação de si,
sobre todo ódio que nasce de nosso elemento inferior. Ela é o caminho que
conduz ao novo nascimento, o deslocamento do nosso centro de gravidade do exterior
para a profundidade. A humildade não constitui uma submissão exterior de nossa
própria vontade a uma vontade estranha. Enquanto fato religioso, ela em nada
lembra a submissão e a subordinação, por exemplo, dos membros do partido
comunista à disciplina do comitê central. Nessa submissão e nessa subordinação,
a natureza humana permanece inalterada, e as relações entre o homem e a força à
qual ele se submete, continuam sendo relações pagãs. Enquanto que, na humildade
autêntica, a natureza do homem se transforma e se ilumina. A humildade é o ato
do homem orientado para si mesmo e ela pressupõe uma intensa liberdade de
espírito. Ela é o caminho que conduz à libertação de todo poder de tudo o que é
arbitrário, exterior, estranho ao homem, ela é o caminho que conduz à liberdade
de espírito, à rejeição a toda dominação de elementos escravizantes, que conduz
a essa liberdade interior que triunfa sobre o mal na vida. A concepção servil da
humildade é uma deformação do Cristianismo e da via espiritual.
A humildade é a aquisição da paz espiritual, da união com as forças
superiores, e não uma submissão de escravo, inevitavelmente fundamentada sobre
a ausência de paz e de unidade, sobre a divisão e o afastamento. Domar sua
vontade implica manifestar a maior liberdade, significa libertar sua vontade do
poder dos elementos sombrios. A humildade é uma das vias da liberdade; ela não
é absolutamente a heteronomia, e sua manifestação na vida dos maiores santos e
dos místicos é uma manifestação de experiência religiosa totalmente “autônoma”.
No ato da humildade não é uma vontade estranha que age, mas minha própria
vontade, mais iluminada e transfigurada numa natureza espiritual superior. A humildade
diante do staretz, a submissão de minha vontade à sua direção
espiritual, é um ato inteiramente voluntário, um ato de liberdade e não uma
submissão a um poder impositivo. Pela afirmação egoísta de mim-mesmo eu destruo
minha própria liberdade, e precipito minha natureza no não-ser. A humildade é a
passagem do egocentrismo ao teocentrismo. A autonomia da moral, da ciência, da
arte, do direito, da economia, que a história moderna afirma, não constitui a
autonomia do próprio homem. Tudo foi liberado, à exceção do homem: ele se
tornou escravo da moral, da ciência, do direito e da economia autônomos.
VII
O Cristianismo reconhece a liberdade de consciência e a tolerância
religiosa?
Essa questão possui toda uma história sangrenta e trágica. O mundo cristão
se deixou induzir em tentação. Em nome da religião do amor, da religião da
liberdade, vimos acenderem-se as tochas, correr o sangue, desencadearem-se
paixões odiosas, vimos punir com a maior das violências. Foram homens indiferentes
a toda religião, os que defenderam a liberdade de consciência e a tolerância
religiosa.
Para quem não crê em nada, que é indiferente em relação à verdade, é
fácil ser tolerante em relação a toda e qualquer fé. Mas como conciliar a fé
ardente, o devotamento à Verdade única, com uma tolerância diante de uma crença
errada, de uma negação da Verdade? Não será a tolerância religiosa sempre uma
prova de indiferença? É assim que pensam os cristãos que negam a liberdade de
consciência. A defesa do espírito de tolerância se tornou prerrogativa do
liberalismo, do humanismo que não possui nenhuma fé religiosa. A liberdade de
consciência é afirmada como um princípio formal, sem relação alguma com qualquer
verdade positiva. Os homens religiosos, que acreditam numa Verdade positiva
isenta de qualquer engano, nunca defenderam a liberdade de consciência senão em
circunstâncias nas quais sua fé se via perseguida e oprimida. Assim, os
católicos – que são os que menos reconhecem o princípio da liberdade de
consciência – fizeram esse apelo na Rússia, quando a fé católica foi oprimida e
limitada em seus direitos. O Cristianismo, durante o período das perseguições
antes de Constantino o Grande, sustentou a liberdade de consciência religiosa,
na pessoa dos apologistas e dos doutores da Igreja. Mas quando o Cristianismo
se tornou a religião dominante, já não escutamos mais argumentos em favor da
liberdade religiosa, mas apelos à violência contra os heréticos e os
dissidentes, à intervenção da espada do Estado nas questões de fé. É assim que
o problema se colocou na história, gerando inúmeros enganos, a hipocrisia e um
utilitarismo tosco.
Mas como, do ponto de vista cristão, colocar interiormente a questão
da liberdade religiosa, colocá-la na sua essência, livre de todo interesse humano,
de todo positivismo e de todo utilitarismo que se encontram misturados ao
Cristianismo na história? O Cristianismo é exclusivo: ele não suporta a
vizinhança do erro. Ele não pode ficar indiferente a que homens prefiram o
engano à Verdade, porque ele não pode reconhecer neles igual valor. O liberalismo
formal, indiferente à Verdade, é estranho ao Cristianismo, que não pode
defender a liberdade de consciência recorrendo aos seus argumentos. A liberdade
cristã não é a liberdade formal, desprovida de sentido, do Adão natural; ela não
é um direito, como no liberalismo humanista; ela é uma obrigação, um dever
perante Deus. E, se os cristãos devem sustentar a liberdade de consciência,
certamente não será pelas razões liberais, formais e jurídicas que o mundo
indiferente a toda fé e a toda verdade, e que afirma a liberdade do erro, do
engano e do mal, invoca para defende-la. Os homens que negam a consciência religiosa
não podem sustentar a liberdade de pensamento religioso senão exteriormente;
ela lhes é útil apenas para salvaguardar seus direitos ao ateísmo e ao engano,
para salvaguardar seu quietismo diante do erro.
Mas é somente no Cristianismo que a liberdade de consciência adquire
um sentido inferior e uma justificação religiosa. O Cristianismo exige que
sejamos tolerantes para com a alma humana, para com sua experiência íntima e
seu caminho espiritual, porque a liberdade faz parte da fé cristã, porque o
Cristianismo é a religião da liberdade. O próprio Deus é infinitamente
tolerante em relação ao mal que existe no mundo. Ele suporta os maiores
malfeitores em nome da liberdade. O Cristianismo afirma materialmente, e não
apenas formalmente, a liberdade de consciência; ele o afirma, não por causa de uma
indiferença em relação à Verdade, nem pela tolerância ao erro, mas por sua fé
na Verdade, que é a revelação da liberdade no espírito humano. Cristo nos
revelou a liberdade infinita do espírito; por seu sangue, ele a firmou toda a
eternidade. A fé no Gólgota é a fé na liberdade.
A exigência de liberdade de pensamento religioso repousa na consciência
cristã a uma profundidade infinitamente maior do que na consciência liberal,
humanista e irreligiosa. Toda imposição exercida sobre a alma humana nas
questões de fé constitui uma traição perante Cristo, uma negação do sentido da
religião cristã da própria natureza da fé. O homem deve passar livremente pelas
provas e saber triunfar sobre elas livremente. Ele deve buscar e perscrutar a
verdade. a negação da liberdade religiosa, a intolerância fanática e a
imposição na vida espiritual nascem da ideia da salvação obrigatória, ideia que
é oposta ao sentido do Cristianismo. O próprio Deus poderia ter salvo à força
todo o gênero humano, e de um modo muito mais radical do que jamais seria capaz
a hierarquia religiosa ou o poder do Estado. Mas Deus não deseja uma salvação
imposta, pois essa seria contrária ao seu desígnio para o mundo e o homem; Deus
espera a livre resposta do homem ao seu chamado, ele busca o livre amor de seu
outro si-mesmo. Deus poderia dizer, como o homem: “Ninguém comanda o amor”. Não
se pode fazer entrar no paraíso à força.
A noção da salvação obrigatória, que teve consequências tão fatais na
história, é uma falsa identificação do Reino de Deus com o reino de César;
equipara-se o mundo espiritual ao nível do mundo natural. No reino de César
reinam a obrigação e a escravidão. Já o mundo espiritual, o Reino de Deus, é da
ordem da liberdade. A obrigação não pode salvar ninguém, porque a salvação pressupõe
um ato de liberdade, porque ela é a iluminação interior da liberdade. A história
do Cristianismo está cheia de violências, mas ela não pertence ao mundo
espiritual, ela não está ligada à história interior do Cristianismo, ela
pertence à ação social da humanidade, ela é determinada pelo estado do homem
natural. Se o Cristianismo medieval esteve saturado de violência sanguinária,
não é a fé cristã que deve ser responsabilizada, mas a humanidade natural que
se “cristianizou” a duras penas. O que se reprova em geral à Igreja católica
deveria ser imputado à crueldade da natureza humana. Mas a questão da liberdade
religiosa não é uma questão histórica, ela é a questão da própria essência da
fé cristã. Partindo desse ponto de vista, a tolerância religiosa não é uma
tolerância em relação às crenças errôneas do homem, mas um sentimento de amor e
de solicitude para com toda alma humana.
O homem chega a Deus através de caminhos múltiplos e árduos, por
sofrimentos penosos, por uma experiência trágica da vida, pelas lutas do
espírito. Ele passa pelo caminho das provações, ele sofre sua experiência individual,
uma experiência que só existe para ele. Eu não posso pretender possuir a
plenitude da Verdade e afirmar que meu próximo está em absoluto erro. O pleroma
não se encontra senão em Deus, e nós não contemos mais do que uma parcela da
Verdade, e só recebemos alguns raios isolados de luz. A negação da liberdade de
consciência, sua imposição corresponde a uma mecanização e a uma materialização
da vida religiosa, à negação do espírito e da vida espiritual, pois o espírito
e a vida espiritual são a liberdade. A revolta do homem contemporâneo contra a obrigatoriedade
nas questões de fé e de religião, contra a identificação da vida religiosa com
a vida do Estado, é uma revolta justificada. Essa revolta pode gerar, e de fato
gera, consequências funestas e fatais, ela pode testemunhar uma separação em
relação à fé, mas nela existe um momento interior de verdade, que é a verdade
da liberdade.
É impossível edificar o Reino
de Deus por imposição; ele só pode ser criado livremente. Foi a obrigatoriedade
que fez com que desabassem todas as teocracias históricas, e sua queda foi
providencial. Sem o home, sem a liberdade humana, Deus não pode nem quer
edificar Seu Reino, que não pode ser senão um Reino teândrico, e o homem deve
seguir até o final a vida dessa verdade. nada no mundo pode deter sua marcha,
porque o próprio Deus deseja que o homem realize sua liberdade até o fim, e que
chegue em liberdade à plenitude divina. O homem deve passar pela tragédia da
liberdade, para nela encontrar a saída na liberdade de Cristo, na terceira
liberdade. A liberdade é o destino, o fado do homem, por paradoxal que isso
possa parecer. O fanatismo que respira violência não passa de uma loucura
proveniente da incapacidade que tem o homem natural de acolher em si a verdade
do espírito, o pleroma celeste do Cristianismo. O fanatismo é o aprisionamento
do espírito nas paixões da alma e do corpo, a sufocação do homem espiritual pelo
homem natural. Ele transgride sempre as leis mais elementares da higiene espiritual.
Quando o homem, em nome do amor, nutre o ódio, quando, em nome da liberdade,
ele recorre à violência, ele se encontra num estado de demência, ele perdeu seu
equilíbrio psíquico devido à sua impotência em acolher em si a verdade do
Cristianismo. Nada é mais difícil para o homem do que aceitar a liberdade para
si permanecer fiel a ela. Suas ideias se confundem e seu coração se abrasa. O mal
a que ele recorreu lhe parece ter sido cumprido em nome do bem. O mundo helênico
possuía mais equilíbrio, ele estava menos inclinado à violência do que esse
mundo cristão, porque ele não havia recebido essa verdade suprema da liberdade.
É essa verdade, fardo demasiado pesado para a humanidade, que permanece
incompreendida, e que gera uma violência sem precedentes.
O renascimento cristão no mundo não será obtido senão pelo pathos
da liberdade. O Cristianismo futuro será um Cristianismo de liberdade de
espírito, depois de superar as provas da liberdade e de triunfar sobre a tentação
de renunciar a ela. Nosso Cristianismo não poderá ser outra coisa do que novo,
não por oposição ao Cristianismo eterno, mas pelo nascimento de uma nova alma
capaz de apreender sua Verdade imutável. Essa nova alma não poderá acolher
senão um Cristianismo de liberdade de espírito, pois a escravidão do espírito,
sua tirania, as obrigações impostas sobre ele, fazem parte do reino do
anti-Cristo. A liberdade de espírito foi o tema fundamental do pensamento
religioso russo. Os eslavófilos ensinaram a liberdade cristã, e seu maior
apóstolo foi Dostoievsky.
O problema da liberdade de espírito está situado no próprio centro da
consciência cristã; a ele estão ligados o problema do mal e da redenção, bem
como o do homem e de seu poder criador. A criação é impossível sob o domínio de
uma mentalidade autoritária. A vida criativa não pode consistir unicamente numa
obediência, numa submissão à autoridade. Ela pressupõe sempre a liberdade de
espírito, ela é a manifestação dessa liberdade. Na criação existe sempre algo
além dessa humildade que, ainda que sendo indispensável para a vida espiritual,
nem por isso elimina a audácia da liberdade. A negação da liberdade equivale a
uma mutilação da individualidade humana, a extinção da vida espiritual do homem.
A individualidade se levanta contra a sua transformação em autômato. A ideia da
liberdade cristã encarada em profundidade e com todas as suas consequências pressupõe
a afirmação da liberdade em todas as esferas da criação humana, a liberdade na
ciência, na filosofia, na arte, nas relações sociais e no amor. A obrigatoriedade
nesses domínios não possui nenhum valor do ponto de vista da consciência cristã.
Em todos os domínios da criação, a verdade de Cristo deve se revelar desde as
profundezas da liberdade. A ciência, a arte, a sociedade, assim como o livre
amor entre o homem e a mulher, devem servir à verdade de Cristo, devem orientar
para Deus suas forças criadoras, devem ser a manifestação de um amor livre para
com Deus. Nenhum limite exterior pode ser imposto à liberdade de pensamento, à
liberdade de sentimento. A luz de Cristo deve nascer aí; o vazio e o não-ser do
mal, o nada de todo ateísmo, devem ser denunciados. Esse é o caminho imanente,
o único que deve seguir uma humanidade que alcançou o cume das provas e das
contradições da cultura. A separação última entre os dois reinos acontecerá
sobre os caminhos da liberdade, que conduzirão definitivamente a Deus ou ao
diabo.
E virá o tempo, e já veio, em que a liberdade estará apenas no
Cristianismo, em que a Igreja de Cristo defenderá a liberdade do homem contra
as violências do reino desse mundo, o reino de César, tornado definitivamente
ímpio. Isso já acontece no comunismo, que nega a liberdade de espírito e nega a
personalidade. A negação da liberdade de espírito é precisamente o espírito do
anti-Cristo, cujo advento será marcado pela extrema tirania, pela autocracia
absoluta do poder desse mundo. Somente na Igreja de Cristo será então possível
encontrar a libertação dessa tirania destrutiva, dessa encarnação do espírito
do Grande Inquisidor.
No Reino de Cristo, todo poder, toda autocracia, individual ou
coletiva, estará limitado, pois nele somente se afirmará o poder da Verdade e
da Justiça divinas. O espírito de liberdade de Cristo está dirigido contra toda
tirania, quer provenha da “esquerda”, da “direita” ou do “centro”, seja a
tirania monarquista, a aristocrática, a democrática, a socialista ou a
anarquista. Não se trata do espírito do liberalismo, sempre indiferente à
Verdade, mas o da liberdade santificada, da liberdade do amor. A busca do Reino
de Deus é a manifestação da liberdade de espírito. O Reino de Deus, que devemos
buscar acima de tudo, é o reino do espírito. No mundo espiritual, a tirania e a
imposição de qualquer coisa “extra-imposta”, e de tudo o que é gerado pela
divisão, serão suplantadas. Alcançar o Reino de Deus significa passar para o
mundo espiritual, onde tudo será diferente desse mundo natural. Deus será tudo
em tudo, e assim também a liberdade triunfará sobre a violência. Para entrar no
mundo espiritual, o homem deve realizar o ato heroico da liberdade; mas ele não
deve recebê-la de fora, mas deve descobri-la em si mesmo.
[1] Mateus
17: 26.
[2] João
8: 36.
[3] João
8: 32.
[4] João
15: 15.
[5] Tiago
1: 25.
[6] I
Coríntios 7: 23.
[7] II
Coríntios 3: 17.
[8] Gálatas
4: 7.
[9] Gálatas
5: 13.
[10] São
João Crisóstomo
[11] São
Simeão o Novo Teólogo.
[12] “A
liberdade é um estar consigo mesmo”.
[13] João
8: 32.
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