sexta-feira, 17 de julho de 2020

Nikolai Berdiaev - Espírito e Liberdade - Capítulo V: O Mal e a Redenção

 

 I

 O problema do mal está colocado no centro, não apenas da consciência cristã, como de toda consciência religiosa. O desejo de libertar do mal a existência universal, do sofrimento de ser, criou as religiões. Definitivamente, todas as religiões, e não apenas aquelas da redenção no sentido estrito da palavra, prometem a libertação do mal e do sofrimento gerado por ele. na religião, o homem busca se evadir do estado de isolamento e de solidão no qual se encontra no seio desse mundo hostil e estranho a ele; ele aspira ao retorno à pátria do espírito. Já a adoração do totem designava a busca de um protetor e de um libertador contra o poder do mundo maligno ao redor.

 A consciência racionalista do homem contemporâneo considera a existência do mal e do sofrimento como um obstáculo principal à fé em Deus, como sendo o argumento mais importante em favor do ateísmo. Parece difícil conciliar a existência de Deus, do Clemente e Onipotente Dispensador, com a existência do mal, tão temido e tão poderoso nesse mundo. Esse argumento, o único sério, se tornou clássico. Os homens perdem a fé em Deus e a fé no significado divino do mundo, porque se deparam com o triunfo do mal, porque passam por sofrimentos sem sentido, gerados por esse mal.

 Mas a fé em Deus e a fé nos deuses nasceram na história da consciência humana precisamente porque o homem experimentou grandes sofrimentos e sentiu a necessidade de se libertar do poder do mal. Se esse mal que devasta nosso mundo não tivesse existido, a humanidade se contentaria com esse mundo aqui de baixo, e esse, livre de todo mal e de todo sofrimento, teria sido sua única divindade. A libertação não teria sido indispensável. Os sofrimentos da vida que atestam a existência do mal constituem uma grande escola religiosa, pela qual a humanidade deve passar. A vida que ignora todo mal teria desembocado nesse mundo num contentamento de si. A existência do mal não é apenas um obstáculo à nossa fé em Deus, ela é igualmente uma prova da existência de Deus, a prova de que esse mundo não é o único, nem o último. A experiência do mal orienta o homem para outro mundo, ao provocar um descontentamento com esse mundo. Na base da experiência e da consciência religiosas reside o pessimismo, e não o otimismo. Todas as religiões de libertação são pessimistas em relação à vida universal e ao mundo natural, tanto o Orfismo, como o Budismo, e na mesma medida que o Cristianismo. O sentido positivo da existência reside em outra ordem, no mundo espiritual. Nosso mundo natural se encontra aparentemente em poder da inanidade triunfante; nele reinam a morte e a corruptibilidade, a animosidade e o ódio, o egoísmo e a discórdia. O homem é oprimido pela falta de sentido e pelo mal da vida universal. Na religião, na fé, ele se lança ao mundo do sentido e recebe a força que emana desse mundo, no qual o amor triunfa sobre o ódio, a união sobre a divisão, e a vida eterna sobre a morte.

 A existência do mal coloca o problema da teodiceia, da justificação de Deus. Por que tolera Deus esse mal aterrorizante, por que aceita ele seu triunfo? O universo pinga sangue, ele está feito em pedaços. Satanás, e não Deus, parece ser seu mestre. Onde se encontra a ação da divina providência? Conhecemos a dialética genial de Ivan Karamazov relativa à lágrima de uma criança, que termina com a recusa do bilhete que dá acesso à harmonia universal[1]. O Espírito euclidiano, recusando-se a compreender o mistério irracional da vida universal, pretende edificar um mundo melhor do que o que foi criado por Deus, no qual não haveria mal nem sofrimento, um mundo puramente racional. O homem com espírito euclidiano não é capaz de conceber porque Deus não criou um mundo feliz, sem pecado, incapaz de mal. Mas o “bom” mundo humano, o do espírito euclidiano, se distinguiria do “mau” mundo divino pela ausência nele de toda liberdade; pois essa não teria feito parte de seu desígnio inicial, e o homem seria, assim unicamente um bom autômato. A ausência de liberdade teria tornado impossíveis o mal e o sofrimento, e o homem está ainda hoje pronto a renunciar a essa liberdade, se isso livrá-lo definitivamente de seus tormentos. Nesse mundo euclidiano já não haveriam provas voluntárias, de livre escolha. O mundo que Deus criou está saturado de mal, mas em sua base repousa um bem maior, a liberdade de espírito, que mostra que o homem traz em si a imagem divina. A liberdade é a única solução para o problema da teodiceia. O problema do mal constitui-se no problema da liberdade. Se não compreendermos a liberdade, não poderemos captar o fato irracional da existência do mal no mundo divino. Na origem do mundo se encontra uma liberdade irracional enraizada nas profundezas do nada, um abismo de onde jorram as sombrias torrentes da vida, e onde estão encerradas todas as possibilidades. Essas trevas insondáveis do ser, que precedem todo bem e todo mal, não podem ser racionalizadas até o final; nelas sempre existirão ocultas possibilidades de afluxo de novas energias obscuras. A luz do Logos triunfou sobre as trevas, a harmonia cósmica triunfou sobre o caos, mas sem o abismo das trevas e do caos não existiria, na evolução que se seguiu, nem vida, nem liberdade, nem sentido. A liberdade jaz no abismo sombrio, no nada, mas sem ela tudo é desprovido de significado. Ela gera tanto o mal como o bem. E o mal não contradiz a existência de significado, ele a confirma. A liberdade é incriada, porque ela não é a natureza, ela é anterior ao mundo, ela está enraizada no nada inicial. Deus é onipotente em relação ao ser, mas ele não o é em relação ao nada, à liberdade; e é por isso que existe o mal.

 Toda concepção séria da vida implica a visão do mal e a admissão de sua existência. O fato de não o ver ou de ignorá-lo torna o homem irresponsável e superficial, fechando-lhe, por assim dizer, a profundidade da vida. Negar o mal equivale a perder a liberdade de espírito, significa rejeitar de si o fardo da liberdade. Nossa época está sob o signo de um temível crescimento do mal, acompanhado da negação da sua existência. Ora, o homem permanece desarmado diante dele, a partir do momento em que não o vê. A personalidade se molda e se firma quando faz a distinção entre o bem e o mal, quando é capaz de delimitar esse último. Quando os limites são abolidos, quando o homem se encontra num estado de confusão e indiferença, sua personalidade começa a se corromper e a se desagregar, pois a força de sua consciência está ligada à denúncia do mal. Na confusão e na indiferença, na perda da visão do mal, o homem se vê desprovido da liberdade de espírito, e começa a buscar a necessidade que lhe garante o bem, transferindo o centro de gravidade da vida das suas profundezas para o exterior, e deixando de se determinar desde dentro. O racionalismo nega o mistério irracional do mal, porque nega também o da liberdade. É mais difícil, para uma consciência racionalista, crer no diabo do que crer em Deus; e os homens que têm essa mentalidade elaboram diferentes doutrinas, nas quais se rejeita a existência do mal, onde se transforma o mal numa insuficiência de bem ou num estágio de seu desenvolvimento. O mal é negado tanto pode evolucionistas, como pelos adeptos das doutrinas humanitárias, os anarquistas e os teósofos de araque.

  

II

 A dialética interior da liberdade gera o mal em seu próprio seio. É na primeira liberdade, a irracional, na potência infinita, que reside a fonte do mal, assim como a fonte de toda a vida. A liberdade inicial gera o mal no grau mais elevado do ser. O espírito que se encontrava no degrau supremo da hierarquia do ser foi o primeiro a se separar de Deus por um ato de liberdade; ele afirmou a si mesmo pelo orgulho espiritual e provocou uma alteração, uma corrupção na hierarquia do ser. Foi no cume do espírito, e não nos baixios da matéria, que o mal se manifestou pela primeira vez. O mal original possui uma natureza espiritual e ele se realiza no mundo espiritual. O mal que temos aqui em baixo, que nos encadeia ao mundo material, não é mais do que sua resultante. O espírito que acreditou ser Deus e que se elevou orgulhosamente sobre as alturas, caiu nas regiões baixas do ser. O mundo é um organismo hierárquico no qual todas as partes estão ligadas entre si, onde tudo o que acontece nos cumes repercute nos vales. Não poderia se separar de Deus senão a própria alma do mundo, abarcando com ela toda a humanidade e toda a criação. O mito de Satanás reflete simbolicamente o acontecimento que se desenrolou no ponto mais alto do mundo do mundo espiritual, no mais alto grau da hierarquia do espírito. É lá que as trevas se condensaram originalmente, lá que, pela primeira vez, a liberdade deu uma resposta negativa ao chamado divino, à necessidade que Deus tem do amor do outro que não si-mesmo; é lá que a criação começou a afirmar a si mesma e onde ela tomou o caminho do isolamento, da divisão e do ódio. O homem se separou de Deus junto com toda a criação, com toda a hierarquia universal; ele foi seduzido pelas forças espirituais. O orgulho é a tentação de um espírito superior que pretende se substituir a Deus.

 É assim que na nossa experiência de vida, o mal é originalmente gerado em nós pelas forças espirituais superiores, e somente mais tarde ele se expressa por meio de nossa subordinação aos elementos inferiores, às paixões carnais. O chamado divino é dirigido antes de tudo ao espírito superior, à sua liberdade, e é daí que provém a resposta inicial. A materialização do ser humano e sua submissão aos elementos naturais inferiores não passa do resultado de eventos que já se realizaram no mundo espiritual. A presunção do espírito não eleva o homem aos cumes da divindade, mas sim o precipita no abismo da materialidade.

 O mito da queda é um relato simbólico dos acontecimentos do mundo espiritual, que, por analogia com nosso mundo natural, nos apresenta Satanás e o homem como sendo realidades “extrapostas”. Mas no mundo espiritual, não existe tal extrinsecismo; a própria hierarquia interna do ser possui uma estrutura interna diferente daquela do mundo natural; nela, tudo é interior, tudo é tudo. É por isso que no mundo espiritual Satanás, enquanto ordem superior da hierarquia dos espíritos, e o homem, enquanto rei da criação, são interiores um em relação ao outro, e estão incorporados um ao outro. Satanás é também uma realidade interior ao mundo espiritual do homem, e ele não aparece “extraposto” senão por analogia com o mundo natural. Ele é uma realidade de ordem espiritual e não pode ser concebido no sentido de um realismo simplista. Ele não é a fonte autônoma do mal enquanto ser original, ele não passa da manifestação da liberdade irracional nos cumes do espírito.

 A dificuldade que tem a inteligência em explicar a origem do mal reside no fato de que nem o monismo, nem o dualismo, para os quais a razão se inclina naturalmente, são capazes de captá-lo enquanto fenômeno. A fonte do mal não pode estar em Deus, mas fora de Deus não existe outra fonte de ser e de vida. O mal não provém de Deus, mas não existe outro ser que, existindo paralelamente a Deus, permita explicar a origem do mal. Sendo absolutamente irracional, ele é, consequentemente, inacessível e inexplicável pela razão. Ele não tem nem pode ter razão ou fundamento, e não possui nenhuma fonte positiva. Ele tem sua origem no abismo sem fundo, no nada que não pode sequer ser chamado de ser. O mal, para a razão que se esforça em descobrir o “sentido” das coisas, constitui o limite irracional absoluto. O mal é o não-ser; ele está enraizado nele. Mas o não-ser é inacessível ao “sentido”, o qual é sempre ontológico. O mal a que podemos dar sentido se transforma em bem.

 O monismo puro é obrigado a considerar o mal como um momento do bem, como um bem desconhecido ou insuficientemente revelado. O ser divino é o único ser, tudo está nele e dele procede. O mal extrai sua fonte do ser divino, mas ele só aparece como mal para nós porque não o vemos, e não o compreendemos senão de fora parcial, e não integralmente; na visão e na contemplação do todo, o mal desaparece e se transforma em bem. Assim, o monismo (ou o panteísmo) acaba por desembocar na negação da existência do mal; sendo incapaz de descobrir sua fonte, ele busca explicá-lo invocando nossa ignorância da plenitude e da integralidade do Ser. Ao monismo puro se opõe o dualismo puro.

 O dualismo reconhece que a fonte do mal reside num outro ser que existe paralelamente ao ser divino. um dualismo consequente deve admitir a existência de um deus mau correspondente à do Deus bom. Assim são o dualismo persa, o maniqueísmo, o antigo gnosticismo. Segundo eles o mal possui uma fonte ontológica independente e positiva. Paralelamente ao ser bom do mundo espiritual, existe um outro ser, mau, um mundo material inferior que possui uma realidade independente. Ao supor a existência de um ser inferior qualquer fora de Deus e oposto a ele, ao tentar determinar assim a origem do mal, o dualismo limita o ser divino. Satanás se transforma num deus malvado e independente. Ora, a ideia de Satanás no Cristianismo provém da consciência religiosa persa. A matéria teria sido gerada por um deus mau, e assim ela possuiria uma realidade independente e sujeitaria o espírito. O monismo puro e o dualismo puro não compreendem e rejeitam, por conseguinte, o mistério da liberdade; eles consideram o mal exteriormente, sem entrever sua fonte interior. Ou bem o mal desaparece definitivamente, ou bem ele aparece como uma força absolutamente exterior ao espírito humano. Mas, se o mal não pode ter sua origem em Deus, e se fora de Deus não existe outra fonte do ser, como explicar o fenômeno do mal? Qual é a saída para esse dilema?

 A consciência cristã não dá razão nem ao monismo, nem ao dualismo. Ela traz uma terceira solução ao problema da origem do mal. Para ela esse problema está ligado ao da liberdade e não pode ser resolvido sem ela. A bem dizer, o monismo e o dualismo negam a liberdade na mesma medida, e são de fato incapazes de captar o fenômeno do mal. A interpretação do mistério do mal pelo da liberdade, é uma interpretação suprarracional; ela apresenta uma antinomia para a razão. A fonte do mal não está em Deus, nem num ser positivo que exista paralelamente a Ele, mas na liberdade irracional, insondável, na pura possibilidade, nas potências do abismo tenebroso, anterior a toda determinação positiva do ser. E assim o mal não possui fundamento: ele não é determinado por nenhum ser positivo, ele não possui uma origem ontológica. A possibilidade do mal está oculta nesse misterioso princípio do ser no qual repousam todas as possibilidades. O abismo (o Ungrund de Jacob Boehme) não é o mal, ele é a fonte da vida, de toda atualização do ser. Ele apenas encerra a possibilidade, tanto do mal, como do bem. Na base da vida universal jaz um mistério inicial irracional, um abismo. Esse mistério ultrapassa o alcance da lógica.

 O princípio irracional e sombrio do mundo foi compreendido de maneira genial pelos místicos alemães Eckhart e Boehme, e também pela filosofia alemã do início do século XIX.  Segundo a notável doutrina de Schelling sobre a liberdade, o mal retorna ao estado de potência pura. No começo era o Logos, o Verbo, o Sentido, a Luz. Mas essa verdade eterna da revelação religiosa não significa que o reino da luz e do sentido tenha se realizado inicialmente na existência, que o Logos tenha triunfado desde o princípio sobre todas as trevas. A vida divina é uma tragédia. No começo, antes da formação do mundo, existia igualmente um abismo irracional: a liberdade, que deveria vir a ser iluminada pela luz do Logos. Essa liberdade não é um ser que existiria paralelamente ao ser divino, ao Logos, à Inteligência. Ela é o princípio sem o qual a existência não teria sentido para Deus, e que por si só justifica o desígnio divino do mundo. Deus criou o mundo do nada, mas o mesmo podemos dizer de Ele o ter criado a partir da liberdade. A criação deve repousar sobre a liberdade insondável que, antes da aparição do mundo, já se encontrava encerrada no nada. Sem ela, a criação não tem valor para Deus.

 No princípio havia o Logos, mas havia também a liberdade. Essa última não se opõe ao Logos, pois sem ela o Sentido do mundo não existe. Sem trevas não existe luz. O bem se revela e triunfa pela prova do mal. A liberdade torna possíveis o mal e o bem. O mal que ela gera não é um ser independente, ele é o não-ser, que é preciso distingue do nada original. Mas o não-ser existe e pode até ter uma força considerável, a força do erro. O mal é a caricatura, a deformação e a enfermidade do ser. Ele consiste numa transgressão da hierarquia nascida do não-ser, numa destituição do centro hierárquico, num rebaixamento da que era superior e numa elevação do inferior, uma separação de toda fonte original e desse centro do ser, de onde todas as coisas emanam com suas determinações.

 O mal é antes de tudo um engano: ele sempre se faz passar pelo que ele não é na realidade; ele seduz enganando. O diabo é um impostor, ele não tem sua fonte de vida, ele não tem existência própria, ele empresta tudo de Deus, e a tudo desnaturaliza e torna caricato: sua força é fictícia, ilusória e enganadora. Não existe um reino do mal, como se fosse um ser positivo que exista paralelamente ao Reino de Deus, ao ser divino. o mal possui sempre um caráter negativo, ele nega a vida e o ser, ele destrói a si mesmo, ele não possui nada em si de positivo. Muitos doutores da Igreja ensinaram que o mal é o não-ser; o caráter negativo, não ontológico do mal se revela em nossa própria experiência de vida.

 Tudo o que consideramos como indiscutivelmente mau possui um caráter negativo e não encerra em si nenhuma existência positiva. A animosidade, o ódio, a inveja, a vingança, a depravação, o egoísmo, a cupidez, o ciúme, a desconfiança, a avareza, a vaidade destroem a vida, sacodem as forças do homem que se encontra sob seu império. Toda paixão má consume a si mesma, traz em si uma semente de morte para o homem e para o mundo. Aí se revela o mal infinito. O mal precipita o homem numa vida ilusória, aparente e falsa, na qual nada existe de ontológico. O assassinato e a morte se ocultam no elemento do mal, em toda paixão má. A animosidade e o ódio correspondem ao assassinato e à morte, à destruição do ser, enquanto que o amor é a afirmação da vida, da existência em tudo e todos. O ser positivo não pode ser outra coisa do que um reino de amor. No amor se afirma a imagem de todo ser humano, de toda criatura divina. O sujeito amoroso deseja a vida eterna para o objeto amado, enquanto que aquele que detesta deseja a cessação da vida, deseja a morte; é da extensão do amor ou do ódio que depende o grau de afirmação ou de negação da existência. É por isso que libertação em relação ao mal e à morte aparece como sendo amor infinito.

 As promessas do mal jamais podem ser cumpridas. O mal não pode criar um reino de vida, porque, ainda que seduza pelo bem, ele rompe com a própria fonte da vida. Marx, para tomarmos um exemplo, considerava que seu objetivo era bom; mas, para atingi-lo, ele preconizava meios nefastos. Era pelo mal, o ódio e a animosidade, pela cobiça e a vingança, pela desunião e a destruição violenta, que ele pretendia chegar a um reino de harmonia, de unidade e de fraternidade entre os homens. Mas os meios maus acabam se tornando o único conteúdo da vida e, assim, terminam triunfando definitivamente. O ódio jamais pode conduzir ao amor, nem a divisão à união, nem o assassinato à vida, nem a violência a liberdade. Não existem caminhos maus que conduzam ao bem; em todos eles o mal sempre triunfará. Quando o ódio se apodera do coração humano e o contamina, ele não pode realizar senão obras de destruição. Quando você sente animosidade contra os que fazem o mal, você se torna impotente para vencer o mal, você está em seu poder. A luta contra o mal pode facilmente degenerar em mal. A vitória do bem é sempre positiva, ela não nega a vida, mas a confirma. É preciso começar por combater o mal que está em nós, e não aquele que vemos nos outros. Em geral, nossos sentimentos de animosidade em relação aos bandidos não passam de uma maneira de afirmar a nós mesmos.

 A causa do mal reside na falsa e ilusória afirmação de si, no orgulho espiritual que situa a fonte da vida, não em Deus, mas em si mesmo. Tal afirmação desemboca sempre na destruição de si, na negação da personalidade humana enquanto imagem e semelhança divinas; ela retorna ao nada de onde o mundo foi tirado. O orgulho e o egoísmo levam ao abismo, ao não-ser, à morte. A existência é hierárquica e só se afirma na conservação da harmonia que resulta de uma hierarquia verdadeira. A afirmação de si e o egoísmo destroem essa harmonia e, ao fazê-lo, destroem a personalidade humana, privando-a das suas fontes de vida. O homem já não encontra seu lugar no mundo divino, e sai à sua procura alhures e fora de si. Mas fora de Deus e do mundo divino não existe nada que não seja o não-ser, o reino da ilusão e da mentira. Estabelecer a vida sobre o orgulho e ao egoísmo equivale a estabelecê-la sobre o nada, como queria Max Stirner. Por esse caminho o homem sai dos limites da existência e penetra no reino do não-ser.

 Cada um de nós sabe, por sua própria experiência, que o egoísmo e a afirmação de si esgotam as forças e exterminam a vida. O infinito maligno, o abismo da sede e das concupiscências da vida se entreabre, e a própria vida desaparece. Um desejo egoísta, interesseiro, luxurioso, manifesta sempre a perda das fontes autênticas da vida e a separação da vida original. O mal reside na negação do amor, o qual afirma toda a vida em Deus. Existe um desejo insensato de vida, fora da vida real, fora de Deus, uma necessidade de emprestar ao não-ser o caráter de existência. O mal extrai sua fonte da liberdade não iluminada, e é por meio dela que ele seduz, mas ele termina sempre pela destruição da liberdade de espírito e se encontra sob o império da necessidade e da tirania. A consequência do mal é sempre a desunião, o distanciamento recíproco das partes do ser e a violência exercida por uma dessas partes sobre as demais. O mundo se “atomiza”: todas as coisas se tornam estranhas e, por conseguinte, hostis.

 O ser não é livre a menos que esteja unido no amor, nesse amor no qual se estabelece um parentesco com Deus. É somente em Deus e por Deus, que tudo se torna aparentado e próximo. Fora de Deus tudo é estranho e distante, tudo é constrangimento. Satanás, a força espiritual superior, seduz os homens sugerindo a eles que serão semelhantes a Deus. Mas, ao se engajar no caminho do mal, substituindo-se a Deus, o homem não se torna o deus que sonhou ser, mas sim escravo da natureza inferior, ele perde sua natureza superior, se submete à necessidade natural, deixa de se determinar desde o interior do espírito: sua liberdade é solapada. O mal consiste nesse deslocamento do centro do ser, nessa inversão da hierarquia universal que faz com que o princípio material se apodere do espírito orgulhoso e se substitua ao princípio espiritual. O espírito orgulhoso, egoísta, se acha precipitado na matéria, a qual não passa do despedaçamento e da dissociação do mundo, filha da animosidade e do ódio. A concupiscência infinita, as paixões insaciáveis, se apoderam dos seres que são jogados no mundo da desunião e do ódio. O homem não pode ter em si mesmo a fonte da vida: ele a extrai, ou bem daquilo que lhe é superior, ou bem do que lhe é inferior. Satanás não é uma fonte de vida independente, ele não pode senão colocar o homem num estado no qual a fonte da vida bebe da natureza inferior.

 Quando essa natureza inferior ocupa seu lugar na hierarquia universal, ela não constitui um mal em si. É somente quando ela usurpa da natureza superior que ela se torna um mal e um engano. A natureza animal ocupa seu lugar na escala de valores, e está destinada à vida eterna; mas, quando ela se apodera do homem, quando esse submete seu espírito ao elemento inferior, ela se torna um mal. O mal é determinado pela direção escolhida pelo espírito, não pela própria natureza. As tentações do mal terminam no vazio, na morte, no desgosto do não-ser. O mal sempre satura, sem entretanto se saciar, pois ele não possui o que poderia saciá-lo. É nisso que reside todo seu mistério. Mas o homem dificilmente consegue distingui-lo quando se encontra num estado de erro. Ele não consegue explicar o porque de estar sob o jugo do infinito maligno da vida, o porque de não conseguir obter a própria vida. As más paixões o subjugam: ele está possuído. Quando elas o submetem, o homem já não consegue determinar-se pela liberdade e, quando ele imagina ser livre em suas paixões, ele está sob o domínio de uma terrível ilusão, no reino dos enganos e das aparências. Ele toma como sendo liberdade a mais terrível escravidão, pois uma vida má é uma vida de mentiras, de aparências, uma vida sem realidade, uma vida na qual ele é objeto. O mal repousa nas profundezas da natureza humana, nas profundezas do espírito. E, quando o espírito humano escolhe o mal, já não é a partir de si mesmo, a partir de sua liberdade, que ele determina sua vida; ele se torna escravo, ele fica à mercê de forças que ele não enxerga, e a serviço de um mestre que ele desconhece. O homem não é capaz de se libertar do jugo desse mestre, apenas por meio de suas forças naturais. Isso não quer dizer que forças espirituais, criativas e positivas, forças do bem, não subsistam nele. A natureza espiritual do homem pode estar deformada, contaminada, estremecida, mas ela ainda se conserva, ela não é definitivamente extinta. Na natureza humana, no desígnio divino, a ideia, a imagem e a semelhança divinas se confundem com o nada original, com o não-ser inicial, desde onde o ato criador de Deus chamou o homem à vida. Mas a natureza humana permanece receptiva à luz; nela subsiste uma ardente aspiração pelo divino, que torna possíveis a revelação e a salvação. O mal não é capaz de se apoderar dela definitivamente, porque ela é dupla, ela pertence a dois mundos, e mesmo depois de sua queda o homem nunca rompeu totalmente com Deus, que continua a agir sobre ele e a lhe comunicar sua energia regeneradora. O homem não pertence exclusivamente ao reino do não-ser; ele mantém um laço com o ser, que exerce sua ação sobre ele. Deus e o diabo lutam no coração humano, e o homem decaído conserva, apesar de tudo, a imagem divina; ele passa pela experiência do mal como um ser de ordem superior.

 As consequências negativas do mal no homem indicam precisamente sua predestinação a uma vida superior. Mesmo antes da vinda de Cristo, já eram possíveis uma vida espiritual elevada e uma intensidade de força criativa no mundo pagão. A cultura helênica é a prova empírica e indiscutível disso. A natureza espiritual superior do homem agia em Platão. Nele se manifestou a sede de Deus e da vida divina que os homens experimentam. A natureza humana conserva sua independência, pois essa é necessária para a obra divina no mundo. Mas a vitória definitiva sobre o mal não poderá ser obtida pelas forças naturais do homem que permanece separado de Deus.

  

III

 O Cristianismo é a religião da Redenção e, por conseguinte, ele pressupõe a existência do mal, a existência dos sofrimentos. E não há de ser invocando-os que se poderá combater a fé cristã. Cristo veio ao mundo precisamente porque esse jazia no pecado, e o Cristianismo nos ensina que o mundo e o homem devem carregar sua cruz. Se o sofrimento é consequência do mal, ele é também o caminho que deve nos libertar dele. Para a consciência cristã, o sofrimento não é necessariamente um mal; existe também um sofrimento divino, o do próprio Deus, aquele de Cristo. Toda a criação suspira e chora, e espera por sua libertação. Os adversários do Cristianismo costumam se apoiar sobre o fato de que a vinda de Cristo Salvador não libertou o mundo dos sofrimentos e do mal. Quase dois mil anos se passaram desde a vinda do Redentor e o mundo continua a pingar sangue; a humanidade se contorce de dor; o mal e o sofrimento chegaram mesmo a aumentar. Parece que o antigo argumento judaico irá prevalecer. O Messias autêntico será aquele que irá libertar a humanidade definitivamente do mal e dos sofrimentos aqui de baixo.

 O que se esquece é que o Cristianismo reconhece o valor positivo dos sofrimentos que a humanidade padece em seu destino terrestre, e que ele jamais prometeu a felicidade e a beatitude sobre a terra. As profecias cristãs referentes aos destinos da humanidade são, aliás, bastante pessimistas. O Cristianismo jamais afirmou que uma força coercitiva viria realizar a harmonia universal e o Reino de Deus sobre a terra. Ele reconhece a liberdade do espírito humano em seu mais alto grau, e estima que sem sua participação a realização do Reino de Deus é impossível. Se a justiça de Cristo não se realiza no mundo, não é a ela que cabe inculpar, mas à justiça humana. A religião do amor não é responsável pelo fato de que reine o ódio em nosso mundo natural. É impossível invocar, para refutar o Cristianismo, a existência de sofrimentos incalculáveis e de males nessa vida. O Cristianismo é a religião da liberdade, e é por isso que não se pode admitir que o mal e o sofrimento sejam extirpados pela violência e o constrangimento. Ele dá sentido ao sofrimento, e liberta do mal. Mas a libertação em si implica a participação da liberdade humana.  

 É impossível conceber racionalmente o mistério da Redenção, tanto quanto qualquer outro mistério da vida divina. A doutrina jurídica da redenção, que, começando por Santo Anselmo de Canterbury, desempenha uma papel de tanto destaque na teologia católica – e da qual a teologia ortodoxa não se libertou totalmente – consiste numa racionalização desse mistério, que é interpretado a partir de analogias que existem no mundo natural. Essa concepção jurídica não foi mais do que uma adaptação da verdade celeste para o nível do homem natural. Não existe aí uma concepção espiritual; é indigno considerar a tragédia universal como sendo um processo jurídico movido por um Deus colérico contra o homem transgressor de sua lei. Pensar assim equivale a adaptar a vida divina, sempre misteriosa e insondável, a concepções pagãs, a um espírito de vingança gregária. Deus, na concepção pagano-judaica, é concebido como um tirano temível, que castiga e se vinga de toda desobediência, que exige como indenização uma vítima propiciatória e um derramamento de sangue. Representa-se a Deus à imagem da antiga natureza humana, à qual a ideia de cólera era inerente, bem como as de vingança, de resgate, de punição cruel. Sobre a teoria jurídica da redenção foi sobreposto o selo indelével das concepções romanas e feudais relativas à reabilitação do homem. a transgressão da vontade divina leva a um processo divino, e Deus exige um reembolso: é preciso pagar-Lhe alguma forma de compensação, cuja natureza seja capaz de aplacar Sua cólera. Nenhum sacrifício humano é suficiente para satisfazê-lo e fazê-lo se acalmas. Somente a imolação do Filho foi proporcional ao delito cometido e à ofensa provocada por esse.

 Todas essas concepções não passam de imagens pagãs transpostas para o Cristianismo. Tal concepção do mistério da Redenção se reveste de um caráter exotérico. O mundo pagão se encaminhou para a Redenção manifestada pelo Cristianismo. Ele tinha em si uma grande esperança, mas sua concepção de redenção era naturalista e não espiritual; sua expectativa, esse pressentimento, era perturbado pela limitação do mundo natural. O paganismo reconhecia desde sempre o caráter expiatório do sacrifício sangrento, que apaziguava e alimentava os deuses. A divindade reclamava, de certa forma, o sangue humano e os sofrimentos humanos. Nessa concepção se expressava toda a limitação das religiões naturalistas. A divindade era percebida através da natureza e estava impregnada de relações e de propriedades do mundo natural. Por intermédio do Filho, o Pai Celeste se revela não como juiz ou soberano, mas como amor infinito. “Deus não enviou Seu Filho ao Filho para que Ele julgue o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele[2]”. “Eu vim não para julgar o mundo, mas para salvá-lo[3]”.

 A Redenção realizada pelo Filho de Deus não constitui uma sentença, mas uma salvação; ela não é um julgamento, mas uma transfiguração e uma iluminação da natureza, sua santificação. A salvação não é uma justificação, mas a aquisição da perfeição. Representar a Deus como um juiz não é típico do homem espiritual, mas do homem psíquico. A compreensão jurídica da Redenção não faz sentido senão para o homem natural. Para o homem espiritual o que se revela é um aspecto totalmente diferente da divindade. É impossível atribuir a Deus sentimentos que os próprios homens consideram repreensíveis: orgulho, egoísmo, rancor, vingança, crueldade. O homem natural tornou monstruosa a imagem de Deus. Segundo a concepção jurídica da Redenção, a religião de Cristo permanece sendo uma religião da lei; nela, a graça não pode ser compreendida ontologicamente.

 No Cristianismo a Redenção é obra do amor, não obra da justiça, ela é o sacrifício do amor divino infinito e não um sacrifício propiciatório, ou um acerto de contas. “Pois Deus amou tanto o mundo que lhe deu Seu Filho único, a fim de qualquer um que creia Nele não pereça, mas tenha a vida eterna[4]”. Boukhareff supõe que o cordeiro foi imolado desde o começo do mundo, e estabeleceu a ideia notável de que o sacrifício voluntário do Filho de Deus fazia parte do desígnio inicial da criação[5]. O próprio Deus deseja sofrer com o mundo. A interpretação jurídica da evolução universal transformou a Redenção num acordo judiciário. Deus exige que lhe seja feita justiça, ele exige uma compensação pela perda que lhe foi ocasionada. Nessa concepção, subsiste ainda a ideia pagã do sacrifício. A consciência humana tem dificuldade em entender o sacrifício de Cristo e o mistério da Redenção. A cruz, que é um escândalo para os judeus e uma loucura para os pagãos, continua a perturbar o mundo cristão; a interpretação que lhe é dada testemunha uma refração da consciência judaico-pagã. A teologia católica conservou em especial a marca do paganismo romano com seu formalismo jurídico.

 É difícil vencer o estado de espírito jurídico dentro do Cristianismo. Cristo não rejeita a lei, mas ele nos revela um mundo espiritual no qual o amor e a liberdade, iluminados pela graça, conquistaram efetivamente a lei. A liberdade não regenerada pela graça, a liberdade inferior, não pode negar a lei: ela está submetida à sua ação. O Cristianismo não é a religião da lei, mas isso não significa que devamos confessar a “anomia[6]”. A lei da Antiga Aliança e a graça da Nova possuem esferas de atuação completamente diferentes. E é precisamente por isso que é impossível conceber essa última de um ponto de vista jurídico. A lei e a justiça não podem compreender o mistério das relações que existem entre Deus e o homem. O Novo testamento nos revela um Deus que espera, não a execução formal da lei, mas o livre amor do homem. a lei e a acusação do pecado, ela é a refração da vontade divina na natureza pecadora, e não a expressão original dos sentimentos de Deus para com o homem. esse mistério é revelado na Redenção.

 A concepção jurídica da Redenção pressupõe que o pecado pode ser perdoado ao homem, que a cólera divina pôde ser aplacada depois do sacrifício oferecido pelo Filho. Nessa concepção, as relações entre Deus e o homem se tornaram exteriores; nada de essencial pode, nem deve, ser perdoado. Não é Deus que não pode perdoar o homem, mas o homem que não pode perdoar a si mesmo, assim como ele não pode absolver a si próprio de sua apostasia em relação a Deus e ao desígnio divino. Deus ignora toda e qualquer cólera, e Sua misericórdia é ilimitada. O homem conserva sua natureza espiritual superior criada à imagem de Deus, e é essa que não pode se reconciliar com a degradação e a queda; ela é ferida por essa infidelidade cometida contra Deus, por essa traição do antigo  homem, por essa preferência concedida ao sombrio nada, mais do que à luz divina. O homem tem sede de resgatar seu pecado; ele sente sua impotência, ele aguarda o Redentor e o Salvador que o enviará a Deus. A natureza espiritual do homem não exige o perdão do pecado, mas sua derrota definitiva e seu extermínio, vale dizer, a transfiguração da natureza humana.

 O sentido da Redenção reside no advento do Novo Adão, do Novo Homem Espiritual, na vida do amor ignorado pelo Antigo Adão, na transfiguração da natureza inferior em natureza superior. Ela não reside na regulamentação das relações exteriores, entre o antigo adão e Deus, nem no perdão e na satisfação concedidos por uma das partes à outra. O sentido da vinda de Cristo ao mundo está na transfiguração real da natureza humana, na formação de um novo tipo de homem espiritual, e não na instituição de leis cujo cumprimento traria a vida espiritual. Graças à vinda de Cristo, a vida espiritual pode realmente ser obtida. Aqui não é uma questão de relações exteriores: tudo deve ser realizado espiritualmente, vale dizer, do ponto de vista da imanência. O homem é sedento de uma vida nova, de uma vida espiritual, eterna, relacionada com a sua dignidade. É nisso que consiste a revelação da Nova Aliança. No Cristianismo, a ideia central é a da transfiguração, não a da justificação. Essa última ocupa um espaço demasiado grande no Cristianismo ocidental. No Cristianismo oriental, na patrística grega, ao contrário, a ideia se modifica na natureza humana. Assim, a ideia da transfiguração, da theosis, é fundamental.

 A vinda de Cristo e a Redenção não podem ser compreendidas espiritualmente senão como uma continuação da criação do mundo, como o oitavo dia dessa criação, vale dizer, enquanto processo cosmogônico e antropogênico, enquanto manifestação do amor divino na criação, como um novo estágio na liberdade do homem. o advento do novo homem espiritual não pode resultar unicamente da evolução da natureza humana. Esse advento pressupõe que o mundo espiritual passe da eternidade para o nosso mundo natural, para o nosso tempo. A evolução natural da humanidade nos mantém dentro dos limites estreitos da realidade natural. O pecado original, o mal que está na raiz do mundo, continua a isolar, a amarrar o mundo terrestre. A libertação não pode vir senão do alto. A energia do mundo espiritual e divino deve se inserir em nossa realidade natural decaída e transfigurar nossa natureza, rompendo as barreiras que separam os dois mundos. A história celeste deve penetrar a história terrestre.

A história do gênero humano, a do antigo Adão, deveria preparar a recepção ao novo Homem Espiritual, que procede de outro mundo; deveria se realizar um desenvolvimento espiritual preparatório. Na humanidade e no mundo natural deveria nascer uma receptividade imaculada do elemento divino, um princípio feminino iluminado pela graça. A Virgem Maria, a Mãe de Deus foi precisamente a manifestação desse princípio, por intermédio do qual o gênero humano deveria receber o Filho de Deus e o Filho do Homem. Em Cristo, Deus-Homem, o amor divino infinito encontra o amor recíproco do homem. O mistério da Redenção é o do amor e da liberdade. Se Cristo não é somente Deus, mas também homem, o que nos é ensinado pelo dogma da natureza teândrica, então não é apenas a natureza divina que atua na Redenção, como também a natureza humana, vale dizer a natureza celeste da humanidade. Cristo, enquanto Deus-Homem, revela que nós pertencemos não apenas ao gênero terrestre, que, graças a Ele o homem espiritual habita a profundeza da realidade divina. Em Cristo, que, como Homem Absoluto, compreendia em si todo o gênero humano espiritual, o homem faz um esforço heroico para vencer, pelo sacrifício e o sofrimento, o pecado e sua consequência. Ele realiza esse esforço para responder ao amor divino. Em Cristo, a natureza humana coopera com a obra de redenção. O sacrifício é a lei da ascensão espiritual e, pela geração de Cristo, uma nova era começa na vida da criação. Adão passou pela prova de liberdade e não respondeu ao chamado divino por um amor livre e criativo. Nele ainda não se havia revelado o homem espiritual. Cristo, o novo Adão, deu essa resposta ao amor divino e indicou a toda a sua geração espiritual o caminho dessa resposta. A Redenção é um processo teândrico, ao mesmo tempo duplo e único. Sem a natureza humana, sem a liberdade do homem, ela não pode se cumprir. Aqui, como em tudo no Cristianismo, o mistério da humanidade teândrica de Cristo é a chave de todo conhecimento autêntico. Esse mistério não encontra solução definitiva senão na Trindade divina: é no Espírito que são resolvidas as relações entre Pai e Filho. Não se pode vencer o mal sem a participação da liberdade do homem. Ora, o mal sabota e deforma essa liberdade, a única que nos permite vencê-lo.

 Eis aí a antinomia fundamental, que encontra sua solução no mistério teândrico de Cristo. O Filho de Deus, a Segunda Hipóstase da Trindade Divina, sobrepuja os sofrimentos da cruz, a oposição entre a liberdade humana e a necessidade divina. No Gólgota, da paixão do Filho de Deus e do Filho do Homem, a liberdade se torna a força do amor divino, e essa força, salvadora do mundo, ilumina e transfigura a liberdade humana. A Verdade, aparecida como sofrimento e amor, nos torna livres sem imposição; ela cria uma nova liberdade superior. A liberdade, que a Verdade de Cristo nos concede, não é a filha da necessidade. A Redenção não pode ser compreendida como um retorno da natureza humana ao estado primitivo, ao estado de Adão antes da queda. Tal concepção privaria de sentido todo o processo universal. Mas o novo homem espiritual é superior, não apenas ao Adão decaído, como ao Adão anterior à queda, e ele designa um novo estágio na criação do mundo. O mistério do amor infinito e da nova liberdade não poderia ser conhecido pelo antigo Adão. Ele só se revelou em Cristo.

 Não se pode subordinar a vinda de Cristo apenas a causas exclusivamente negativas, como a existência do mal e do pecado; na verdade, ela é a revelação positiva do estágio supremo da criação. A redenção não constitui um retorno ao estado paradisíaco, mas é a passagem a um estado superior, à manifestação da natureza espiritual do homem, de uma liberdade e de um amor criativos, desconhecidos até então. A Redenção constitui, assim, um novo momento da criação. A criação não foi completada em sete dias; esses não consistem senão em um éon de seu destino. O mundo é dinâmico e não estático. Sempre é possível atingir novos cumes. A descrição da criação do mundo dada pelo Antigo Testamento não revela a plenitude do ato criador de Deus; e, na interpretação da criação, a consciência da Nova Aliança não pode ser sufocada pelos limites da Antiga. A criação do mundo prossegue, o mundo penetra em novos éons.

 A aparição de Cristo marca um novo éon no destino do mundo, um novo momento, a um tempo antropogônico e cosmogônico. Não apenas a natureza humana, mas todo o universo, toda a vida cósmica se transformou depois da vinda de Cristo. Quando a gota de sangue derramada por Cristo no Gólgota tocou a terra, essa se tornou outra coisa, ela se renovou, e se nós a vemos apenas com nossos olhos terrestres, isso se deve à limitação de nossas faculdades receptoras. Toda a vida universal, toda a vida humana, tudo se tornou diferente depois da vinda de Cristo, que representou uma nova criação. Isso só pode ser compreendido por uma teologia livre do espírito da Antiga Aliança. A redenção é precisamente a única teodiceia possível, a justificação de Deus e de Sua criação. Sem a liberdade como abismo do nada, como potência infinita, não poderia existir nem a evolução universal, nem novidade alguma no mundo.

  

IV

 Na compreensão espiritual da Redenção, o sentimento “vampiresco” em relação a Deus é superado. Todo o universo pagão se encaminhava para esse mistério e pressentia a vinda do Redentor. Já no totemismo existia uma eucaristia naturalista. Mas a redenção antecipada e aguardada, refletida de modo confuso nos elementos naturais, estava ligada ao sacrifício sangrento. O deus pagão tinha sede de sangue, e o homem despedaçava e comia seu deus. O paganismo conheceu deuses sofredores redentores, e Dionísio foi feito em pedaços pelas bacantes. No Cristianismo, no qual a redenção é autenticamente realizada, o sacrifício eucarístico se reveste de um caráter essencialmente diferente. Cristo é o Cordeiro oferecido em holocausto pelos pecados do mundo. Mas é o mal, são os malfeitores do mundo que sacrificam Cristo e que fazem jorrar Seu sangue; quanto aos cristãos, eles oferecem um sacrifício incruento, o sacrifício do amor. A comunhão da carne e do sangue de Cristo não possui o caráter de “vampirismo” das religiões da natureza. Na Redenção e na Eucaristia, o espírito se eleva acima do turbilhão natural. Na Redenção de Cristo atuam forças sobrenaturais, forças de um outro mundo que penetram nosso mundo e o transfiguram.

 Mas na consciência cristã, obsedada ainda pela necessidade natural, a concepção pagã do sacrifício sangrento permanece ainda insuperada. Jean de Maïstre, por exemplo, chega quase a identificar o sacrifício eucarístico de Cristo com o sacrifício cruento do paganismo. O sangue de um inocente resgata os pecados dos culpados. O homem deve compensar Deus por tudo o que cometeu. Essa concepção é particularmente característica da consciência católica. Nela subsiste um elemento “vampiresco” no que se refere ao sangue dos inocentes. Mas esse sangue é o grande sacrifício do amor, para o qual somos chamados a cooperar. O sacrifício se reveste de um caráter espiritual. Nós comungamos interiormente, misticamente, com Cristo, participamos da obra realizada por ele. o espírito de Cristo já atuava no mundo antigo, nos pontos mais altos das religiões pagãs, nas vitórias do espírito sobre a natureza, no Orfismo, em Platão; mas apenas no Cristianismo ele se manifestou definitivamente na carne.

 Existem no Cristianismo dois tipos espirituais que colocam seu selo na compreensão dos mistérios da fé cristã. O primeiro vive antes de tudo sob o medo de se perder, ele se sente sob a espada da justiça e busca sua própria salvação, sua libertação. O segundo procura acima de tudo a vida superior, a verdade e a beleza divinas, a transfiguração de toda a criação, a aparição de uma nova cultura, de um novo homem espiritual. O primeiro se agarra à Antiga Aliança, ele se inclina para a compreensão jurídica da redenção. O segundo é inspirado pela Nova Aliança, ele pende para a compreensão ontológica da redenção, que ele encara como um novo momento na criação, como o advento de um novo homem espiritual. Essas duas orientações do espírito estão em luta dentro do Cristianismo. Assim é que Clemente de Alexandria, helenista por espírito, aspirava menos ao perdão de seus pecados do que à contemplação de Deus e à união com Ele, enquanto que Santo Agostinho, ao contrário, buscava antes de tudo aquele perdão, aquela justificação.

  

V

 Para vencer o mal é preciso desmascará-lo. A ignorância do mal, sua negação, enfraquece a resistência. O homem deve aprender a discernir os espíritos, uma vez que ele se encontra sob o império de demônios que frequentemente se apresentam sob o aspecto de anjos de luz. Mas existe também um outro perigo, o de uma concentração demasiadamente exclusiva sobre o mal, e que consiste em vê-lo por toda parte, em exagerar sua força e sua atração, e que acaba por desembocar numa obsessão ininterrupta. O homem mergulha numa atmosfera de suspeitas e desconfiança. Parece existir mais fé na força de Satanás do que na de Deus; ele crê mais no anti-Cristo do que em Cristo. Ele cultiva uma tendência espiritual das mais nefastas, que destrói toda vida positiva e criativa. O mal age sobre o homem não apenas quando ele o nega, mas também quando ele exagera seu alcance. É nocivo envolvê-lo em uma auréola. Na luta contra o mal, muitas vezes o homem é contaminado por ele, e de certo modo ele imita seu inimigo. A desconfiança e o ódio ao mal degeneram numa nova forma de mal. A luta gera facilmente um novo mal em razão do estado de pecado da natureza humana. A história dos povos está saturada de um mal provocado pela luta contra ele, quer se trate de uma luta conservadora, quer se trate de uma luta revolucionária. A atitude em relação ao mal não pode comportar o ódio, mas ela necessita ser iluminada (é preciso ser um gentleman, um nobre, mesmo diante do diabo). Satanás se regozija quando inspira sentimentos diabólicos contra ele próprio. Ele triunfa quando empregamos seus próprios meios contra ele. É ele quem inspira aos homens a ideia enganadora de que o mal se combate com o mal. O homem que luta contra o mal se encontra muitas vezes presa de suas armadilhas, que o retêm indefinidamente prisioneiro. Os meios de luta substituem imperceptivelmente os objetivos que se buscava atingir. Aquilo que o homem acredita ser a luta contra o mal se torna, para ele, o próprio bem. O Estado é chamado a limitar as manifestações do mal no mundo, mas os meios que ele emprega facilmente se transformam em mal. Mesmo a moral possui a capacidade de degenerar em seu contrário, extinguindo a vida criadora do espírito. O direito, os costumes, a lei eclesiástica, podem deformar a vida. A obsessão com o mal e a necessidade de lutar contra ele pela imposição e a violência submetem o homem ao pecado e o impedem de se libertar dele. A verdadeira higiene espiritual não consiste em se deixar absorver pelo mundo do mal, mas em se concentrar no bem, no mundo divino, na visão da luz.

 Quando um homem se torna obcecado pela conspiração universal maçônica ou judaica, quando ele vê agentes desse complô por toda parte, ele se suicida espiritualmente, ele deixa de ver o mundo da luz, ele se enche de sentimentos de ódio, de desconfiança e de vingança. Trata-se de uma tendência de espírito estéril, destrutiva. Não se deve ver Satanás por toda parte, abandonando o mundo a ele. Uma acusação contínua ao mal e àqueles que são seus servidores favorece seu desenvolvimento no mundo. Isso foi suficientemente revelado no Evangelho, mas nós persistimos em continuar cegos. É preciso discernir, antes de tudo, o mal e si próprio, e não nos outros, e a autêntica espiritualidade consiste em crer na força do bem, mais do que na força do mal, crer em Deus mais do q eu em Satanás. No mundo, os bons sentimentos desenvolvem a força do bem, enquanto que os maus sentimentos aumentam o montante do mal. Essa verdade sobre a higiene espiritual elementar é desconhecida dos homens. A animosidade contra o mal destrói tanto o mundo espiritual do homem quanto a animosidade contra o bem. O que estamos dizendo não contradiz a atitude implacável que devemos ter em relação ao mal, assim como não contradiz a impossibilidade de pactuar com ele. o erro provém da elaboração e da cristalização do reino do inferno em nome da luta pelo bem. Não podemos lutar contra o mal apenas cortando e exterminando, é preciso conseguir superá-lo e vencê-lo.

 A vitória mais radical sobre o mal é adquirida pela convicção de seu vazio, de seu não-ser, de sua vacuidade. Exagerar suas forças de sedução não constitui um meio positivo de lutar contra ele. a atração do mal é um engano e uma ilusão, e todas as forças do espírito devem se esforçar por dissipar essa ficção. O diabo não possui um talento, ele é enjoativo. O mal é o não-ser; ora, o não ser é o sumo do tédio, do vazio e da impotência, coisa que, aliás, constatamos sempre nos limites extremos de nossa experiência do mal. Quando, lutando contra ele, nós o imaginamos não como sedutor e forte, mas como proibido e temível, não conseguimos ainda a vitória radical e definitiva sobre ele. o mal, quando considerado como forte e sedutor, constitui-se num mal que não pode ser vencido e que permanece invencível. Somente a consciência de sua absoluta inanição e de seu aborrecimento pode triunfar sobre ele e extirpá-lo com sua raiz. Nenhuma paixão má, levada até o limite, contém uma forma de ser. Todo mal consume a si próprio e desmascara sua nulidade em seu desenvolvimento imanente. O mal é o mundo dos fantasmas. Santo Atanásio o Grande desenvolveu essa ideia de modo admirável. O mal é o mal, não porque ele seja proibido, mas porque ele é o não-ser.

 O Antigo Testamento considerava o mal acima de tudo como uma transgressão da lei divina. Mas ele não explicava o porquê de o mal ser o mal, nem sobre o que repousa a oposição entre o bem e o mal. A concepção normativa do bem e do mal não é uma concepção profunda. É preciso compreender o bem e o mal ontologicamente, somente a demonstração imanente de seu não-ser pode nos dar o conhecimento do mal e nos revelar o significado da oposição que existe entre ele e o bem. O mal não pode ser conhecido senão através da experiência de seu conhecimento, na vitória interior obtida sobre ele; somente por meio dessa experiência é possível entrever sua goela escancarada. Quando o homem colhe o fruto da árvore do conhecimento da ciência do bem e do mal, ele segue a via do mal, ele transgride formalmente a vontade divina. Mas nesse caminho, ele aprende a conhecer a nulidade e o vazio do mal, e ele compreende por sua própria experiência o motivo de que ele fosse proibido.

Será possível uma gnose do mal, um conhecimento seu será admissível? O Antigo Testamento, no qual predomina a lei, responde negativamente a essa questão. O mal é um limite, ele não pode ser outra coisa do que uma interdição. Mas o homem, uma vez engajado no caminho do conhecimento, não pode retornar ao estado de ignorância original. Por isso o vazio do mal deve se tornar conhecido, porque precisamos nos convencer de seu não-ser. É nisso que reside a antinomia fundamental que ele comporta.

 O mal é o mal, ele irá queimar no fogo do inferno; não podemos nos reconciliar com ele. É assim que se apresenta a primeira de duas teses. A segunda lhe é antinômica. O mal é o caminho que conduz ao bem, à experiência da liberdade de espírito, à vitória imanente sobre as tentações do não-ser. A primeira tese é de uma limpeza cristalina, e não apresenta nenhum perigo. A segunda é perigosa, e pode se tornar perturbadora. Não conduz o conhecimento do mal à sua justificação?

 Se consideramos o mal como uma necessidade indispensável, que possui um sentido, nós o estamos justificando. Se, ao contrário, ele é um nonsense absoluto que não pode ser explicado de maneira nenhuma, ele é incognoscível e não podemos lhe atribuir um sentido. Como sair dessa dificuldade? E eis aqui mais uma antinomia. Cristo veio ao mundo porque ele jazia no pecado. A Redenção, ou seja, o maior evento da vida universal, que deveria determinar uma nova geração de  homens espirituais, nasceu da existência do mal, pois, se não houvesse mal, não teria havido um Libertador, e a vinda de Cristo não teria acontecido: o Amor celeste não teria se manifestado.

 O mal se coloca, assim, como o móvel e o instigador da vida universal. Sem ele, o estado primitivo do primeiro Adão teria subsistido de século em século, e todas as possibilidades da existência teriam permanecido em estado latente – o novo Adão não teria aparecido. O bem que vence o mal é superior ao bem que precede o mal.

 A dificuldade desse problema jamais pôde ser superada pela consciência teológica, que teme abordar essa questão. Para encontrar uma solução para essa dificuldade, é preciso começar por reconhecê-la, ou seja, por admitir a antinomia do mal para a nossa consciência religiosa. Essa dificuldade não pode ser resolvida pelo conceito e o pensamento racional: ela está ligada ao mistério da liberdade. A antinomia do mal não pode ser resolvida senão pela experiência espiritual. Dostoievsky compreendeu isso de maneira notável. A experiência do mal, a denúncia de sua vacuidade, pode nos levar ao cúmulo do bem. Tendo vencido o mal, eu posso conhecer toda a plenitude da verdade e do bem. A bem dizer, tanto o homem, como povos inteiros e toda a humanidade seguem esse caminho, experimentando o mal e adquirindo o conhecimento da força do bem, da elevação da verdade. o homem aprende a inanidade do mal e a grandeza do bem, não por meio de uma lei formal, nem por uma interdição, mas pelas experiências vividas no caminho da vida. O caminho espiritual experimental é, de resto, o único caminho do conhecimento. Mas que dedução posso extrair disso para meu caminho espiritual? Poderei eu dizer: eu me engajarei no caminho do mal a fim de enriquecer meu conhecimento, a fim de chegar a um bem superior?

 A partir do instante em que eu começo a conceber o mal como o caminho que conduz ao bem, como o método positivo de conhecimento da verdade, estou perdido, vejo-me importante para divulgar suas mentiras, suas trevas e seu vazio. A experiência do mal pode me levar ao bem, mas com a condição de que eu conheça e desmascare suas mentiras, sua nulidade, seu não-ser; ele não pode me enriquecer, senão na medida em que eu o denuncie e negue de modo absoluto como modo de enriquecer meu espírito. Só assim a antinomia do mal encontra solução em minha experiência espiritual. Não é o mal em si que enriquece a vida, pois o não-ser não pode trazer enriquecimento algum, mas é a denúncia imanente, o sofrimento no qual ele se consome, que enriquece, é a tragédia vivida, a luz entrevista em meio as trevas. Toda autossuficiência no mal, toda contemplação do mal que o considera como um caminho que conduz a um estado superior, é uma perda, um movimento em direção ao não-ser que priva o homem da experiência capaz de enriquecê-lo. Conhecer o mal significa conhecer seu não-ser e assim isso não implica justifica-lo. Somente a denúncia implacável e cruel e sua destruição em si próprio podem transformá-lo num caminho que conduza ao bem. Assim, sem temor do paradoxo, somos obrigados a reconhecer que o mal possui um sentido positivo. Esse sentido está ligado à liberdade, sem a qual toda teodiceia seria impossível. Nós nos veríamos obrigados a dizer que a criação divina fracassou. A inocência imposta do paraíso não poderia ser mantida, ela não tinha nenhum valor e não podemos retornar a ela. O homem e o mundo passam por uma prova voluntária, e pelo livre conhecimento se dirigem livremente a Deus, em direção ao Seu Reino.

 O Cristianismo nos ensina acima de tudo a sermos implacáveis em relação ao mal que existe em nós. Mas, ao exterminá-lo, devemos ser indulgentes ara com nosso próximo. Eu não posso exigir o máximo senão de mim mesmo, e não dos outros. Primeiramente devo realizar a força e a beleza do bem em mim, e nunca impor aos demais aquilo que não fui capaz de me obrigar a fazer. O engano das revoluções políticas e sociais consiste em que elas desejam exterminar o mal exterior, mas deixando-o subsistir interiormente. Tanto os revolucionários como os contrarrevolucionários jamais começam por desenraizar o mal em si próprios; eles pretendem extirpá-lo nos outros, nas suas manifestações secundárias e exteriores. Uma atitude revolucionária em relação à vida é uma atitude superficial, sem profundidade. Não existe nada de radical nas revoluções: em grande medida elas não passam de mascaradas, nas quais acontece uma mudança de hábitos. As revoluções triunfam sobre o mal que elas extirpam ao provocar outros.

 As revoluções também apresentam consequências positivas, elas determinam uma nova era, mas aqui o bem nasce não da energia revolucionária, mas da energia pós-revolucionária. Ele é fruto da compreensão da experiência vivida. O mal não pode ser superado senão interior e espiritualmente. A vitória obtida sobre ele está ligada ao mistério da Redenção; ela não pode acontecer senão em Cristo e por Cristo. Triunfamos do mal unicamente comungando com Cristo, cooperando em sua obra, tomando Sua cruz sobre nós. Para quem emprega a violência, o mal se torna invencível.

 Se a doutrina de Tolstoy sobre a não-violência ao mal é falsa, isso acontece unicamente porque ele confundiu duas questões que são muito distintas: a da vitória interior sobre o mal e a dos limites exteriores que é preciso lhe impor. Exteriormente, podemos e devemos limitar as suas manifestações, não podemos admitir que um homem possa matar seu semelhante; mas apenas com isso a fonte interior do mal não se cala, o desejo de morte e de violência não é vencido. Na história do mundo cristão, muito se abusou da resistência ao mal pela força; acreditava-se ser possível vencê-lo pela espada. Isso provinha da confusão entre os dois reinos, o Reino de Deus e o reino de César, e resultava da violação dos limites que deviam separar a Igreja do Estado. O mal não pode ser vencido pelo Estado, o qual pertence ele próprio ao mundo natural, que só existe porque existe o mal, e que frequentemente é quem cria o próprio mal.

 O problema do mal nos conduz a uma última antinomia. O mal é a morte, e a morte consiste na consequência do mal. Extirpar o mal com sua raiz equivale a arrancar o aguilhão da morte. Cristo venceu a morte, e nós devemos aceitar a morte como sendo o caminho que conduz à vida, como um momento interior da vida. É preciso morrer para renascer. A morte é um mal na medida em que ela e uma violência exercida sobre mim pelo mundo natural inferior e exterior, ao qual eu me encontro submetido por meu pecado, pela minha separação em relação à fonte da vida; mas ao aceitar a morte voluntariamente e sem revolta, como consequência inevitável do pecado, eu chego a vencê-la espiritualmente. Ela se torna para mim um momento de mistério interior do espírito. A morte tem um significado diferente interior e espiritualmente, do que exteriormente e como um fato do mundo natural. Cristo, que ignorava todo pecado, aceitou livremente o Gólgt5a e a morte. E eu devo seguir esse caminho; cooperando com a vida e a morte de Cristo eu me torno vitorioso sobre a morte. Interiormente, do ponto de vista espiritual e místico, a morte não existe, ela é apenas meu caminho em direção à vida, o caminho da crucificação de minha vida pecadora, o caminho que deve me conduzir à vida eterna. Ao comungar com a fonte original da vida, eu triunfo sobre as consequências destrutivas da morte. Para a consciência cristã, a morte não é unicamente um mal, ela é também um bem. Atroz seria uma vida infinita nesse mundo pecador e mentiroso, nessa carne. Semelhante existência seria a morte espiritual.

 A transfiguração de nossa natureza e a ressurreição para a vida eterna, para a vida em Deus, é o limite extremo ao qual aspira a vontade orientada pela o bem, a verdade e a beleza. A transfiguração da vida do mundo em vida eterna é o objetivo final. O caminho que leva até aí passa pela livre aceitação da morte, pela cruz, pelo sofrimento. Cristo foi crucificado sobre o abismo sombrio no qual o ser e o não-ser se confundem. E a luz que emana do Crucificado é o raio que brilha na noite. É essa luz que ilumina a obscuridade do ser; é ela a vitória sobre as trevas do não-ser.



[1] Dostoievsky, Os Irmãos Karamazov, tomo I, capítulo III.

[2] João 3: 17.

[3] João 12: 47.

[4] João 3: 16.

[5] Cf. A. Boukhareff - Des besoins spirituels contemporains de la pensée et de la vie.

[6] A ausência de lei ou de regra, o desvio das leis naturais; anarquia, desorganização.



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