sexta-feira, 18 de agosto de 2017

João Damasceno - A Fé Ortodoxa - Livro III

João Damasceno - A Fé Ortodoxa - Livro III




45 (III, 1)

O plano de Deus, a solicitude para com todos, e nossa salvação

Eis, portanto, a manobra com a qual o demônio, príncipe do mal, seduziu o homem. Este, não tendo guardado o preceito do Criador, havia sido privado da graça e despojado da liberdade de se aproximar de Deus[1] com segurança. Ele havia sido protegido das agruras de uma existência penosa (esse era o significado das folhas de figueira[2]) e envolvido pela necrose, também chamada de mortalidade e de peso da carne (pois esse era o significado das peles mortas). Ele fora expulso do paraíso, segundo o justo julgamento de Deus[3], condenado à morte e submetido à corrupção. Ora, o Deus compassivo que lhe dera existência e lhe concedera o favor de uma existência feliz, não o desdenhou em absoluto; ao contrário, ele o educou de muitas maneiras e o chamou a se converter pelo temor[4] e o medo, pelo dilúvio de água[5] e a destruição quase total de todo o gênero humano, pela confusão e a divisão das línguas[6], pela intervenção dos anjos[7], pelo abrasamento das cidades[8], pelas aparições divinas em imagens, pelas guerras, as vitórias, as derrotas, pelos sinais, os prodígios e os vários milagres[9], pela lei e pelos profetas. Todos esses meios visavam a supressão do pecado que, tendo se espalhado sob diversas formas, sujeitara o homem e cumulara sua vida com toda espécie de males, e visavam também o retorno do homem a uma vida feliz. Como fora pelo pecado que a morte entrara no mundo[10], como um animal selvagem e feroz, devastando a vida humana, era preciso que, inversamente, fosse sem pecado aquele que deveria operar o resgate, e que ele não estivesse em dívida com a morte por causa do pecado; seria preciso, além disso, que a natureza fosse fortificada, renovada, instruída pela ação, informada do caminho da virtude, que afasta da corrupção e conduz passo a passo até a vida eterna. Finalmente se manifestou o oceano de amor de Deus pelo homem. O criador e Senhor em pessoa assumiu a luta por sua criatura e se tornou pela ação seu instituidor. E, como foi pela esperança de se igualar a Deus[11] que o inimigo seduziu o homem, este foi seduzido por uma vestimenta de carne, que a seguir lhe mostrou a bondade, a sabedoria, a justiça e o poder de Deus. A bondade, porque ele não deu as costas à fraqueza de sua própria obra, mas foi movido de compaixão por aquele que caíra e lhe estendeu a mão. A justiça, porque ele não venceu o tirano com um outro que não o homem, nem arrancou com violência esse homem da morte, mas sendo bom e justo fez novamente vencedor aquele que outrora tinha sido escravizado pela morte; ele salvou o semelhante com o semelhante, coisa que era impossível. A sabedoria, porque ele encontrou exatamente nessa impossibilidade a solução mais elegante. Pois segundo a pura expressão da vontade de Deus Pai, o Filho unigênito, Verbo de Deus e Deus, aquele que estava no seio do Pai[12], consubstancial ao Pai e ao Espírito Santo, anterior aos séculos e sem começo, que estava junto do Pai desde o começo, que era Deus[13], que estava na condição de Deus[14], inclinou os céus[15] para descer à terra, o que significa que, de modo sem baixeza ele rebaixou sua altura, distante de toda baixeza; com uma condescendência indizível e incompreensível, ele desceu ao nível de seus servidores (pois é esse o sentido de sua descida). Deus perfeito, ele se tornou homem perfeito e cumpriu a novidade mais nova de todas – de fato, a única coisa nova sob o sol[16] – por meio da qual ele manifestou o poder sem limites de Deus. Pois o que pode haver de maior, do que Deus se fazer homem? E o Verbo se fez carne[17] sem alteração do Espírito Santo e de Maria sempre Virgem, Mãe de Deus, e o único amigo dos homens assumiu a função de mediador entre Deus e os homens[18], concebido no seio imaculado da Virgem, não pela vontade, o desejo ou a conjunção humana[19], ou por uma geração associada ao prazer, mas a partir do Espírito Santo e do primeiro nascimento de Adão. E ele se tornou obediente ao Pai, reparando nossa desobediência[20] por meio daquilo que ele assumiu semelhantemente a nós e saído de nós, tornando-se para nós um modelo de obediência fora da qual é impossível alcançar a salvação.


46 (III, 2)

O modo de concepção de Deus o Verbo e de sua divina encarnação

Com efeito, um anjo do Senhor foi enviado à santa virgem[21], que descendia da raça de Davi. Pois é notório que o Senhor surgiu de Judá, tribo da qual ninguém serviu o altar[22], como disse o divino Apóstolo. Mas falaremos disso mais tarde com mais precisão. Para lhe trazer a boa nova. Ele lhe disse: “Salve, cheia de graça, o Senhor está contigo”. Ela ficou perturbada com essas palavras, e o anjo lhe disse: “Não tenhas medo, Maria, pois tu encontraste graça perante o Senhor e darás um filho ao mundo a quem porás o nome de Jesus. Pois é ele quem salvará teu povo dos seus pecados”. É por isso que Jesus se traduz como “salvador”. Mas Maria permaneceu embaraçada: “Como isso será possível para mim, que não conheço homem?”. O anjo lhe respondeu: “O Espírito Santo descerá sobre ti e o poder do Altíssimo te colocará sob sua sombra. Por isso o ser que nascerá será chamado de Filho de Deus”. Então ela lhe disse: “Eis a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a Sua vontade”.

Assim, de acordo com o assentimento da Virgem, o Espírito Santo entrou nela segundo a palavra do Senhor dita pelo anjo, purificando-a e dando a ela a capacidade de receber a divindade do Verbo e de lhe dar nascimento. Foi a partir de então que a tomaram sob sua sombra a sabedoria e o poder anipostático do Deus altíssimo, o Filho de Deus consubstancial ao Pai, como uma semente divina; e ele compôs por si mesmo a partir do sangue puro e sem mácula de Maria uma carne animada por uma alma racional e intelectiva; ele assumiu as primícias da massa [material] humana[23], ele, o Verbo que se tornou hipóstase pela carne. De sorte que ao mesmo tempo existiu ali carne e carne de Deus Verbo, ao mesmo tempo existiu ali a carne animada por uma alma racional e intelectiva e também a carne também animada, racional e intelectiva do Deus Verbo. Assim é que não falamos de um homem divinizado, mas de Deus feito homem. Pois sendo ele Deus perfeito por natureza, tornou-se, ele próprio, homem perfeito por natureza, sem ter sofrido mudança quanto à natureza, sem que tampouco a economia tenha sido imaginária. Ele se uniu sendo a hipóstase, sem confusão, sem alteração e sem divisão, à carne tomada da santa Virgem, carne animada de modo racional e intelectivo, e que lhe emprestou sua existência; isso não transformou a natureza de sua divindade na essência da carne, nem a essência de sua carne na natureza de sua divindade; tampouco foi a partir da natureza divina e da natureza humana que ele assumiu uma única natureza composta.



47 (III, 3)
Das duas naturezas

Com efeito, é sem mudança nem alteração que as naturezas se uniram uma à outra, sem que a natureza divina tivesse sido separada de sua simplicidade específica, e sem que a natureza humana tivesse se transformado em natureza divina ou tivesse retornado à inexistência, e sem que das duas naturezas houvesse resultado uma natureza única composta. Com efeito, uma natureza composta não poderia ser consubstancial a nenhuma das duas substâncias das quais ela se compusesse, porque a partir de existências diferentes ela teria sido constituída como algo diferente. Por exemplo, o corpo composto de quatro elementos não é consubstancial ao fogo, nem ao ar, à água ou à terra, assim como não é consubstancial a algum dentre eles. Então, se – como dizem os hereges – Cristo, depois da união, possuísse uma natureza única composta, ele teria se transformado de uma natureza simples em um composto; ele já não seria consubstancial ao Pai, cuja natureza é simples, nem à sua mãe, que não era composta de divindade e de humanidade; ele tampouco estaria na divindade, nem na humanidade, e não poderíamos chama-lo nem de Deus, nem de homem, mas apenas de Cristo. E Cristo não seria o nome de sua hipóstase, mas – segundo aquelas pessoas – da natureza.

Quanto a nós, professamos que Cristo não é uma natureza única composta, nem é um outro ser a partir de duas outras, como o homem feito de uma alma e de um corpo, ou um corpo feito de quatro elementos. Não, a partir de outras coisas ele é essas mesmas coisas: a partir da divindade e da humanidade, nós confessamos que ele é realmente e dizemos que ele é o mesmo, Deus perfeito e homem perfeito, a partir de duas naturezas e em duas naturezas. Quant ao nome de Cristo, dizemos que ele pertence à hipóstase, e não de modo unívoco, mas como significativo das duas naturezas. Com efeito, ele ungiu a si mesmo, ungindo o corpo enquanto Deus de sua divindade, e ungido enquanto homem; pois ele é, ele próprio, tanto uma coisa como outra. E a divindade é unção para a humanidade. Com efeito, se Cristo fosse de uma natureza única composta e ao mesmo tempo consubstancial ao Pai, o Pai deveria ser composto e consubstancial à carne, o que é absurdo e perfeitamente blasfemo.

Ademais, como poderia uma natureza única ser capaz de receber diferenças substanciais opostas? Como poderia a mesma natureza ser igualmente criada e incriada, mortal e imortal, circunscrita e incircunscrita?

Além disso, se, mesmo atribuindo a Cristo uma natureza única eles dizem que esta é simples, ou bem eles confessam puramente Deus e reduzem a Encarnação a uma ilusão, ou bem eles reconhecem um homem sem mais, segundo a ideia de Nestorius. Onde está então a perfeição na divindade e a perfeição na humanidade? Em que momento eles afirmariam que Cristo possui duas naturezas, se depois da união ele possuir uma única natureza composta? Com efeito, penso que seja bastante evidente que, antes da união, Cristo possua uma só natureza.

A bem dizer, o erro dos hereges consiste em identificar a natureza com a hipóstase. Quando atribuímos ao homem uma natureza única, é preciso saber, nós o dizemos fazendo uma abstração do conceito de alma e corpo. Com efeito, é impossível atribuir uma natureza única à alma e ao corpo quando os comparamos um ao outro. Mas como as hipóstases humanas são inumeráveis, e como todas derivam do mesmo conceito quanto à natureza (de fato, são todas compostas de uma alma e um corpo, todas participam da natureza da alma e possuem a essência do corpo), nós tratamos como uma natureza única a espécie comum dessas inumeráveis hipóstases diferentes, embora certamente cada hipóstase possua duas naturezas e se classifique em duas naturezas, ou seja, a da alma e a do corpo.

No caso de nosso Senhor Jesus Cristo, é impossível admitir uma espécie comum: nunca houve, não há nem haverá outro Cristo a partir da divindade e da humanidade. Daí a impossibilidade de falar de uma natureza única no caso de nosso Senhor Jesus Cristo. É por isso que nós declaramos que a partir de duas naturezas perfeitas, a divina e a humana, a união se produziu não em virtude de uma mistura, de uma confusão ou de uma mescla, como afirma Dióscoro, maldito em Deus, Severo e sua coorte execrável. Tampouco aconteceu uma união de personagens, ou uma relação, ou segundo a dignidade, ou segundo a identidade de vontades, ou pela identidade de posição, homonímia, ou ao bel prazer, como afirmam o odioso Nestorius, Diódoro, Teodoro de Mopsueste e sua turma demoníaca. Foi ao contrário uma união por composição ou segundo a hipóstase, sem mudança, sem confusão, sem alteração, sem divisão, sem interrupção. E em duas naturezas perfeitamente constituídas nós confessamos uma única hipóstase do Filho de Deus mesmo em sua encarnação, em tudo idêntico na hipóstase de sua divindade e de sua humanidade, confessando também que nele se mantém, depois da união, as duas naturezas; não que coloquemos cada uma à parte de seu lado: elas estão unidas uma à outra em uma única hipóstase composta. Pois nós chamamos a essa união “substancial”, ou seja, real e não imaginária; substancial, não no sentido em que duas naturezas teriam produzido uma única natureza composta, mas na medida em que, unidas uma à outra verdadeiramente, elas resultam numa única hipóstase composta do Filho de Deus. Ademais, nós definimos que sua diferença substancial está salvaguardada: o criado permanece criado e o incriado permanece incriado, o mortal, mortal, e o imortal, imortal, o circunscrito permanece circunscrito e o incircunscrito, incircunscrito, o visível, visível e o invisível, invisível. “Um resplandeceu por seus milagres, outro sucumbiu por suas injúrias”.

O Verbo se apropriou das propriedades humanas (as realidades de sua carne sagrada a ele pertencem) e comunicou suas propriedades segundo o modo de troca graças à pericorese[24] das partes uma na outra e à união segundo a hipóstase. E também porque foi um e o mesmo quem operou tantos os gestos divinos como os humanos “em cada uma das duas formas com a participação da outra[25]”. É por isso que dizemos ao mesmo tempo que o Senhor da glória foi crucificado[26], embora sua natureza divina não tenha sofrido, e continuamos de acordo para dizer que o Filho do homem estava no céu desde antes de sua Paixão[27], como o próprio Senhor o disse. Com efeito, foi um e mesmo Senhor da glória aquele que se tornou por natureza e em verdade o Filho do homem, ou seja, um homem, e nele nós reconhecemos milagres e sofrimentos, mesmo que ele operasse os milagres sob um aspecto e suportasse os sofrimentos sob outro. Pois, como sabemos, assim como sua hipóstase é única, a diferença substancial das naturezas permanece também salvaguardada. Ora, como poderia a diferença ser salvaguardada se aquilo que contém a diferença mútua não o fosse também? Pois uma diferença é diferença de coisas diferentes. É, portanto, pela razão segundo a qual as naturezas de Cristo diferem uma da outra, ou seja, em razão de sua essência, que afirmamos seu contato simultâneo com os extremos, com o Pai e o Espírito segundo a divindade, e com sua mãe e conosco segundo a humanidade; com efeito, o mesmo é consubstancial ao Pai e ao Espírito segundo a divindade e a sua mãe e a todos os homens segundo a humanidade. Mas, pela razão de que coloca em contatos suas naturezas, dizemos que ele difere segundo ela do Pai e do Espírito, como de sua mãe e do resto dos homens. Pois suas naturezas estão em contato por hipóstase, uma vez que possuem uma única hipóstase composta, segundo a qual ele é diferente do Pai e do Espírito e diferente de sua mãe e de nós.

47b

Mais do que isso, as partes de toda natureza têm em comum a produção do não-ser ao ser, com a finalidade da plena produção do todo. E é possível que os homocronos propiciem a realização de uma natureza composta única, porque receberam de parte do criador uma definição e uma lei natural tais que, pela lei natural, os semelhantes se sucedem a partir de semelhantes hereditariamente. Mas no caso das naturezas unidas do Senhor, uma é sem começo e fora do tempo, a outra teve um começo e estava subordinada ao tempo; e uma espécie não foi produzida pela constituição do todo (porque Deus não terminou suas obras no sétimo dia), nem tampouco suas duas naturezas foram unidas por um laço de natureza, mas de uma maneira extraordinária e maravilhosa. Mas o extraordinário e o maravilhoso não podem chegar a constituir uma natureza: pois nós não dizemos que a natureza da sarça é de ser posta junto ao fogo sem queimar, assim como não dizemos que a natureza do homem é capaz de se elevar quase que até o céu, nem que a natureza do corpo humano é de se converter em orvalho nomeio do fogo, mas dizemos que isso é extraordinário a propósito de uma só hipóstase. Ao contrário, dizemos que a encarnação do Senhor em uma só hipóstase dentre as hipóstases da divindade não foi produzida por uma lei natural, mas que a união das naturezas foi produzida por uma economia maravilhosa; tampouco que ela foi produzida no limite de uma natureza, no sentido de que um Cristo produziria um cristo e que uma espécie de cristos se constituiria, compreendendo numerosas hipóstases, mas falamos de uma única hipóstase – composta por duas naturezas e em duas naturezas – e de duas naturezas, cada qual mantendo, mesmo após a união, sua própria definição e sua própria lei e sua diferença para com as outras. No caso do homem, conforme consideremos de um lado a diferença recíproca entre alma e corpo, falamos de duas naturezas; mas por outro lado, conforme não consideremos a diferença natural das hipóstases a partir de uma hipóstase única, dizemos de um lado que pertencem a uma natureza única as diferenças específicas segundo a hipóstase, e de outro que pertencem a uma hipóstase única as diferenças segundo a essência e as características comuns segundo a hipóstase. Portanto as hipóstases de espécies diferentes não podem ser comparadas ou distinguidas em relação à natureza. E, assim como é impossível que aquilo que é diferente por uma diferença hipostática pertença a uma só hipóstase, também é impossível que aquilo que é diferente por uma diferença de natureza pertença a uma natureza única.


48 (III, 4)
Sobre o modo de troca

Que a essência é uma coisa e a hipóstase é outra, já o afirmamos em muitas ocasiões, e também que a essência designa a forma comum que pertence às hipóstases de mesma espécie, como Deus ou como o homem, enquanto que a hipóstase designa um indivíduo, tal como Pai, Filho, Espírito Santo, Pedro, Paulo. Devemos ter em mente que os termos divindade e humanidade exprimem essências, também chamadas de naturezas, e que Deus e homem se aplicam também à essência, quando dizemos: Deus é uma essência impalpável, Deus é único. Mas nós também os empregamos a propósito das hipóstases, pois o particular pode receber o nome do geral. Assim, quando a Escritura diz: “Por isso Deus, teu Pai, te consagrou[28]” (aqui se designa o Pai e o Filho), ou ainda quando ela diz: “Houve uma vez um homem no país de Hus[29]” (apenas Jó é mencionado).

Por conseguinte, no caso de nosso Senhor Jesus Cristo, como sabemos que são duas as suas naturezas, enquanto que uma só hipóstase é composta pelas duas naturezas, quando de um lado consideramos as naturezas falamos de divindade e de humanidade, e quando, de outro, consideramos a hipóstase composta de duas naturezas, tanto, pelo conjunto, chamamos de Cristo Deus e homem ao mesmo tempo e Deus encarnado, tanto, em razão de uma só de suas partes, o chamamos apenas Deus e Filho de Deus e somente homem e Filho do homem, seja unicamente em consideração pela sua elevação, seja unicamente em consideração de seu rebaixamento. Pois único é aquele que é igualmente isto e aquilo, isto porque ele saiu do Pai eternamente e sem causa, e aquilo porque ele se tornou posteriormente devido ao seu amor pelos homens.

Quando falamos da divindade nós não lhe atribuímos as propriedades da humanidade (com efeito, por exemplo, não dizemos que ela é passional e criada); tampouco atribuímos à carne, ou seja, à humanidade, as propriedades da divindade (não dizemos que a carne – a humanidade – é incriada). Mas no que diz respeito à hipóstase, quer lhe demos um nome tirado do conjunto, quer um nome proveniente de uma de suas partes, nós lhe atribuímos as propriedades das duas naturezas. Pois, de fato, Cristo, ou seja, o conjunto das duas, é chamado a um tempo Deus e homem, criado e incriado, impassível e sujeito à dor e à alegria. E quando, a partir de uma de suas partes, o chamamos de Filho de Deus e Deus, ele recebe as propriedades de sua natureza conjunta, ou seja, a carne: nós o chamamos de Deus sofredor, Senhor da glória[30] crucificado, não enquanto Deus, mas na medida em que esse Deus é também homem. E quando o chamamos homem e Filho do homem, ele recebe as propriedades e as glórias da essência divina: nós o chamamos de criança nascida antes dos séculos e homem sem começo, não enquanto criança e homem, mas na medida em que, Deus antes dos séculos, ele se tornou criança nos últimos tempos. Esse é o modo de troca: cada natureza transfere para a outra suas propriedades, por causa da identidade da hipóstase e de sua mútua pericorese. É aplicando esse princípio que podemos dizer de Cristo: “Deus apareceu sobre a terra[31]”, e: esse homem é incriado, impassível, incircunscrito.


49 (III, 5)
O número das naturezas

Assim como, no caso da divindade, confessamos uma natureza única, afirmamos também que nela existem três hipóstases; e tudo o que se refere à natureza e à essência, afirmamos que é simples, embora reconhecendo a diferença das hipóstases, que reside apenas nas suas três propriedades, a do Pai, de ser sem causa, a do Filho, de ser causado, e a o Espírito, de proceder; sabemos, por outro lado, que essas hipóstases são indissociáveis e inseparáveis uma da outra, unindo-se e penetrando-se mutuamente sem confusão (porque elas são três, embora unidas), mas distintas e sem divisão. Com efeito, cada qual subsiste por si só, ou, dito de outra forma, constitui uma hipóstase perfeita e possui sua própria propriedade, ou seu modo de existência distinto; e não obstante elas são unidas pela essência e pelas propriedades da natureza; e como elas não se desassociam nem se separam da hipóstase do Pai, elas são chamadas e são de fato um só Deus. Do mesmo modo, no caso da economia da salvação, divina, indizível, que ultrapassa toda inteligência e compreensão, de um da santa Trindade, Deus o Verbo, nosso Senhor Jesus Cristo, confessamos de uma parte duas naturezas, divina e humana, que se encontram e se unem segundo a hipóstase, e, de outra parte, uma única hipóstase levada à sua perfeição, composta a partir de duas naturezas. Por outro lado afirmamos que as duas naturezas permanecem salvaguardadas mesmo depois de sua união na hipóstase única e composta, ou seja, no Cristo único, e que elas existem realmente, elas e suas propriedades naturais, unidas entretanto sem confusão e diferindo sem divisão, e que elas se deixam enumerar. E, assim como as três hipóstases da santa Trindade são unidas sem confusão, distintas sem divisão e passíveis de enumeração, também o número não provoca entre elas nem separação, nem divisão, nem distanciamento, nem alteração, nem ruptura (nós reconhecemos de fato o Pai, o Filho e o Espírito santo como um só Deus), também as naturezas de Cristo, embora unidas, o são sem confusão; elas se encontram entre si em pericorese, mas nem por isso admitem mudança e transformação. Cada natureza conserva inalterada sua propriedade natural. Isso faz com elas possam ser enumeradas, mas que essa enumeração não introduza aí divisão. Pois Cristo é único, perfeito em sua divindade e em sua humanidade. Com efeito, o número não é em si um fator de separação ou de unidade, mas a expressão da quantidades de objetos enumerados, estejam estes unidos ou divididos. Unidos, como existem cinquenta pedras num muro; divididos, como existem cinquenta pedras nessa planície; unidos, como existem duas naturezas numa tocha, a da madeira e a do fogo; divididas, visto que a natureza da madeira é diferente da do fogo; existe outro modo de as unir e as dividir, que não o número. Da mesma forma, portanto, que é impossível dizer que as três hipóstases da divindade, embora unidas entre si, são uma só hipóstase, porque não se trata de operar uma confusão ou uma negação das hipóstases, também é impossível dizer que as duas naturezas de Cristo, unidas que são segundo a hipóstase, são uma só natureza; e isso, para não operar a negação e a confusão de sua diferença.


50 (III, 6)
Toda a natureza divina é unida numa só de suas hipóstases a toda a natureza humana, e não uma parte a uma parte.

As qualidades comuns e universais são afirmadas em seus sujeitos parciais. Por conseguinte, a essência é um elemento comum, e a hipóstase é um elemento parcial. Parcial, não no sentido de que ela possuiria uma parte da natureza mas não possuiria outra, mas parcial do ponto de vista do número, enquanto indivíduo. Pois é pelo número, não pela natureza, que as hipóstases são ditas diferentes. A essência é afirmada da hipóstase porque em cada uma das hipóstases de mesma espécie a essência é perfeita. É também por isso que as hipóstases diferem umas das outras não segundo a essência, mas segundo os acidentes, que são suas propriedades características, mas da hipóstase, não da natureza; de fato, definimos a hipóstase como uma essência acompanhada de acidente. De tal forma que a hipóstase possui o comum em companhia do particular e que a essência, por sua vez, não existe por si mesma, mas se deixa entrever nas hipóstases. Quando uma das hipóstases sofre, diz-se que toda a essência da qual essa hipóstase depende sofre numa só de suas hipóstases. De resto, não há nenhuma necessidade de que as hipóstases de mesma espécie sofram com a hipóstase que é vítima do sofrimento.

Assim é que confessamos que a natureza divina em sua integralidade está perfeitamente em cada uma de suas hipóstases: integralmente no Pai, integralmente no Filho, integralmente no Espírito Santo. É por isso que o Pai é perfeitamente Deus, o Filho é perfeitamente Deus e o Espírito Santo é perfeitamente Deus. E assim também dizemos, aquando da encarnação de Deus Verbo – que é um da santa Trindade –, que a natureza da divindade em sua totalidade e em sua integralidade se uniu em uma das suas hipóstases à natureza humana em sua totalidade e não parte por parte. Da mesma forma o divino Apóstolo disse que “nele toda a plenitude da divindade habita corporalmente[32]”, ou seja, em sua carne; e seu discípulo, Denis, que trazia Deus em si, poderoso nas coisas divinas, disse que “ele comunicou-se totalmente a nós em uma de suas hipóstases”. É verdade que nada nos impede de dizer que as hipóstases da santa divindade estão todas as três unidas segundo a hipóstase a todas as hipóstases da humanidade. Pois o Pai e o Espírito Santo não participam da encarnação do Deus Verbo sob nenhuma forma senão da benevolência e da vontade. Por outro lado, dizemos que a toda natureza humana está unida toda a essência da divindade. Pois nada do que foi colocado em nossa natureza por Deus o Verbo quando, no início, ele nos modelou, foi deixado de lado por ele; não, a tudo ele assumiu, corpo, alma intelectiva e racional, suas propriedades (um animal que não participasse de todas elas não seria um homem); ele inteiro assumiu-me por inteiro, um ser inteiro se uniu a um ser inteiro a fim de que a salvação fosse livremente concedida ao ser inteiro. “Pois o que não é assumido não pode ser curado[33]”.

De resto, o Verbo de Deus se uniu a uma carne por meio de um intelecto que fez a mediação entre a pureza de Deus e a pesandez da carne. O intelecto, o elemento mais puro da alma, constitui com efeito um guia para a alma e para a carne; mas Deus é um guia para o intelecto. Quando cede à pressão do melhor, o intelecto manifesta sua qualidade de guia. Ele é vencido pelo melhor e então o segue, e com isso se cumpre o desígnio da vontade divina.

O intelecto se tornou o lugar da divindade que se uniu a ele segundo a hipóstase, e, da mesma forma, para a carne; não existiu coabitação, como imaginaram erradamente os malditos hereges; para eles, “uma medida não pode conter duas medidas”, o que equivale a julgar em termos materiais as realidades espirituais.  Como seria possível dizer que Cristo é Deus perfeito e homem perfeito, consubstancial ao Pai e a nós, se nele uma parte da natureza divina estivesse unida a uma parte da natureza humana?

Por outro lado dizemos que nossa natureza foi ressuscitada dos mortos, elevada e instalada à direita do Pai, não na medida em que todas as hipóstases humanas igualmente se elevam e se assentam à direita do Pai, mas porque toda a natureza está contida na hipóstase de Cristo. Assim é que o divino Apóstolo disse: “ele nos ressuscitou e fez com que nos assentássemos em Cristo[34]”.

Nós afirmamos ainda que a união se fez a partir das essências comuns: pois toda essência é comum a todas as hipóstases que ela abarca, e não se poderia encontrar uma natureza, ou uma essência, que fosse parcial e particular, pois seríamos obrigados a dizer que as mesmas hipóstases seriam ao mesmo tempo consubstanciais e heterossubstanciais, que a santa Trindade seria ao mesmo tempo consubstancial e heterossubstancial segundo a divindade. É, portanto, a mesma natureza que consideramos em cada uma das hipóstases. E quando, de acordo com os bem-aventurados Atanásio e Cirilo, dizemos que a natureza do Verbo se encarnou, entendemos que a divindade se uniu à carne. Por conseguinte, não podemos dizer: a natureza do Verbo sofreu (porque nele a divindade não sofreu), mas dizemos que a natureza humana sofreu em Cristo, sem levar em conta todas as hipóstases humanas, e confessamos que Cristo sofreu pela natureza humana. De tal maneira que, falando da natureza do Verbo, designamos o próprio Verbo. E o Verbo possui tanto o comum da essência como o conjunto dos acidentes da hipóstase.


51 (III, 7)
Da hipóstase única composta do Deus Verbo

Nós afirmamos uma preexistência intemporal e eterna da hipóstase divina de Deus o Verbo, hipóstase simples, sem composição, incriada, incorpórea, invisível, impalpável, impossível de ser circunscrita, possuindo tudo o que possui o Pai na medida em que é consubstancial a ele, mas diferindo do Pai pelo modo e a relação de geração; ela é perfeita e jamais deixa a hipóstase do Pai; mas nos tempos últimos, sem se afastar do seio do Pai (pois este é impossível de circunscrever), o Verbo habitou as entranhas da santa Virgem, sem que tenha havido ali semente, de maneira incompreensível, como somente ele o sabe, e em sua hipóstase mesmo, anterior à eternidade, ele fez subsistir para si uma carne extraída da santa virgem.

Certamente ele permaneceu em tudo e acima de tudo, mesmo quando ele se encontrava nas entranhas da santa mãe de Deus; mas, pela operação da encarnação, ele estava nela. Ele se encarnou, por conseguinte, a partir dela, tomando as primícias[35] de nossa massa, uma carne animada por uma alma racional e intelectiva. Dessa maneira, a própria hipóstase de Deus o Verbo fez a função de hipóstase da carne e a hipóstase anteriormente simples do Verbo se tornou composta, mas composta por duas naturezas completas, divindade e humanidade; ela trazia em si a propriedade característica e separativa da divina filiação de Deus Pai, pela qual ela se distingue do Pai e do Espírito, assim como as propriedades características e separativas pelas quais ela difere de sua mãe e do resto dos homens. Ela trazia em si também as propriedades da natureza divina, pela qual ela estava unida ao Pai e ao Espírito Santo, bem como as notas da natureza humana, pela qual ela estava unida à sua mãe e a nós. Ademais, ela difere do Pai e o Espírito, de sua mãe e de nós pelo fato de que o mesmo existe simultaneamente como Deus e como homem. Com efeito, é nisso que reconhecemos a mais singular das propriedades da hipóstase de Cristo.

É por isso que nós o confessamos como Filho único de Deus, mesmo depois da encarnação, e Filho do homem, ele próprio e único Cristo, único Senhor, único Filho unigênito e Verbo de Deus, Jesus, nosso Senhor. Nós veneramos seus dois nascimentos, um do Pai antes de todos os séculos, que ultrapassa toda causalidade, razão, tempo e natureza, e o outro nos tempos últimos, para nós e tal como o nosso, mas ultrapassando o nosso. Para nós, para que fosse para nossa salvação, tal como o nosso, porque ele se tornou homem nascido de uma mulher e com uma materialidade temporal, mas acima do nosso, porque ele não proveio de uma semente, mas do Espírito Santo e da materialidade da Santa Virgem, que saiu fora da norma. Nós não o proclamamos apenas Deus, despojado dessa humanidade que é a nossa, nem tampouco apenas homem, desnudando-o de sua divindade, nem um mais do que o outro, mas um só e mesmo, a um tempo Deus e inteiramente homem, Deus perfeito e homem perfeito, inteiramente Deus e inteiramente homem, sendo inteiramente o mesmo Deus em sua carne e inteiramente homem em sua divindade supra divina. Denominando-o Deus perfeito e homem perfeito, nós mostramos a plenitude e a permanência das naturezas; chamando-o inteiramente Deus e inteiramente homem nos indicamos o caráter unificado e indivisível da hipóstase.

E nós confessamos “uma única natureza encarnada de Deus o Verbo” querendo com isso dizer a essência da carne, à maneira do bem-aventurado Cirilo, por meio do termo “encarnado”. O Verbo se encarnou, por conseguinte, mas não se separou de sua própria imaterialidade, e ele encarnou-se por inteiro e por inteiro escapou a toda circunscrição. Ele diminuiu corporalmente e se contraiu, e divinamente não se tornou circunscrito, sem que sua carne tenha tido que se desdobrar do mesmo modo que sua incircunscritível divindade.

Ele é assim inteiramente Deus perfeito, mas nem tudo nele é Deus, pois ele não é unicamente Deus, mas também homem; ele é inteiramente homem, mas nem tudo nele é homem, pois ele não é apenas homem, mas também Deus. O termo “inteiramente” no neutro apresenta a natureza, no masculino a hipóstase, de modo a que no neutro ele provém da natureza e no masculino, da hipóstase.

De resto, é preciso ter em mente que ao afirmarmos a copenetração das naturezas do Senhor uma em relação à outra, estamos conscientes que essa copenetração extrai sua origem da natureza divina. Com efeito, essa passa por sua própria vontade através de tudo e a penetra, enquanto que nada passa através dela. Ela comunica à carne seus próprios privilégios, enquanto permanece impassível e se mantém separada das paixões da carne.  Pois se o sol, ao mesmo tempo em que nos transmite suas próprias operações, se mantém afastado de nós, quanto mais o criador e Senhor do sol!


51b

Pois o Verbo não sofreu paixões quando se fez carne – como poderia sofrer paixões aquele que por natureza é impassível? – assim como o simples não sofreu alteração quando se tornou composto. Com efeito, a mudança é uma paixão e aquilo que não está submetido à paixão é absolutamente imutável. Portanto, quando se fez carne, o Verbo não sofreu paixão: sua natureza não se alterou, não recebeu um aporte do exterior, assim como não se alterou o caráter próprio de sua hipóstase, ou seja, sua qualidade de Filho: ele permaneceu como Filho de Deus mesmo depois de ter se tornado Filho do homem. Ele não sofreu paixão, mas agiu quando criou para si mesmo uma carne animada por uma alma racional e espiritual, quando entregou a si próprio a esta como hipóstase e a fez subsistir em si mesmo.

Devemos saber, a respeito da combustão, que nela é preciso considerar duas coisas. Aquilo que queima pegou fogo, podemos dizer num primeiro sentido: o ferro ou a madeira, por exemplo, se os colocamos num fogo que foi aceso previamente, recebe o fogo que não existia ainda em si e se torna um suporte para este. Com efeito, dentro da própria madeira, que possuía existência e substância, o fogo recebe sua substância de um fogo preexistente. Assim, a hipóstase do ferro e a hipóstase do fogo que se revela nele se tornam uma só hipóstase, e o mesmo acontece com a madeira e o fogo que nela se abriga. Pois o fogo que está na madeira não subsiste por si mesmo, mas a madeira foi causa da hipóstase, bem como da existência e da constituição parcialmente separada do restante do fogo. Assim, não existe senão uma só hipóstase da madeira e do fogo que nela se encontra, sendo a madeira a primeira e o fogo o segundo. Com efeito, a hipóstase da madeira, que existia primeiro, se torna também a do fogo. Num segundo sentido falamos de combustão porque a madeira inflamada recebe a energia do fogo: o mais sutil faz com que o mais denso participe de sua própria energia. Portanto, no caso da combustão, a madeira é o que é inflamado e falamos da combustão da madeira e não da “madeirização” [da “materialização”] do fogo. Com efeito, a madeira preexiste e se torna em seguida uma hipóstase para o fogo, recebendo deste a energia.

Mas no caso de nosso Senhor Jesus Cristo não é isso que acontece, mas falamos em encarnação do Verbo porque o Verbo fez para si uma hipóstase da carne. Pois a hipóstase do Verbo preexistia e foi nela que a carne deveria subsistir. Por outro lado, falamos em deificação da carne. Esta participava das propriedades da divindade, mas a divindade não participava das paixões da carne. Com efeito, por intermédio da carne, a divindade operou como o fogo por intermédio da madeira, mas não a carne por intermédio do Verbo. Por conseguinte o Verbo, ao se fazer carne, não sofreu paixão, mas operou a encarnação e fez com que a carne participasse de sua hipóstase e de sua divindade. Se eu falo em deificação, não é porque a carne tenha se transformado na natureza da divindade, mas eu falo de sua participação nos privilégios próprios da divindade. O Verbo vivificou a carne segundo sua própria natureza, mas por sua união com a divindade. Assim é que no Tabor Cristo resplandeceu e brilhou, não em razão de sua própria natureza, mas em razão da operação da divindade unida à carne segundo a hipóstase, assim como a madeira ilumina e queima são segundo sua própria operação da natureza, mas em razão de sua participação na operação do fogo que se une a ela segundo a hipóstase.


52 (III, 8)
Àqueles que afirmam que as naturezas do Senhor se referem à quantidade contínua ou descontínua.

Se nos perguntarem se as naturezas de Cristo podem se referir ao domínio da quantidade contínua ou descontínua, responderemos que as naturezas de Cristo não são nem um corpo único, nem uma superfície única, nem uma linha única, nem um tempo, nem um lugar, para que possa se referir à quantidade contínua. Pois são essas as coisas que enumeramos de forma contínua.

É preciso saber que o número diz respeito aos seres que diferem e que é impossível enumerar aqueles que não diferem em nada: é exatamente sob o aspecto preciso em que eles diferem que eles se deixam enumerar. Por exemplo, Pedro e Paulo, segundo o que os une, não podem ser enumerados; estando unidos em razão de sua essência, não podemos falar deles como de duas naturezas; mas como eles diferem segundo a hipóstase, falamos de duas hipóstases. De sorte que o número se refere a seres que diferem, e a maneira como eles diferem é também a maneira como se deixam enumerar.

As naturezas de Cristo estão unidas sem confusão segundo a hipóstase; elas se separam sem que sejam separadas pelo princípio essencial e pelo modo de sua diferença. Segundo o modo de sua união elas não são enumeráveis: com efeito, segundo a hipóstase, não dizemos que as naturezas de Cristo são duas. Segundo o modo de sua separação sem separação elas se deixam enumerar: as naturezas de Cristo são duas pelo princípio essencial e o modo se sua diferença. Unidas de fato segundo a hipóstase e penetrando-se mutuamente, elas estão unidas sem confusão, conservando cada qual sua própria diferença de natureza. Por conseguinte, é segundo o modo de sua diferença, e somente segundo ele, que elas se deixam enumerar e, portanto, podem ser referidas à quantidade descontínua.

Cristo é portanto único, Deus perfeito e homem perfeito; nós o adoramos com o Pai e o Espírito numa só adoração, incluindo aí sua carne sem mancha, à qual não recusamos adoração; ela é adorada na hipóstase única do Verbo que se tornou para ela sua hipóstase. Não se trata de render um culto à criatura, pois não a adoramos como se fosse uma carne isolada, mas na medida em que está unida à divindade e na medida em que as duas naturezas de Deus o Verbo estão reunidas em uma única pessoa e uma única hipóstase desse Verbo. Eu hesito em tocar na brasa porque o fogo penetrou na madeira. Eu adoro o conjunto que é Cristo por causa da divindade unida à carne. Pois eu não adiciono uma quarta pessoa à Trindade – Deus não o permita! – mas eu confesso a pessoa punica de Deus Verbo em sua carne. A Trindade permanece Trindade mesmo depois da encarnação do Verbo.


53 (III, 9)
Resposta à questão: “Não existe natureza sem hipóstase?”.

Com efeito, mesmo que não haja natureza sem hipóstase nem essência sem personalização (dado que tanto a essência quanto a natureza podem ser vistas nas hipóstases e nas pessoas), não é necessário que as naturezas unidas entre si segundo a hipóstase possuam cada qual uma hipóstase própria. De fato, elas podem se encontrar numa hipóstase única e por isso não ser desprovidas de hipóstase nem tampouco possuir cada qual uma hipóstase particular: elas são ambas uma única e idêntica hipóstase. Tendo a mesma hipóstase do Verbo a função de hipóstase para as duas naturezas, ela não admite que nenhuma delas tenham uma em relação à outra hipóstases diferentes; tampouco ela existe como hipóstase tanto de uma como de outra, sendo sempre, de modo indivisível e inseparável, a hipóstase de ambas. Ela não se distribui nem se divide, ela não atribui uma parte de si mesma a uma das naturezas e outra parte à outra, ela é totalmente, de modo indivisível e integral, a hipóstase de uma e de outra. A carne de Deus o Verbo, com efeito, não começou a existir à parte, ela não se tornou uma segunda hipóstase paralela à hipóstase de Deus o Verbo; antes, ela existiu anipostaticamente sem se tornar uma hipóstase existente por si própria. É por isso que ela não é desprovida de hipóstase, e por isso ela também não introduz uma outra hipóstase na Trindade.


54 (III, 10)
O trisságio

É por isso que colocamos na categoria de blasfêmia a adição feita ao trisságio por Pierre le Foulon, esse pensador fútil, porque ela introduz uma quarta pessoa na Trindade, colocada à parte do Filho de Deus, potência anipostática do Pai e à parte do Crucificado, como um outro ao lado do poderoso, ou porque ela glorifica uma santa Trindade possível e crucifica o Pai e o Espírito Santo juntamente com o Filho. Todo desprezo a essa tolice blasfema e não escriturária! Para nós, “santo Deus” se interpreta como o Pai, sem atribuir apenas a ele o nome de divindade, porque sabemos que o Filho é Deus, assim como o Espírito Santo; “santo poderoso” equivale ao Filho, sem que por isso despojemos de sua força o Pai e o Espírito Santo; empregamos “santo imortal” a propósito do Espírito Santo, sem excluir da imortalidade o Pai e o Filho. Não, nós atribuímos o conjunto das denominações divinas, simples e absolutamente, e imitamos o apóstolo Paulo, que disse: “Para nós existe um só Deus, o Pai de quem tudo procede e de quem viemos, e um só Senhor Jesus Cristo, por quem tudo existe e por quem existimos[36]”, e também Gregório o Teólogo que disse algures: “Para nós existe um só Deus do qual provém todas as coisas e um só Senhor Jesus Cristo por quem existem todas as coisas e um só Espírito Santo em quem estão todas as coisas”. Essas expressões, “de quem”, “por quem”, “em quem”, não dividem as naturezas, sem o que as preposições e a ordem dos nomes não se alteraria; elas caracterizam as propriedades de uma única natureza sem mistura; e é evidente: a partir delas se opera novamente uma reunião em um ser único, ainda leiamos com negligência a frase do Apóstolo: “Dele, por ele e para ele existem todas as coisas; a ele a glória por todos os séculos, amém[37]”.

Que o trisságio não tenha sido pronunciado unicamente em intenção do Filho, mas de toda a santa Trindade, temos disso o testemunho dos santos e veneráveis Atanásio, Basílio e Gregório, assim como de todo o coro dos Padres que trazem a Deus consigo: sim, por meio da tripla santidade, os santos serafins nos dão a entrever as três hipóstases da divindade supra essencial. Pela soberania única eles permitem conhecer a essência e a realeza únicas da trindade teárquica. É assim que Gregório o Teólogo declara: “Assim é portanto o santo dos santos, que fazem sombra aos serafins e a quem eles glorificam por meio de uma tripla santificação, ao mesmo tempo em que reúnem numa única soberania e divindade; é disso que um outro dentre nossos antecedentes fez o tema de uma filosofia bela e altíssima”.

Portanto, aqueles que escreveram a história eclesiástica reportam que o povo de Constantinopla se pôs a orar por causa de uma ameaça lançada por Deus, no tempo do arcebispo Proclos. Uma criança do povo foi arrebatada em um êxtase no qual recebeu um ensinamento angélico sobre esse hino do trisságio, “Santo Deus, santo poderoso, santo imortal, tem piedade de nós”. Voltando a si, a criança logo reportou o que lhe fora ensinado; e a partir daí toda a multidão deveria cantar o hino e assim fazer cessar a ameaça. E no quarto santo e grande concílio ecumênico, o de Calcedônia, esse hino do trisságio foi cantado, conforme se conta, de acordo com essa fórmula, com a qual ele figura nos atos desse santo concílio. Seria, assim, verdadeiramente um deboche e um escárnio que esse hino do trisságio, ensinado pelos anjos, certificado pelas circunstâncias de sua introdução, confirmado e garantido por um concílio com a presença de tantos santos Padres, cantado antes disso pelos serafins como revelação da divindade tri-hipostática, tenha sido pisoteado pela absurda vaidade de Foulon e, dir-se-ia, corrigido por ele, como se ele ultrapassasse os serafins. Quanta presunção, para não dizer loucura”! Quanto a nós, é assim que o dizemos, para ferir de morte os demônios: “Santo Deus, santo poderoso, santo imortal, tem piedade de nós”.


55 (III, 11)
Da natureza considerada especificamente e individualmente, bem como da diferença, da união e da Encarnação, e de que modo entender a fórmula: “uma única natureza encarnada de Deus o Verbo”.

Quanto à natureza, ou bem ela é objeto de uma pura consideração especulativa (pois por si mesma ela é desprovida de subsistência), ou é considerada na medida em que é aplicada em comum a todas as hipóstases de mesma espécie, e então a chamamos de natureza especificamente considerada, ou ainda em sua totalidade na medida em que ela assue os acidentes numa hipóstase única, e então a chamamos de natureza individualmente considerada. Ora, o Deus Verbo encarnado não assumiu uma natureza considerada de maneira puramente especulativa, pois isso não seria uma encarnação, mas uma enganação, uma ficção de encarnação, e nem a natureza especificamente considerada pois ele não assumiu todas as hipóstases; ele assumiu essa natureza num indivíduo, mas idêntica ao que ela é na espécie, pois ele assumiu as primícias de nossa massa; essa natureza não possuía subsistência por si mesma, nem recebera anteriormente a apelação de indivíduo, para ser em seguida assumida por ele; ela foi trazida à existência em sua hipóstase nele. Pois a própria hipóstase de Deus o Verbo se tornou hipóstase para a carne e, pelo fato de que “o Verbo se fez carne[38]”, evidentemente sem mudança, a carne se fez Verbo imutável e Deus se fez homem. Pois o Verbo é Deus e o homem é Deus em virtude da união segundo a hipóstase. Por isso á a mesma falar da natureza do Verbo e da natureza individualmente tomada; o que é colocado em evidência não é própria e unicamente o indivíduo, ou, dito de outra forma, a hipóstase, nem o ponto comum entre as hipóstases, mas sim a natureza comum considerada e examinada em uma das hipóstases.

Por conseguinte, uma coisa é a união e outra a encarnação: a união designa exclusivamente a conjunção, mas mão ainda com o que se faz a conjunção. A encarnação, ou em outros termos, a entrada na condição humana, designa a conjunção com uma carne, melhor dizendo com um homem, assim como a combustão designa a união com o fogo. Aliás, o bem-aventurado Cirilo, em sua segunda carta a Succensus, ao explicar a fórmula “uma única natureza encarnada do Verbo”, exprimiu-se assim: “Se nos calássemos depois de falarmos de uma natureza do Verbo, sem acrescentar ‘encarnado’, excluindo, por assim dizer, a economia, esse discurso, ainda que não desprovido de verossimilhança, acorreria logo aos lábios daqueles que se colocam como interrogadores em relação a nós: ‘se o todo consiste numa única natureza, onde fica a perfeição da natureza humana? Como a essência semelhante à nossa teria vindo à existência?’. Mas como a perfeição da humanidade e a indicação da essência semelhante à nossa foram introduzidas pelo termo ‘encarnado’, que eles parem de se apoiar sobre esse caule de junco”. Nessa passagem, Cirilo empregou muito bem a propósito da natureza a expressão “natureza do Verbo”. Se ele tivesse tomado a natureza no sentido de hipóstase, mesmo omitindo o “encarnado”, a expressão não teria sido absurda: ao falarmos de modo absoluto da hipóstase única de Deus o Verbo, não estamos cometendo um erro. Do mesmo modo, Leôncio de Bizâncio também compreendeu o termo de natureza, e não como um substituto de hipóstase, e em sua resposta às objeções de Teodoreto contra o segundo anatematismo, o bem-aventurado Cirilo expressou-se assim: “A natureza do Verbo, ou ainda a hipóstase, vale dizer, o Verbo em pessoa”. De tal modo que dizer a natureza do Verbo não equivale a designar a hipóstase apenas nem o elemento comum às hipóstases, mas sim a natureza comum considerada em sua totalidade na hipóstase do Verbo.

Portanto, que a natureza do Verbo se tenha encarnado, ou seja, que ele tenha se unido à carne, isso pode ser dito. Mas que a natureza do Verbo tenha sofrido por intermédio da carne, isso é algo que até hoje jamais ouvimos dizer; que Cristo tenha sofrido pela carne, isso nos foi ensinado; assim é que a expressão “natureza do Verbo” não designa a hipóstase. Por conseguinte, resta dizer que o haver-se encarnado equivale a ter-se unido à carne, e que dizer que o Verbi se tornou carne equivale a dizer que a própria hipóstase do Verbo se tornou, sem alteração, a hipóstase da carne. E que Deus se tenha tornado homem e que o homem se tenha tornado Deus, isso se pode dizer. Com efeito, o Verbo é Deus e se tornou homem sem nenhuma transformação. Mas que a divindade se tenha tornado homem, que ela tenha tomado a carne ou que se haja humanizado, isso jamais ouvimos dizer. Aprendemos que a divindade se uniu à humanidade em uma de suas hipóstases. Que Deus tenha tomado para si uma forma, ou seja, uma essência – estrangeira, vale dizer, a nossa – isso pode ser dito. A propósito de cada uma das hipóstases, com efeito, nós empregamos o nome de Deus, mas a propósito de uma hipóstase não podemos falar em divindade. Com efeito, nunca ouvimos aplicar o termo de divindade apenas ao Pai, apenas ao Filho, apenas ao Espírito: pois a divindade designa a natureza, e Pai designa a hipóstase, assim como a humanidade designa a natureza e Pedro a hipóstase. Deus significa aquilo que é comum na natureza e o termo é empregado por derivação a propósito de cada uma das hipóstases, assim como homem. Pois é Deus aquele que possui a natureza divina e homem aquele que possui a humanidade.

Em relação a todas essas questões, é preciso saber que o Pai e o Espírito Santo não participaram da encarnação do Verbo de outro modo senão como prodígios, bem-aventurança e vontade.

56 (III, 12)
Que a santa virgem é mãe de Deus

Mãe de Deus, no sentido firme e verdadeiro, é assim que proclamamos a santa virgem. Porque, uma vez que aquele que dela nasceu é em verdade Deus, ela é em verdade mãe de Deus, e foi ela quem trouxe ao mundo o Deus verdadeiro encarnado em seu próprio seio. Deus, nós o afirmamos, nasceu dela, não no sentido em que a divindade do Verbo tenha recebido dela o princípio de seu ser, mas na medida em que o próprio Deus o Verbo, que foi gerado pelo Pai antes dos séculos intemporalmente e que existe sem começo e eternamente junto com o Pai e o Espírito, nos últimos dias[39] e para nossa salvação veio habitar em seu seio, dela tomando a carne e nela sendo gerado sem transformação. Pois a santa virgem não trouxe ao mundo um puro homem, mas o verdadeiro Deus, não nu, mas encarnado, cujo corpo não desceu do céu passando por ela como se fosse um canal, mas que dela tomou uma carne consubstancial à nossa e dotada nele de subsistência. Com efeito, se o corpo houvesse sido transportado desde o céu e não emprestado à nossa natureza, que necessidade haveria de Encarnação? A encarnação de Deus o Verbo aconteceu, com efeito, para que esta natureza pecadora, decaída e votada à corrupção obtivesse a vitória sobre o tirano que a seduziu e fosse assim libertada da corrupção. Assim o afirma o divino Apóstolo: “Pois se foi por intermédio de um homem que veio a morte, também por um homem veio a ressurreição dos mortos[40]”. Se a primeira afirmação é verdadeira, também o é a segunda.

E se ele disse: “O primeiro Adão veio da terra e é de terra, o segundo Adão, o Senhor, veio do céu[41]”, isso não quer dizer que o corpo tenha vindo do céu; o que ele quis mostrar é que não se trata de um simples homem. De fato, vemos que ele o chamou de Adão e Senhor, para significar os dois aspectos. Com efeito, Adão quer dizer nascido da terra; nascido da terra efetivamente, na medida em que se trata da natureza do homem, modelado a partir da argila; em revanche, “Senhor” exprime a essência divina.

O Apóstolo diz ainda: “Deus enviou seu Filho unigênito nascido de uma mulher[42]”. Ele não disse através (dia) de uma mulher, mas saído (ek) de uma mulher. O divino Apóstolo quis indicar com isso que o Filho unigênito de Deus, ele próprio Deus, é identicamente o homem nascido da Virgem, e que aquele que nasceu da Virgem é identicamente o Filho de Deus, ele próprio Deus; nascido corporalmente, tal como nasce um homem, em lugar de fazer sua morada num homem previamente preparado, como no caso de um profeta; tornado homem por identidade, substancial e verdadeiramente, ou seja, fazendo subsistir em sua hipóstase uma carne animada por uma alma racional e intelectiva, da qual ele próprio fez sua hipóstase. Pois esse é o sentido da expressão “nascido de uma mulher”. Assim, como poderia o Verbo de Deus em pessoa ter sido submetido a uma lei [mosaica] se ele não tivesse se tornado um homem feito da mesma substancia que nós?

Daí provém atribuirmos com toda justiça e verdade o nome de mãe de Deus à santa Maria: esse nome resume todo o mistério da economia da salvação. Com efeito, se aquela que o trouxe ao mundo é mãe de Deus, aquele que nasceu dela é plenamente Deus e plenamente homem. Como poderia Deus, ele que possui a existência antes de todos os séculos, ter nascido de uma mulher, se não se tivesse tornado homem? Pois o filho de um homem é evidentemente um homem. E se aquele que nasceu de uma mulher é Deus, evidentemente é único aquele que foi gerado de Deus Pai segundo a essência divina e sem começo e que nos “últimos tempos[43]” foi gestado pela Virgem segundo a essência que teve começo e que está submetida ao tempo, vale dizer, a essência humana. Eis o que significa falar de hipóstase única, de duas naturezas e de duas gerações de nosso Senhor Jesus Cristo.

A santa virgem não é chamada de mãe de Cristo, pois isso lhe retiraria o título de mãe de Deus, como pretendia o impuro, insolente e judaizante Nestorius, esse vaso de desonra, que visava desonrar aquela (pretendia ele ferir com seu pai Satanás) única verdadeiramente honrada acima de toda criatura, a mãe de Deus, tendo inventado isso para a caluniar. Foram cristos tanto o rei Davi como o grande sacerdote Aarão (pois tais são as dignidades criadas pela unção, a realeza e o sacerdócio), e todo homem que traz a Deus em si pode ser chamado de cristo, sem que seja Deus por natureza; assim, Nestorius, cujo Deus expressava sua loucura, teve a audácia de chamar de portador de Deus àquele que havia sido gerado da Virgem.

Quando a nós, desdenhamos dessa denominação de portador de Deus, e nos referimos exclusivamente ao Deus encarnado. Pois o Verbo em pessoa se fez carne, concebido que foi pela Virgem, mas assumindo-se Deus após assumir essa carne daí em diante divinizada por ele no momento em que veio à existência. Desse modo cumpriram-se ao mesmo tempo três coisas, a assumpção, a entrada na existência e a divinização daquilo que foi assumido pelo Verbo. Por isso chamaremos a santa virgem de mãe de Deus não apenas por causa da natureza do Verbo, mas por causa da divinização do elemento humano, cuja concepção, tanto quanto sua vinda à existência foram operadas juntas e milagrosamente: concepção para o Verbo, vinda à existência para a carne nesse mesmo Verbo. A mãe de Deus, de forma idêntica e sobrenatural, forneceu ao modelador poder ser modelado, ao Deus e criador do universo ser feito homem divinizando o elemento assumido, ao mesmo tempo em que a união salvaguardava os elementos já unidos tais como eram no momento de se unir. E eu não falo apenas do elemento divino, mas do elemento humano de Cristo, que é superior a nós, mas tal como nós. Com efeito, ele não começou sendo tal como nós para depois se tornar superior a nós; não, desde o começo de sua vinda à existência ele existiu de maneira dupla, graças à sublime assumpção no Verbo em pessoa que lhe conferiu existência. Ele foi portanto humano segundo sua natureza própria, de Deus e divino sobrenaturalmente. Ademais, ele possuiu também as qualidades da carne animada: o Verbo as recebeu em razão da economia da salvação e elas foram produzidas em toda a verdade da natureza, segundo a ordem de um movimento natural.


57 (III, 13)
As características próprias das duas naturezas

Ao afirmarmos que um só e mesmo é Deus perfeito e homem perfeito, estamos afirmando que o mesmo possui tudo o que possui o Pai, afora o fato de não ser não gerado, e que possui também, com a exceção do pecado, tudo o que teve o primeiro Adão, a saber, um corpo e uma alma racional e intelectiva; ele possui duplicados respectivamente a cada uma das duas naturezas os atributos naturais de ambas, ou seja, duas vontades naturais, a divina e a humana, duas operações naturais, a divina e a humana, dois livres arbítrios naturais, o divino e o humano, assim como uma sabedoria e um conhecimento, tanto divinos como humanos. Com efeito, por ser consubstancial ao Pai, ele quer e opera segundo seu livre arbítrio enquanto Deus; e por ser também consubstancial a nós, ele quer e opera segundo seu livre arbítrio, o mesmo ele, enquanto homem. A ele pertencem os milagres, a ele os sofrimentos.


58 (III, 14)
As vontades e os livres arbítrios de nosso Senhor Jesus Cristo

Uma vez que falamos em duas naturezas de Cristo, dizemos também que duas são as suas vontades e as suas operações naturais. Por outro lado, como a hipóstase dessas duas naturezas é única, não afirmamos senão um e mesmo que quer e que opera naturalmente, sob os aspectos dos quais é feita e na qual existe, e que são Cristo nosso Deus. E ele não quer nem opera de modo dividido, mas de maneira unificada. “Cada forma” quer e “opera de fato em comunhão com a outra”. Os seres de mesma essência têm também a mesma vontade e a mesma operação, e naqueles em que a essência difere, diferem também a vontade e a operação. Reciprocamente, os seres que possuem a mesma vontade e a mesma operação possuem também uma mesma essência, enquanto que aqueles cujas vontade e operação diferem são também de essência diferente.

Por conseguinte, no caso do Pai, do Filho e do Espírito Santo, a partir da identidade de operação e de vontade, nós reconhecemos a identidade de natureza. Mas no caso da economia divina, a partir da diferença das operações e das vontades reconhecemos a diferença das naturezas e, instruídos pela diferença das naturezas, confessamos também a diferença das vontades e das operações. Pois assim como o número das naturezas no único e mesmo Cristo, se as concebemos e exprimimos com respeitoso amor, não dividem o Cristo único, mas sublinha a conservação, mesmo na união, da diferença das naturezas, do mesmo modo o número das vontades e das operações que por essência pertencem às duas naturezas (pois é segundo essas duas naturezas que ele quis e operou nossa salvação) não introduz divisão – que Deus não o permita! – mas coloca em relevo unicamente a preservação e a salvação dessas naturezas mesmo dentro da união. Pois nós afirmamos, as vontades e as operações são naturais e não hipostáticas. Quero com isso expressar a própria capacidade de querer e de operar em virtude da qual querem e operam os seres que querem e operam. Pois se aceitamos considera-las como hipóstases, seremos obrigados a supor quereres diferentes e operações diferentes nas três hipóstases da Santa Trindade.

É preciso ter em mente que “querer” e “querer de tal maneira” não são a mesma coisa: querer provém da natureza, assim como ver (de fato, são coisas que pertencem a todos os homens), mas querer de uma determinada maneira não provém da natureza, mas de nossa decisão, assim como ver de tal maneira, bem ou mal (com efeito, os homens não querem nem veem todos do mesmo modo). A mesma coisa estabeleceremos no caso das operações: querer de certa maneira, ver de certa maneira, operar de certa maneira, são modos de usar o querer, o ver e o agir, que só pertencem àquele que os usa, e que os separa dos outros em função da diferença dita comum.

Assim é que chamamos ao querer tomado simplesmente como “vontade” ou como “potência volitiva”, que constitui um apetite racional e um querer natural; quanto ao querer de certa maneira, ou, dito de outro modo, àquilo que está submetido à vontade, chamamo-lo de “objeto desejado” ou de “querer decidido”. O ser constituído por natureza para querer é “volitivo”; a natureza divina, por exemplo, é volitiva, assim como a natureza humana. Aquele que se utiliza de sua vontade, por exemplo, Pedro, é “o que quer”, em outras palavras, a hipóstase.

Portanto, como por um lado Cristo é um e única é sua hipóstase, aquele que quer e opera divina e humanamente é único e o mesmo. De outro lado, como ele possui duas naturezas capazes de querer na medida em que são racionais (pois todo ser racional é capaz de querer e é dotado de livre arbítrio), falaremos em seu caso de duas vontades ou ainda de dois quereres naturais. Com efeito, o mesmo Cristo é capaz de querer segundo suas duas naturezas: ele assumiu a capacidade de querer que existe em nós por nossa natureza. E como Cristo é único e é idêntico aquele que quer segundo cada uma das duas naturezas, falaremos de um mesmo objeto da vontade não apenas no caso em que ele deseja aquilo que Deus pode querer por sua natureza (pois querer comer, beber, etc., são coisas que não provêm da divindade), mas também quando ele deseja aquilo que mantém em seu estado a natureza humana, sem oposição quanto à decisão, mas na particularidade das naturezas. Com efeito, ele quis esses objetos em virtude de sua natureza quando quis sua vontade divina e permitiu à carne que sofresse e operasse aquilo que lhe fosse próprio.

Que a vontade pertence ao homem por sua natureza, eis aí a prova. Fora a vida divina, existem três formas de vida: a vida vegetativa, a sensitiva e a intelectiva. Próprio da vida vegetativa são os movimentos da nutrição, do crescimento, da geração; da vida sensitiva, o movimento segundo o impulso; da vida racional e intelectiva, o movimento livre. Então, se em virtude da natureza o movimento nutritivo pertence à vida vegetativa e o movimento segundo o impulso pertence à vida sensitiva, é também em virtude da natureza que o livre arbítrio pertence à vida racional e intelectiva. Ora, o livre arbítrio não é outra coisa senão a vontade. Ao se tornar carne animada, intelectiva e livre, o Verbo tornou-se também, por conseguinte, volitivo.

Acrescentemos que as qualidades naturais não podem ser ensinadas: ninguém aprende a raciocinar, a viver, a ter fome ou sede, ou a dormir. Tampouco aprendemos a querer; por conseguinte, querer constitui uma qualidade natural.

Por outro lado, se é verdade que a natureza dirige os seres desprovidos de razão e que ela é dirigida no homem, o qual se movimento com toda liberdade de acordo com a sua vontade, é porque o homem, por natureza, é capaz de querer.

E ainda: se é verdade que o homem foi feito à imagem da bem-aventurada e supra-essencial divindade, e que a natureza divina é por natureza dotada de livre arbítrio e de vontade, é porque também o homem, enquanto imagem da divindade, é dotado por natureza de livre arbítrio e vontade. De fato, os Padres deram o livre arbítrio como definição da vontade.

Acrescentemos que se o querer existe em todos os homens, ao invés de existir em alguns e estar ausente em outros, e se aquilo que descobrimos de comum a todos caracteriza a natureza entre os indivíduos compreendidos dentro desse conjunto, é porque o homem é dotado de vontade por natureza.

E mais: se a natureza exclui o mais e o menos e se a vontade existe igualmente em todos, é porque o homem é dotado de vontade por natureza. De sorte que, sendo o homem dotado de vontade por natureza, também o Senhor será dotado de vontade por natureza, não apenas enquanto Deus, mas enquanto homem. Pois assim como ele assumiu nossa natureza, também ele assumiu nossa vontade por natureza, e é nesse sentido que os Padres dizem que ele modelou em si nossa vontade.

Se o querer não fosse natural, ele seria ou bem uma hipóstase, ou bem contrário à natureza. Se ele pertencesse à hipóstase, nesse caso o Filho teria outra vontade do que o Pai. Pois o que pertence à hipóstase caracteriza uma só hipóstase. Se ele fosse contrário à natureza, o querer provocaria a queda da natureza; pois o que é contrário à natureza arruína a natureza.

O Deus e Pai do universo deseja enquanto Pai ou enquanto Deus. Se ele desejar enquanto Pai, seu querer será diferente do querer do Filho. Pois o Filho não é o Pai. Se ele desejar enquanto Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus; é assim que o querer depende da natureza, ou seja, ele é natural.

Acrescentemos que, conforme os Padres, os seres que possuem um querer único possuem também uma essência única; portanto, se o querer da divindade de Cristo e de sua humanidade for único, única e idêntica será também a essência destas.

Por outro lado, se, de acordo com os Padres, a diferença de natureza não transparece no querer único, estamos obrigados, se afirmarmos a unidade da vontade, a não estabelecer diferença de naturezas em Cristo, ou, se afirmarmos uma diferença de naturezas, a não afirmar a unidade de vontades.

Mais uma vez: segundo o santo Evangelho, o Senhor se dirigiu às regiões de Tiro e de Sidon, “e, entrando em uma casa, ele quis que ninguém o soubesse, mas não pôde passar desapercebido[44]”. Ora, se sua vontade divina é onipotente e ele não pôde passar desapercebido quando o quis, é porque ele quis e não pôde enquanto homem, e porque ele era dotado de vontade também enquanto homem.

Por outro lado, “chegando naquele lugar, ele disse: ‘Tenho sede’. E eles lhe deram a beber vinho misturado com fel, e depois de haver provado, ele não quis mais beber[45]”. Se houvesse sido como Deus que ele teve sede e depois de provar não mais quisesse, então Deus seria passional. Tanto a sede como o sabor são paixões que sofremos. Se não foi enquanto Deus, certamente foi por ser dotado de vontade enquanto homem.

E o bem-aventurado apóstolo Paulo diz ainda: “ele se tornou obediente até a morte, e morte na cruz[46]”. A obediência é uma submissão a uma vontade existente, não a uma vontade inexistente; não tratamos o ser desprovido de razão como obediente ou desobediente. O Senhor se tornou obediente perante o Pai, não enquanto Deus, mas na medida em que se tornou homem. “Enquanto Deus, com efeito, ele não é nem obediente, nem desobediente. Esses termos só convêm àqueles que estão na dependência de outros”, segundo a afirmação do inspirado Gregório. Portanto, Cristo era dotado de vontade também enquanto homem.

Quando falamos de querer natural, não o consideramos como submetido à necessidade, mas como proveniente de um livre arbítrio. Onde existe a razão, existe também forçosamente o livre arbítrio. Pois a natureza divina e incriada não é a punica que não está sujeita à necessidade: esse é também o caso da natureza intelectiva e criada. Eis aqui a prova: bom por natureza, criador por natureza, Deus por natureza, nada disso Deus possui por necessidade. Pois quem poderia haver introduzido aí a necessidade?

Devemos ter em mente, de resto, que o termo livre arbítrio é empregado de maneira equívoca: falamos dele de modo diferente quando tratamos de Deus e dos anjos e destes em relação ao homem. No caso de Deus, supraessencialmente; no dos anjos, por uma coincidência entre a aptidão e a ação que não admite absolutamente nenhum intervalo de tempo (possuindo por natureza o livre arbítrio, o anjo dele se utiliza sem obstáculo, devido à ausência de toda reação passional do corpo ou de qualquer agressor); no caso dos homens, com um hiato no tempo, pois a aptidão é concebida anteriormente à ação. Pois o homem é dotado de livre arbítrio e possui o livre arbítrio em virtude da sua natureza; mas carrega em si a agressão do diabo e o movimento do corpo. E, por causa da agressão e do peso do corpo, a ação é retardada em relação à aptidão.

Então, se Adão deu ouvidos voluntariamente e comeu o fruto porque quis, é porque a vontade foi a primeira a ser atingida em nós. Mas se a vontade foi a primeira a ser atingida, e se o Verbo, ao se encarnar, não a houvesse assumido concomitantemente à natureza, nós não poderíamos ser resgatados do pecado.

Por outro lado, se o poder do livre arbítrio na natureza é obra do Verbo, e se ele não o houvesse assumido, ou bem ele teria condenado sua própria obra como não sendo bela, ou bem ele teria amesquinhado para nós a cura nesse domínio, nos privando da cura total e se reconhecendo como submetido à passionalidade, por não querer ou não poder nos curar completamente.

Além disso, seria impossível falar de um composto único que resultasse de duas vontades, como temos um composto a partir de duas naturezas, que é a hipóstase. Em primeiro lugar, porque as composições existem para aquilo que existe em sua hipóstase, não para aquilo que consideramos pelo ângulo de uma outra razão que não a sua própria. Em segundo lugar, porque, se formos falar de composição das vontades e das operações, seremos forçados a falar também da composição das outras propriedades da natureza, do incriado com o criado, do invisível com o visível, etc. Ademais, como poderíamos denominar a vontade composta a partir de vontades (pois é impossível aplicar ao composto a denominação dos componentes), uma vez que chamamos de natureza, e não de hipóstase, o composto no qual desembocam as naturezas? Ademais, se falamos de uma única vontade composta de Cristo, nós o separaremos da vontade do Pai, pois este não é composto. Resta não chamar de composta ou comum tanto suas naturezas como suas qualidades naturais como hipóstase de Cristo.

No caso do Senhor, é impossível falar-se em decisão e escolha, por menos que queiramos empregar o sentido próprio desses termos. Com efeito, a decisão consiste numa disposição que adotamos diante do objeto considerado a partir de uma pesquisa, deliberação ou conselho, e julgamento a respeito daquilo que se ignora. A seguir vem a escolha preferencial e decisiva de uma coisa em detrimento de outra. Ora, o Senhor não é um puro homem, mas é também Deus: sabendo tudo, ele existe sem necessidade de dúvida, de pesquisa, de conselho ou de julgamento; ele possui, por natureza, a afinidade com o bem e o distanciamento com o mal. Assim é que Isaías disse: “Antes de conhecer ou de preferir a perversidade, o menino escolherá o bem; porque antes que o menino conheça o que é bem e que é mal, ele desconfiará da maldade para escolher o bom[47]”. “Antes”, no caso, significa que ele não precisa pesquisar ou deliberar como nós; não, ele é Deus e faz com que subsista divinamente até o que é da carne, ou, dito de outro modo, ele está unido à carne segundo a hipóstase; portanto, por seu próprio ser ele possui, como um bem da natureza, o saber todas as coisas. Pois as virtudes são naturais, elas existem em todos por natureza e igualmente, mesmo se nem todos realizemos na mesma medida as operações da natureza. Com efeito, por causa da transgressão nós nos precipitamos daquilo que era de acordo com a natureza para aquilo que é contra a natureza. Mas o Senhor nos conduziu daquilo que é contra a natureza para aquilo que está de acordo com a natureza; pois é nisso que consiste ser feito à imagem e semelhança. A ascese e suas obras não foram concebidas para nos fazer adquirir uma virtude que seria importada, mas para nos fazer rejeitar a maldade importada e contrária à natureza; é como a corrosão do ferro, que não lhe é natural, mas vem a se incrustar nele por causa da negligência; com grande esforço nós a expulsamos e fazemos com que apareça o brilho natural do ferro.

É preciso ter em mente que o termo gnomé possui muitos empregos e significados. Ele designa tanto a exortação, como nessa passagem do divino apóstolo: “Com relação às pessoas virgens, eu não tenho preceito do Senhor, mas dou-lhes um conselho[48]”; como designa o fruto de uma deliberação como quando diz o profeta Davi: “Suas deliberações pérfidas contra o povo deram seus frutos[49]”; como designa uma sentença, como em Daniel: “Sobre qual assunto essa sentença impudente foi emitida?[50]”; como designa ainda os casos de uma crença, de uma opinião ou de uma concepção. Resumidamente, esse termo gnomé pode ser tomado em vinte e oito acepções.


59 (III, 15)
Das operações em nosso Senhor Jesus Cristo

Nós também afirmamos a existência, em nosso Senhor Jesus Cristo, de duas operações. Pois ele possuía, enquanto Deus e consubstancial ao Pai, a operação divina e, uma vez que se tornou homem consubstancial a nós, a operação da natureza humana.

É preciso ter em mente que uma coisa é a operação, outra o operativo, outra a coisa operada e outra o operador. A operação é o movimento eficaz e essencial da natureza; a natureza de onde procede a operação é operativa; a coisa operada é aquela em que se realiza a operação; o operador é aquele que se serve da operação, ou seja, a hipóstase. Também chamamos a operação de operada e ao operado de operação, assim como chamamos à criatura criação. Dizemos, por exemplo, toda a criação, quando queremos designar as criaturas.

Devemos ter em mente que a operação é um movimento e que ela é operada, mais do que opera, conforme diz Gregório o Teólogo em seu discurso sobre o Espírito Santo: “Se ele é operação, evidentemente ele será operado em lugar de operar e cessará de ser ao mesmo tempo em que deixará de ser operado”.

É preciso saber que a vida é uma operação e que a mudança é uma operação do que é vivo; e que toda organização do ser vivo é constituída por uma movimento nutritivo, um aumentativo (também chamado de vegetativo), assim como de um movimento conforme a impulsão (também chamado de sensitivo), além de um movimento intelectivo e de livre arbítrio. A operação é a realização de uma potência. Dessa forma, ao percebermos tudo isso em Cristo, também atribuiremos a ele uma operação humana.

O primeiro conceito que se instaura em nós é chamado de operação; ele é de fato uma operação simples e sem relação do intelecto que projeta para fora de si de modo invisível suas próprias concepções, sem as quais ele não mereceria sequer o título de intelecto. Também chamamos de operação a manifestação e a explicitação pelo verbo proferido daquilo que foi concebido pelo intelecto. Essa operação já não é mais sem relação e simples, mas composta de conceito e de verbo tomados na sua relação. E não se restringe à relação aquilo que o agente conserva com o que é produzido e que não seja uma operação. Mesmo a realização é chamada de operação. E a primeira dessas operações pertence apenas à alma; a segunda, à alma que utiliza seu corpo; a terceira, ao corpo animado por um intelecto; para o outro, trata-se da realização; o intelecto prevê o futuro, e depois de feito isso ele opera por intermédio do corpo. Por conseguinte, à alma pertence a preeminência: ela utiliza o corpo como um instrumento que ela empurra e puxa. Uma coisa é a operação do corpo que a alma empurra e move. O que o corpo realiza consiste em tocar, segurar e, por assim dizer, agarrar; o que a alma realiza é como colocar em forma ou projeto aquilo que acontece. O mesmo acontece com nosso Senhor Jesus Cristo; seu poder taumatúrgico consistia numa operação da sua divindade, mas a ação material, o querer e o fato de dizer: “Eu quero, sê purificado[51]”, eram operação de sua humanidade. Foram realizações de sua operação humana a fração do pão[52] e o “eu quero” que ele falou ao leproso; e de sua operação divina a multiplicação dos pães e d purificação do leproso; por meio de cada uma dessas operações, a da alma e a do corpo, ele colocou em evidência sua operação divina, uma e idêntica, inata e proporcional. Com efeito, assim como conhecemos as naturezas unidas e em situação de pericorese cada uma em relação à outra, sem que por isso neguemos sua diferença, nós as contamos e sabemos que são inseparáveis, assim como reconhecemos a conjunção das vontades e das operações e também a sua diferença, nós as contamos, mas não introduzimos aí separação. Pois a maneira como a carne foi divinizada sem sofrer transformação é também aquela como tanto a vontade como a operação foram divinizadas sem sair de seus limites próprios. Pois é único aquele que é um e outro e que quer e opera simultaneamente desse modo e do outro, seja divina ou humanamente.

Assim somos constrangidos a falar em duas operações a respeito de Cristo, por causa de sua dualidade de natureza. Aos seres cuja natureza é diferente cabe operação é diferente, àqueles cuja operação é diferente, a natureza diferente. Inversamente, aos seres que possuem uma natureza idêntica, operação idêntica, e àqueles cuja operação é única, essência única, conforme a doutrina dos santos Padres. Portanto, das duas uma, ou bem dizemos que a operação de Cristo é única e assim o é sua essência, ou bem, porque nos conservamos na verdade e confessamos duas essências conforme o Evangelho e os Padres, somos forçados a confessar ao mesmo tempo, por fidelidade aos mesmos Padres, uma dualidade correspondente das energias. Devido à sua consubstancialidade com Deus Pai segundo sua divindade, ele será igual a ele também segundo a operação. Mas devido à sua consubstancialidade para conosco segundo a humanidade, ele será, ele próprio, igual a nós também quanto à operação. De resto, o bem-aventurado Gregório, bispo de NIssa, afirma: “Os seres cuja operação é única possuem também forçosamente uma potência idêntica; pois toda operação é a realização de uma potência” por outro lado, é impossível que a natureza incriada e a natureza criada possuam uma natureza, uma potência ou uma operação única. Se dissermos que é única a operação de Cristo, estaremos atribuindo à divindade do Verbo as paixões da alma intelectiva, como o medo, a tristeza e a angústia.

Poder-se-á então dizer que foi debatendo sobre a santa Trindade que os Padres afirmaram: os seres cuja essência é única possuem uma operação única e aqueles cuja essência é diferente possuem também uma operação diferente, e que não se deve transpor para a economia aquilo que é do domínio da teologia? Nós responderemos: se os Padres falassem apenas do ponto de vista da teologia, desde e encarnação o Filho não teria a mesma operação que o Pai, nem mesmo a mesma essência. Portanto, a quem atribuiremos essas proposições: “O Pai opera até o presente, e também eu opero[53]”, e: “Aquilo que o Pai deseja fazer, também o Filho o faz[54]”, e: “Se vocês não creem em mim, creiam nas minhas obras[55]”, e: “As obras que eu faço testemunham a meu respeito[56]”, e: “Assim como o Pai ressuscita os mortos e os faz viver, também o Filho faz viver a quem ele quer[57]”. Tudo isso mostra Cristo não apenas consubstancial ao Pai mesmo após a encarnação, como ainda possuindo a mesma operação.

E ainda: se a Providência relativa aos seres cabe não apenas ao Pai e ao Espírito Santo, mas também ao Filho, mesmo depois da encarnação, como se trata aí de uma operação, é porque mesmo depois da encarnação ele possui a mesma operação que o Pai.

Se sabemos pelos milagres que Cristo possui a mesma essência que o Pai, e se os milagres são a operação de Deus, é porque mesmo depois da encarnação ele possui a mesma operação que o Pai.

Se a operação de sua divindade e a de sua carne for única, ela será composta, e então será diferente da do Pai, a menos que o Pai também possua uma operação composta. Mas se sua operação for composta, é evidente que também o será sua natureza.

Pode-se dizer que a operação implica a pessoa. Responderemos que se a operação implica a pessoa, em virtude de uma reciprocidade racional, a operação será implicada pela pessoa e, assim como existem três pessoas ou três hipóstases da santa Trindade, haverá também três operações; ou bem, assim como existe uma só operação, haverá também uma só pessoa e uma só hipóstase. Ora, os santos Padres concordam em dizer que os seres cuja essência é idêntica possuem uma operação idêntica.

E mais: se a operação implica a pessoa, aqueles que vaticinaram afirmando que as operações de Cristo não são nem únicas nem duas, prepararam o terreno para dizer que sua pessoa não é nem única nem duas.

No caso da espada que é levada ao rubro, assim como as naturezas do fogo e do ferro são preservadas, o mesmo acontece com as duas operações e seus resultados. O ferro tem o poder de cortar e o fogo o poder de queimar; o corte é o resultado da operação do ferro e a queimadora o resultado da operação do fogo. A diferença permanece assegurada num corte que queima ou numa queimadura cortante, mesmo que a queimadura não acontecesse sem o corte depois da união, ou o corte sem a queimadura. E a dualidade da operação natural não nos obriga a dizer que existem duas espadas aquecidas ao rubro, nem que a unidade da espada aquecida ao rubro nos faça cometer uma confusão entre as essências diferentes. O mesmo acontece com Cristo: nele existe uma operação divina e onipotente de sua divindade e a operação similar à nossa de sua humanidade. A realização da operação humana consiste em tomar a mão da criança e traze-la para junto de si, e a operação divina consiste em lhe dar a vida[58]. Uma coisa é um gesto, outra o outro, mesmo que sejam inseparáveis um do outro na operação teândrica[59]. Sim, porque a hipóstase do Senhor é única, e então sua operação será única também, e única será igualmente sua essência.

E mais: se falamos de operação única a propósito do Senhor, deveremos chamá-la de divina ou de humana, ou nem uma coisa nem outra. Se ela é divina, ele deverá ser chamado unicamente de Deus, despojado da humanidade similar à nossa. Se é humana, teremos que blasfemar, dizendo que ele não passa de um simples homem.  Se ela não é nem divina nem humana, ele não será nem Deus nem homem, nem consubstancial a seu Pai, nem a nós. Mas a partir da união, com efeito, instaura-se a identidade segundo a hipóstase, sem suprimir a diferença entre as naturezas. Ora, se essa diferença é preservada, também o será a das operações dessas naturezas; pois não existe natureza sem operação.

Se a operação de Cristo nosso mestre é única, ela será criada ou incriada, pois já não existe intermediário entre os dois para a operação como para a natureza. Assim é que uma operação criada manifestará unicamente uma natureza criada. Incriada, ela caracterizará somente uma essência incriada. É absolutamente necessário que as qualidades naturais correspondam à naturezas, pois a existência de uma natureza incompleta é impossível. A operação segundo a natureza não constitui um atributo externo, o que é óbvio, pois sem a operação é impossível a natureza, seja existir, seja se dar a conhecer. Sobre as operações de cada ser repousa a garantia de sua natureza própria, daquilo que nela não sofre mudança.

Se a operação de Cristo é única, ela, a mesma, efetua o que é divino e o que é humano. Ora, nenhum ser, permanecendo nos limites de sua natureza, pode efetuar os contrários: o fogo não pode esfriar e esquentar, nem a água pode secar e umidificar. Como então aquele que é Deus por natureza e que se tornou homem por natureza teria realizado milagres e padecido sofrimentos numa única operação?

Se Cristo tomou um intelecto humano, ou seja, uma alma intelectiva e racional, sem dúvida alguma ele pensa, e pensa sem cessar. Pois o pensamento é a operação do intelecto. Portanto, da mesma forma, enquanto homem, Cristo opera e não cessa de operar.

São João Crisóstomo, em seu comentário sobre os Atos dos Apóstolos, no segundo discurso, se exprime assim: “Não cometeremos erro se dissermos que também seu sofrimento foi um ato. Pois por todos os seus sofrimentos ele realizou essa obra grande e maravilhosa de destruir a morte, além de tudo o mais que ele já havia operado[60]”.

Se definirmos toda operação como o movimento essencial de uma natureza, como estabeleceram aqueles que são entendidos nessa matéria, onde já se viu uma natureza sem movimento ou totalmente desprovida de operação, onde já se viu uma operação que não seja o movimento de uma potência natural? Que “a operação natural de Deus e da criatura sejam uma”, nenhum homem de senso poderá admitir, segundo o bem-aventurado Cirilo. Não foi a natureza humana que deu a vida a Lázaro, nem foi a divina soberania que chorou. Pois chorar é traço da humanidade e a vida é da Vida enipostática. E, não obstante, tanto uma coisa como outra são comuns a ambas, por causa da identidade da hipóstase. Pois de um lado Cristo é um, e única é também sua pessoa, também chamada de sua hipóstase, e não obstante ele possui duas naturezas, de sua divindade e de sua humanidade. De sua divindade procede por natureza a glória, mas esta se torna comum às duas por causa da identidade da hipóstase; da carne provêm os rebaixamentos, também comuns às duas. Pois ele é um e idêntico, sendo isso e aquilo, Deus e homem, e a ele próprio pertencem os traços da divindade e os da humanidade. A divindade opera os sinais divinos, mas não à exclusão da carne, e a carne opera os rebaixamentos, mas não separada da divindade. À carne sofredora estava unida a divindade que permanecia impassível e realizava os sofrimentos, meios de nossa salvação; à divindade operativa do Verbo estava unido o santo intelecto que concebia e sabia o que se realizava.

A divindade faz assim com que o corpo participe de seus próprios privilégios, ao mesmo tempo em que permanece não participando dos sofrimentos da carne, Pois se a divindade do Verbo opera por intermédio da carne, por sua vez sua carne não sofreu o mesmo por intermédio da divindade; de fato, a carne fez o papel de instrumento da divindade. Exatamente desde a concepção, já não mais houve separação entre uma e outra forma; todas as ações de uma e de outra forma couberam sempre a uma só e mesma pessoa; não obstante, nós não confundimos aquilo que se produziu sem separação; ao contrário, a partir da qualidade das operações, nós percebemos de qual forma ela provém.

Cristo, por conseguinte, opera em conformidade a cada uma de suas duas naturezas, e “cada natureza opera nele em comunhão com a outra”; o Verbo, pela autoridade e a soberania da divindade, efetua o que cabe ao Verbo, ou seja, tudo o que é da ordem do mandamento de da realeza; o corpo realiza tudo o que cabe ao corpo, tendo em vista a vontade do Verbo que está unido a ele e do qual ele se tornou propriedade. Com efeito, não é de si próprio que partiu o impulso em direção ao que lhe faria sofrer, ou que lhe causasse repugnância ou rejeição, ou que sofresse o que lhe sobreviesse desde fora. Não, ele se movia de acordo com o que era de sua natureza porque assim o queria e consentia o Verbo em virtude da economia da salvação, que deixava que seu corpo sofresse e agisse segundo o que lhe era próprio, a fim de que a realidade de sua natureza fosse confirmada pelas obras.

Assim como, no seio da virgem, ele recebeu sua essência de condições que ultrapassavam essa essência, ele operou o que cabe aos homens em condições que ultrapassaram o homem: ele caminhou com seus pés terrestres sobre a água instável[61], sem que a água se tornasse terra, mas porque, consolidada pela potência sobrenatural da divindade, ela não escoou nem cedeu sob o peso de pés materiais. Pois ele não cumpria humanamente as ações humanas (pois ele não era apenas homem, mas também Deus; daí o caráter vivificante e salutar de seus sofrimentos); mas ele tampouco cumpria divinamente as operações divinas (pois ele não era apenas Deus, mas também homem; daí a realização dos sinais divinos através do toque, da palavra e de outros meios similares).

Mas pode-se dizer: não é para suprimir a operação humana que falamos de uma só operação no caso de Cristo, mas porque a operação humana é chamada de paixão por oposição à operação divina; eis porque falamos de uma operação única no caso de Cristo. Nós respondemos assim: seguindo esse argumento, aqueles que falam de uma natureza única não o fazem para suprimir a natureza humana, mas porque esta, por oposição à natureza divina, é passiva. Para nós, não agrada a Deus que, para colocarmos uma distância em relação à operação divina, qualifiquemos como paixão o movimento humano! Pois é uma regra geral que a existência de nenhum ser é conhecida ou definida por aproximação ou por comparação. Sem o que, as realidades existentes se encontrariam numa relação de causalidade recíproca. Sem com efeito, por ser o movimento divino uma operação, o movimento humano constitui uma paixão, sem nenhuma dúvida também, pelo fato de que a natureza divina é boa, a natureza humana será má, e, recíproca e inversamente, por ser o movimento humano denominado de paixão, o movimento divino será chamado de operação, e por ser a natureza humana má, será boa a divina. Assim, todas as criaturas serão más e terá mentido aquele que disse: “E Deus viu tudo o que havia feito e viu que tudo era muito bom[62]”.

Quanto a nós, eis o que afirmamos: os santos Padres chamaram o movimento humano de diversas maneiras em relação com conceitos subjacentes. Com efeito, eles o denominaram potência, operação, diferença, movimento, propriedade, qualidade, paixão. Não se tratava de marcar uma oposição em relação ao movimento divino; mas, na medida em que se tratava de força conservadora e imutável, eles o chamaram de potência, enquanto elemento característico que revela a semelhança entre todos os seres de mesma espécie, operação, na medida em que permite a distinção, diferença, enquanto revelador, movimento, enquanto constitutivo, ligado a uma dada propriedade e a nenhuma outra, propriedade, na medida em que apresenta a espécie, qualidade, na medida em que move, paixão. Com efeito, todos os seres que provêm de Deus e que vêm depois de Deus estão sujeitos à paixão pelo fato de que são movidos, não sendo nem movimento por si nem potência por si, não, como já se disse, em virtude de uma distinção por oposição, mas por causa da razão neles depositada ao serem criados pela causa que instaurou o universo. Eis porque, de comum acordo, também chamamos esse movimento de operação depois da operação divina. Com efeito, aquele que disse: “Cada uma das formas opera em comunhão com a outra[63]”, não fez a mesma coisa do que aquele que disse: “E depois de jejuar por quarenta dias teve fome[64]” (pois ele permitiu à natureza, quando quis, que ela realizasse sua própria operação), ou do que os que afirmaram nele a presença de uma operação diversificada, ou dupla, ou uma e outra? Pois muitas vezes as duas operações são apontadas por meio de uma antinomia; e, por antinomia, muitas vezes o número é implicado, ou bem se afirmando divino e humano. “Pois a diferença é a diferença de seres diferentes”; ora, como aquilo que não é poderá diferir?


60 (III, 16)
Contra os que dizem: “Se o homem possui duas naturezas e duas operações, é forçoso atribuir a Cristo três naturezas e três operações”.

O indivíduo humano é constituído de duas naturezas, a da alma e a do corpo, e podemos facilmente admitir que ele possui em si essas duas naturezas sem transformação possível, pois, mesmo depois de sua união, ele conserva as propriedades naturais de cada uma delas. Com efeito, o corpo não é imortal, mas corruptível, enquanto que a alma não é mortal, mas imortal, e o corpo não é invisível enquanto que não podemos ver a alma com os olhos do corpo; enquanto esta é racional, intelectiva e imaterial, aquele é denso, visível e desprovido de razão. Ora, aquilo que dividimos e opomos quanto à essência não é de natureza única; portanto a alma e o corpo não pertencem a uma essência única.

E mais: se o homem é um animal racional mortal, se toda definição coloca em evidência as naturezas subjacentes e se o racional e o mortal não são idênticos quanto à sua razão de natureza, o homem não pode ser de natureza única segundo a norma de sua própria definição.

Se acaso dissermos que o homem pertence a uma natureza única, estaremos tomando o termo natureza no sentido de espécie, em função desses dados: um homem não difere de outro por nenhuma diferença de natureza, visto que todos os homens têm a mesma constituição e são compostos de alma e corpo; como todos contam com duas naturezas, eles podem ser todos colocados sob a mesma definição. Não existe aí nenhum absurdo, embora, segundo uma afirmação de santo Atanásio, todos os seres criados, na medida em que estão submetidos ao devir, possuem uma natureza única. Em seu livro contra os blasfemadores do Espírito Santo[65], ele diz: “Que o Espírito Santo está acima da criação e que é outro quanto à natureza em relação aos seres submetidos ao devir, que ele pertence à divindade, é possível ver por causa disso”. “Pois tudo o que se pode ver em comum dentre muitos seres sem maior ou menor grau toma o nome de essência”. Portanto, como todo home é composto de alma e corpo, desse ponto de vista falamos de uma única natureza para os homens. Mas no caso da hipóstase do Senhor não podemos falar em natureza única; pois as naturezas preservam, mesmo depois de sua união, suas propriedades de natureza, e não é possível encontrarmos uma espécie de “cristos”. Nunca houve outro Cristo formado de uma divindade e uma humanidade, identicamente Deus e homem.

E mais: não existe identidade entre a unidade do homem segundo a espécie e a unidade da alma e do corpo segundo a essência. A unidade do homem segundo a espécie coloca em evidência a ausência de diferença entre todos os homens; a unidade entre a alma e o corpo segundo a essência destrói seu próprio ser e o reduz totalmente à não-existência. Com efeito, ou bem essa unidade se transformará em essência de um dentre eles, o que transformará a ambos, ou bem esses dois permanecerão tais como são definidos e conformarão duas naturezas. Pois o corpo não é idêntico ao incorpóreo quanto à essência. Por conseguinte, se falarmos de natureza única no caso do homem (não em razão da identidade da qualidade essencial da alma e do corpo, mas em razão da ausência de diferença entre os indivíduos compreendidos na espécie), nem por isso seremos obrigados a falar de natureza única no caso de Cristo, onde não existe espécie comportando muitas hipóstases.

Por outro lado, toda composição é considerada como resultante como tal de componentes imediatos: não dizemos que uma casa é composta de terra e água, mas de tijolos e argamassa. Portanto é forçoso afirmar que o homem tem cinco componentes, que são os quatro elementos e a alma. Assim, no caso de nosso Senhor Jesus Cristo, não consideramos as partes de partes, mas os componentes imediatos, a divindade e a humanidade.

Por outro lado, se, porque falamos em duas naturezas para o homem, formos obrigados a falar de três naturezas no caso de Cristo, também vocês, ao dizerem “o homem provém de duas naturezas”, adotam a opinião de que Cristo provém de três naturezas; e o mesmo acontecerá para as operações, pois a operação corresponde à natureza. Agora, que o homem pertence a duas naturezas, em linguagem e em realidade, Gregório o teólogo o testemunha: “Duas naturezas, diz ele, um Deus e um homem, porque ele é simultaneamente alma e corpo[66]”. E em seu discurso sobre o batismo, ele diz: “Porque somos duplos, feitos de alma e de corpo, de uma natureza visível e de uma invisível, dupla também é a purificação, pela água e pelo Espírito[67]”.


61 (III, 17)
Sobre a divinização da natureza e da vontade da carne do Senhor.

Saibamos: não é em virtude de uma transformação de sua natureza, de uma mudança, de uma alteração ou de uma confusão, que afirmamos ser divinizada a carne do Senhor, que dizemos que ela é semelhante a Deus e que se tornou Deus, conforme disse Gregório o teólogo: “Dos dois, um divinizou, outro foi divinizado”, e: “Ouso dizer, semelhante a Deus”, e: O que ungia se tornou homem, e Deus o que era ungido[68]”. Mas isso não aconteceu por uma transformação da natureza, mas por uma união da economia, ou seja, pela união segundo a hipóstase, por meio da qual a carne foi unida inseparavelmente a Deus o Verbo, pela pericorese das naturezas entre si, como quando falamos da combustão do ferro. Com efeito, assim como confessamos que a entrada na condição humana aconteceu sem transformação nem mudança, o mesmo aconteceu em relação à divinização da carne.  Por se fazer carne, nem por isso o Verbo saiu dos limites de sua divindade própria, assim como dos apanágios que lhe cabem enquanto Deus. Tampouco a carne divinizada foi modificada em sua natureza própria e em suas propriedades de natureza. Houve uma permanência, mesmo depois da união, das naturezas não misturadas e de suas propriedades intactas. Mas a carne do Senhor desfrutou da riqueza das operações divinas devido à sua união perfeitamente pura com o Verbo, vale dizer, a união segundo a hipóstase, sem ter que suportar nenhuma perda quanto às suas propriedades de natureza. Pois não é em virtude de sua operação própria, mas é graças ao Verbo unida a ela, que ela opera divinamente, pois o Verbo manifesta através dela sai própria operação. O ferro aquecido até o rubro queima, não porque possua em razão de sua natureza a operação de queimar, mas porque ele a adquiriu por sua união com o fogo.

A mesma carne, por conseguinte, era mortal por si mesma e vivificante por causa de sua união ao Verbo segundo a hipóstase. Da mesma forma falamos de divinização da vontade, não porque o movimento natural tenha se transformado, mas porque ele foi unido ao divino e onipotente querer, e porque essa vontade humana se tornou a do Deus encarnado. Eis porque, quando ele quis se ocultar[69], ele não tinha em si a possibilidade de fazê-lo, porque quis Deus o Verbo mostrar que em verdade nele existia a fraqueza da vontade humana; em revanche, quando ele quis a purificação do leproso[70], ele a operou, graças à sua união com a vontade divina.

De resto, ele fez saber que a divinização da natureza e da vontade é o que melhor manifesta e demonstra a existência das duas naturezas e das duas vontades. Pois assim como a combustão não transforma a natureza daquilo que foi aquecido na natureza do fogo, mas mostra que algo aqueceu e algo foi aquecido, tornando evidente que não existe unidade, mas dualidade, também a divinização não resulta numa única natureza composta, mas em duas, com uma união segundo a hipóstase. É assim que Gregório o teólogo disse: “Dos dois, um divinizou, o outro foi divinizado”; essas expressões, “dos dois... um... o outro”, mostram bem a existência de dois termos.


62 (III, 18)
Ainda sobre as vontades e os livres arbítrios, sobre os intelectos, os conhecimentos e as sabedorias.

Uma vez que afirmamos que Cristo é Deus perfeito e homem perfeito, atribuiremos a ele todos os atributos naturais tanto de seu Pai como de sua mãe. Pois ele se fez homem, a fim de que o vencido obtivesse a vitória. Ele não teria sido incapaz, com efeito, ele que tudo pode, de arrancar o homem de seu tirano com nada além da soberania de seu poder onipotente. Mas isso teria dado pretexto à reclamação do tirano de que, depois de ter vencido o homem, fosse violentado por Deus. Em seu desejo de colocar aquele mesmo que havia sido vencido, na posição de vencedor, o Deus compassivo e filantropo se fez homem e restaurou o semelhante por meio do semelhante.

Que o homem é um animal racional e intelectivo, ninguém contestará. Então, como poderia Deus ter se tornado homem se houvesse assumido uma carne sem alma ou uma alma sem intelecto? Isso não constituiria um homem! E que benefício teríamos nós com a encarnação se o primeiro a sofrer não tivesse sido salvo e se não tivesse sido renovado e fortificado pela conjunção com a divindade? “Pois aquilo que não foi assumido não pode ter sido curado[71]”. Assim, ele assumiu o homem inteiramente, mesmo a melhor parte do homem, que havia sucumbido à enfermidade, a fim de conceder o dom da salvação ao homem inteiro. Por outro lado, um intelecto sem sabedoria e privado de conhecimento não teria como existir: com efeito, se ele não possuir nem operação, nem movimento, tampouco possuirá qualquer existência. Em sua vontade de renovar aquilo que foi feito à sua imagem, Deus o Verbo se tornou homem. Ora, o que foi feito à imagem, senão o intelecto? Ele teria deixado de lado o melhor, assumindo o pior? Com efeito, o intelecto ocupa uma posição intermediária entre Deus e a carne, por coabitar com esta e por sua qualidade de imagem daquele. Existe aí uma mistura, portanto, de um intelecto com outro e mediação do intelecto entre a pureza de Deus e a pesandez da carne. Pois se o Senhor tivesse assumido uma carne desprovida de intelecto, teria assumido a alma de um animal irracional.

Quando o evangelista diz que o Verbo se fez carne[72], saibamos que, segundo a santa Escritura, o homem tanto é chamado de alma (como na frase: “Jacó entrou no Egito com setenta almas[73]”), como é chamado de carne (como na frase: “toda carne verá a salvação de Deus[74]”). Portanto, não foi uma carne sem alma ou sem intelecto, mas um homem que o Senhor se tornou. É assim que ele próprio disse: “Porque me bates, em mim, um homem que disse a verdade?[75]”. Ele assumiu uma carne animada por uma alma racional e intelectiva, que governava a carne, mas que era governada pela divindade do Verbo.

Assim é que por natureza ele possuía a vontade tanto como Deus quanto como homem; ele seguia sua vontade e lhe obedecia; uma vontade que não se movia por uma decisão própria, mas que queria aquilo que nele queria a vontade divina. Por concessão da vontade divina, ele sofreu aquilo que lhe cabia por natureza. Com efeito, quando ele recusou a morte, ele o fez devido à sua natureza, ele sofreu a agonia, ele teve medo com o consentimento e por concessão da vontade divina. E quando sua vontade divina quis que sua vontade humana escolhesse a morte, a Paixão se tornou voluntária para ela. Pois não foi apenas enquanto Deus que ele se entregou livremente à morte, mas também como homem. Daí a audácia em face da morte com a qual ele gratificou também a nós. De resto, eis porque ele disse, antes de sua Paixão salvadora: “Pai, se for possível, afasta de mim esse cálice[76]”. Evidentemente, ele iria beber desse cálice enquanto homem, e não enquanto Deus. Como homem, portanto, ele quis que o cálice fosse afastado; essa é a linguagem do temor natural. “Entretanto não se faça a minha vontade” – do ponto de vista, entenda-se, segundo o qual eu sou de uma essência diferente do que você [o Pai] – “mas a sua[77]”, a minha e a sua, entenda-se, do ponto de vista segundo o qual eu possuo uma natureza consubstancial à sua: essa é a linguagem de um justo audaz. Num primeiro momento a alma do Salvador foi experimentada pela fraqueza da natureza, ela sofreu em sua sensibilidade a simpatia que lhe era natural no caso de uma separação do corpo. Isso é porque ele se tornou homem em virtude de uma decisão sua, irrevogável; depois essa alma, fortalecida pela vontade divina, firmou-se diante da morte. Como o mesmo era inteiramente Deus com sua humanidade e inteiramente homem com sua divindade, ele tinha o elemento humano, enquanto homem, subordinado em si e através de si a Deus Pai: por meio disso ele se entregou a si próprio como nosso melhor modelo e exemplo, e se fez obediente ao Pai[78].

Ele exerceu seu livre arbítrio tanto na sua vontade divina como na humana. Pois toda natureza racional é forçosamente dotada de uma vontade armada de livre arbítrio. Por que teria ela a razão, se não fosse para exercê-la em pleno livre arbítrio? Pois o apetite natural foi colocado pelo Criador mesmo nos animais sem razão para conduzi-los à conservação de sua natureza própria. Na falta da razão, eles não podem conduzir, mas são conduzidos por seu apetite natural. Daí, assim que se produz um apetite, segue-se um impulso imediato para a ação. Razão, deliberação, exame, julgamento – o apetite não usa nada disso. Por isso não cabem nem elogios, nem felicitações, como se houvesse participação da virtude, nem castigos, como se as ações fossem viciosas. Quanto à natureza racional, ela possui um apetite por natureza que entra em movimento, mas este é conduzido e regulado pela razão em função daquilo que preserva a ordem da natureza. Pois o privilégio da razão se coloca na vontade dotada de livre arbítrio, que nós qualificamos como movimento da natureza no ser racional. Eis porque a ele cabem elogios e felicitações pela participação na virtude e castigos pela participação no vício.

De tal maneira que a alma do Senhor desejou por um movimento delivre arbítrio, mas desejou por meio desse movimento que a sua vontade divina desejasse o que quisesse. Com efeito, não foi um injunção do Verbo que colocou em movimento a carne (tanto Moisés como todos os santos foram movidos por uma injunção divina); foi o mesmo indivíduo, por ser em si um só Deus e homem, que desejou segundo sua vontade divina e segundo sua vontade humana. E as duas vontades do Senhor diferiram entre si não pela decisão, mas pela potência natural. Pois enquanto que sua vontade divina era sem começo, onipotente, com o poder ligado a ela, e impassível, sua vontade humana teve um começo no tempo, sofreu as paixões não culpáveis da natureza e não era onipotente por sua natureza, embora enquanto atributo verdadeiro e natural de Deus ela tenha também se tornado onipotente.


63 (III, 19)
A operação teândrica

O bem-aventurado Denis, ao dizer que Cristo, “durante sua vida entre nós praticou uma operação nova, teândrica”, não suprimiu as operações naturais para afirmar que uma operação única nasceu da humana e da divina. Pois senão poderíamos falar também de uma única natureza nova nascida conjuntamente da natureza divina e da humana; segundo os santos Padres, “aquilo que possui uma operação única possui também uma essência única”. Denis, ao contrário, queria mostrar a nova e inefável maneira como se manifestaram as operações naturais de Cristo em perfeito acordo com o inefável modo da pericorese de ambas as naturezas de Cristo; e também mostrar o caráter insólito e paradoxal, desconhecido na ordem natural, da conduta de sua vida enquanto homem e do modo de mudança que se estabeleceu em função da inefável união. Com efeito, dizemos que as operações não são separadas e que também as naturezas não operam separadamente, mas se unindo, cada qual operando em comunhão com a outra aquilo que ela possui de seu. Porque Cristo não operou de forma humana aquilo que cabe ao homem, porque ele não era um simples homem; tampouco operou de forma unicamente divina o que cabia ao Deus, porque ele também não era exclusivamente Deus; tudo o que ele fez, ele fez sendo simultaneamente Deus e homem. De fato, assim como a união das naturezas e de suas diferenças naturais, também devemos estar conscientes do mesmo em relação às vontades e operações naturais.

Tenhamos em mente, no caso de nosso Senhor Jesus Cristo, que falamos tanto do ponto de vista de duas naturezas como do de uma só pessoa. Mas tanto um como outro se referem a uma única noção: pois as duas naturezas são um Cristo único e o único Cristo é as duas naturezas. Isso equivale a dizer: Cristo opera segundo cada uma de suas duas naturezas, e “cada natureza opera em Cristo em comunhão com a outra[79]”. De fato, a natureza divina está em comunhão com a carne quando esta opera, pelo fato de que a determinação da vontade divina concede a essa carne sofrer e operar o que lhe é próprio, e pelo fato de que a operação da carne é seguramente salvadora, caráter que não pertence à operação humana, mas à operação divina. Por sua vez, a carne está em comunhão com a divindade do Verbo quando esta opera, pelo fato de que as operações divinas se realizam utilizando o corpo como um instrumento, e também pelo fato de que é único aquele que opera ao mesmo tempo divina e humanamente.

Pois é preciso ter em mente que seu santo intelecto coloca em operação mesmo suas operações naturais percebendo e conhecendo ser o intelecto de Deus, e que toda a criação o adora, na lembrança tanto de seus gestos como de seus sofrimentos sobre a terra. Ele está em comunhão, por outro lado, com a divindade do Verbo quando este dispõe e rege o universo, e por esse motivo ele concebe, conhece e dispõe não como o intelecto de um simples homem, mas como unido a Deus segundo a hipóstase e cumprindo a função de intelecto de Deus.

Eis, portanto, o que significa a operação teândrica: uma vez que Deus se fez homem, ou seja, que ele penetrou na condição humana, sua operação humana se tornou divina, ou divinizada, jamais ocorrendo à parte de sua operação divina; e sua operação divina não acontecia sem a participação de sua operação humana, devendo as duas ser consideradas uma com a outra sempre. Chamamos de perífrase essa figura que abarca duas coisas numa só expressão. É como quando consideramos como uma só coisa a queimadura cortante e o corte que queima da espada aquecida ao rubro. E no entanto, dizemos que o corte é uma operação e que a queimadura é outra, e que elas provêm de duas naturezas diferentes, a queimadura provém do fogo e o corte provém do metal. Da mesma forma, quando falamos da única operação teândrica de Cristo, entendemos que são duas as operações de suas duas naturezas: a operação divina provém de sua divindade e a operação humana de sua humanidade.


64 (III, 20)
As paixões naturais e não culpáveis

Nós confessamos que Cristo assumiu todas as paixões naturais e não culpáveis do homem.  Com efeito, ele assumiu o home por inteiro, e tudo o que é do homem, com exceção do pecado. Pois este não pertence à nossa natureza e não foi semeado em nós pelo Criador: ele provém do diabo, e foi semeado em nós posteriormente em nosso livre arbítrio, que o deixou instalar-se à vontade, sem que a violência nos tenha constrangido. São naturais e não culpáveis as paixões que não dependem de nós, todas aquelas que em decorrência da condenação após a transgressão penetraram na condição humana, como por exemplo a fome, a sede, a fadiga, o trabalho, as lágrimas, a corrupção, a recusa da morte, o temor, a agonia (de onde provém o suor e as gotas de sangue), o socorro que a fraqueza de nossa natureza nos obriga a receber dos anjos, e outras coisas semelhantes. Tudo isso existe em todos os homens por sua própria natureza.

Ele assumiu todas essas coisas para santificar a todas. Ele sofreu a tentação e a venceu, a fim de nos assegurar a vitória e de dar à nossa natureza a força para vencer o adversário; assim, a natureza outrora vencida triunfou sobre seu antigo vencedor por meio dos mesmos golpes com que fora vencida.

Ora, o maligno atacou a Cristo desde fora e não por intermédio de seus pensamentos, assim como fez com Adão; pois também este não foi atacado por seus pensamentos, mas pela serpente. Mas o Senhor repeliu o ataque e o dissipou como fumaça, a fim de que as paixões que o atacaram e sobre as quais ele triunfou se tornassem também para nós adversários fáceis e que desse modo o novo Adão trouxesse a salvação ao antigo.

Indiscutivelmente nossas paixões naturais existiram em Cristo, conformes à natureza e superiores à natureza. Elas se moveram nele conforme a natureza quando ele permitiu que a carne sofresse o que lhe fosse próprio. Elas eram superiores à natureza porque no Senhor os movimentos naturais não precediam a vontade. Em seu caso, nada vemos que tenha sido feito sob a ação de constrangimento, tudo aconteceu por sua própria vontade. Ele quis ter fome, ele quis ter sede, ele quis provar do temor, ele quis morrer.


65 (III, 21)
A ignorância e a servidão

Devemos estar conscientes de que ele assumiu a natureza ignorante e sujeitada. Com efeito, a natureza humana é serva em relação a Deus, que a fez, e ela não possui o conhecimento do devir. “Portanto”, diz Gregório o Teólogo, “se separamos o visível do invisível”, a carne será chamada de ignorante e sujeitada; mas, por causa da identidade da hipóstase e também por causa da indefectível união, a alma do Senhor desfrutou do conhecimento do futuro, assim como dos demais signos da divindade. Da mesma forma, a carne dos homens, por sua própria natureza, não é vivificante (mas a carne do Senhor, unida que estava ao Deus Verbo em pessoa segundo a hipóstase, mesmo não escapando à mortalidade conforme sua natureza, se tornou vivificante devido à sua união hipostática com o Verbo), e não podemos dizer que ela não era e que não permanece para sempre vivificante. Assim é que a natureza humana não possui por essência o conhecimento do devir, mas a alma do Senhor, devido à sua união ao Deus Verbo e à sua identidade de hipóstase, junto com os outros signos da divindade, desfrutava, repito, do conhecimento do devir.

É preciso ter em mente que não podemos chamá-la de escrava. Pois os termos de servidão e dominação não são marcas de uma natureza, mas de relações, como as de paternidade e de filiação, as quais não significam uma essência, mas uma relação. O mesmo acontece em relação à ignorância: diremos que se separarmos o criado do incriado por meio de considerações e de imaginações sutis, a carne é serva, desde que ela não esteja unida a Deus o Verbo. Mas uma vez unida segundo a hipóstase, como poderá ela ser sujeitada?   Cristo é um: portanto, ele não pode ser escravo ao mesmo tempo em que é Senhor. Termos como esses não podem ser aplicados de forma absoluta, mas sempre um em relação ao outro. De quem seria ele escravo, então? Do Pai? Mas então tudo o que o Pai possui, não possuirá o Filho[80], porque ele seria escravo do Pai, mas não de si mesmo. E como poderia o Apóstolo dizer: “De sorte que não sereis mais escravos, mas filhos[81]”, por termos sido feitos filhos por ele, se ele fosse verdadeiramente escravo? É por um modo de denominação, portanto, que o qualificamos como escravo, mas não que ele o seja em si mesmo, mas porque ele tomou, por nossa causa, a forma de escracho, e assim nós o denominamos como escravo[82]. Sendo ele impassível, por nossa causa sujeitou-se às paixões e se tornou ministro de nossa salvação. Os que o chamam de escravo dividem em dois o Cristo único, como Nestorius. Quanto a nós, afirmamos que ele é o mestre e Senhor de toda a criação, ele o único Cristo, identicamente Deus e homem, e que conhece tudo. “Nele estão ocultos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento[83]”.


66 (III, 22)
O progresso

Ele progredia, conforme foi dito, “em sabedoria, idade e graça[84]”. Crescendo em idade e graça, ele acrescentava a esse crescimento a manifestação da sabedoria que havia nele: por outro lado ele fazia seu próprio progresso como o dos homens em sabedoria e graça, ao mesmo tempo em que cumpria a vontade do Pai, qual seja o conhecimento de Deus entre os homens e a sua salvação; em todos os domínios ele se apropriava daquilo que está em nós. Dizer que ele progredia em sabedoria e graça porque ele recebia um suplemento dessas coisas equivale a dizer que que a união não havia acontecido desde a primeira vinda à existência na carne; equivale ainda a não respeitar a união segundo a hipóstase, é dar fé ao descerebrado Nestorius e construir um monstro de união por relação e simples habitação. “Essas pessoas não compreendem nem o que elas dizem, nem o objeto de suas afirmações[85]”. Com efeito, se a carne estava verdadeiramente unida ao Deus Verbo desde sua primeira vinda à existência, ou antes, se ela veio à existência nele e obteve a identidade da hipóstase com ele, como poderia ela não ter tido à perfeição todas as riquezas da sabedoria e da graça? Não que ela tivesse participado da graça nem que ela tenha participado pela graça dos bens do Verbo; antes, em virtude da união hipostática, os traços humanos e divinos se tornaram propriedade do Cristo único; não era ele mesmo ao um tempo Deus e homem e, por conseguinte, não seria essa carne a fonte de onde brotaram a graça, a sabedoria e a plenitude de todos os bens?


67 (III, 23)
O temor

 O termo “temor” admite um duplo sentido. Existe um temor natural, que faz com que a alma se recuse a se separar do corpo por causa da simpatia e da familiaridade naturais que desde a origem o Criador depositou nela; por causa disso ele teme naturalmente a morte, ela experimenta a agonia, ela exprime uma recusa. Assim se define: “o temor natural é uma força de retração por meio da qual nos ligamos ao nosso ser[86]”. Uma vez que todas as coisas foram trazidas pelo Criador do nada à existência, elas possuem uma tendência natural ao ser e contra o nada. Esta é uma propriedade natural sua, o impulso na direção daquilo que as conserva. E Deus o Verbo, por ter se tornado homem, teve essa tendência, que o fez manifestar um impulso para aquilo que conserva a natureza, seja o alimento e a bebida, seja a tendência ao sono. E por causa de sua natureza, ele experimentou todas essas coisas. Quando se apresentou o risco de destruir esse impulso, como no caso da Paixão, ele teve livremente uma retração diante da morte. Com efeito, se o que lhe aconteceu foi sido causado por uma lei da natureza, não aconteceu com ele como conosco em análogas condições: ele aceitou os fatos da natureza, desejando-os e com seu pleno consentimento. De tal maneira, que esse temor, assim como o medo e a agonia, são causados por paixões naturais e não culpáveis que não estão sujeitas a pecar.

Existe ainda um outro temor, aquele que se instala por uma falha do raciocínio, da incredulidade ou da ignorância sobre a hora da morte, como quando nos tornamos temerosos quando sobrevém um ruído em plena noite. Esse temor é contra a natureza, e nós o definimos nos seguintes termos: “o temor contra a natureza é uma retração contrária à razão”. A esta o Senhor não concedeu acesso. Assim é que ele jamais experimentou o temor, salvo no momento da Paixão, mesmo que ele tenha se retraído muitas vezes em virtude da economia; pois ele não ignorava esse momento.

Que ele tenha verdadeiramente experimentado o medo, santo Atanásio o afirma em seu discurso contra Apolinário: “...é por isso que o Senhor disse: ‘Agora minha alma está perturbada[87]’. Esse ‘agora’ significa quando ele quis; entretanto ele fez com que aparecesse a realidade; pois ele não deu ao irreal o nome do presente, como se aquilo de que falava acontecesse em aparência. Tudo se produziu por causa da natureza e em verdade”. E mais adiante: “Jamais a divindade admitiu um sofrimento sem que sofresse um corpo, tanto quanto ela não manifestou perturbação ou tristeza sem que uma alma estivesse triste ou atormentada, nem esteve atormentada e rezasse sem que o tormento e a oração fossem mentais”. Com efeito, se esses acontecimentos não se produzissem por uma fraqueza da natureza, eles aconteceriam para mostrar sua existência”. A expressão ‘não se produziu por uma fraqueza da natureza’ significa que ele não suportou tudo isso involuntariamente.


68 (III, 24)
A prece do Senhor

A prece é uma elevação do espírito para Deus ou um pedido a Deus daquilo que nos convém. Como, então, o Senhor pôde orar no caso de Lázaro ou no momento da Paixão? Seu santo intelecto não tinha necessidade de elevação a Deus, unido que estava de uma vez por todas ao Deus Verbo segundo a hipóstase, e tampouco ele precisava fazer qualquer pedido a Deus; pois Cristo era Deus. Mas ele se apropriou de nosso personagem, ele moldou em si nosso ser, tornou-se para nós um modelo, ele nos ensinou a pedir a Deus, a nos dirigirmos a ele, e através de seu santo intelecto ele nos traçou o caminho de subida até Deus. Assim como ele suportou sofrimentos por nós, nos adjudicando a vitória sobre eles, da mesma forma ele orou, traçando para nós, repito, o caminho de subida até Deus, nos reconciliando com seu Pai, prestando homenagem a ele como ao seu princípio e sua causa, mostrando que ele não era um deus rival. Quando ele disse a propósito de Lázaro: “Pai, eu lhe dou graças porque me atendeste. Eu sei que sempre me atendes; mas eu falei à multidão presente a fim de que eles saibam que tu me enviastes[88]”, não fica claro para todos que ele o fez prestando homenagem a seu Pai como seu princípio e sua causa, e mostrando que ele não é um deus rival?

Por outro lado, quando ele disse: “Pai, se for possível, afasta de mim esse cálice; e no entanto não se faça a minha vontade, mas a tua[89]”, não fica evidente para todos que ele o fez para nos ensinar a pedir ajuda apenas a Deus nas tentações, a escolher a vontade divina de preferência à nossa, mostrando também que ele verdadeiramente se apropriou dos traços de nossa natureza, porque ele possui realmente duas vontades de natureza, correspondentes às suas duas naturezas, mas que elas não são antagônicas? Ele disse ‘Pai’, na medida em que é consubstancial, ‘se for possível’, não por ignorância – pois o que existe de impossível a Deus? – mas para nos ensinara preferir a vontade divina à nossa. Pois só é impossível aquilo que Deus não quer nem permite. ‘No entanto faça-se a tua vontade e não a minha’: como Deus, sua vontade é idêntica à do Pai, mas como homem ele manifestou a vontade que cabe por natureza à humanidade; e, de fato, essa vontade recusa naturalmente a morte.

Se ele disse: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste[90]?”, é porque ele se apropriou do nosso personagem. Pois o Pai não é seu Deus a menos que separemos por imaginações sutis do intelecto o visível do inteligível e que assim o coloquemos no nosso nível. Ele tampouco foi abandonado por sua própria divindade: nós teríamos sido abandonados e esquecidos. Ele fez essa oração porque ele se apropriou do nosso personagem.


69 (III, 25)
A apropriação

É preciso ter em mente que existem duas espécies de apropriação, uma natural e essencial, a outra pessoal e relativa. A apropriação natural e essencial é aquela segundo a qual o Senhor, por amor aos homens, assumiu nossa natureza e todas as suas qualidades, tornando-se homem por natureza e experimentando nossas qualidades naturais. Existe apropriação pessoal, então, quando alguém endossa o personagem de outro em virtude de uma relação, por exemplo a compaixão, ou o amor, e pronuncia em lugar do outro e em seu favor discursos que não cabem a ele próprio. É segundo esse modo que ele se apropriou da maldição e do abandono que eram nossos, assim como de outros traços similares não ligados à natureza; não que ele fosse ou tivesse se tornado tudo aquilo, mas por ter assumido nosso personagem e se colocado no nosso nível.


70 (III, 26)
Passibilidade do corpo do Senhor e impassibilidade de sua divindade

O Verbo de Deus em pessoa experimentou a tudo em sua carne, enquanto que sua natureza divina, a única impassível, permaneceu impassível. Pois o Cristo único, composto de divindade e humanidade, estando na condição divina e na condição humana, quando sofria, suportava esse sofrimento quanto ao que ele tinha de passível, de submetido ao sofrimento pela natureza, mas não sofria ao mesmo tempo naquilo que tinha de impassível. Pois a alma é passível, e assim, quando o corpo é ferido, ainda que ela não o seja, ela suporta a dor e o sofrimento junto com o corpo; ao contrário, a divindade, sendo impassível, não recebe o sofrimento ao mesmo tempo que o corpo.

De resto, é preciso saber que dizemos “Deus sofreu na carne[91]”, mas nunca “a divindade sofre na carne” ou “Deus sofreu por intermédio da carne”. É como quando o sol ilumina uma árvore e um machado corta essa árvore: o sol permanece impassível e não é cortado; com mais razão ainda, a divindade impassível do Verbo, unida à carne segundo a hipóstase, permanece impassível quando a carne sofre. É o que acontece quando se verte água sobre um ferro rubro ao fogo: um dos dois é submetido por natureza à ação da água (no caso o fogo, que se extingue), enquanto que o outro não sofre dano (no caso o ferro, pois não está na sua natureza ser destruído pela água). Com mais razão, quando a carne sofria, a divindade, única a ser impassível, não se deixava atingir pelo sofrimento, mesmo permanecendo inseparável da carne. Pois não é preciso que os exemplos tenham uma semelhança perfeita e sem defeito. Nos exemplos, é necessário considerar o elemento de semelhança e de dissimilaridade, sem o que não existe exemplo. Pois uma similaridade em todos os aspectos seria uma identidade e não teria o valor do exemplo, sobretudo no que se refere às coisas divinas. De fato, não seria possível encontrar um exemplo em tudo semelhante tanto no caso da teologia como no da economia.


71 (III, 27)
Inseparabilidade da divindade do Verbo, de sua alma e de seu corpo mesmo na morte do Senhor e permanência da hipóstase única

Por ser sem pecado – pois “não cometeu pecado[92], aquele que retirou o pecado do mundo[93]”, e “não se ouviu mentira de sua boca[94]” – nosso Senhor Jesus Cristo não estava submetido à morte, pois foi por causa do pecado que a morte penetrou no mundo[95]. Por conseguinte, ele morreu porque aceitou a morte por nós; e ele ofereceu a si mesmo em sacrifício por nós ao Pai.  Pois foi a ele que ofendemos e ele quem tinha o direito de receber uma compensação por nós, por meio da qual seríamos libertos da condenação. Longe nós a ideia de que o sangue do mestre tenha sido oferecido ao tirano! A morte avançou, engoliu a massa do corpo e por isso foi trespassada pela lança da divindade; por haver provado do corpo daquele que era sem pecado e que deu a vida, ela foi destruída e rejeitou todos aqueles que outrora havia engolido. De fato, assim como a escuridão se desfaz quando reaparece a luz, também a corrupção é expulsa pelo ataque da vida e se transforma na vida para todos, mas para o corruptor resta a corrupção.

Por conseguinte, mesmo que ele tenha sido morto como homem e que sua santa alma tenha sido separada do corpo sem mácula, sua divindade permaneceu inseparável tanto de uma como de outro, ou seja, tanto da alma como do corpo, e mesmo nesse estado a hipóstase única não se dividiu em duas hipóstases. Com efeito, o corpo e a alma tinham identicamente, desde o começo, sua existência na hipóstase do Verbo e, separados um do outro na morte, eles continuaram cada qual na única hipóstase do Verbo. Assim, a hipóstase única do Verbo era hipóstase do Verbo, da alma e do corpo; pois jamais, nem a alma nem o corpo, possuíram uma hipóstase própria que não fosse aquela do Verbo. Ora, a hipóstase do Verbo é sempre única, jamais dupla. De sorte que a hipóstase do Verbo permaneceu sempre única. E assim, mesmo separada totalmente do corpo, a alma não deixou de estar unida a ele hipostaticamente por intermédio do Verbo.


72 (III, 28)
Da corrupção e da desintegração

O termo de corrupção possui dois significados. Ele designa as paixões sofridas pelo homem: a fome, a sede, a fadiga, os buracos dos pregos, a morte, ou seja, a separação da alma e do corpo, etc. Nesse sentido dizemos que o corpo do Senhor é incorruptível; pois ele assumiu voluntariamente tudo isso. Mas o termo designa também a dissolução completa do corpo nos elementos dos quais ele foi composto e a sua desaparição, e é isso que muitos preferem chamar de desintegração. O corpo do Senhor não sofreu essa prova, como disse o profeta Davi: “Não abandonarás minha alma aos infernos e não permitirás que teu santo veja a desintegração[96]”.

Chamar de incorruptível o corpo de Cristo antes da ressurreição, segundo o primeiro sentido do termo ‘corrupção’, como o fazem os ímpios Juliano e Gaianos, é uma impiedade. Com efeito, se ele fosse incorruptível, ele não nos seria consubstancial, e seria em aparência e não em realidade que teriam acontecido todos os eventos relatados no Evangelho: fome, sede, crucificação, o ferimento do lado, a morte. Se isso tivesse acontecido apenas em aparência, o mistério da economia seria um simulacro, uma encenação; ele teria se tornado homem apenas na aparência e não em realidade, e nossa salvação seria em aparência e não em realidade também. Sendo assim, basta!, e que aqueles que lançam essas afirmações não tenham parte na salvação. Quanto a nós, obtivemos a verdadeira salvação e com ela ficamos. Ao contrário, conforme o segundo sentido, confessamos que o corpo do Senhor não conheceu a corrupção, ou melhor a desintegração, de acordo com a tradição dos Padres inspirados. Depois que o Salvador ressuscitou dos mortos, porém, nós afirmamos a incorruptibilidade do corpo do Senhor inclusive no primeiro sentido. E também aos nossos corpos, através de seu próprio corpo, o Senhor concedeu o dom da ressurreição e a incorruptibilidade posterior, ele que se tornou para nós as primícias da ressurreição, da incorruptibilidade e da impassibilidade. “Com efeito, é preciso que o que é corruptível se revista de incorruptibilidade[97]”, declarou o divino Apóstolo.


73 (III, 29)
A descida aos infernos

A alma deificada desceu aos infernos para que, do mesmo modo como o sol de justiça havia brilhado para os habitantes da terra, brilhasse a luz para aqueles que, sob a terra, assentavam-se nas trevas e na sombra da morte[98]; para que, como para os habitantes da terra havia sido anunciada a paz, aos cativos a libertação, aos cegos a vista[99], como ele foi para os crentes o autor da salvação eterna[100] e para os descrentes a denúncia de sua incredulidade, ele fosse tudo isso para os que estavam nos infernos[101]; para que diante dele todo joelho dobrasse nos céus, na terra e nos infernos[102], e que assim, depois de ter libertado os que jaziam acorrentados há séculos, ele retornasse dos mortos, abrindo a via da ressurreição.




[1] Cf. 1 João 3: 21.
[2] Cf. Gênese 3: 7.
[3] Cf. Romanos 2: 5.
[4] CF. Gênese 4: 12.
[5] Cf. Gênese 6: 13.
[6] Cf. Gênese 11: 17.
[7] Cf. Gênese 19: 1-2.
[8] Cf. Gênese 19: 24-25.
[9] Cf. Deuteronômio 4: 34.
[10] Cf. Sabedoria 2: 24.
[11] Cf. Gênese 3: 4.

[12] João 1: 18.
[13] Cf. João 1: 1.
[14] Filipenses 2: 6.
[15] Cf. Salmo 17: 10.
[16] Cf. Eclesiastes 1: 10.
[17] João 1: 14.
[18] I Timóteo 2: 5.
[19] Cf. João 1: 13.
[20] Cf. II Coríntios 10: 6.
[21] Cf. Lucas 1: 26.
[22] Hebreus 7: 14.13.
[23] Cf. Romanos 11: 16.
[24] Pericorese: mútua interpenetração e coabitação das três pessoas da Trindade.
[25] Leão o Grande, Epístola 28, pg. 14, 1.27.
[26] Cf. I Coríntios 2: 8.
[27] Cf. João 3: 13.
[28] Salmo 44: 8.
[29] Jó, 1: 1.
[30] Cf. I Coríntios 2: 8.
[31] Cf. Baruc 3: 38.
[32] Colossenses 2: 9.
[33] Gregório de Nazianze, Carta 181 C, 1.9 ss.
[34] Efésios 2: 6.
[35] Cf. Romanos 11: 16.
[36] I Coríntios 8: 6.
[37] Romanos 11: 36.
[38] João 1: 14.
[39] Cf. Hebreus 1: 2.
[40] I Coríntios 15: 21.
[41] I Coríntios 15: 47.
[42] Gálatas 4: 4.
[43] I Pedro 1: 20.
[44] Marcos 7: 24; Mateus 15: 21.
[45] João 19: 28; Mateus 27: 34.
[46] Filipenses 2: 8.
[47] Isaías 7: 15.
[48] I Coríntios 7: 25.
[49] Salmo 82: 4.
[50] Daniel 2: 15.
[51] Mateus 8: 3.
[52] Cf. Mateus 15: 36; João 6: 1.
[53] João 5: 17.
[54] João 5: 19.
[55] João 10: 38.
[56] João 10: 25.
[57] João 5: 21.
[58] Marcos 5: 41-42.
[59] Teândrica: que é simultânea à divindade e à humanidade.
[60] João Crisóstomo – Homilia 1 sobre os Atos dos Apóstolos, 18.
[61] Cf. Mateus 14: 25-26; Marcos 6: 48; João 6: 19.
[62] Gênesis 1: 31.
[63] Leão o Grande, Epístola. 28, 14, 1.27.
[64] Mateus 4: 2.
[65] Atanásio, Epístola a Serapião.
[66] Gregório de Nazianze, Epístola 180 A6 s.
[67] Idem, Epístola 1.19.
[68] Estas três citações, cf. Gregório de Nazianze, Orat., 38, 45, 30.
[69] Cf. Marcos 7: 24.
[70] Cf. Mateus 8: 3.
[71] Gregório de Nazianze, Epístola 181 C9 s.
[72] Cf. João 1: 14.
[73] Cf. Gênesis 46: 27.
[74] Lucas 3: 6; Isaías 40: 5.
[75] Cf. João 18: 23; 8: 40.
[76] Mateus 26: 39.
[77] Lucas 22: 42.
[78] Cf. Filipenses 2: 8.
[79] Leão o Grande, Epístola 28.
[80] Cf. João 16: 15.
[81] Gálatas 4: 7.
[82] Cf. Filipenses 2: 7.
[83] Colossenses 2: 3.
[84] Lucas 2: 52.
[85] I Timóteo 1: 7.
[86] Máximo o Confessor, Pyrrhus 297 D3.
[87] João 12: 27.
[88] João 11: 41-42.
[89] Mateus 26: 39.
[90] Mateus 27: 46.
[91] Cf. I Padro 4: 1.
[92] I Pedro, 2: 22.
[93] João 1: 29.
[94] I Pedro 2: 22.
[95] Cf. Romanos 5: 12.
[96] Salmos 15: 10.
[97] I Coríntios 15: 53.
[98] Cf. Lucas 1: 79.
[99] Cf. Isaías 61: 1; Lucas 4: 18.
[100] Cf. Hebreus 5: 9.
[101] Cf. I Pedro 3: 19.
[102] Cf. Filipenses 2: 10.