sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Simeão o Novo Teólogo - A Prece Mística





Simeão o Novo Teólogo


PRECE MÍSTICA






Introdução

O meio

Simeão o Novo Teólogo (949-1022) viveu numa das épocas mais gloriosas do império Bizantino. Um século antes, Basílio I (867-886) havia afastado a ameaça que o Islã, em plena expansão, fazia pesar sobre Constantinopla. Seus sucessores imediatos haviam expulsado os Árabes do norte da Ásia menor e chegaram até a Mesopotâmia, repelindo as invasões bárbaras. A frota bizantina era poderosa o bastante para reconquistar Creta em 961, uma parte da Itália do sul e, por fim, Chipre. Basílio II (963-1025), o “massacrador dos Búlgaros”, levara a fronteira do norte do império até o Danúbio. Uma sábia administração recuperou o tesouro público; o comércio dos mercadores bizantinos se estendia das costas do Adriático até a Rússia e a Índia, indo até o coração da Ásia. A universidade de Constantinopla era um centro brilhante de cultura científica e literária.

Os monges participavam da prosperidade geral; sua coragem no decurso da perseguição iconoclasta, que havia dilacerado o Oriente durante mais de um século, os engrandecera. Eles eram orgulhosos de sua ortodoxia, orgulhosos de seus mártires.

O iconoclasmo, essa discussão a respeito do culto das santas imagens, não colocara em questão apenas as relações entre a arte e a fé; na realidade, ela atingira no coração a devoção dos monges e do povo.

Foi um imperador de Bizâncio, Leão III o Isauriano, que desencadeara o iconoclasmo em 725. Achando-se escolhido por Deus e igual aos Apóstolos, ele havia proibido o culto das imagens, no qual enxergava uma idolatria. O Patriarca de Constantinopla, Germano, tendo protestado, foi deposto. Ele apelou a Roma. Gregório II e seus sucessores se mostraram firmes em dizer que “não se devia nem adorar as imagens, nem destruí-las”. Sua atitude enérgica valeu então uma enorme popularidade ao papado. Em 753, um concílio de bispos cortesãos reunidos em Hieria condenou o culto às imagens, o que suscitou uma violenta reação. “Quanto mais o episcopado se mostrava dócil, mais o monaquismo mostrava ousadia em defender a causa dos santos ícones” (Pargoire), sofrendo assim uma feroz perseguição: mosteiros foram pilhados e destruídos, os monges foram arrastados na lama, torturados e massacrados. Nada pôde dobrá-los, e quando a paz foi restabelecida pela imperatriz regente Teodora, em 843, eles haviam permanecido inflexivelmente fiéis.

Esse passado glorioso explica em Simeão as atitudes inflexíveis que iremos encontrar ao longo de toda a sua vida.

A vida

A juventude

Simeão – Jorge, de seu nome de batismo – nasceu em 949 em Gálata, pequena cidade da Ásia Menor. Seus pais pertenciam à nobreza provincial. Seu pai o conduziu ainda muito jovem a Constantinopla a fim de fazer seus estudos e tentar uma carreira na Corte. Ele tinha quatorze anos quando seu tio quis apresenta-lo ao imperador, junto ao qual gozava de grande crédito. Este era provavelmente Romano II, príncipe de costumes dissolutos. O adolescente se recusou. Na mesma época ele decidiu interromper seus estudos. Ele havia tido seu primeiro contato com o mosteiro de Stoudious, onde conheceu Simeão o Piedoso (ou o Estudita), que se tornou seu pai espiritual. Ele não pôde ou não quis entrar logo na religião. Tendo falecido seu tio, ele se colocou a serviço de outro patrício, levando uma vida bastante mundana.

Sua primeira graça mística[1] foi seguida de um período de relaxamento. Ela durou seis anos. Simeão desempenhava na corte as importantes funções de senador e de camareiro. É ele quem conta: “Pouco a pouco, tomado pela preguiça e a negligência, eu me deixei levar pelos vícios, tanto como antes, ou pior ainda do que antes”. Foi preciso que Deus interviesse poderosamente para tirá-lo “dessa lama”. Ele então resolveu se tornar monge e partiu para se despedir de sua família. Como não conseguiu vencer a violenta oposição de seus parentes em relação ao seu projeto, ele deixou a casa paterna à noite e foi se reunir com seu pai espiritual em Stoudious[2]. Era provavelmente o ano de 977.

O noviciado em Stoudious

Em sua Catequese 16, Simeão fala do fervor com o qual começou seu noviciado, e da primeira visão que ele teve no mosteiro: “Quanto a mim, não consigo nem exprimir com a boca, nem alcançar com a minha inteligência, o infinito dessa visão”.

A total fidelidade do noviço à direção de seu pai espiritual, não menos sem dúvida do que seus estados místicos, acabaram por inquietar o higoumeno[3] e a comunidade de Stoudious, tentou-se subtraí-lo à influência de Simeão o Piedoso, mas ele se recusou a deixa-lo. Então ele foi expulso do mosteiro. O velho estudita o confiou então a Antônio, higoumenos de São Mamas, mantendo no entanto a condução de sua alma. O jovem prosseguiu com o mesmo fervor a forma de vida que começara em Stoudious. Ele se dedicava com ardor às austeridades corporais, considerando-as como meios de purificação; mas seu objetivo era o de viver apenas para Deus.

Higoumeno em São Mamas

Por volta de 980, dois anos após o ingresso de Simeão em São Mamas, o higoumeno Antônio morreu. O mosteiro estava então em plena decadência. Os monges eram pouco numerosos e uma parte deles vivia em total relaxamento. A situação material não era melhor, os edifícios estavam em ruínas. Foi nessas condições difíceis que Simeão foi eleito higoumenos e ordenado sacerdote. Ele logo se revelou um excelente administrador. Ele reconstruiu inteiramente o mosteiro, restaurou e decorou a igreja, reuniu uma biblioteca, e, sobretudo, dedicou-se à reforma de sua comunidade. “Em suas Catequeses, ele ensinava a seus discípulos a vida dos monges. Um pouco por suas palavras, muito por suas obras, ele os animava à prática dos mandamentos” (Nicetas).

Logo chegaram noviços, atraídos pela irradiação do jovem higoumenos. São Mamas reencontrou uma vida austera e fervorosa. A rotina diária dos monges se desenrolava entre a ascese e o recolhimento, inteiramente ocupada pela busca de Deus.

Pai espiritual de sua comunidade, Simeão é devorado pelo zelo por seus discípulos, ele busca arrastá-los ao caminho abrupto que ele próprio havia tomado, caminho que vai de uma ascese rigorosa até a contemplação e a posse de Deus. Mas sua linguagem parecia demasiado dura, e o caminho muito exigente. Ele não será ouvido. Este será o drama de sua vida. A morte de Simeão o Piedoso, que o sustentava nessa tarefa árdua, foi para ele uma dura provação.

A revolta dos monges

Essa revolta teve lugar provavelmente entre 995 e 998. Simeão aproximava-se dos cinquenta anos. Ele está à frente de um mosteiro já há quinze anos. Frequentemente, ele partilhava com seus discípulos graças com as quais ele próprio havia sido favorecido, a fim de encorajá-los a marchar sobre o duro caminho que leva à contemplação e à uni]ao mística. Mas alguns monges retorquiam que o higoumenos estava iludido, que suas pretensões não correspondiam à realidade, que a posse consciente de Deus nesta terra é coisa impossível e que não se deve pretender a elevação a semelhantes alturas.

O higoumenos se deu conta de que a revolta crescia surdamente. Num momento em que ele celebrava os santos Mistérios, cerca de trinta monges se lançaram sobre ele tentando agredi-lo. Sua calma e sua serenidade se impuseram ante eles, que não ousaram colocar as mãos sobre ele, mas que foram buscar amparo junto ao patriarca. Este, longe de sustentá-los, quis enviá-los todos para o exílio. Simeão implorou por sua graça e, à força de bondade e paciência, trouxe de volta os rebeldes a São Mamas; mas o fato é que a comunidade permaneceu por longo tempo cambaleante por causa da sedição, e que o higoumenos teve que sofrer a incompreensão e a má vontade de alguns de seus monges.

O exílio

A liberdade com que Simeão denunciava o mal, sem se preocupar com a situação às vezes importantes daqueles a quem se dirigia, suscitou a ele inimigos poderosos. Ademais, ele possuía adversários que suspeitavam de sua ortodoxia e, sobretudo, que viam no pensamento místico uma espécie de loucura perigosa. Foi provavelmente em nome de todos os descontentes que, em 1003, Estevão, bispo demissionário da Nicomédia, atacou Simeão. As funções importantes que ele exercia na cúria patriarcal lhe garantiam influência. Espírito brilhante, ele pertencia ao meio culto que, depois de ter contato com o pensamento antigo, se dedicava à teologia especulativa. Ao contrário, o higoumenos de São Mamas afirmava com força: “Falar ou discorrer sobre Deus, exprimir tudo o que lhe concerne, dar expressão ao inexprimível, é indício de uma alma temerária e presunçosa”. Para ele, somente a purificação da alma e a ação do Espírito Santo davam acesso ao conhecimento de Deus.

Estevão, confiante em seus conhecimentos teológicos, pretendeu convencer Simeão de sua ignorância, propondo-lhe expor como ele compreendia a distinção das Pessoas da Trindade, se como uma distinção de razão ou uma distinção real. O higoumenos de São Mamas lhe respondeu com o Hino 21. Ele se dedicou a expor a incompreensibilidade do mistério divino que transcende as investigações da inteligência humana. Somente Deus pode se revelar como quiser, e o Espírito Santo não é dado aos sábios deste mundo, mas aos humildes.

A resposta de Simeão foi mais irritante do que apaziguadora, e os seus adversários passaram a buscar um motivo para acusá-lo. O culto que ele prestava desde os dezesseis anos ao seu pai espiritual foi para eles o motivo procurado. Como era de se esperar, o higoumenos de São Mamas se recusou energicamente a retirar fosse o que fosse das honras com as quais cercava a memória de Simeão o Piedoso. A luta se tornou violenta e, em 1005, a pedido do patriarca Sérgio II, Simeão demitiu-se voluntariamente, deixando o governo de São Mamas a seu discípulo Arsênio, mas conservando a direção espiritual dos monges.

Isso não bastou para desarmar seus adversários. As coisas se envenenaram a tal ponto que em 3 de janeiro de 1009 o Santo Sínodo condenou Simeão ao exílio. Ele partiu para Paloukiton, na outra margem do Bósforo, e se estabeleceu em total despojamento perto de um pequeno oratório em ruínas dedicado a santa Marina.

Últimas provações

Simeão tinha inimigos poderosos. Ele tinha também amigos influentes que apresentaram ao patriarca uma apologia composta pelo exilado, e Sérgio decidiu reabilitá-lo. Ele o fez vir a Constantinopla, com a oferta de nomeá-lo metropolita de uma das mais importantes cidades do império e de deixá-lo retomar a posse de seu mosteiro. Ele só pedia que Simeão reduzisse as solenidades da festa de Simeão o Piedoso.

O velho monge respondeu: “Nem mosteiro, nem riqueza, nem glória, nem nada do que os homens perseguem nesta vida me separarão do amor de Cristo e de meu pai espiritual”. Simeão preferiu assim retornar para a solidão de Santa Marina. Alguns monges se juntaram a ele e um pequeno mosteiro foi organizado pobremente. Paloukiton não era muito afastado de Constantinopla, de modo que numerosos visitantes vinham buscar conselhos e luzes junto ao exilado, que assim continuou exercendo forte influência até sua morte.

Nicetas nos deixou o relato dessa morte, que aconteceu em 1022: “Havia treze anos que o monge estava exilado. Numerosas foram as tribulações, numerosos os trabalhos e as aflições que sua generosa perseverança teve que suportar. Mas a natureza aspirava pela libertação. Chegado a uma idade avançada, a doença e a enfermidade o tomaram, o extenuaram e reduziram Simeão ao extremo. Ele reafirmou sua coragem e a de seus discípulos enviando-lhes palavras de consolação. Ao mesmo tempo, ele lhes predisse o dia e a hora de sua partida deste mundo; ele os proibiu de chorar tanto antes como depois do evento, como quem não tem esperanças. No dia fixado, 12 de março, o venerável enfermo recebeu, como era seu costume diário, a comunhão dos santos mistérios de Cristo, e, depois de dizer “amém”, ele ordenou aos discípulos que entoassem os cantos fúnebres. Assim eles o fizeram em meio aos castiçais iluminados, com os olhos cheios de lágrimas, enquanto ele erguia suas santas mãos e orava fracamente, com o que lhe restavam de forças. Na metade dos cantos dos hinos, ele se recolheu por inteiro com dignidade e disse doce e pacificamente: “Ó Cristo Rei, em tuas mãos eu entrego o meu espírito”. Com essas palavras, cheio de alegria, este célebre lutador de Cristo, vencedor de tantos combates, deixou seu corpo paciente e invencível para se dirigir, depois desses brilhantes combates, para seu Senhor, holocausto consumido inteiramente pelo fogo divino na hora de sua morte, sacrifício sem mancha agradável a Deus”.

A intransigência de Simeão pode nos espantar e nos chocar. Para compreendê-la, precisamos nos colocar no clima que reinava então no Oriente. Durante a polêmica das santas imagens, os monges haviam sido os defensores da ortodoxia, às vezes contra bispos demasiado dóceis ante o imperador. Simeão é seu discípulo, e quis permanecer fiel ao seu ideal. Ele estava persuadido de que seu pai espiritual, Simeão o Piedoso, o havia introduzido na linhagem dos santos “que era como uma corrente de ouro, sendo cada um deles um elo ligado ao anterior pela fé, a caridade e as obras, até formar no Deus Uno uma cadeia que não podia ser rompida[4]”.

Mas não nos enganemos. Essa intransigência escondia uma alta ideia das exigências da vida cristã, e a influência desse monge místico ultrapassou todos os limites de tempo e de espaço.

A obra

Simeão, que recebeu da tradição bizantina o nome de “Novo Teólogo”, jamais se dedicou à teologia especulativa. Ao contrário, ele sustentava que os únicos que podiam falar de Deus eram aqueles que haviam sido iluminados pelo Espírito e que contemplaram a Luz divina em sua visão espiritual. É por isso que ele, que vira “em plena claridade o Invisível, invisivelmente”, se tornara apto a nos falar de Deus e pôde ser chamado de “Novo Teólogo”.

Sua vida nos é contada por Nicetas, mas nós a conhecemos de modo mais íntimo e mais vivo por intermédio de sua própria obra. Com efeito, Simeão jamais pensou em escrever sua autobiografia, mas em suas catequeses ele multiplicou confidências, fosse para encorajar seus discípulos mostrando a eles com exemplos de sua própria vida a liberalidade com que Deus recompensa os esforços dos homens, fosse para provar a seus adversários que uma união consciente com Deus era possível aqui em baixo. Também em seus hinos Simeão nos confia sua experiência espiritual em ardentes efusões.

Sua mensagem é difícil de analisar de modo sistemático. Com efeito, não se trata de uma doutrina organizada, mas de um testemunho pessoal. Como ele próprio disse: “Eu fiz a experiência do amor de Deus para com os homens”. Essa é toda a sua mensagem. Transbordamento de um coração salvo e recriado pela misericórdia de Deus, que não pode calar essa experiência da graça: “Não posso suportar [a ideia de] enterrar essas maravilhas no silêncio”.

Bíblia e tradição

Lembremo-nos de que Simeão é alimentado pela Bíblia. Somos tocados ao ler seus escritos, pela abundância das citações explícitas ou implícitas do Antigo e do Novo Testamento, em especial dos Evangelhos. Trata-se de um homem que meditou longamente e que assimilou os textos da Escritura.

Notemos ainda que ele se situa na grande corrente da tradição oriental, tanto sobre o plano da teologia – encontramos em suas obras numerosos traços da influência dos Padres gregos, como Atanásio, Basílio, Gregório de Nissa e sobretudo Gregório de Nazianze –, como sobre o plano da espiritualidade monástica: os sinaítas, Diádoco de Foticéia. Porém, Simeão jamais foi escravo dessa tradição, e seu pensamento permaneceu original e o tom de seus escritos, muito pessoal. Com efeito, seus conhecimentos não são livrescos. Ele os adquiriu primeiro pelo ensinamento vivo de seu pai espiritual, por sua própria experiência de monge e de higoumenos e, sobretudo, por seu contato íntimo com Deus na luz do Espírito Santo.

Sobre o conteúdo de sua mensagem, indicaremos quatro pontos característicos que são quase que a chave de toda a sua obra.

Cristocentrismo

Ele está em toda parte. Cristo, em todos os seus mistérios, está presente verdadeiramente no coração de seu pensamento, assim como de sua vida. É o Verbo de Deus feito homem, o Salvador que sofreu por nós, mas acima de tudo o Senhor ressuscitado em glória, o “Cristo Deus”, segundo uma de suas expressões prediletas. Simeão não se detém na humanidade de Cristo. Mesmo no rebaixamento de sua paixão, ele contempla a luz de sua divindade. Vivendo em Cristo, o batizado deve partilhar de seus sofrimentos para comungar da glória de sua ressurreição, deve se incorporar a ele pela Eucaristia, habitar nele, revestir-se dele como de uma veste de luz e servi-lo no mais humilde de seus irmãos.

Lugar importante do Espírito Santo
na santificação e divinização do batizado

Fonte de todos os dons e de todos os carismas espirituais. O Espírito é aquele que transforma, que ilumina e recria, ele é o selo que imprime em cada batizado a forma de Cristo, ele é a fonte luminosa que renova o homem nas profundezas de seu ser. Pendor e primícias do Reino por vir, ele é essencialmente dinâmico, ele desenvolve em cada qual a semente da vida recebida no batismo, para que ela desabroche em plenitude em sua glória.

Insistência na participação viva e consciente do cristão
à ação da graça sobre ele

Trata-se de um ponto original de seu pensamento, sobre o qual ele retorna com frequência. Simeão recusa uma fé que seria puramente conceitual, bem como uma ação quase mágica ou mecânica dos sacramentos. O batizado é chamado da despertar, a tomar consciência da luz que recebeu para nela viver, “não em palavras, não nas aparências, não em ideia, mas em experiência e realidade”.

Sentido da escatologia já realizada

Pela encarnação, “o Reino dos Céus desceu sobre a terra”. Não existe ruptura entre a vida aqui em baixo e a vida eterna. Existe progresso, é verdade, mas a vida eterna de fato já começou. Desde já ela penetra e transforma o ser humano em sua condição carnal.

*

Habitado e possuído pelo Espírito, sem comprometimento, opondo sem cessar a experiência viva de Deus a uma fé demasiado conceitual e sem relação com a existência, Simeão o Novo Teólogo aparece para nós como um profeta que anuncia por palavras às vezes ásperas, e mais ainda por sua experiência espiritual, a realidade do mundo futuro já presente aqui em baixo. Um grande sopro anima toda sua vida, que foi sempre uma luta contínua: luta contra todo pensamento especulativo entre os teólogos e contra toda tibieza entre as pessoas da Igreja, desde o patriarca até o último dos monges. “A vida de Simeão constitui uma ilustração do conflito entre um profeta e os sacerdotes, entre a Vinda e a Instituição[5]”. Mas se Simeão não podia suportar a mediocridade nos outros, menos ainda ele a suportava em si próprio, e o combate mais rude que ele teve foi interior.

A personalidade que seus escritos nos permite, adivinhar é extremamente rica, cheia de contrastes, sedenta de Deus e cumulada além de toda medida, passando todo o tempo por alternâncias de sombras e de luz, enfim, e sobretudo, arrebatada por Cristo e devorada de amor por seus irmãos. Sua mensagem conserva toda sua força ainda hoje. Centrada na iluminação do Espírito e na necessidade da união pessoal com Deus, ela abre a todos os crentes a via para uma autêntica vida espiritual.

(Os textos a seguir foram escolhidos e apresentados pelas Irmãs de Dourgne, O.S.B.
e pela Irmã Geneviève, o.p., monja de Clairefontaine)


***


Capítulo I

Toda a sede da minha alma


Com a idade de vinte anos, Simeão havia feito uma primeira e fervorosa experiência mística. Toda a sua vida será marcada pela sede devoradora de reencontrar e agarrar Aquele que o seduzira com sua beleza. Seu desejo o atirou à procura do Cristo que ele já possuíra, mas que dele escapava sem cessar e que o arrastava cada vez mais para longe, até as profundezas insondáveis da Trindade. Pois Cristo é ao mesmo tempo aquele que se dá, que se deixa conhecer, e também esse Deus que habita muito além do alcance humano. Ninguém pode se apoderar dele apenas por querer fazê-lo:

“Eu fechei minha mão e acreditei agarrá-lo e possuí-lo,
Mas ele escapou de minha mão sem que eu o tivesse guardado."
(Hino 28)

Tenho sede

Monge é aquele que é puro do mundo
E que somente com Deus se entretém;
Ele o vê, por ele é visto, ele o ama e é amado,
E se torna luz, por ser iluminado de modo inefável;
Íntimo, é como um estrangeiro
– estranha e inexprimível maravilha!
Por causa de minha infinita riqueza sou como um mendigo
E penso nada ter, quando a tudo possuo,
E digo, “Tenho sede”, em meio à água abundante,
E “quem me dará”, aquilo que em abundância possuo,
E “onde encontrarei”, àquele que meus olhos veem cada dia.
“Como poderei captar” aquele que está dentro de mim,
E fora do mundo, sendo totalmente invisível?
Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça
E em verdade compreenda as palavras do iletrado!
(Hino 3)

Quem me permitirá agarrá-lo?

A impossibilidade de saciar a sede de Deus foi o tormento de Simeão. Ele expressa isso através da linguagem simbólica da sede, da água, do sol e dos raios do sol.

Ó Trindade criadora do universo,
Cuja glória é incompreensível,
As obras, inexplicáveis,
A essência imutável!
Ó Deus, vida de todas as coisas,
Ó além de todos os esplendores,
Ó Príncipe do Verbo Eterno,
Ó meu supraeterno Deus,
Tu que jamais foste feito,
Tu que não tens começo algum!
Como te descobrir por inteiro,
A Ti que me trazes em teu seio?
Quem me permitirá agarrá-lo,
 A Ti, que trago em mim?

Quando fui satisfeito, tive fome;
Pobre, fui rico;
Bebi e continuei sedento.
Tenho sede de beber sem cessar,
De beber além de toda repleção.
Desejo possuir tudo
E beber, se for possível,
Todos os abismo de uma só vez;
Mas como tal não é possível
Eu te digo “tenho sede, sempre sede”
Embora minha boca esteja
Sempre cheia de água,
Que corre, transborda e escoa.

Mas quando eu vejo os abismos,
Eu creio já não beber tudo
Porque desejo possuir o todo.
E permaneço sempre um mendigo
Quando na verdade a tudo tenho.
O sol brilha nas alturas,
Nos alcançando com seus raios,
E eu me agarro ao raio
E subo às pressas
Para me aproximar do sol.
Mas quando estou próximo
E creio tocá-lo,
Foge o raio de minhas mãos
E eu me sinto cegado
E perco a ambos,
O sol e os seus raios.
Caio então das alturas
E sentado me ponho a chorar
E procuro por aquele raio de antes.

Enquanto estou neste estado,
Esse raio, depois de por mim haver rompido
Toda a escuridão da noite,
Como uma grossa corda desce
Desde as alturas celestes.
Rapidamente o agarro,
Tomo-o em minhas mãos e me alço.
E enquanto subo desse modo
Sobem comigo os raios
E eu ultrapasso os céus
E os céus dos céus.
Vou além da altura das alturas
E quando chego mais além
De toda altura, ao que me parece,
Os raios, das minhas mãos,
Junto com o sol se evaporam
E me vejo súbito transportado
Numa queda infernal e miserável!

Tais são as atividades, tais as obras
Dos “espirituais”;
Do alto a baixo, de baixo ao alto,
Esse é seu caminho, sem trégua.
O começo do percurso é seu final,
E o final é o começo.
A perfeição não tem um fim,
Pois lá, ainda, o começo é que é o fim.
(Hino 23)

Eu te persigo

Num estilo cheio de imagens, próximo do Cântico dos Cânticos, Simeão descreve o que foi sua vida espiritual: um balanço pata adiante, um progresso, uma corrida sem fim que o empurra à procura de Cristo. Essa busca não terá fim senão na contemplação da Trindade.

Ó toda a raça dos homens,
Escutai-me agora
Que contarei a grandeza
Do amor de Deus pelos homens!
Contra ele eu pequei como ninguém,
Como homem algum nesse mundo.
E, no entanto, bem sei, ele me chamou
E depressa eu respondi.
Quero dizer que ele me chamou
Mas, antes, à penitência,
E rapidamente eu segui o Mestre que me chamava.
Quando corria, corria eu em seu encalço.
Quando fugia, perseguia-o eu ainda,
Como um cão persegue a lebre.
E quando o Salvador se afastou pra longe
E de mim se escondeu,
Não, eu não desesperei
Nem desanimei do caminho
Pensando tê-lo perdido;
Mas ali mesmo , onde eu estava
Sentei-me gemendo
E em pranto chamei, por meu turno,
O Mestre oculto aos meus olhos.
A mim, que assim rolava no pó
E que gritava, ele se deixou enxergar
Depois de se aproximar bem perto.
Ao vê-lo tonteei sobre meus pés
E lancei-me para agarrá-lo,
Mas depressa ele escapou
E me pus a correr com todo vigor
E em minha pressa às vezes
Alcancei a franja de suas vestes.
Um pouco ele se detinha
E eu sentia uma grande alegria,
E de novo ele fugia, e de novo
Eu o perseguia; e assim
Ele partia, ele vinha,
E se ocultava e a aparecia,
Mas jamais eu desistia,
Nem desencorajava,
Nem abandonava a corrida,
Nem o via como um charlatão
Ou como quem viesse só tentar-me,
Mas com toda a força que eu tinha,
Com toda a potência que eu tinha,
Quando não o via, mais buscava.
Banhado em lágrimas
Eu interrogava meio mundo.
Ele então veio ao meu encontro e se mostrou para mim.
De onde, como veio? Não o sei.
Pois é impossível vê-lo
E impossível concebê-lo;
Ele habita na luz
Inacessível, ele, a luz
Em três pessoas, de modo inexprimível,
Nos espaços infinitos,
Meu Deus infinito, Pai único, único Filho,
Unidos ao Espírito divino.
Um são os três, e três
Apenas um, único Deus, de maneira inexplicável.
A palavra é incapaz
De exprimir o inexprimível.
Essas realidades, só as conhecem
Aqueles que as podem contemplar.
E tampouco será com palavras, mas com atos
Que devemos nos apressar na busca
De enxergar e aprender
A riqueza dos mistérios divinos.
(Hino 29)

Por que escondes teu Rosto?

Simeão confessa que, em sua busca de Deus, ele conheceu momentos de tristeza, quando “se enchia de lágrimas”. Escutemos seu pranto e sua prece num desses momentos dolorosos, e a resposta que lhe deu o Senhor.

Vê, ó Cristo, minha angústia,
Vê minha falta de coragem,
Vê que me faltam as forças,
Vê também minha pobreza
Vê minha fraqueza,
E de mim, ó Verbo, tem piedade!
Brilha sobre mim, agora ainda como antes um dia,
E minha alma ilumina, e meus olhos,
Para que te veja, luz do mundo,
Tu a alegria, tu a felicidade,
A vida eterna,
Tu, o Reino dos céus.
Por que escondes teu rosto?
Se tu sabes que te amo
E que com toda minh’alma te procuro.
Revela-te, segundo a tua palavra,
Manifesta-te a mim!
Abre-me de par em par as portas
Da sala de bodas, Deus meu;
Sim, não me feche a porta
De tua luz, ó Cristo meu!


– O que diz você, insensato:
Que eu escondo meu rosto?
Se eu não quisesse ser visto
Por que teria eu aparecido na carne?
Por que teria eu simplesmente descido?
Por que estive à vista de todos?
Não desconheça minhas ações.
Você bem vê meu desejo
De ser visto pelos homens,
A ponto de ter querido vir,
A ponto de ter vindo, e como homem!
Como podes tu então dizer que eu me escondo
De ti, que não me deixo ver?
(Hino 53)

A prece iluminada

Deus se comunicou com Simeão largamente, e este desejou partilhar com todos as maravilhas que contemplara. Aqui ele sublinha a oposição entre a grandeza sublime das graças recebidas e as profundezas de humilhação nas quais ele mergulhou a clara visão de seus pecados.

É bom proclamar com todo reconhecimento as benesses do Deus amigo dos homens. Pois, em virtude da graça, eu recebi a graça, da bondade recebi a bondade, do fogo o fogo e da chama a chama, e por intermédio de minha ascensão eu recebi outras ascensões, e ao final da ascensão a luz, e na luz uma luz ainda mais clara. Eu tive a certeza do perdão dos meus pecados, quando mais do que qualquer homem eu me via mergulhado no pecado.

Por momentos, involuntariamente, eu subi ao cume da contemplação, e, voluntariamente, dali me precipitei para não ultrapassar as fronteiras da natureza humana, nem perder a segurança do rebaixamento. Quantas coisas eu conheci, que a maioria ignora – e, mais do que todos os homens, continuo inculto. Eu me regozijo daquilo que Cristo, em quem pus minha fé, me concedeu como dom do Reino eterno e inquebrantável, e, sabendo que sou indigno dos bens do alto, choro continuamente e não cessarei de chorar. Abrir a boca e pedir o perdão de minhas próprias ações, isso eu não ouso – mas quanto aos outros, a caridade me concede a ousadia, e, falando agora como um insensato, tenho sido atendido. Diante dele eu me coloco como um filho, e minha atitude é a de um estrangeiro que não ousa abrir a boca. “Está bem, servidor fiel...”, escuto essas palavras e as que as seguem[6], e percebo, na verdade, que não guardei um só talento de todos os que me foram confiados. Quando me parece haver atingido o cúmulo dos bens, vejo-me no fundo do precipício de meus pecados, gemendo, prisioneiro, abismado em desespero; e quando me rebaixo abaixo de tudo, sou elevado acima dos céus e a mais uma vez a caridade me une a Cristo nosso Deus, junto de quem eu espero que, desembaraçado do peso dessa carne de barro, aproximar-me ainda mais e, melhor ainda do que isso, receber uma iniciação mais clara à alegria eterna e à exultação da caridade do alto.
(Catequese 17)

Eu me encho de seu amor e de sua bondade

Queimando de desejo e de amor, Simeão descobre o esplendor divino no seu próprio íntimo: um brilho que o transfigura e que faz dele portador da luz para os demais.

Oh, que realidade é esta, escondida a toda essência criada!
Soberanamente adorável é ela, mais do que o mundo inteiro:
Assim fui eu ferido de seu amor,
E quando não a vejo, meu espírito resseca,
Minha inteligência e meu coração se inflamam e gemem.
Eu perambulo e queimo, buscando aqui e ali,
E em parte alguma encontro o amante de minha alma.
Lanço olhares ao redor a toda hora para ver meu bem amado
Mas ele, invisível, não se deixa ver por mim.
E quando eu começo a chorar, como que desesperado, então
Ele se deixa ver, e me olha, ele que contempla todos os seres.
Em estupor eu admiro o esplendor de sua beleza,
E a maneira como, tendo eu aberto os olhos, o criador se inclina
E me mostra sua glória, indizível e maravilhosa.
Quem poderá se aproximar dele?
Enquanto eu reflito, ele se deixa descobrir em mim,
Resplendendo no seio de meu coração miserável,
Iluminando-me de todos os lados com seu esplendor imortal,
Fazendo brilhar todos os meus membros com seus raios;
Enlaçando-se inteiro a mim, ele todo me abraça,
E se dá por inteiro a mim, o indigno,
E eu me encho de seu amor e de sua beleza,
E me sinto saciado de doçura e de gozo divinos.
Eu participo da luz, e participo também da glória,
E meu rosto resplandece como o de meu bem amado,
E todos os meus membros são portadores da luz.
Assim eu me torno ao final mais belo do que os mais belos,
Mais rico do que os mais ricos, e mais poderoso do que os poderosos,
Eu, poderoso, maior do que os reis,
Mais precioso do que tudo o que se vê,
Pois eu possuo o criador de todo o universo,
A quem sejam dadas a glória e a honra, agora e sempre,
Por todos os séculos.
(Hino 16)

***

Capítulo II

A luz inacessível


Simeão coloca sobre Deus um olhar de adoração. Deus é para ele o Inacessível, o Insondável. Ele se recusa a perscrutar seu mistério. O único conhecimento de Deus consiste em reconhecer que ele é Incognoscível. Gregório de Nissa disse: “O verdadeiro conhecimento de Deus e sua verdadeira visão consistem em ver que ele é invisível, separado de todas as partes por sua incompreensibilidade como por uma escuridão[7]”. E o Pseudo-Denis disse: “Dizer que Deus não é nada do que existe é vê-lo e conhecê-lo, é louvar o infinito de um modo supra eminente. Se, ao vermos a Deus, compreendemos o que estamos vendo, é porque não é a Deus que estamos contemplando[8]”.


Tu és o Deus eterno

Tu és o Deus eterno, incriado, único,
Trindade santa no Filho e no Espírito.
Tu és incompreensível, inacessível,
Criador da criação visível e inteligível,
Tu és o Senhor e o Mestre.
Para além dos céus e de tudo,
De tudo o que há nos céus, do céu tu és
O único artesão, detendo só Tu o poder,
A tudo sustentas com teu mandamento
E a tudo mantém por tua vontade só.
Tu és a miríade de anjos ao teu redor,
Os milhares de arcanjos.
Possuís uma glória além de toda glória
A ponto de que alguns deles sequer ousam
Deitar sob ela os olhos sem temor, ó meu Deus,
E não podem suportar, quando ele se mostra,
O esplendor ofuscante de teu rosto.
(Hino 24)

Tua beleza é inacessível

Tua beleza é inacessível, teu esplendor sem igual,
Tua glória incomparável: e quem jamais viu
Ou poderá te ver inteiro, a Ti, meu Deus?
Que olho, com efeito, terá a força para contemplar o Todo?
E aquilo que está acima do Todo, que espírito poderá captar,
Poderá compreender, poderá contemplar, Aquele
Que mantém unidos todos os seres,
Que está ao nosso redor e que preenche o Todo e tudo o que este contém
E que, de um modo inexprimível, se encontra sempre e por inteiro fora?
(Hino 42)

Eu exalto tua incompreensibilidade

Quando Tu te revelas, Mestre do Universo,
E mostras claramente a glória de teu rosto,
Cai sobre mim um tremor que me invade todo, por te ver,
Tanto quanto pode a pequenez da minha natureza,
Sou tomado pelo temor e, cheio de medo, eu digo:
“Acima de minha compreensão está tudo o que te pertence, meu Deus,
Pois eu sou impuro, absolutamente indigno
De ver-te, Tu, o Mestre puro e santo
Que os anjos veneram e servem tremendo
E cuja face sacode toda a criação”.
Por isso eu exalto tua incompreensibilidade
E, proclamando tua bondade, clamo a t i:
“Glória àquele que tão e tanto glorificou nossa essência,
Glória, meu Salvador, à tua incomensurável condescendência,
Glória à tua misericórdia, glória à tua potência,
Glória a Ti!, pois sendo imóvel e sem mudança,
Inteiro imóvel és Tu, e inteiro sempre em movimento,
Inteiro estás fora da criação e inteiro em cada criatura,
E a tudo Tu preenches, Tu que inteiro estás fora de tudo,
Acima de tudo, ó Mestre, acima de todo princípio,
Acima de toda essência, acima da natureza mais nativa,
Acima de todos os séculos, acima de toda luz, ó Salvador.
Tu não és nenhum dos seres, mas superior a todos os seres,
Pois deles és Tu a causa, criador que és de todos,
E por isso deles estás apartado,
Altíssimo, para o nosso pensamento, acima de todos os seres,
Invisível, inacessível, impalpável, intangível,
Escapando a toda compreensão, permaneces sem alteração,
Tu és simplicidade, e és Tu toda variedade,
E nosso espírito é totalmente incapaz de sondar
A variedade de tua glória e o esplendor da tua beleza.”
(Hino 45)

O um é três e os Três são um

Esse Deus misterioso e inacessível é, para Simeão, o Deus Trindade. Mistério insondável que o homem não pode contemplar senão em enigma, com a fé naquele que se revela Pai, Filho e Espírito Santo.

Senhor nosso Deus, Pai, Filho e Espírito,
Tu, cuja forma é sem contorno, mas cuja visão é toda bela,
E que, em teu esplendor inconcebível, obscurece todo outro espetáculo,
Em tua sedução ultrapassas verdadeiramente a visão de todo o resto.
Dentre os anjos, dentre os homens, nenhum te viu,
Ninguém contemplou teus mistérios, nem aprendeu
Como dizer, pronunciar, como ousar expressar,
Como afirmar que o um é três e que os três são um.
Por isso, Mestre, é a partir das tuas palavras que todo fiel crê,
Segundo teus ensinamentos que ele canta o teu poder,
Porque tudo o que te concerne é totalmente elusivo,
Incognoscível e inexprimível para todos aqueles que criastes.
Tu és Tu mesmo em ti mesmo único Deus, Trindade,
Só Tu te conheces, Tu, teu Filho e o Espírito,
E só por eles és conhecido, eles que partilham de tua natureza.
É a luz de tua glória, são tuas reverberações de luz,
Sempre um enigma, que merecem ver
Aqueles que te buscam do fundo da alma com um espírito purificado.
Como então poderiam esses seres que criastes te conhecer,
E conhecer como gerastes teu Filho, como és Tua a fonte que não cessa,
Como de ti procede teu Espírito divino,
Que não engendras jamais, porque o gerastes de uma vez por todas,
Sem que, sendo sua fonte, sofresses perda ou diminuição?
Pois Tu te manténs acima da plenitude,
Inesgotável muito além de tudo.
Nada te acrescenta, nada te pode diminuir.
Tu és por inteiro sem movimento, e assim permaneces para sempre.
Mas em tuas operações estás sempre em movimento
Pois tu possuis, Tu o Pai, uma atividade incessante
E teu Filho opera ainda a salvação de todos.
Ele é a providência e a realização, sustento e alimento,
Ele vivifica e gera no Espírito Santo.
Assim és Tu, a um tempo imóvel e de certo modo sempre em movimento.
Tu preenches tudo, e além de tudo estás.
Como não tremeremos nós em explicar ou imaginar
Ou falar daquilo que nos ultrapassa a razão e transcende o nosso espírito?
(Hino 31)

Deus é Luz

“Deus é Luz[9]”. Luz tão ofuscante que o olhar não a pode penetrar, luz tão intensa que tudo o que recebemos de Deus é como que uma faísca de sua resplendência.

“Deus é Luz”, uma luz infinita e incompreensível. O Pai é luz, o Filho é luz, o Espírito é luz; os três são uma só luz, simples, sem composição, fora do tempo, numa eterna identidade de dignidade e glória. Daí que tudo o que provém de Deus é luz e nos é repartido como provindo da luz: luz é a vida, luz a imortalidade, luz a fonte da vida, luz a água viva, a caridade, a paz, a verdade, a porta do reino dos céus; luz é o próprio reino dos céus; luz a câmara nupcial, o leito nupcial, o paraíso, a volúpia do paraíso, a terra dos mansos, as coroas da vida, luz as próprias vestes dos santos; luz é Jesus Cristo, salvador e rei do universo, luz o pão de sua carne imaculada, luz o cálice de seu sangue precioso, luz sua ressurreição, luz seu rosto; luz é sua mão, seu dedo, sua boca, luz são seus olhos; luz o Senhor, sua voz, como luz de luz; luz o Consolador, a pérola, o grão de mostarda, a verdadeira vinha, o fermento, a esperança. A fé: luz!
(Discurso teológico 3)

Como apreender o Incorruptível

Simeão indaga: esse Deus que escapa a toda tentativa de agarrá-lo, que ultrapassa infinitamente o homem e a criação, como alcançá-lo?

Que rota poderei seguir, qual caminho deve ser evitado?
Qual escada subir, por quais portas entrar,
Ou ainda, de que maneira abrir a porta – e de qual câmara?
No interior que qual morada, e de que tipo poder encontrar
Aquele que tem tudo nas mãos e nas palmas?
Subir, qual montanha, e por qual vertente?
Que grutas explorar, tateando?
Atravessar qual pântano, para me tornar digno de ver
E de reter, infeliz que sou, aquele que está presente em toda parte,
Aquele que é intangível, aquele que é invisível?
A qual inferno descer? Até que céu
Subir? Até os extremos de qual mar
Será preciso ir para encontrar aquele que é totalmente inacessível
Absolutamente ilimitado, inteiramente impalpável?
Dize-me, como encontrar o Imaterial dentre os seres materiais,
O Criador em sua criação, o Incorruptível em meio aos seres corruptíveis?
Como deixar o mundo, eu que estou no mundo?
Como unir-me ao Imaterial, eu que estou unido à matéria?
Como apreender o Incorruptível, eu que inteiro sou corruptível,
Eu, que vivo na morte, como, ao menos, me aproximar da vida,
Eu, o cadáver, como vir a estar perto do Imortal?
Eu, que sou todo erva seca, como ousar tocar o fogo?
(Hino 38)

Ele se deixa conhecer

Se o homem não pode alcançar a Deus, o próprio Deus pode se revelar aos Homens – esta é a experiência fundamental de Simeão. Primeiro, Deus se deu a conhecer a ele:
“Por que viestes à minha pobreza,
Tu que habitas a luz inacessível, meu Deus?”
                                                              (Hino 20)
Do mesmo modo, Deus quer se revelar a todos os homens; e não apenas revelar-se, mas unir-se a eles para os divinizar.

Como poderia a obra contemplar
Por inteiro, e compreender por inteiro aquele que a criou?
Penso que isso é absolutamente impossível.
Mas o Criador, na medida em que o deseja,
Surge e se deixa ver por aqueles que ele quer,
E se deixa conhecer, e sua criação O conhece;
Ele se deixa ver, e ela o vê, na medida
Em que seu Criador lhe concede ver.
(Hino 24)

Somente o Espírito conhece seus mistérios

Somente o Espírito de Deus pode revelar ao homem aquilo que é inexprimível. Só existe um caminho: a iluminação do Espírito.

Poderá o espírito do homem
Conceber todos esses mistérios
Poderá ele expressá-los?
Certamente não!
Assim, somente o Espírito de Deus, por ser divino,
Somente ele conhece esses mistérios.
Então, será apenas àqueles para quem resplender este Espírito
E a quem ele se unir livremente,
Somente e estes ele a tudo mostrará, de um modo inexprimível.
Àqueles que ele esclarecerá com sua iluminação,
Ele concederá que vejam
O que se encontra dentro da luz divina.
(Hino 29)

***

Capítulo III

Transformado em Cristo
(Hino 30)


Simeão foi arrebatado pelo Senhor numa visão de luz. Ele ouviu que Sua voz lhe dizia: “Eu sou o Deus que por ti se fez homem[10]”. Desde então, Cristo se tornou tudo para ele: “A partir desse dia, já não era por lembrar-me de ti que eu te amava, mas tornou-se verdadeiramente Tu, o amor perpétuo que eu possuí em mim – desde então, esta foi a minha fé[11]”. Daí por diante ele viverá nessa relação e nessa intimidade com a pessoa de Cristo.


O prodígio da Encarnação

Simeão recoloca a Encarnação sobre o plano da salvação. Ao homem caído e decaído pelo pecado, Deus oferece em Jesus Cristo o perdão e a liberdade para que toda a vida seja renovada.

“O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre; o segundo homem, o Senhor, é do céu. Assim o terrestre, assim os terrestres; assim o celeste, assim também os celestes[12]”. Aquele a quem São Paulo chama de primeiro homem e de terrestre é Adão, conforme está escrito: “E Deus formou o homem tomando do pó do chão[13]”. Tendo assim sido formado do pó da terra e tendo recebido um sopro de vida, ele foi colocado no paraíso e recebeu ordem de trabalhar nele e de guardá-lo. Enquanto o homem manteve esse mandamento e agiu de acordo com ele, ele permaneceu imortal e assim rivalizava perpetuamente com os anjos; juntamente com eles ele louvava continuamente a Deus, recebia as iluminações que deste provinham, via a Deus em espírito e ouvia suas divinas palavras; mas desde o instante em que ele violou o mandamento que lhe fora dado e comeu [do fruto] da árvore que lhe estava proibida, ele foi entregue à morte e privado dos olhos da alma; despojado das vestes da glória divina, foi expulso do paraíso. O que aconteceu a Adão depois da transgressão, é que ele perdeu a vida imortal e eterna. De fato, ele transgrediu o mandamento ao confiar na serpente que lhe dissera: “Desde que vocês tenham comido vocês serão como deuses, conhecendo o bem e o mal[14]”.

Compreende você de que glória, de que gozo eterno, de que gênero de vida ele se viu privado, e a que indignidade ele foi reduzido, e em que vergonha, que ignorância e que pobreza ele caiu, depois de tamanha opulência e riqueza? Nisto se tornou o primeiro homem, aquele terrestre por ter sido tirado da terra, e assim ele permaneceu.

Vejamos agora e aprendamos com as divinas Escrituras, quem é o segundo homem, o Senhor que veio do céu. Este, Deus de Deus, Filho sem começo de um Pai sem começo, incorpóreo de incorpóreo, incompreensível de incompreensível, eterno de eterno, inacessível de inacessível, infinito de infinito, imortal de imortal, invisível de invisível, Verbo de Deus e Deus, por quem todas as coisas foram feitas, desceu à terra e tomou a carne do Espírito Santo e da Virgem Maria; ele se fez homem e se tornou, sem se alterar, igual a nós em tudo exceto no pecado, a fim de que, passando por todos os estados, ele pudesse refundar e restaurar aquele primeiro homem e, por meio dele, todos os que nasceram e que nascem dele ainda. Tal é o prodígio incompreensível a todos e inconcebível a todos: que ele permaneça sem alteração em sua divindade e que ele se torne, ao mesmo tempo, homem perfeito.

Deus se tornou homem e é chamado de parente e de irmão de todos os homens. Nessas condições, sendo o único a ser Filho de Deus, Deus mesmo, e homem, ele foi e continua a ser o único santo, como será por todos os séculos. Uma vez que ele é assim, enquanto nós jazemos na morte a na corrupção, entre ambos se colocou como mediadora a nossa fé nele, a fim de que, considerando nossa indigência e nossa incapacidade em acrescentar seja lá o que for à nossa salvação, Deus aceite em tudo e por tudo nossa fé a seu respeito e, tendo piedade de nós, nos conceda a graça da remissão dos pecados e a isenção da morte e da corrupção, juntamente com a liberdade. É isso que até o presente ele concede aos que o amam com toda alma, e não apenas isso, mas também todo o resto que ele nos prometeu e que nos promete a cada dia por meio de seus santos evangelhos. De que se trata então? De nos fazer renascer pela água e pelo Espírito, de nos recriar e nos contar no número de seus servidores, os santos, de nos conferir a graça de seu Espírito Santo e de, por ele, nos dar uma parte nos bens dessa terra que os mansos recebem em herança pelo desabrochar da alegria de seus corações, de se unir e de se associar a nós de modo a que todos nos tornemos um, ele em nós, no próprio Deus Pai, e ligados a ele pelo Espírito.
(Ética 13)

Cristo se tornará tudo para você

O cristocentrismo de Simeão, presente em toda sua obra, cristaliza-se nesta página com particular intensidade. Nela reconhecemos sua marca: ligação exclusiva, terna e apaixonada pelo Senhor, fascinação diante da glória e do poder de Cristo, desejo ardente de vê-lo e de contemplá-lo, mesmo estando ainda aqui em baixo.

É Cristo quem, para você, se tornará tudo, tomará o lugar de tudo. Cristo: diante desta palavra, não preste atenção à simplicidade da linguagem, nem à brevidade da expressão, mas reflita comigo sobre a glória da divindade que ultrapassa a inteligência e o raciocínio, sobre seu poder indizível, sua misericórdia sem limites, sua riqueza incompreensível; tudo isso ele lhe dará com liberdade e munificência, e tomará o lugar de tudo, porque é ele próprio que você receberá em si, Ele, a causa e o dispensador de todo bem. Sim, não existe outro desejo para aquele que for considerado digno de vê-lo e contemplá-lo.

Corramos para o único Salvador, Cristo. Esforcemo-nos por encontrá-lo, a ele que está presente em toda parte. E, uma vez encontrado, agarremo-lo, caiamos aos seus pés e abracemo-lo com todo o fervor de nossa alma. Sim, eu lhes peço, esforcemo-nos, enquanto estamos em vida, para vê-lo e contemplá-lo. Pois se formos considerados dignos de vê-lo sensivelmente aqui em baixo, já não morreremos, e a morte não terá sobre nós nenhum poder. Não, não esperemos pelo futuro para vê-lo; ao contrário, desde já, lutemos por contemplá-lo.

Possamos nós, depois de havermos observados os mandamentos de Deus, purificar nossos corações com as lágrimas e o arrependimento, de modo a podermos ver desde aqui em baixo a luz divina, Cristo em pessoa, e a possuí-lo, habitando em nós, e, por intermédio de seu Espírito Santo, nutrindo e vivificando nossas almas, e nos dando para experimentar a doçura e a alegria dos bens de seu reino.
(Catequese 2)

Ele fez de mim como fogo

Simeão fala de Cristo com tanto amor porque ele verdadeiramente O encontrou. Ele foi arrebatado e transformado por ele. Essa é uma aventura extraordinária a respeito da qual ele fica maravilhado.

Enquanto eu caía aos pés daquele que me havia iluminado
– veja bem o que eu vou lhe dizer –
Aquele que me iluminara tocou com suas mãos
Meus lações e minhas feridas;
E onde ele tocou com sua mão,
Onde aproximou seu dedo,
Logo se desataram os laços,
E desapareceram as feridas.
Tão pronto fui purificado
E desembaraçado dos meus laços,
Ei-lo que me tomou com uma mão divina,
E me tirou do pântano
Por inteiro, e me abraçou,
Atirou-se ao meu pescoço
E me cobriu de beijos.
E a mim, que estava completamente esgotado
E que havia perdido todas as forças,
Ele tomou sobre suas espáduas
E me mostrou outras coisas,
Daquelas que se encontram dentro da luz.
Ele me fez contemplar
Por meio de que estranha remodelagem
Ele mesmo me deu uma nova forma
E me arrancou da corrupção.
Ele confeccionou para mim uma vida imortal
E me revestiu com um manto
Imaterial e luminoso,
E me deu sandálias,
Um anel e uma coroa
Incorruptíveis e eternos.
Então ele se foi.
Tendo ficado assim só e abandonado,
Eu já não me satisfiz com todas as coisas que mencionei,
As coisas com as quais ele me cumulara,
Esses bens inexprimíveis,
Embora ele me houvesse renovado por completo,
Imortalizado por completo,
Divinizado por completo,
E transformado em Cristo.
Pois a privação de sua presença
Me fez esquecer todos os bens de que falei.
Pois era a ele que eu buscava,
Só a Ele eu desejava,
Por quem eu sentia a paixão, que, pelo esplendor
De sua beleza me ferira,
Me inflamara, queimara
E abrasara por inteiro.
E enquanto eu vivia assim,
Enquanto eu chorava assim
E gritava de dor,
Ele ouviu meus gritos;
De suas alturas inimagináveis
Ele se debruçou e me olhou,
E novamente teve piedade
E me concedeu ver
Aquele que é invisível a todos,
Na medida em que vê-lo é possível ao homem.
E eu admirei, eu fui arrebatado,
Cheio de temor, mas também de alegria.
E novamente eu o vi no interior
De minha morada;
Subitamente, ali estava ele inteiro,
Unido de um modo inexprimível,
Ligado de maneira indizível,
E mesclado a mim sem se misturar,
Como o fogo se mescla ao próprio ferro e a luz ao cristal;
E de mim ele fez como com o fogo
E me tornou como a luz.
Transformados num só ser,
Eu e aquele a quem eu me unira
– que nome poderei eu atribuir a mim?
Por natureza eu sou homem,
Por graça sou deus.
Pois, purificado pelo arrependimento
E pelas torrentes de lágrimas,
Comungando com um corpo
Divinizado, como com o próprio Deus,
Tornei-me deus eu também
Nesta união inexprimível.
Vejam que mistério!
Tanto a alma como o corpo,
Por terem também comungado com Cristo
E bebido de seu sangue,
Tornam-se também deus por participação;
E são chamados pelo mesmo nome,
O nome Dele,
Do qual participaram essencialmente.
Mas não me pergunte sobre as realidades do alto!
Porque, se você se unir à luz,
Ela própria lhe ensinará todas as coisas
E lhe revelará tudo,
E o fará ver pouco a pouco
Tudo o que importa aprender.
De outra maneira e por palavras
É impossível aprender as realidades de lá:
Ao Senhor seja dada a glória por todos os séculos! Amém.
(Hino 30)

O Filho de Deus que me amou e que se entregou por mim[15].

Uma longa e amorosa reflexão sobre a vida de Cristo desde seu nascimento até sua morte. A Encarnação é uma obra de amore a contemplação da humanidade de Cristo deve fazer nascer no homem uma resposta de amor.

Se vocês quiserem, escutemos então Deus, nosso Salvador, proclamar expressamente e nos dizer: “Eu não vim para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por mim[16]”. E, querendo mostrar de que modo se daria nossa salvação, ele disse: “Deus enviou seu Filho ao mundo, a fim de que todo homem que nele crer, ao invés de morrer, possua a vida eterna[17]”. Por conseguinte, aquele que crer nisso do fundo do coração, certo de que Cristo não veio para julgar, mas para salvar – e isso não por suas obras ou suas penas e suores, mas unicamente pela sua fé nele –, como, diga-me, [este homem] não o amará com toda sua alma e seu pensamento? Sobretudo, quando ele ouvir dizer o quanto Ele sofreu, desejando salvá-lo, a ele e a todos os homens: por exemplo, como ele desceu dos céus, como ele entrou e foi concebido no seio da Virgem Mãe de Deus, e como, sem se alterar, ele se tornou homem, ele que está muito acima dos céus, igual em dignidade e consubstancial ao Pai, ele que mantém toda a criação pela mão de seu poder e que se dignou, estando no alto com o Pai, a se tornar aqui em baixo uma criança, de modo a seguir o curso normal de nossa natureza.

A partir daí, quando ele refletir nos demais mistérios de sua encarnação, e nos sofrimentos que ele suportou, por causa dele [homem], ele, o Impassível por natureza: seu nascimento inefável, os lençóis, a própria gruta, o berço entre os animais, no qual se acomodou pauperrimamente o rei do universo, a fuga para o Egito, o retorno do Egito, a acolhida de Simeão, o modo como a criança foi abençoada e introduzida por ele no templo como o comum dos homens, a submissão aos seus pais, o batismo por João no Jordão, a tentação pelo diabo. Seus milagres, por meio dos quais ele foi mais invejado do que admirado, foi insultado e ridicularizado por todos, a traição do discípulo, as cordas com as quais os assassinos o amarraram, o modo como foi levado cativo por eles como um malfeitor, entregue a Pilatos como um condenado, como recebeu ele um tapa de um servidor, como acolheu em silêncio a sentença de morte, depois a flagelação, as zombarias, os ultrajes, o púrpura, o caniço com o qual ele recebeu os golpes em sua fronte imaculada pelos deicidas, a coroa de espinhos, a cruz que ele carregou, ele que sustenta a todas as coisas com sua palavra – numa palavra, quando [esse homem] imaginar o modo como ele foi conduzido para fora da cidade até o Calvário. Erguido nu sobre a cruz e pregado nela pelas mãos e os pés, ferido com um golpe de lança no lado, recebendo para beber uma mistura de vinagre e fel, e não apenas suportando a tudo com paciência, mas pedindo por aqueles que o crucificavam, como não o há de amar com toda sua força?

Quando ele refletir, de fato, que o Verbo, Deus sem começo proveniente do Pai sem começo, da mesma natureza e da mesma essência que o Espírito santíssimo e adorável, invisível e insondável, que este Verbo desceu, se encarnou, se tornou homem, sofreu todas essas coisas e muitas outras por sua causa, a fim de livrá-lo da morte e da corrupção e torná-lo filho de Deus e deus, semelhante a ele, não é verdade, que ainda que ele fosse mais duro do que a pedra e mais frio do que o gelo, sua alma amoleceria e seu coração se aqueceria para amar a Deus? Para mim, é isso que afirmo, e é a verdade reconhecida por todos: se um homem crê em tudo isso do fundo de seu coração e das profundezas de sua alma, logo terá ele igualmente em seu coração o amor a Deus.
(Ética 8)

Somente e Ti eu amo

Não deixe, ó Cristo, que eu me perca no meio deste mundo,
Pois só a Ti eu amo, eu que ainda não te amei,
E somente os teus mandamentos eu quero observar,
Eu, que estou inteiramente entregue às paixões, e que não te conhecia.
De fato, quem, tendo te conhecido, precisará ainda da glória do mundo?
Quem, amando-te, buscará seja lá o que for de diferente,
Quem se dará ao trabalho de ser amigo de todos?
Inclina-te, pois, tem piedade de minha pobre alma,
Ó Deus, Criador de tudo, que me deste tudo o que possuo de bom,
Dá-me ainda o conhecimento verdadeiro, concede-me que eu saiba       Me ligar apenas a teus bens eternos, e apenas a eles!
Assim, de toda minha alma te amarei, e buscarei tua glória,
Sem me preocupar com a glória dos homens e da que não é senão terra,
A fim de me tornar um contigo, de agora até meu trespasse,
A fim de poder, ó Cristo, reinar contigo,
Contigo que por mim suportaste a mais infame das mortes,
E para que contigo eu seja então o mais glorioso dos mortais:
Amém, assim seja, Senhor, desde agora e por todos os séculos.
(Hino 12)

***

Capítulo IV

Vida nova no Espírito


“É esse Espírito que, descendo sobre vós, se tornará para vós uma piscina luminosa, e que, ao vos receber em seu seio, de um modo indizível, por inteiro, vos transformará em si próprio, de corruptíveis que sois, em incorruptíveis, de mortais em imortais, fazendo-vos renascer não mais filhos de homens, mas filhos de Deus e deuses por adoção e pela graça”.
(Catequese 32)


Ele nos deu seu Espírito[18].

Os três são Deus, pois a Trindade é um só Deus.
Foi ela quem deu existência ao universo, ela que criou todas as coisas,
Ela que, segundo a carne, criou, no mundo,
E para nossa salvação, o Verbo e Filho do Pai,
Que, por sua vez, é inseparável do Pai e do Espírito.
Ele tomou a carne realmente pela vinda do Espírito
E se tornou o que não era antes, um homem semelhante a mim,
Exceto, porém, do pecado e de qualquer iniquidade:
Deus e homem simultaneamente, visível a todos os olhos,
Possuidor do Espírito divino que a ele estava unido por natureza.
E com o qual ele deu vida aos mortos, abriu os olhos aos cegos,
Purificou os leprosos e expulsou os demônios.
Foi ele que sofreu a cruz e a morte,
Que ressuscitou no Espírito e foi elevado em glória
E que abriu uma nova via nos céus para todos aqueles
Que creem nele com uma fé sem reticências,
Nele, que derramou profusamente o Espírito santíssimo
Sobre todos os que demonstraram sua fé por suas obras,
Ele que, ainda agora, a derrama sem contar sobre os que fazem o mesmo,
Ele que, por este Espírito, deifica na mesma hora aqueles a quem se une,
E, de homens que eram, os transforma sem alterá-los
E faz com que se tornem filhos de Deus, irmãos do Salvador,
Co-herdeiros de Cristo e herdeiros de Deus,
Eles próprios deuses na companhia de Deus, no Espírito Santo,
Prisioneiros da carne, sem dúvida, mas dela somente, e livre em espírito,
Elevando-se com Cristo aos céus sem dificuldade,
E tendo lá todos os seus direitos de cidadãos
Na contemplação dos bens que os olhos jamais viram.
(Hino 51)

O crescimento espiritual

O Espírito é o único artesão do progresso espiritual. Sua graça consiste num dinamismo crescente que, dia após dia, purifica, liberta e transfigura aquele que busca a Deus com sinceridade, até fazê-lo alcançar a plena maturidade de Cristo.

Aquele que recebeu o Espírito se torna esclarecido, iluminado, e a cada dia prossegue em seu crescimento espiritual, expulsando todo traço de infantilismo e progredindo rumo à perfeição acabada do homem. São novos os olhos que o Espírito renovador lhe concede, e também ouvidos novos. Daí por diante, já não é como homem que ele enxerga o sensível sensivelmente, mas, tornado mais do que homem, ele contempla espiritualmente as coisas sensíveis e vê como imagens as coisas invisíveis, e as formas que elas apresentam são para ele como que sem forma e sem figura. Aquilo que ele escuta, não é como se fossem ditas pela voz de um homem ou de muitos homens, mas apenas pelo Verbo vivo, quando ele passa pela voz do homem; é ele, e apenas ele, como seu bem-amado e seu conhecido, a quem a alma acolhe pelo ouvido e a quem ela dá livre acesso, ele, para quem, com alegria, apenas tendo entrado, ela faz festa, como disse o Senhor: “Minhas ovelhas escutam minha voz[19]”.

Sendo assim, mal o homem se transforma, e Deus vem habitar nele e se torna para ele tudo o que possa desejar: melhor ainda, acima daquilo que ele desejar. Pois Deus, que é inteiramente bom, preenche com todo o bem a alma na qual habita, segundo a capacidade de nossa natureza: porque nenhuma natureza criada é capaz de receber a Deus de conseguir suportar sua presença. Os bens de que falo são aqueles que o olho não viu, que o ouvido não escutou, e que não subiram ao coração do homem[20]. É assim que esse homem é instruído por Deus, que nele habita, sobre o futuro e o presente, não em palavras, mas em obras, pela experiência e na realidade. Esse homem contempla a grandeza do amor de Deus pelos homens, mas impede a si mesmo, pois, julgando-se do fundo da alma indigno da visão de tais bens, ele evita olhá-los de frente e até ser instruído por eles, mas ao contrário, entregue ao temor, ao tremor e à vergonha, grita: “Que sou eu, Senhor, e que importância tem a família de meu pai[21] para que me tenhas revelado, a mim o indigno, tamanhos mistérios, e me tenhas permitido, coisa inacreditável, não apenas contemplar tais bens, mas deles participar e comungar!”.

Assim é aquele que foi visto por Deus, ou seja, esclarecido desde o alto, volta seus olhos para a superabundância da glória divina: ninguém mais seria capaz de ver, e mesmo ele não consegue compreender no que consiste, nem qual é sua glória. Pois toda alma santa é liberta de toda vaidade: porque ela se reveste do manto luminoso do Espírito.

Por isso não devemos nos contentar em aprender por palavras aquilo que é inefável. É pela prática, a fadiga e as penas que nos devemos esforçar por aprendê-las e por sermos elevados a essa contemplação, a fim de sermos iniciados nas palavras que falam dessas realidades, e que, nesse estado, seja Deus glorificado em nós, que o glorifiquemos nós pelo conhecimento dessas realidades e que ele próprio nos glorifique em Cristo, nosso Deus, a quem sejam dadas glórias por todos os séculos.
(Catequese 14)

A chave do conhecimento

O Espírito é também a chave desse saboroso conhecimento que conduz o crente não apenas à contemplação dos mistérios de Deus, mas também a viver em Sua intimidade e a habitar em Sua morada.

O que é a chave do conhecimento, senão a graça do Espírito Santo que é concedida pela fé, e que, pela iluminação, produz verdadeiramente o conhecimento e o pleno conhecimento, e que abre nosso espírito que se encontrava fechado e vendado?

Eu direi mais: a porta é o Filho: “Eu sou, disse ele, a porta[22]”; a chave da porta é o Espírito Santo: “Recebei o Espírito Santo, disse ele; a quem perdoardes os pecados, estes serão perdoados; a quem retiverdes, serão retidos[23]”; a casa é o Pai: “Pois na casa de meu Pai existem muitas moradas[24]”. Portanto, preste muita atenção ao sentido espiritual da palavra. A mens que a chave abra – pois, “para ele o porteiro abre[25]” – a porta não será aberta. E se a porta não se abre, ninguém entra na morada do Pai, como disse Cristo: “Ninguém chega ao Pai se não for por mim[26]”.

Ora, que primeiro o Espírito Santo abre nosso espírito e nos ensina o que concerne ao Pai e ao Filho, isso também foi dito por ele: “Quando ele vier, o Espírito de verdade que procede do Pai, ele dará testemunho a meu respeito e vos guiará na verdade total[27]”. Vejam como, pelo Espírito – ou antes, no Espírito – o Pai e o Filho se dão a conhecer inseparavelmente. “Nesse dia – ou seja, quando o Espírito Santo vier a vós – conhecereis que estou no Pai, e vós em mim, e eu em vós[28]”; e também: “João batizou na água, mas vós sereis batizados no Espírito Santo[29]”, o que é normal, pois, a menos que sejamos batizados no Espírito Santo, não nos tornaremos nem filhos de Deus, nem co-herdeiros de Cristo.

Com efeito, se dizemos que o Espírito Santo é a chave, é porque por ele e em primeiro lugar nele nosso espírito é esclarecido, e que, purificados, somos iluminados com a luz do conhecimento e também batizados desde o alto, regenerados e tornados filhos de Deus, como disse São Paulo: “O próprio Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis[30]”, e também: “Deus nos deu o Espírito em nossos corações, o qual grita: Abba, Pai![31]”. Portanto, é ele que nos mostra a porta, porta esta que é luz, e a porta nos ensina que aquele que habita na morada é também ele a luz inacessível. Não que seja um o Deus que habita e outro a luz que é sua morada, mas ele é ao mesmo tempo morada e morador, luz e Deus.
(Catequese 33)

Apressem-se em receber o Espírito

Aqui encontramos temas já evocados: presença, renovação, luz. Eles nos permitem perceber as maravilhas operadas em nosso coração, no qual brilha a chama divinizante do Espírito.

Todas as coisas ensina o Espírito,
Brilhando com indizível luz,
E a ti ele mostrará
Todas as realidades inteligíveis,
Tanto quanto as possas ver,
Na medida em que isso é acessível ao homem,
Na medida da pureza de tua alma;
E tu te tornarás semelhante a Deus
Imitando exatamente suas obras,
Fazendo-te temperança, coragem
E amor aos homens,
E suportando suas provas
E amando teus inimigos.
Eis o que fará de mim, meu filho,
O imitador do Mestre,
E que manifestará em ti a verdadeira
Imagem de teu Criador,
[e te tornarás] em todas as coisas o imitador
Da própria perfeição de Deus.
Então o Criador
Te enviará o Espírito divino,
Que soprará, que habitará,
Que em ti há de fixar substancialmente sua morada,
E que te iluminará, te fará brilhar
E te recriará por completo,
Que, de corruptível te tornará incorruptível,
E remodelará por completo
A casa decrépita,
A habitação da tua alma:
E com ela, ele tornará incorruptível teu corpo inteiro
E te fará deus pela graça,
Semelhante ao teu Modelo,
Ó maravilha!,
Ó mistério desconhecido de todos,
Desconhecido dos que não se proporcionaram
Um coração puro,
Desconhecido dos que não pediram
Com o coração fervente
Receber o Espírito divino,
Desconhecido dos que não creram
Que, ainda agora, Deus concede
O Espírito divino aos que o buscam.
Pois a incredulidade afasta
E expulsa o Espírito divino:
Aquele que não crê tampouco pede;
E por não pedir, não recebe,
E, não recebendo, permanece como morto.
Não hesite mais, portanto,
Se és cristão,
Tal como o Cristo,
Celeste, assim
Deves sê-lo também.
Foi ele quem tomou a carne,
Nossa carne, e que nos deu
O Espírito divino, como te disse eu
Tantas vezes, e esse Espírito, sendo Deus,
Nos concede todos os bens.
Tornando-se como uma piscina
Divina e luminosa,
Ele abraça a todos aqueles
Que dele são dignos e que ele encontra
Dentro dela.
Ele remodela por inteiro
Todos os que recebe dentro de si mesmo,
E deles faz novos seres
E os renova de extraordinária maneira.
Por ser imortal,
Ele concede a imortalidade;
Por ser luz sem ocaso
Ele transforma em luz todos aqueles
Em que estabelecer sua morada, e por ser vida, a eles traz
A todos eles, a vida.
Sendo consubstancial a Cristo,
Idêntico em natureza
Como também em glória,
E sendo um com ele,
Ele os torna por completo
Semelhantes a Cristo.
Apressai-vos, então, em receber o Espírito
Que provém de Deus, o Espírito divino,
A fim de se tornarem
Herdeiros do Reino celeste
Por todos os séculos.
Pois, se desde já, daqui de baixo, não vos torneis celestes,
Como podereis pretender
Habitar com Cristo nos céus?
Correi, portanto, com ardor, corramos todos,
Para sermos considerados dignos
De nos encontrarmos dentro
Do Reino dos céus
E de reinarmos com Cristo, o Mestre de tudo,
A quem seja dada toda glória,
Juntamente com o Pai e o Espírito,
Por todos os séculos dos séculos. Amém.
(Hino 44)

Purifica teu coração

Aos olhos de Deus o que conta são as disposições do coração, mais do que todas as práticas da ascese; assim se entrega a alma ao Espírito.

Por não ser “através das obras da Lei, a fim de que ninguém se vanglorie disso[32]”, como disse o Apóstolo, que alcançamos a salvação, nós, os fiéis, não devemos absolutamente confiar nas obras, como os jejuns e as vigílias, dormir no chão duro, sentir fome e sede, nem sobrecarregar o corpo com ferros ou castigá-lo com vestes de cilício. Isso não significa nada, pois muitos malfeitores e miseráveis que foram obrigados a isso continuaram como eram, sem perder sua malícia nem superar o estado em que se encontravam. Não é somente isso que Deus nos pede; ele deseja sobretudo um espírito contrito, um coração contrito e humilhado e com disposição para lhe falar com um espírito de submissão: “Quem sou eu, Senhor, meu mestre e Deus, por quem descestes, por quem te encarnastes e sofrestes a morte, a fim de livrar-me da morte e da corrupção, a fim de me associar à tua glória e à tua dignidade e fazer-me partilhar dessas coisas?”. Quando você estiver nessa disposição no que tange aos movimentos invisíveis de seu coração, você logo encontrará o Senhor pronto para tomá-lo misteriosamente em seus braços, para abraçá-lo, para lhe conceder um espírito reto no fundo de você mesmo, um espírito de liberdade e de remissão dos seus pecados, e, acima de tudo, a coroá-lo com seus carismas e a lhe conferir um renome de sabedoria e de conhecimento.

Existe algo que Deus ame e goste mais do que um coração contrito e humilhado, do que um sentimento de submissão com espírito humilde? É numa alma nessas condições que Deus em pessoa estabelecer sua morada e nela repousa, e que, por outro lado, todas as armadilhas do diabo são inteiramente ineficazes, e todas as afeições nocivas do pecado desaparecem completamente. Nela, já não prospera senão o fruto do Espírito Santo: a caridade, a alegria, a paz, a mansidão, a bondade, a fidelidade, a doçura, a modéstia e a temperança, que trazem consigo o conhecimento divino, a sabedoria do Verbo e o abismo dos desígnios ocultos e dos mistérios de Cristo. Aquele que consegue chegar até aí e que aí se mantém firmemente, se dilata sob o efeito de uma alegria inefável no amor de Deus, este amor do qual nenhum homem pode se aproximar sem primeiro purificar o próprio coração através da penitência e de torrentes de lágrimas, e se não penetrar no abismo da humildade.  Será preciso então que ele chegue a conceber o Espírito Santo, pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem sejam dadas a glória, a honra e o poder, juntamente com o Pai e o Espírito Santo, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amém.
(Ética 8)

***

Capítulo V

A Eucaristia, mistério de unidade


A Eucaristia, mistério de união e de divinização, é, para Simeão, o coração de sua relação para com Cristo:
“Onde se coloca o pão e se derrama o vinho,
Como sendo tua carne e teu sangue, ó Verbo,
Aí tu estás, Verbo, meu Deus,
E eles se tornam realmente teu corpo e sangue
Pela vinda do Espírito Santo e o poder do Altíssimo”.
(Hino 14)
Seus escritos expressam o caráter pessoal de sua fé eucarística, e ao mesmo tempo as dimensões imensas desse mistério na vida do cristão e na vida da Igreja.


Ali eu encontrei Cristo

É na liturgia, na celebração eucarística e na comunhão com o corpo e o sangue de Cristo que Simeão encontrou tudo.

Quem, portanto, se estiver com Cristo, ainda precisará de qualquer dos
outros bens da vida presente?
Quem, possuindo a graça do Espírito em seu coração,
Não possuirá também, habitando em si, a venerável Trindade
Que o ilumina de faz dele deus?
Quem, assim, tornado deus pela graça da Trindade,
Pensaria ainda haver coisa mais gloriosa
Do que celebrar a liturgia?
Se você tivesse visto Cristo e se tivesse recebido o Espírito,
E se, graças a esses dois, tivesse sido levado até o Pai,
Você saberia o que eu lhe digo e o que exprimo,
Que o serviço divino é grande e temível e que ele ultrapassa
Toda gloria, iluminação, mandamento e potência,
Riqueza, poder e toda realeza,
Quando celebramos, com o coração puro,
Em honra da Trindade pura, santa e imaculada.

 Aí é que está o paraíso, aí a árvore da vida,
Aí o pão da doçura, aí a bebida divina.
Aí eu encontrei a Cristo, que me concedeu seus bens
E então eu o segui com toda minha alma.
Aí eu comi do maná e do pão dos anjos
E já nada do que era humano eu desejei.
Aí eu vi como meu Deus sofre a paixão impassívelment4e
E como ele morreu, ele, o imortal,
E coo saiu do túmulo sem romper os selos.
Aí eu vi a vida futura e a imortalidade
Que Cristo concede aos que o procuram,
E descobri que em mim estava o reino dos céus
Que é o Pai, o Filho e o Espírito,
A divindade inseparável em três Pessoas.
(Hino 19)

Meu sangue misturado ao teu

Qual é a tua misericórdia sem medidas, Salvador?
Como te dignastes me tornar membro de teu corpo?
Como me revestistes com o manto brilhante,
Que fulgura com um esplendor de imortalidade,
Que transforma em luz todos os meus membros?
Pois teu corpo, teu corpo imaculado, divino,
Fulgura por inteiro com o fogo de tua dignidade
Ao qual ele está indizivelmente mesclado e unido;
E tal é o favor que a mim fizestes também, meu Deus.
Com efeito, este sórdido e perecível despojo
Unido ao teu corpo imaculado,
E meu sangue ao teu sangue misturado,
Me torna unido, bem o sei, igualmente à tua divindade
E eu me torno teu corpo puríssimo,
Membro brilhante, membro santo realmente,
Membro resplendente, transparente, luminoso.
Eu vejo a beleza, eu contemplo o brilho,
Eu reflito a luz de tua graça;
E, com estupor, eu contemplo esse esplendor indizível,
E estou fora de mim ao pensar em mim mesmo:
Daquilo que eu era, no que me tornei – ó maravilha!
Eu percebo, eu sinto diante de mim mesmo um respeito,
Uma reverência, um medo, como se estivesse diante de Ti mesmo,
E já não sei o que fazer, nem onde por esses membros que são os seus,
Nem em que obras, em quais ações, esses membros empregar,
Temíveis que são eles, e também divinos.
(Hino 2)

A união inexprimível

Essa carne imaculada, que Cristo emprestou do seio puríssimo de Maria, Mãe de Deus por inteiro imaculada, essa carne ele nos deu por alimento; e quando nós, os fiéis, comemos dignamente dessa carne que é a sua, recebemos em nós também por inteiro o Deus encarnado, nosso Senhor Jesus Cristo, a um tempo Filho de Deus e filho de Maria a Virgem imaculada, aquele que está sentado à direita de Deus Pai. Foram suas próprias palavras: “Quem come de minha carne e bebe de meu sangue permanece em mim e eu nele[33]”. E isso, sem jamais proceder de nós, ou de nós ter nascido corporalmente para depois se separar de nós. Pois já não é segundo a carne que sabemos que ele está em nós, como um recém-nascido, mas incorporalmente no corpo, amalgamado à nossa essência e à nossa natureza de maneira inexprimível; assim ele nos diviniza, pelo fato de que somos incorporados a ele, carne de sua carne e ossos dos seus ossos. Eis o que de maior é realizado em nós por sua inexprimível condescendência; tal é o mistério, carregado de todo o temor que ele inspira, que eu hesito em descrever e temo abordar.
(Ética 1, 10)


Eu sou o Pão que desceu do céu

Simeão medita sobre o capítulo 6 de São João. Durante a eucaristia, o fiel possui a felicidade eterna, ele é arrastado desde agora para a intimidade da vida trinitária.

Os bens eternos que o olho não viu, que o ouvido não escutou e que não subiram ao coração do homem, e que Deus preparou para aqueles que o amam[34], não estão postos sobre um penhasco fortificado; eles não estão circunscritos num lugar, escondidos em algum abismo, retidos nos confins da terra ou do mar; eles estão ao seu alcance e diante dos seus olhos. E o que são eles? Juntamente com os bens que estão reservados nos céus, eles são o próprio corpo e o sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, que vemos a cada dia, que comemos e bebemos, e que constituem, conforme todos sabem, esses bens; fora deles, você não encontrará em parte alguma absolutamente nada que mereça esse nome, mesmo que você percorra toda a criação. Mas, para firmar sua convicção, escute as palavras do próprio Senhor, que disse aos judeus e aos seus discípulos: “Em verdade, em verdade eu vos digo, não foi Moisés que vos deu o pão do céu; é meu Pai que vos dará o verdadeiro pão do céu. Pois o pão de Deus é o pão que desceu do céu e que dá a vida ao mundo[35]”.

Não tome os judeus como modelo, para sair por aí murmurando e dizendo: não está esse pão sobre a patena e o vinho no cálice? Nós os vemos todos os dias, nós os comemos e bebemos. Como, então, poderá alguém dizer que os bens que o olho não viu, que o ouvido não escutou e que não subiram ao coração do homem, não são senão isso? Escute então o que o Senhor respondeu aos que pensavam assim: "Não murmurai entre vós. Ninguém pode vir a mim se o Pai que me enviou não o atrair; a este eu ressuscitarei no terceiro dia[36]”.

“Assim como o Pai que é vivo me enviou, e que eu vivo pelo Pai, também aquele que me receber como alimento viverá também por mim[37]”. Veja o que ele disse! O Filho de Deus proclama solenemente que a união que tivermos realizado com ele pela comunhão é semelhante à união e à vida que ele possui com seu Pai. De fato, do mesmo modo como ele está unido por natureza ao seu próprio Deus e Pai, disse ele, também nós, segundo a graça, ao comermos sua carne e bebermos seu sangue, estaremos unidos a ele e viveremos nele. Mas para não crermos simplesmente que tudo se reduz ao pão visível, ele disse com precisão em muitas ocasiões: “Eu sou o pão que desceu dos céus[38]”. Ademais, ele separa nosso pensamento das coisas visíveis, ou melhor, por meio delas ele nos eleva até a glória invisível de sua divindade, dizendo: “Eu sou o Pão da Vida[39]”, e também: “Meu Pai vos dá não o pão da terra, mas o verdadeiro pão do céu[40]”. E, ao se referir ao verdadeiro pão do céu, ele nos mostra que o pão da terra é enganador, porque ele não serve para nada.

Ele quis assim tornar mais claras essas coisas, ao dizer: “O pão de Deus é aquele que desceu do céu e que dá a vida ao mundo[41]”. Ele insiste nesse “que desceu” e nesse “que dá a vida”. Por que isso? Para que você não pense em nada de corporal, ou conceba algo terrestre, mas também para que você veja com os olhos da inteligência que esse pão tão pequeno, essa modesta parcela é transformada em Deus e se torna inteiramente semelhante ao pão que vem do céu e que é Deus verdadeiro, pão e bebida da vida imortal.

Venham agora, portanto, todos vocês que creem, vocês todos que conhecem o poder dito e redito desses mistérios, todos vocês que comeram do pão celeste, todos os que dele, por ele, nele e com ele obtiveram a vida eterna, e deixemo-nos arrebatar em espírito para a vida verdadeira até o terceiro céu, ou melhor, espiritualmente, para o próprio céu da Santíssima Trindade. Assim depois de ter visto perfeitamente, e de ter ouvido tudo o que foi dito e tudo o que permanece indizível, depois de haver provado e sentido, depois de haver tocado com as mãos de nossa alma, poderemos dirigir a Deus, o amigo dos homens, nosso hino de reconhecimento, dizendo: “Glória a Ti que aparecestes e que te dignastes revelar-Te a nós e te deixares ver!”.
(Ética 3)

Todos unidos em Cristo

A eucaristia é, sobretudo, o mistério da unidade. Os batizados, comungando a carne divinizada do Salvador, estão unidos entre si ao redor da Theotokos, a Mãe de Deus.

“Todos os que escutam a palavra de Deus e a colocam em prática[42]”, a todos esses, Cristo elevou à dignidade de sua mãe, e os chama de irmãos e nomeia a todos como seus parentes. Entretanto, aquela que foi sua mãe segundo o corpo o foi no sentido próprio do termo, pois ela o trouxe para o mundo de maneira inexprimível e sem contato com homem; quanto aos santos, eles o possuem [a Cristo] todos por concebê-lo segundo a graça e o dom. Ademais, ele emprestou de sua mãe irrepreensível sua carne irrepreensível, e, em troca da carne, ele concedeu à sua mãe o dom da divindade – ó estranha e insólita troca!; dos santos, por outro lado, ele não recebeu a carne, mas os fez participar de sua carne divinizada. Considere comigo a profundidade desse mistério. A graça do Espírito, também chamada de fogo da divindade, pertence a nosso Salvador e Deus por natureza e essência; mas seu corpo não tem a mesma origem, pois ele provém da carne santa e puríssima da Mãe de Deus, de seu sangue isento de toda mancha. A partir daí o Filho de Deus e da Virgem imaculada concede aos santos em partilha a graça do Espírito, ou seja, a divindade que provém da natureza e da essência de seu Pai eterno, e também lhes dá sua carne que ele recebeu da natureza daquela que realmente o concebeu.

Assim a Mãe de Deus é senhora, rainha, mestra e mãe de todos os santos; e os santos são todos, de um lado, seus servidores na medida em que ela é Mãe de Deus e, de outro lado, seus filhos na medida em que comungam da carne imaculada de seu Filho, pois a carne do Senhor é a carne da Mãe de Deus, e ao comungar da carne divinizada do Senhor, nós professamos e cremos que estamos comungando da vida eterna.
(Ética 1: 10)

O Corpo de Cristo

A Igreja, Corpo de Cristo ressuscitado, alimentada dia após dia com o pão substancial, se desenvolve até a medida de seu talhe perfeito.

O corpo da Igreja de Cristo, resultado harmonioso da reunião de seus santos desde a origem dos tempos, atingiu sua constituição equilibrada e integral na união dos filhos de Deus, dos primogênitos inscritos nos céus. Essa verdade, de que todos os santos, enquanto membros de Cristo, se tornam seu corpo único e devem continuar a fazê-lo no futuro, essa verdade tentarei agora provar de acordo com a divina Escritura. Em primeiro lugar, escute como nosso próprio Salvador e Deus revelou o caráter indissolúvel e indivisível da união consigo, ao dizer aos seus Apóstolos: “Eu estou no Pai e o Pai está em mim; e vós em mim e eu em vós[43]”. E ele deixa isso ainda mais claro ao acrescentar: “E eu lhes dei a glória que me destes, a fim de que sejam um, eu neles e tu em mim, a fim de que eles sejam perfeitos como um.[44]”. E mais uma vez: “A fim de que o amor com que tu me amastes esteja neles e que também eu esteja neles[45]”. Vê você a profundidade do mistério? Reconhece aí um excesso mais do que infinito de glória inconcebível? Compreende que o modo dessa união transcende a inteligência e toda concepção?

Ó  maravilha, ó indizível condescendência do amor que Deus tem por nós, Deus, o amigo dos homens! Aquilo que ele é, por natureza, em relação a seu Pai, ele nos concede sê-lo em relação a si próprio pela adoção e pela graça. Ó promessa que dá arrepios! A glória dada ao Filho pelo Pai é a mesma que o Filho, por sua vez, nos dá pela graça divina. Melhor ainda: assim como ele está no Pai e o Pai está nele, assim também o Filho de Deus estará em nós e nós no Filho, se assim o quisermos, pela graça. Uma vez tornado semelhante a nós pela carne, ele nos tornou partícipes de sua divindade e nos incorporou a todos em si. De resto, a divindade da qual participamos por essa comunhão não é divisível em partes separadas; segue-se daí necessariamente que também nós, uma vez que dela tenhamos participado em verdade, nos tornamos inseparáveis do Espírito único, formando um só corpo com Cristo.

Para provar que as coisas são assim, escute Paulo, que disse: “Em Jesus Cristo não existe escravo nem homem livre, nem judeu, nem grego, nem cita, nem bárbaro; mas Cristo é tudo em todos[46]”. Repare que ele não disse “mas todos são cristãos”, e sim “Cristo”, no singular, como um corpo único formado por muitos membros.

A união que existe dele com seu Pai existe da mesma maneira entre ele e nós, é isso que ele nos ensina. E seu discípulo e apóstolo assimilou essa união à do homem com a mulher e da mulher com o homem[47]. Assim como Eva foi tirada da carne e dos ossos de Adão, de modo a que os dois constituíssem uma só carne, também Cristo, ao se entregar a nós em comunhão, nos dá sua própria carne e seus ossos, que ele mostrou aos seus apóstolos depois da ressurreição de entre os mortos, dizendo: “Tocai em mim e constatai que um espírito não possui carne nem ossos, como estais vendo que eu tenho[48]”. Essa mesma carne é a que ele nos dá para comer; é a graça dessa comunhão que faz com que nos tornemos um com ele.

Paulo acrescenta: “Esse mistério é grande; eu o digo pensando em Cristo e na Igreja[49]”.Trata-se portanto, verdadeiramente, de um mistério grande e mais do que grande, e assim ele permanecerá, na medida em que a comunidade e a união, a intimidade e o parentesco realizados pela mulher com o homem e pelo homem com a mulher, sejam também realizados – de um modo digno de Deus e transcendente a toda palavra e todo pensamento – pelo mestre e criador do universo com toda a Igreja. Ele se uniu a ela, como a uma única esposa, de modo imaculado e mais que inefável, e se tornou indestacável e inseparável dela, vivendo com ela a quem ele ama e quer bem. Por sua vez, a Igreja, unida ao seu Deus a quem ela ama, adere a ele como o corpo inteiro à sua cabeça. Assim como o corpo não pode absolutamente viver sem a cabeça, também a Igreja dos fiéis, dos filhos de Deus, não pode ser para Deus um corpo bem constituído em todas as suas partes sem a cabeça que o próprio Cristo Deus. Ela não pode viver a vida verdadeira e incorruptível se não for alimentada por ele a cada dia com o pão substancial, graças ao qual a vida e o crescimento até a idade do homem perfeito são assegurados a todos os que o amam.

Pois é preciso que seja atingida, para além deste mundo, a plenitude do mundo da Igreja dos primogênitos, da Jerusalém que está nos céus. Só então o fim e a plenitude do Corpo de Cristo serão plenamente consumados na pessoa daqueles que Deus predestinou para se tornarem à imagem de seu Filho[50].
(Ética 1, 6 e 8)

***

Capítulo VI

Tornar-se santo hoje


Simeão quer anunciar a todos que a vida de filho de Deus não é uma palavra vazia; trata-se de uma experiência de amor que transforma toda a existência. Desde que Deus se fez homem, a vida humana foi totalmente renovada. Simeão fez ele próprio essa experiência, e seu maior desejo é o de poder partilhá-la com todos os seus irmãos: monges e leigos, ricos e pobres, fiéis e pecadores. Ele não cessa de repetir: a santidade é um caminho aberto a todos, ela é possível desde já, aqui e agora.


Cristãos em verdade

Batismo e conversão são as primeiras etapas do encaminhamento espiritual. Eles são inseparáveis para Simeão. Pois, se o sacramento marca o início da vida cristã, se a graça santifica a criança mergulhada na piscina batismal, é preciso ainda que essa graça produza seu fruto por meio de uma decisão livre e consciente do homem que chegou à idade adulta e que reconhece o Senhor e se dispõe a segui-lo.

Ah! Não me prive jamais, Mestre, dessa alegria,
Nem agora, nem no século futuro, ó meu Rei:
Pois a alegria é contemplar teu rosto,
Porque somente tu és, ó meu Deus, todos os bens
Com os quais cumulas os que tu olhas ao te unires e comungar com eles,
Não apenas no futuro – infelizes dos que falam assim! –
Mas desde já, em seus corpos, daqueles que são dignos de ti,
Dos que se purificaram graças à penitência.
Aqueles que receberam seu batismo na infância
E levaram ao longo da vida uma existência indigna dele,
Terão uma sentença pior do que a dos que não foram batizados
Por haverem insultado teu manto santo;
E, sabendo que esta coisa é certa e segura, Salvador,
Destes a penitência como uma segunda purificação
E estabeleceu como seu objetivo a graça do Espírito
Que antes recebêramos no batismo:
Pois não é apenas “pela água” que advém a graça, como dissestes,
Mas sim “pelo Espírito”, na invocação da Trindade.
Como então subsistirá o Espírito divino numa alma
Que jamais alcançou a consciência do arrependimento?
Como suportará a alma a natureza desse fogo intolerável,
Quando está cheia dos espinhos das paixões e do pecado?
Como, estando ela cheia de trevas, poderá se misturar à luz inacessível
Sem ser extinta diante de sua presença?

Este é o verdadeiro sinal de que os homens
Se tornaram filhos e herdeiros de Deus:
Terem recebido, e possuírem, meu Espírito divino
E assim merecerem verdadeiramente o nome de cristãos
Em verdade e de fato, não apenas como um título.

De fato, como, aos que O renegam,
Mostrarias, meu Salvador, o rosto de tua luz?
Impossível! A menos que eles adquiram uma grande fé
E observem com todo o coração tua lei divina
Até a morte, dedicando-se, por tua causa,
À pratica verdadeira de teus sábios mandamentos.
Eis no que consiste a salvação de todos os salvos,
Para o que não existem outros caminhos, como dissestes, meu Deus.
(Hino 55)

Deus foi até onde você jaz

A conversão não é em primeiro lugar um esforço do homem para Deus; é uma iniciativa do Salvador que, em sua ternura, chama para si todos os pecadores.

Não escutam vocês todos os dias o Salvador, que proclama: “Eu sou [o Deus] vivo; minha vontade não é desejar a morte do pecador, mas que ele se converta e que ele viva[51]”? E também: “Em verdade eu voz digo, existe alegria no céu por um só pecador que se arrependa[52]”. Venham, disse ele, vocês que estão oprimidos pelo número dos seus pecados, venham para aquele que tira o pecado do mundo. Venham, vocês que estão sedentos, para a fonte perpétua e imortal. Acorram todos ao Mestre que os chama. Seja republicano, impuro, adúltero, assassino, ou o que for, o Mestre não rejeita ninguém, ele retira de cada um o peso de suas faltas e o torna livre novamente. E de que modo ele retira esse fardo? Do mesmo modo como um dia ele retirou o do paralítico, dizendo: “Meu filho, teus pecados te são perdoados[53]”; e imediatamente ele se viu aliviado de seu fardo e recebeu a plena saúde de seu corpo.

Deus, que existe desde antes dos séculos e que conhece todas as coisas antes de tê-las feito, também a você conhece previamente. “Ele inclinou os céus e desceu[54]”; ele se tornou homem por sua causa, ele desceu até onde você jaz. Ele o visita muitas vezes por dia; ele o exorta a que você se erga da queda que o jogou por terra, e a segui-lo enquanto ele sobe de volta aos céus, e lá entrar junto com ele.

Por que você não se apressa em amá-lo com toda sua alma e todo seu coração, e em guardar seus mandamentos salutares, e em crer que, depois de se deixar imolar por você, ele não o abandonará nem o deixará perecer? Você não o escutou dizer: “Mesmo que fosse possível a uma mulher esquecer-se do fruto de suas entranhas, eu não o esqueceria[55]”?. Mas se você se adianta e se considera indigno, se você exclui a si próprio voluntariamente do rebanho das ovelhas de Cristo, tenha certeza: não foi ninguém além de você mesmo que ocasionou sua perdição.

Por conseguinte, rejeitemos para longe de nossa alma toda desconfiança, toda negligência e toda hesitação, e apresentemo-nos com um coração sincero, uma fé segura e um zelo ardente, como novos servidores resgatados por seu sangue precioso. Amemos nosso Mestre, que derramou esse sangue, acolhamos seu amor por nós, e saibamos que, se ele não tivesse desejado nos salvar depois de nos ter resgatado, ele não teria descido à terra nem teria sido imolado por nossa causa; como está escrito, foi por querer salvar a todos os homens que ele fez o que fez. Ouça ele próprio dizer: “Eu não vim para julgar o mundo, mas para salvar o mundo[56]”.
(Ética 2)

Corram para a luz

Não se trata de gastar palavras ou de permanecer nos bons sentimentos; trata-se de responder ao chamado de Deus por ações[57]. Não amanhã, mas hoje. É aqui em baixo que são feitas as escolhas que conduzem à eternidade.

O Mestre do Universo, por meio dos seus santos evangelhos, conclama a todos nos seguintes termos: “Enquanto tendes a luz, correi para a luz, para que não sejais colhidos pelas trevas[58]”. Corram para a penitência na trilha de seus mandamentos, corram enquanto ainda está claro, antes que a noite de morte os colha no caminho. Corram, busquem, batam que se lhes abram as portas do Reino dos Céus, para que vocês possam entrar e para que o possam ter dentro de vocês mesmos. Pois, quando e onde o encontrarão, aqueles que deixarem a vida presente antes de alcançar esse Reino? Por isso é aqui em baixo que nos é prescrito pedir, procurar, bater, entre penitência e lágrimas, e é com a condição de agirmos assim que o Mestre nos prometeu no-lo conceder. Se então nos recusamos a agir assim e a obedecer a Cristo nosso Mestre quando nos diz para nos apressarmos, enquanto estamos nessa vida, a receber o Reino em nós, não o escutaremos dizer, depois que partirmos para o além, e com toda justeza: “Por que buscam agora o Reino que eu lhes ofereci e que vocês se recusaram a receber? Não os exortei cem vezes a que se afadigassem para recebê-lo de minhas mãos, e vocês não o quiseram, vocês o desprezaram, vocês preferiram a fruição dos bens corruptíveis e terrestres? Quais são as obras ou as palavras que permitiriam a vocês obtê-lo agora?”.

Eis aí o porquê de eu tanto os exortar: coloquemos todo nosso zelo em guardar os mandamentos de nosso Deus, a fim de obter a vida e o Reino eternos. Que essas palavras do Senhor atinjam nossos ouvidos: “Vinde os benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos foi preparado[59], porque vocês me alimentaram, faminto que estava eu pela sua salvação, praticando meus mandamentos; vocês me deram de beber, me vestiram, acolheram e visitaram, purificando seus corações de toda marca ou mancha do pecado. Daqui por diante, desfrutem dos meus bens, cujo gozo é inefável, e da vida eterna e imortal”: possamos nós obter essas coisas, pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem seja dada a glória por todos os séculos. Amém.
(Catequese 15)

Desde aqui de baixo

Por meio de uma fé sem sombras nas promessas do Senhor, e pela graça do Espírito Santo, o presente da existência humana pode se tornar o adubo de um fruto de eternidade.

Corramos, fiéis, com energia,
Apressemo-nos, preguiçosos, com esforço!
Levantemo-nos negligentes,
Para possuirmos o amor,
Ou antes, para partilhar dele.
O Criador desceu à terra;
Ele tomou uma alma e carne.
Ele nos deu o Espírito divino
Que é precisamente o Amor.
Se desejares e quiseres
Receber o Espírito divino,
Crê perfeitamente em Deus,
E também renuncia a ti mesmo,
E sobre tuas espáduas, sem hesitação,
Leva a cruz, toma-a para si,
Morre em tua intenção, filho meu,
Para que te tornes partícipe
Da vida imortal!
Que não te ponham a perder os impostores
Com seus falsos discursos
Que dizem que após a morte
Todos os que morrem recebem a vida.
Escuta o que proclama Cristo todo o tempo:
“Do coração daqueles que creem em mim
Correrão rios
Da fonte divina,
De água da vida eterna[60]”.
Qual é então essa água da qual ele fala,
Senão a graça do Espírito?
Aos puros de coração ele os proclama
Bem-aventurados, dizendo que eles
Desde aqui em baixo, verão a Deus.

Escuta as palavras do Mestre,
De como ele mostra que os homens
Recebem o Reino
Dos céus desde aqui em baixo.
Este, diz ele, é semelhante
A uma pérola de grande valor.
O mercador que a encontrou:
Como poderá tê-la encontrado, diz-me
Se ela é inalcançável,
Se ela é invisível.

Mas o Mestre não disse,
Como tu o compreendes,
Que ele vendeu tudo o que tinha
Na esperança de encontrá-la
Na esperança de tê-la para si.
Por que te perderes? Por que te apoiares
Sobre esperanças vãs?
Veja, em primeiro lugar é a ti que ele aconselha
A descobrir a pérola por ti mesmo
E, depois de tê-la visto
Como algo inestimável,
Só então venderás
Tudo para adquiri-la.
Mas tu falas em “esperança”
E com isso mostras
Que não a queres buscar,
Que não a queres encontrar,
Que não queres vender
Tudo o que possuis e adquirir
O Reino dos céus
Que está em ti, se o quiseres.

Se quiseres, por outras passagens ainda,
Eu te mostrarei claramente que é aqui em baixo
Que deves receber
O Reino dos céus inteiro,
Se nele quiseres penetrar
Também após a morte.
Ouça ainda a Deus
Que te fala por parábolas.
Ao que podemos comparar
O Reino dos céus?
Ele se parece – escuta bem –
Ao grão de cevada
Que um homem toma
E lança em seu jardim;
E ele cresce, e se torna
Realmente uma grande árvore.
Esse grão é o Reino dos céus
É a graça do Espírito divino,
E o jardim é o coração,
O coração de cada homem,
Ali, onde aquele que o recebeu
Lança o Espírito e o esconde no fundo de si mesmo,
Nas dobras das suas entranhas,
Para que ninguém mais possa ver;
Assim ele o guarda
Com mil cuidados, para que ele cresça,
Para que ele se torne uma árvore
E se eleve até o céu.
Então, se tu dizes: não é aqui em baixo,
Mas após a morte,
Que receberão o Reino
Aqueles que o desejaram com fervor,
Tu invertes as palavras
Do Salvador nosso Deus,
Pois, se tomares o grão,
Esse grão de cevada de que ele falou,
E não o lançares em teu jardim,
Hás de permanecer estéril.
E em que outro momento, senão agora,
Poderás tu receber a semente?

Desde aqui em baixo, recebe os penhores,
Disse o Senhor,
Aqui em baixo, recebe o selo.
Aqui em baixo, acenda a lâmpada.
Se és sensato,
Aqui em baixo tornar-me-ei para ti a pérola,
Aqui em baixo serei para ti o trigo,
E como que um grão de cevada;
É aqui em baixo que me tornarei para ti um fermento
Que fará crescer a massa;
Aqui em baixo serei para ti como a água
E me tornarei um fogo edulcorante;
Aqui em baixo me tornarei
Tuas vestes e teu alimento,
E toda tua bebida, se o quiseres.
Eis o que o Mestre disse.
Se então desde aqui de baixo,
Me reconheceres assim,
Lá também poderás me possuir inefavelmente
E eu serei então tudo para ti.
(Hino 17)

Hoje

O austero convite de Simeão não é outro do que o Evangelho. Ele não é nada de abstrato, nem de teórico. A conversão consiste em levar a sério as palavras de Cristo e viver o Evangelho no próprio dia de hoje.

Hoje, decide-te, tu estás morto, hoje renunciaste,
Hoje, convence-te, abandonaste o mundo inteiro.
Hoje, depois de despedires os amigos, os parentes e toda vã glória,
Renuncia também a de preocupares com os negócios daqui em baixo.
Sobre tuas espáduas coloca tua cruz, aperta-a vigorosamente
E até a morte suporta as penas das provas,
As dores das tribulações, o pregos das aflições,
E recebe a tudo com alegria, como uma coroa de glória.
Se te manifestares como o último de todos,
Como seu escravo e servidor, mais tarde eu te manifestarei
Como o primeiro de todos, segundo minha promessa.
Se amares teus inimigos e a todos os que te odeiam
E se, do fundo do coração, orares por aqueles que te caluniam
E fizeres o bem a eles na medida de tuas forças,
Verdadeiramente tu terás te tornado semelhante ao teu Pai altíssimo,
E, tendo adquirido como tais ações um coração puro,
Verás em teu coração o Deus que mais ninguém viu.
E se te acontecer ser perseguido pela justiça,
Salte de alegria, pois o reino dos céus
Te pertence – e o que existe de maior do que isso?
Esses sofrimentos, eu o sofri de bom grado por vossa causa,
E fui crucificado, sofrendo a morte dos celerados;
Os ultrajes que me fizeram se tornaram
Para o mundo glória, vida e esplendor,
E para os mortos ressurreição, e motivo de coragem
Para todos os que creram em mim;
E  minha morte ignominiosa foi uma veste de imortalidade
E de verdadeira divinização para todos os crentes.
É por isso que os que imitam meus sofrimentos adoráveis
Participarão eles também de minha divindade
E serão eles os herdeiros de meu Reino,
E partilharão comigo esses bens indizíveis, misteriosos,
E serão meus companheiros por todos os séculos.
(Hino 40)


Não digas que é impossível

Mas Simeão encontrou por toda sua vida aqueles que recusavam o caminho sob os pretextos mais vazios. Ele não cessou de repetir a todos que a busca incansável de Deus não é impossível e que ela sempre termina na luz.

Todos nós, busquemo-lo, Àquele único
Que pode nos libertar de nossos laços!
Persigamo-lo com nosso desejo, a ele cuja beleza
Deixa em estupor todos os pensamentos, todos os corações,
Abençoa todas as almas, as faz voar para o amor,
As amarra e une a Deus para todo o sempre.
Sim, irmãos, para ele correi por vossas ações,
Sim, meus amigos, de pé, não vos deixeis desanimar,
Sim, nada dizei contra nós enganando a vós mesmos.
Não dizei que é impossível receber o Espírito divino.
Não dizei que sem ele é possível a salvação.
Não dizei que se pode possuí-lo sem o saber.
Não dizei que Deus não se deixa ver pelos homens.
Não dizei que os homens não podem ver a luz divina,
Ou que isso é impossível nos dias atuais!
Isso jamais foi impossível, amigos,
Mas, ao contrário, é bem possível quando se quer.
Vede, meus amigos, quão bom é o nosso Mestre!
Sim, não fechai os olhos de vosso espírito, voltando-os para a terra;
Sim, por causa dos negócios e das riquezas terrestres
Não vos deixeis subjugar pelo desejo de glória
E não negligencieis a luz da vida eterna.
Sim, meus amigos, vinde comigo, elevai-vos comigo,
Não de corpo, mas de espírito, de alma e coração,
E chamemos pelo bom Mestre com toda humildade,
A ele, o Deus da misericórdia, o único amigo dos homens!
E ele verdadeiramente nos escutará, e verdadeiramente se apiedará,
E verdadeiramente se revelará, e verdadeiramente aparecerá
E manifestará claramente para nós a sua luz.

***

Capítulo VII

Já está aí o Reino




Desde aqui de baixo, e ainda hoje, precisamos nos decidir por Deus. E esse ato de conversão, se for real, abrirá ao fiel a vida eterna e lhe dará sua parte no Reino. A partir daí, inaugurar-se-á uma vida nova, uma vida na qual a pessoa humana se realizará em plenitude na luz de Deus. Dessa experiência espiritual na fé, Simeão afirma que deve se tornar cada vez mais consciente. A graça, desde as profundezas onde estava enterrada, deve invadir todo o ser, impregnar com sua luz o próprio corpo e aflorar à consciência: o crescimento na graça é ao mesmo tempo um progresso na consciência do divino. Deus se revela como luz para que o homem seja iluminado por inteiro, transformado por ela. Trata-se de um antegosto da eternidade: a Parúsia é antecipada, o Reino já está aí, o tesouro está em nossas mãos.


O Reino dos céus desceu à terra

Apressemo-nos, irmãos, apressemo-nos com o objetivo
De nos ligarmos a Deus, o Criador de tudo,
Que desceu à terra por nós, os infelizes,
Que inclinou o céu e se ocultou dos anjos,
Que habitou o seio da Virgem santa,
Que dela tomou a carne, sem alteração, e de modo inefável,
E que dela saiu para a salvação de todos nós.
E nossa salvação não é outra, senão:
O Reino dos Céus desceu sobre a terra,
Ou antes, o Rei soberano dos seres de cima e dos seres de baixo
Veio, e quis que nos tornássemos semelhantes a ele
A fim de que pudéssemos partilhar do Reino dos Céus,
E ao mesmo tempo tivéssemos a sua glória e fôssemos herdeiros
Dos bens eternos que ninguém antes vira.
Esses bens, que outros não são – como afirmo com fé e convicção –
Do que o Pai, o Filho e o Espírito Santo, a Trindade santa:
Eis o gozo e o repouso, eis o manto de glória,
Eis a alegria inexprimível e a salvação de todos aqueles
Que receberam algo de sua inefável iluminação
E que tiveram a consciência de estar em comunhão com ele.
Escutai: a razão pela qual ele é chamado de Salvador
É porque ele traz a salvação a todos com os quais se une:
A vida em lugar da morte, a luz no lugar das trevas
E, no lugar da escravidão das paixões e ações infames,
A total liberdade, concedida a todos aqueles
Que se uniram a Cristo, Salvador de todos os seres:
Então eles possuirão, sem que jamais possam perdê-la, toda a alegria,
Toda a felicidade, toda a beatitude,
A beatitude indizível, totalmente inefável,
Que ninguém conceberá, conhecerá ou verá
Se não estiver sincera e ardentemente ligado a Cristo,
Se não estiver mesclado com ele numa união inexprimível.
(Hino 42)

A vida eterna já começou

Assim é que aprendestes, meu amigo, que o reino dos céus estará no teu interior, se o quiseres, e que todos os bens eternos estão em tuas mãos. Apressa-te, portanto, em veres, apressa-te por capturar e em obteres para ti os bens que te foram reservados, mas toma cuidado, para não seres provado de tudo imaginando-te possuí-los; geme, prosterna-te; como antes disse o cego[61], dize tu agora: “Tem piedade de mim, Filho de Deus, abre os olhos de minha alma, para que eu veja a luz do mundo que tu és, ó Deus, e que também eu me torne filho do dia divino. Envia teu consolador, ó clemente, sobre mim também, a fim de que ele próprio me ensine aquilo que te concerne e que é teu, ó Deus do universo. Fica, como dissestes, também em mim, a fim de que eu me torne digno de permanecer em ti, e para que ciosamente em entre então em ti e que ciosamente eu te possua em mim. Digna-te, ó invisível, a tomar forma em mim, a fim de que, vendo a beleza inacessível, eu carregue em mim tua imagem, ó celeste, e que eu esqueça todas as coisas visíveis. Dá-me a glória que te deu o Pai, ó misericordioso, para que, semelhante a ti como todos os teus servidores, eu me torne deus segundo a graça e para que eu esteja contigo continuamente, agora e sempre e por todos os séculos sem fim”.

Sim, bem-amado irmão, crê e esteja persuadido de que assim são as coisas e de que essa é a nossa fé. É nisso que consiste – crê, irmão – renascer, ser renovado e viver em Cristo. Estávamos mortos e voltamos à vida; estávamos corrompidos, e passamos à incorruptibilidade; mortais, fomos transportados à imortalidade; terrestres, tornamo-nos celestes; carnais, nascidos da carne, tornamo-nos espirituais, gerados e criados novamente pelo Espírito Santo.

Eis aí no que consiste a nova criação em Cristo. Eis o que se cumpre e se realiza a cada dia entre os fiéis e os eleitos verdadeiros. Eles comungam de todos esses bens parcialmente enquanto ainda estão no corpo, e o fazem de maneira consciente. Ademais, eles esperam também recebê-los após a morte, em toda a plenitude e certeza. Com efeito, se somos ensinados todo o tempo que comemos e bebemos a Cristo, que nos revestimos dele, que o vemos e que ele, por sua vez, nos vê; se ainda, sabemos que o possuímos em nós e que, de nossa parte, habitamos nele, de modo que ele se torna nossa morada e nós nos tornamos a morada dele; se, por outro lado, nos tornamos seus filhos e ele nosso pai, se ele é a luz que brilha nas trevas e se dizemos que o vemos segundo a palavra: “O povo que estava sentado nas trevas viu uma grande luz[62]”, então, se por acaso disséssemos que nada disso está acontecendo em nós, ou que isso se produz de fato, mas de modo misterioso e insensível, sem que nada saibamos a respeito, em que nos diferenciaríamos dos cadáveres?

Mas não!, não nos deixemos levar pela incredulidade ao ponto de cairmos num abismo de perdição; e mesmo se até agora não tendes vós a esperança de adquirir semelhantes bens, e que, por causa disso, nada haveis pedido, ao menos até o presente, depois de que houvésseis crido na realidade de tais bens e em sua conformidade com as divinas Escrituras, estejais certos de que, já aqui em baixo, conscientemente, nos foi dado a todos nós, os fiéis, o selo do Espírito Santo. Crendo, pois, correi para alcançar a meta; lutai, mas não batendo-vos contra o ar; e “pedi e sereis atendidos, batei e abrir-se-vos-á[63]”, seja aqui em baixo, seja no século futuro.
(Ética 5)

Um encontro perturbador

Aquele que pratica a temperança em todas as coisas e que habitua sua alma a não se perder desordenadamente, a nada fazer que desagrade a Deus por sua vontade própria, e que se aplica inteiramente e com todo ardor a seguir os mandamentos divinos, logo se verá envolto pelos preceitos de Deus. Ao encontrar o Senhor, ele esquecerá toda outra atividade, sentir-se-á arrebatado e, prosternado, não terá outro desejo senão de vê-lo. Se o perder de vista, ficará perplexo e retomará seu curso desde o início, correndo ainda mais, com mais energia e certeza. Ele olhará para seus pés e caminhará com atenção; sua memória queima, o desejo se inflama, a esperança incendeia para vê-lo outra vez; e, se um longo percurso o deixa sem forças ainda longe do objetivo que ele ainda não pôde alcançar, completamente abatido e incapaz de alcançar, é nesse momento que ele percebe aquele a quem ele busca; então ele alcança aquele que lhe foge, ele captura aquele a quem deseja; ele se funde na luz, ele desfruta da vida, ele agarra a imortalidade, ele entra num gozo delicioso, ele sobe ao terceiro céu, ele é arrebatado ao paraíso, ele escuta palavras indizíveis, ele penetra na câmara nupcial, ele vê o esposo, ele participa do casamento espiritual, ele se sacia do cálice místico, do bezerro gordo, do pão vivificante, da bebida da vida, do cordeiro imaculado, do maná inteligível: ele entra no gozo de todos esses bens que as próprias potências angélicas não ousam olhar face a face livremente.
(Ética 6)

Por que permanecer cegos?

Não será um adormecimento do coração, uma insensibilidade, não perceber as maravilhas de um Deus que se entrega e se faz próximo? É essa cegueira espiritual que Simeão denuncia aqui.

Três em Um e Um em Três,
Pois Um é aquele que fez todas as coisas,
Jesus Cristo, com o Pai sem começo
E, sem começo como Ele, o Espírito Santo.
Esse Um que aparece, brilhante e resplendente,
Que participa e comunica, este é todos os bens;
Assim, não é um nome, mas muitos, que lhe atribuímos:
Luz e paz e alegria, vida, alimento e bebida,
Veste, hábito, tenda e morada divina,
Oriente, ressurreição, repouso e banho,
Fogo, água, fonte de vida e corrente,
Pão e vinho, essa delícia sem par dos fiéis,
Esse festim, essa volúpia que desfrutamos de maneira misteriosa,
Sol verdadeiramente sem declínio e astro sempre brilhante,
Lâmpada que brilha no interior da alma.
Quem não vê tua luz e pretende enxergar claramente,
Ou então, que imagina ser impossível
Contemplar, ó Mestre, a luz de tua glória divina,
Nega todas as Escrituras dos Profetas, dos Apóstolos,
E tuas próprias palavras, Jesus, e tua encarnação.
Pois se brilhastes desde o alto, se surgiste em meio à escuridão,
Se viestes para o mundo, ó Misericordioso, e se quisestes
Viver com os homens, segundo nossa condição, por amor ao homem,
Se, de tua boca infalível, te dissestes a Luz do mundo,
E que nós não a podemos ver, não será por sermos nós
Totalmente cegos, e mais infelizes até do que os cegos, ó meu Cristo?
Sim, realmente sim, e com toda verdade! Mortos, cegos,
É isso o que somos, se não te vemos, ó luz vivificante!
(Hino 45)

Filhos da Luz

Aquele que vive em comunhão com Deus contempla a luz da trindade santa. Para este, o tempo se mistura à eternidade: ele é um filho do dia. Ele experimenta desde já, tanto quanto é possível a um ser de carne, uma parte dessa glória futura com a qual será cumulado além de toda medida após sua morte.

Se alguém disser que algum de nós, fiéis, é capaz de receber e possuir o Espírito sem que tenha consciência nem conhecimento disso, estará blasfemando e torcendo as palavras de Cristo, que disse: “Nele se produzirá uma fonte de água que jorra para a vida eterna[64]”, e também: “Aquele que crê em mim, de seu interior brotarão rios de água viva[65]”. Se a fonte jorra, certamente também o rio que dela nasce e corre é percebido por aqueles que o veem; mas se tudo isso acontece em nós contra nossa vontade e sem que nada percebamos, é evidente que tampouco temos a menor consciência da vida eterna que brota ali e que habita em nós, e também que não contemplamos a luz do Espírito Santo. Ao contrário, permanecemos como mortos, cegos e insensíveis, tanto antes como agora. Assim, vã será nossa esperança e inútil nossa carreira, porque continuamos mortos e não tomamos consciência da vida eterna.

Mas não é assim que as coisas são, absolutamente, e eu repetirei agira o q eu já disse muitas vezes, e não cessarei de dizer. Luz é o Pai, luz é o Filho, luz o Espírito Santo: luz única, intemporal, sem divisão nem confusão, eterna, incriada, sem quantidade nem falta, invisível, que homem algum pode contemplar sem que antes se purifique, nem receber se não a tiver contemplado.

Quanto aos que pretendem conhecê-la, mas que confessam não perceber a luz da divindade, eis o que Cristo lhes diz: “Se me houvésseis conhecido, é como luz que me teríeis conhecido; pois a luz do mundo, em verdade, sou eu[66]”. Então, infelizes são aqueles que dizem: “Quando virá o dia do Senhor?”, e que nenhum esforço fazem para alcançá-lo. Pois entre os fiéis a vinda do Senhor já aconteceu e acontece sem cessar.

Mas não somos filhos das trevas nem filhos da noite, para que a luz nos surpreenda, mas filhos da luz e filhos do dia do Senhor. Por isso, se vivemos, estamos no Senhor, se morremos com ele e nele vivemos, como diz Paulo[67]. Deus é ao mesmo tempo o século futuro, o dia sem declínio e o reino dos céus, a terra dos mansos e o paraíso divino. Tudo isso e muito mais do que isso Cristo se tornará para aqueles que nele creem, e não apenas no século futuro, mas desde já, na vida presente. Ainda que aqui em baixo o seja de modo obscuro, os fiéis veem claramente e recebe, desde já as primícias de tudo o que terão no além. Nós o recebemos com pleno conhecimento e consciência de alma, desde que nossa fé não seja maliciosa, e que nossa prática dos mandamentos divinos não seja deficiente. Corporalmente ainda não estamos lá, mas depois da ressurreição nosso próprio corpo será espiritual. Como aquele que, por seu poder divino, transformou seu corpo e o ressuscitou do túmulo, também todos nós o retomaremos espiritual; e nós, que a ele estávamos assimilados por nossa alma, estaremos então assimilados a ele tanto pela alma como pelo corpo: homens por natureza, deuses pela graça, como ele próprio, Deus por natureza, tomou a forma de um homem por sua bondade.

Felizes aqueles que receberam a Cristo vindo como a luz em meio às trevas, pois estes se tornaram filhos da luz e do dia. Bem-aventurados os que a cada dia se nutrem de Cristo, com essa contemplação e esse conhecimento, como a brasa do profeta Isaías[68], pois eles serão purificados de toda mancha da alma e do corpo. Bem-aventurados os que vivem todo o tempo na luz de Cristo, pois agora como nos séculos dos séculos eles serão seus irmãos e co-herdeiros. Bem-aventurados os que hoje acenderam a luz em seus corações e não a deixaram extinguir-se, pois ao deixar esta vida eles irão com brilho diante do esposo e com ele entrarão na câmara nupcial levando as candeias. Bem-aventurados veem brilhar suas vestes, como se fosse Cristo, pois serão cumulados com uma alegria inefável; e, saciando-se, chorarão de felicidade diante dessa prova de eles já são filhos e beneficiários da ressurreição.
(Ética 10)

***

Capítulo VIII

A prece de Simeão


Simeão deixou poucos ensinamentos sobre a oração, mas ele próprio era um orante: sua vida foi um incessante diálogo com Deus.

Juntamente com os salmos e as invocações à Mãe de Deus, a repetição do Kyrie eleison – Senhor, tem piedade de mim! – ocupou um lugar importante nas suas fórmulas de oração (cf. Catequeses 16 e 22). Esse apelo à misericórdia de Deus, característico da “prece do coração” ou “prece de Jesus” e que foi praticado desde muito tempo no monaquismo oriental, se encontra em seus escritos. Entretanto, “se ele pertence à grande linha dos místicos artesãos da Prece de Jesus”, no dizer de Meyendorff, é menos por uma fidelidade rígida a um método de oração do que pela marca humilde e suplicante de suas intercessões. Em Simeão, a prece jamais é uma técnica, mas a expressão livre e pessoal de seu ser. Aí encontramos concentrados todos os caracteres de sua fisionomia espiritual: arrependimento, confiança, desejo, ação de graças. Os textos a seguir fornecem uma breve visão dessas diversas atitudes de oração.

Me Deus, que amas perdoar

Ó meu Deus que amas perdoar, meu Criador,
Faz crescer sobre mim o brilho de tua luz inacessível
Para encher de alegria meu coração.
Ah!, não te irrites! Ah!, não me abandones!
Mas faz resplendecer minha alma com tua luz,
Pois tua luz, ó meu Deus, é tu mesmo.

Eu me afastei do caminho direito, da via divina,
E despenquei lamentavelmente da glória que me havia sido dada.
Fui despojado do manto luminoso, o manto divino,
E caído em meio às trevas, jazo agora em meio às trevas,
E sequer sei que estou privado da luz.
Mas tu, que és todos os bens, tu os dás sem cessar
Aos teus servidores, àqueles que veem tua luz.
Quem te possui, realmente em ti possui todas as coisas.
Que não seja eu privado de ti, Mestre! Não seja privado de ti, Criador!
Que não seja eu privado de ti, Misericordioso, eu, o humilde estrangeiro.
Eu te peço, coloca-me ao teu lado,
Ainda que eu tenha multiplicado os pecados mais que todos os homens.
Recebe minha prece como a do Publicano,
Como a da prostituta, Mestre, ainda que eu não chore como ela,
Se não enxugo teus pés com meus cabelos,
Se não gemo e me lamento, ó Cristo, da mesma maneira;
Não és tu a nascente da piedade, a fonte da misericórdia,
O rio da bondade? Por esses títulos, tem piedade de mim!
Sim, tu que tivestes as mãos, tu que tivestes os pés pregados
Sobre a cruz, e teu lado perfurado pela lança, ó Compassivo,
Tem piedade, e resgata-me do fogo eterno,
Permite-me que, aqui em baixo, eu te sirva como se deve
E que nesse dia eu me coloque sem condenação diante de ti
Para ser acolhido no interior da sala das bodas
Onde partilharei de tua felicidade, meu bom Mestre,
Numa alegria inexprimível, por todos os séculos, amém.
(Hino 45)

Que todos juntos contemplemos tua Glória

Ó Salvador, Amigo do homem, misericordioso e compassivo,
Concede a mim, a mim, mísero, uma força divina: que minha palavra
Saiba fazer apascentar com sabedoria os que me destes por irmãos,
Guiá-los às pastagens de tuas leis divinas,
Conduzi-los a salvo até as moradias do Reino do alto,
Como dignos adoradores, diante de teu temível trono;
E quanto a mim, indigno, atrai-me para fora deste mundo,
Crivado que estou das chagas inumeráveis do pecado,
E, no entanto, teu devoto e teu inútil servidor.
E que dentre os coros dos eleitos, segundo teus secretos julgamentos,
Conta-me, juntamente com meus discípulos,
Para que todos juntos contemplemos tua glória divina
E desfrutemos, ó Cristo, de teus bens inefáveis.
Pois tu és o regozijo, as delícias e a glória
Dos que te amam com fervor, por todos os séculos dos séculos, amém.
(Hino 14)

Estende-me uma mão segura

Ó Senhor, criador do universo,
Que da terra me fez vivo e mortal,
Que me concedeu viver, falar e mover-me
E glorificar-te, a ti o Mestre de tudo,
Concede-me, Mestre, a mim, o miserável,
Cair a teus pés e pedir-te o que me será bom.
Ainda ontem eu cheguei, já amanhã hei de partir,
Mas penso viver eternamente aqui em baixo.
Tu és meu Deus, eu o confesso perante todo o mundo
Mas por minhas ações, a cada dia eu te renego;
Eu não ignoro que és tu o Criador de tudo
Mas sem ti eu me esforço por tudo possuir;
És tu o Rei das coisas de baixo e das coisas do alto
E eu, só e sem tremor, me oponho a ti.
Concede a mim, concede ao indigente, concede ao miserável
Rejeitar toda perversidade de minha alma
Que a presunção e o vão orgulho
Juntos esmagam e trituram!
Concede-me a humildade, estende-me uma mão segura,
Purifica a sujeira de minha alma
E dá-me lágrimas de penitência,
Lágrimas de arrependimento, lágrimas de salvação,
Lágrimas que dissipem as trevas de minha inteligência
E que me façam resplender com o brilho do alto,
A mim, que desejo ver-te, luz do mundo,
Luz dos meus olhos, a mim, miserável,
Cujo coração está cheio dos males desta vida,
Vítima das perseguições sem número e da inveja
Dos atores do drama de meu exílio,
Ou, por melhor dizer, de meus benfeitores,
De meus mestres, meus verdadeiros amigos:
Em troca desses males dá-lhes, ó meu Cristo, bens,
Bens eternos, verdadeiras riquezas, os bens divinos
Que preparastes para os séculos dos séculos
Àqueles que te desejam e te amam com ardor.
(Hino 4)

Em teu amor

Rei de toda santidade, tu meu Deus, prosternado diante de ti eu suplico. Conserva-me, a mim, pecador indigno que tomaste em tua piedade, e essa planta de teu amor, que enxertastes na árvore de minha esperança, com teu poder fortalece-a. Que ela não seja sacudida pelos ventos, que não se quebre ante a tempestade, que não seja arrancada por algum inimigo, que não seja queimada pelo fogo da negligência, que não seque ante a preguiça e a dissipação, que não seja inteiramente destruída pela vaidade. Pois, sabe-o tu, autor em mim desses dons e dessas obras, para tanto eu não encontro socorro junto a nenhum homem.

Tu conheces minha fraqueza, sabes de minha miséria e impotência diante das coisas. Assim, por essas razões, sê compassivo comigo, tu o Senhor rico em compaixão. Diante de ti me prosterno de todo meu coração, para que não me abandones à minha vontade, tu que tanto fizestes por mim – e em teu amor consolida minha alma e faz com que nela se enraíze solidamente teu amor a fim de que, segundo tua imaculada, santa e infalível promessa, estejas em mim e eu em ti, que eu habite neste amor e que ele habite em mim; que nele, Mestre, nele me consideres e que por ele eu, por ele eu seja considerado digno de te ver, nesse agora como num espelho – como dissestes – e num enigma, mas algum dia no amor total, por inteiro, tu que és amor e que concedes ser assim chamado, porque a ti pertencem toda ação de graças, poder, honra e adoração, a ti Pai, Filho e Espírito Santo, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amém.
(Ação de graças 2)

A fé que salva os desesperados

Lança teus olhos sobre mim, agora, como sempre o fizestes, ó meu Rei,
Mostra tua ternura, mostra tua compaixão,
Mostra tua ausência de ressentimento contra mim, o publicano,
Ou antes, o pródigo, que pequei contra ti
Mais do que todos os seres da natureza, privados ou providos de razão.
Mas mesmo que eu tenha cometido todos os crimes em minha vida
Ao menos eu te reconheço como Deus e criador do universo
E te venero. Filho de Deus consubstancial,
Tu a quem o Pai gerou antes de todos os séculos,
E que nasceu no fim dos tempos da Virgem santa,
Criança, filho de Maria a Mãe de Deus,
Tu que homem te fizestes, e que por minha causa sofrestes,
Que fostes crucificado e atirado ao túmulo, meu Salvador,
Que ressuscitastes dos mortos no terceiro dia
E que em tua carne subsistes ao lugar que não havias deixado.
Por ser assim que eu creio, porque assim eu te adoro,
E porque espero que retornes para julgares todos os homens,
Que minha fé valha pelas minhas obras, ó meu Deus.
Não procures obras que me justifiquem totalmente
Mas que para mim baste a fé, no lugar de tudo.
É ela que tomará minha defesa, ela que me justificará, ela
Que me permitirá participar de tua eterna glória.
Pois “quem crê em mim – tu o disseste, ó meu Cristo –
Viverá, e não verá a morte por todos os séculos”.
Se então é a fé em ti que salva os desesperados,
Vê: eu creio, salvai-me, fazendo com que brilhe tua divina luz.
Minha alma está presa nas trevas e na sombra da morte,
Mas aparece, ó Mestre, e me iluminarás.
(Hino 26)

Que a luz de teu Rosto esconda a nudez de minha alma

Mais uma vez, Mestre, eu caio aos teus joelhos e te peço
Que eu não fracasse nas esperanças que coloquei em ti.
Assim como me concedestes ver-te agora, ó Salvador,
Dá-me após a morte contemplar-te também!
Sim, tu que me criastes e me moldastes, protege-me com tua mão
E não me abandones, não, não me tenhas rancor!
Minha ingratidão é grande, Mestre, não a meças,
Mas mesmo a mim, concede-me caminhar na tua luz
Até o fim, sem hesitar, sobre a via dos teus mandamentos
E depositar meu espírito, ó Boníssimo, na luz das tuas mãos.
Sim, tu, cuja compaixão é abundante e a piedade indizível,
Concede-me colocar entre tias mãos minh’alma,
Como agora estou eu em tuas mãos, Salvador!
Tu, cuja misericórdia é abundante e cuja natureza é amar os homens,
Não me julgues com tal rigor!
Pois o que poderia eu dizer, eu que não sou senão pecado?
Que direi em minha defesa, o que responderei a ti,
Quando colocares a nu minhas ações e minhas desordens?
Tu, que descestes para salvar os pródigos e os impuros,
Não me cubras de confusão, ó Cristo, no dia do Juízo,
Quando colocares as ovelhas à tua direita
E eu, com os bodes, à tua esquerda.
Mas que tua luz toda pura, a luz do teu rosto,
Esconda minhas obras e a nudez de minha alma,
Que ela me vista de claridade, a fim de que, com ousadia
E sem enrubescer eu seja colocado entre as ovelhas à tua direita
E que com elas eu te glorifique pelos séculos dos séculos. Amém!
(Hino 25)

Tu és bendito, Senhor

Tu és bendito, Senhor, tu és bendito, Único,
Tu és bendito, Misericordioso, tu, mais que bendito,
Que colocastes em meu coração a luz de teus mandamentos
E que plantastes em mim a árvore da vida,
Que fizestes de mim como um paraíso em meio aos seres visíveis.
Pois à minha alma unistes outro espírito, teu Espírito divino,
Aquele que fizestes habitar nas minhas entranhas.
É ele verdadeiramente a única árvore da vida,
Ele que, em qualquer terra que se plante - isto é, na alma de um homem -
Logo faz dele um paraíso resplandecente.
És tu o cálice que verte em mim ondas de vida.
Jamais soará a trombeta sem o sopro do músico,
E assim sem ti, eu permaneço como inanimado.
Eis então porque te chamo, porque clamo a ti:
Tu nos mostraste a luz de tua glória imaculada,
Então dá-ma, ainda agora, e que ela não me deixe mais!
Permite-me contemplar-te sempre nela, ó Verbi,
De captar, tal como é, tua beleza inacessível
Que, enquanto permanece absolutamente inapreensível,
Fustiga e fulmina minha inteligência, que transporta meu espírito
E acende em meu coração o fogo de teu amor!
É esta luz que, desdobrando-se em flama do desejo divino,
Me faz ver mais distintamente tua glória, ó meu Deus;
Esta glória concede-me, eu te suplico te adorando, Filho de Deus,
Agora e no futuro, possa eu possuí-la sem mistura
E por meio dela contemplar-te, ó Deus, eternamente!
Só tu és o Deus amigo do homem,
Incriado, sem fim, todo-poderoso, verdadeiramente
Vivo, e a luz dos que te amam
E que por ti, Amigo do homem, tanto são amados!
(Hino 47)

És tu, ó Cristo, o Reino dos céus

Reunião de todos os santos “em forma de Deus” ao redor de Cristo, na luz do Espírito. Felicidade sem fim no jorro sempre renovado da vida trinitária: tal é o destino último da humanidade.

És tu o Reino dos céus, és tu, ó Cristo, a terra prometida aos mansos,
Tua pradaria do paraíso, tu a sala do banquete divino,
Tu a câmara das bodas inefáveis, tu a mesa aberta a todos,
Tu o pão da vida, tu a bebida extraordinária,
Tu a um tempo a moringa de água e a água da vida,
Tu ainda a lâmpada inextinguível para cada um dos santos,
Tu as vestes e a coroa,
Tu a alegria e o repouso, tu as delícias e a glória,
Tu o júbilo, tu a felicidade;
E tua graça, ó meu Deus, brilhará como o sol,
A graça do Espírito de toda santidade, em todos os santos;
E tu brilharás, inacessível sol, no meio deles
E todos resplandecerão, na medida
De sua fé, de sua ascese, de sua esperança e de sua caridade,
De sua purificação e de sua iluminação por teu Espírito,
Ó Deus, único longânime e Juiz de todos os homens.
Ó maravilha, inacreditável dom de tua bondade,
Que os homens possam ser “em forma de Deus”
E que neles ganhe forma aquele que nada pode conter,
O Deus imutável, inalterável por natureza,
Que deseja habitar em todos aqueles que dele são dignos,
De sorte que cada qual possua inteiramente em si o grande Rei
E o próprio Reino, e todos os bens do Reino,
E que ele brilhe – como na Ressurreição brilhou meu Deus –
Mais do que os raios deste sol que vemos:
E eis que os homens, de pé diante Daqueles que os glorificou,
Ficarão estupefatos, pelo excesso da glória
E o incessante crescimento do esplendor divino.
Com efeito, o progresso será sem fim, ao longo dos séculos,
Porque a detença do crescimento em direção a esse fim infinito
Não seria outra coisa do que captar o que não pode ser captado,
E tornaria objeto de saciedade aquele de quem ninguém pode saciar-se;
Ao contrário, ser dele cumulado e ser glorificado em sua luz
Cavará um progresso sem fundo e um começo indefinido.
E o crescimento da glória jorrará eternamente.
(Hino 1)

***

Capítulo IX

Prece Mística


Essa Invocação ao Espírito Santo, por aquele que já o viu, constitui a introdução aos Hinos. Ela reflete, com particular intensidade, todas as nuances da prece de Simeão.


Vem, luz verdadeira. Vem, vida eterna. Vem, mistério escondido. Vem, tesouro sem nome. Vem, realidade inefável. Vem, felicidade sem fim. Vem, luz sem poente. Vem, despertar dos que dormem. Vem, ressurreição dos mortos. Vem, ó Poderoso, que incansavelmente fazes e refazes e a tudo transformas por tua simples vontade. Vem, tu que permaneces sempre imóvel e que a cada instante te moves inteiro e vens a nós, deitados nos infernos, tu que estás acima dos céus. Vem, alegria eterna. Vem, tu que desejastes e que desejas minha alma miserável. Vem, tu o Único, àquele que está só, pois, como vês, estou só. Vem, tu que me separastes de tudo e me tornastes solitário nesse mundo. Vem, tu que te tornastes em mim desejo, que me fizestes desejar-te, a ti que é absolutamente inacessível. Vem, meu sopro e minha vida. Vem, consolo de minha pobre alma. Vem, meinha alegria, minha glória, minhas delícias sem fim.

A ti eu rendo graças por te teres tornado um só espírito comigo, sem confusão, sem alteração, tu o Deus acima de tudo, e por teres por mim te tornado tudo em todos, alimento inexprimível e perfeitamente gratuito, veste deslumbrante, purificação que me banhas nas imperecíveis e santas lágrimas que tua presença cria naqueles a quem visitas. A ti eu rendo graças por te teres tornado para mim luz sem poente, sol sem declínio; pois não tens onde te esconderes, tu, cuja glória preenche todo o universo! Não, jamais te ocultastes de ninguém, mas somos nós que sempre nos escondemos de ti, recusando-nos ir a ti: porque te esconderias, tu que não te desvias de um só dentre os seres, que não repele nenhum?

Vem então, ó Mestre, ergue hoje em mim a tenda; faz tua morada e habita continuamente, inseparavelmente, até o fim, em mim, teu servidor, ó boníssimo, e que também eu, na minha partida deste mundo e depois de minha partida, me encontre em ti, ó boníssimo, e contigo reine, Deus que estás acima de tudo. Sim, Mestre, assim como te lembrastes de mim quando eu estava no mundo, e que, no meio de minha ignorância, me elegestes e separastes desse mundo, estabelecendo-me diante da face de tua glória, do mesmo modo, agora, guarda-me no interior, sempre em pé, inquebrantável, na tua morada em mim: que, perpetuamente te vendo, eu, o morto, viva; que possuindo-te, eu, o pobre, seja sempre rico; que comendo-te e bebendo-te, vestindo-me de ti a cada instante, eu vá de delícias em delícias de bens inexprimíveis: pois tu és todo o bem e toda glória e toda delícia, e a ti pertencem a glória santa, consubstancial e vivificante Trindade, a ti que veneram, confessam, adoram e servem no Pai, no Filho e no Espírito Santo todos os fiéis , agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amém.









[1] Cf. Catequese 22: “Um dia, ele estava em pé e dizia: ‘Ó Deus, sê propício a mim, pecador!’, com espírito e não apenas com a boca, quando de súbito brilhou sobre ele, vinda do alto com profusão, uma iluminação divina que preencheu inteiramente o lugar. Naquele momento o adolescente perdeu a noção das coisas, e já não sabia se estava em casa ou sob um teto. Pois, por toda parte, ele não enxergava senão luz”.
[2] Stoudious era um mosteiro célebre, fortaleza da Ortodoxia. Mais de setecentos monges seguiam aí com fervor a observância austera estabelecida por Teodoro.
[3] Superior do mosteiro no Oriente.
[4] Capítulos teológicos, gnósticos e práticos 3, 4.
[5] Jean Meyendorff, São Grehgório Palamas e a mística Ortodoxa.
[6] Mateus 25: 21-25.
[7] Gregório de Nissa, Vida de Moisés.
[8] Pseudo-Denis, Teologia Mística II; Carta I.
[9] I João 1: 5.
[10] Ação de Graças, 2.
[11] Ibid.
[12] I Coríntios 15: 47-48.
[13] Gênesis 2: 7.
[14] Gênesis 3: 5.
[15] Gálatas 2: 20.
[16] João 3: 17; 12: 47.
[17] João 3: 16.
[18] I João 4: 13.
[19] João 10: 27.
[20] I Coríntios 2: 9.
[21] I Samuel 18: 18; II Samuel 7: 18.
[22] João 10: 7.9.
[23] João 20: 22-23.
[24] João 14: 2.
[25] João 10: 3.
[26] João 14: 6.
[27] João 15: 26; 16: 13.
[28] João 14: 20.
[29] Atos 1: 5; 11: 16.
[30] Romanos 8: 26.
[31] Gálatas 4: 6.
[32] Efésios 2: 9.
[33] João 6: 56.
[34] Cf. I Colossenses 2: 9.
[35] João 6: 32-33.
[36] João 6: 43-44.
[37] João 6: 57.
[38] João 6: 58.
[39] João 6: 48
[40] João 6: 32.
[41] João 6: 33.
[42] Lucas 8: 21.
[43] João 14: 20.
[44] João 17: 22.
[45] João 17: 26.
[46] Colossenses 3: 11.
[47] Cf. Efésios 5: 23 ss.
[48] Lucas 24: 39.
[49] Efésios 5: 32.
[50] Cf. Romanos 8: 29.
[51] Ezequiel 33: 11.
[52] Lucas 15: 7.
[53] Mateus 9: 2.
[54] Salmo 17: 10.
[55] Isaías 49: 15.
[56] João 12: 47.
[57] Cf. Hino 29.
[58] João 12: 35.
[59] Mateus 25: 34.
[60] João 7: 38.
[61] Cf. Lucas 18: 35ss.
[62] Isaías 9: 1.
[63] Mateus 7: 7.
[64] João 4: 14.
[65] João 7: 38.
[66] João 8: 12.
[67] Romanos 14: 8; I Tessalonicenses 5: 10.
[68] Isaías 6: 6.