domingo, 10 de julho de 2016

Hierotheus de Nafpaktos - Psicoterapia Ortodoxa - Capítulo VI (final)



1.       Epistemologia Ortodoxa

O tema da epistemologia pertence a este livro e forma seu capítulo final, porque está ligado estreitamente à cura da alma humana. Os capítulos precedentes mostraram que a queda, a doença e a morte do homem correspondem precisamente à morte de sua alma, de seu nous, seu coração e sua razão, sob a influência dos maus pensamentos. A queda é principalmente a queda do nous. Quando a alma, o nous e o coração são curados, a pessoa atinge o conhecimento de Deus. De fato, não é apenas quando estes se curam que a pessoa adquire o conhecimento de Deus, mas na medida em que são curados. Quando eles se curam por completo, na medida do possível, a pessoa alcança um conhecimento de Deus que não admite palavras sobre Deus, mas que conhece ao próprio Deus. Em outras palavras, é no coração curado que Deus se revela e oferece o conhecimento de Si mesmo. Assim, fica claro que a epistemologia Ortodoxa está diretamente ligada à terapia da alma. O conhecimento de Deus aumenta na medida em que a cura progride, e o puro conhecimento de Deus é concedido à pessoas que foi inteiramente purificada e curada.

Para vermos isso mais claramente, vemos nos concentrar nos ensinamentos de dois Padres da Igreja: Santo Isaac o Sírio e São Gregório Palamas. Veremos primeiro os três graus do conhecimento de acordo com Santo Isaac e então o conhecimento de Deus de acordo com São Gregório Palamas.


1.1. Os três graus do conhecimento segundo Santo Isaac o Sírio

Santo Isaac o Sírio desenvolve o tema dos três graus do conhecimento nos capítulos 52 e 53 de suas Homilias Ascéticas.

Ele começa por contrastar o conhecimento com a fé. O conhecimento humano é caracterizado pelo fato de que ele não estabelece uma autoridade sobre nada “sem investigação e exame”, e que ele deve investigar o que deseja na medida em que isso seja possível. No conhecimento humano existe uma grande participação da inteligência, principalmente da inteligência decaída que é quem opera, por ter excedido seus limites naturais. Ou seja, é o tipo de inteligência que dominou o nous. A fé, naturalmente, possui limites diferentes, e nisso parece residir sua grande diferença em relação ao conhecimento humano, e também seu grande valor. Santo Isaac diz que quando usamos a palavra “fé” não queremos nos referir à expressão de verdades dogmáticas sobre as Pessoas da Santíssima Trindade, ou sobre Cristo ter se tornado homem, ou sobre a assunção da natureza humana pela Segunda Pessoa da Trindade, “embora essa fé seja também muito eminente”; mas o principal significado daquilo a que chamamos fé é “essa luz que, pela graça, amanhece na alma e fortifica o coração pelo testemunho da mente, dando-lhe a certeza por intermédio da segurança da esperança”. Essa fé espiritual não ensina os mistérios por uma tradição ouvida, “mas, com olhos espirituais, ela contempla os mistérios escondidos na alma, e os tesouros secretos e divinos ocultos dos olhos dos filhos da carne, mas que são revelados pelo espírito àqueles que são convidados à mesa de Cristo por seu estudo de Suas leis”. Vale dizer que enquanto o conhecimento humano é adquirido através da atividade da inteligência e por meio de pesquisas humanas, o conhecimento divino é adquirido através da fé. Essa fé é principalmente aquela que amanhece na alma pela luz da graça, e por intermédio de cujo poder a pessoa aprende todos os mistérios que jazem ocultos dos olhos dos homens carnais de nossa época. Assim, “a fé é mais sutil do que o conhecimento, como o próprio conhecimento é mais sutil do que as coisas palpáveis”. A fé, que é o conhecimento divino, é mais sutil do que o conhecimento humano.

Santo Isaac explica a diferença entre o conhecimento humano e a fé. O conhecimento humano não pode aprender sem exame, enquanto que a fé “requer um modo de pensar que é simples, limpidamente puro e simples, distante de qualquer desvio ou métodos inventivos (...) A morada da fé é um pensamento infantil e um coração simples”. Enquanto que o conhecimento humano tem seu centro na inteligência, a fé possui o coração simples e sincero. O conhecimento humano “se mantém dentro dos limites da natureza”, enquanto que a fé “faz sua viagem acima da natureza”. Vale dizer que o conhecimento humano constitui uma condição puramente natural, que trabalha dentro dos limites naturais, enquanto que a fé consiste numa condição supranatural. Da mesma forma, o conhecimento humano não é capaz de fazer nada sem a matéria; ele se move num mundo material, enquanto que a fé possui a autoridade, a partir da semelhança com Deus, para realizar uma nova criação. O conhecimento humano não ousa nem pretende ultrapassar os limites da natureza, enquanto que a fé “os transgride com autoridade”. Isso fica demonstrado pelas vidas de todos os santos que, pelo poder da fé, “entraram no meio das chamas e refrearam o poder incendiário do fogo, caminhando desarmados no meio deste, e andaram sobre as ondas do oceano como se estivessem em terra seca”. E todas essas coisas que faz a fé estão acima da natureza e são contrárias aos modos do conhecimento humano. O conhecimento humano “permanece dentro dos limites da natureza”, enquanto que a fé “vai além da natureza”. O conhecimento humano sempre procura meios “para salvaguardar os que o adquiriram”, ou seja, sempre toma medidas protetoras e busca proteger os homens por meios humanos. Mas a fé vive inteiramente em Deus. “O homem que ora com fé nunca emprega meios e procedimentos, nem se envolve com isso”. O conhecimento humano não inicia uma obra sem examinar como ela irá terminar, enquanto que a fé diz: “Tudo é possível para quem acredita. Pois para Deus nada é impossível”.

É verdade, de acordo com Santo Isaac, que o conhecimento humano não é falho, mas a fé voa mais alto. O conhecimento é perfeccionador pela fé, uma vez que “o conhecimento é um passo por meio do qual o homem pode se elevar às eminentes alturas da fé”. Quando chega a fé, aquilo que é parcial é abolido. A partir daí, “será por nossa fé que aprenderemos as coisas que não podem ser compreendidas pela investigação e pelo poder do conhecimento”. Todas as obras de justiça que são as virtudes, ou seja, o jejum, as esmolas, as vigílias, a santidade e “todas as demais obras realizadas pelo corpo” e todas as realizadas pela alma, ou seja, o amor ao próximo, a humildade do coração, o perdão “aos que pecaram”, a lembrança das boas coisas, a investigação dos mistérios ocultos nas Escrituras, a ocupação da mente com as boas coisas, o refreamento das paixões da alma e as demais virtudes, “tudo isso requer conhecimento”. O conhecimento “as guarda e ensina sua ordem”. E todas essas coisas são passos por meio dos quais a alma ascende “às mais elevadas alturas da fé”. Por isso, “o modo de vida na fé é mais exaltado do que ao trabalho das virtudes, e ele não consiste em trabalho, mas num repouso perfeito, na consolação, e se realiza no coração e dentro da alma”.

Todas essas coisas indicam que, de acordo com o ensinamento de Santo Isaac e de outros santos Padres, a fé é mais elevada do que o conhecimento humano, mais elevada inclusive do que o conhecimento adquirido com a prática das virtudes. Pois a fé é uma condição carismática, a comunhão com Deus; ela consiste “no entendimento e na visão do coração”; é a vida que se desenvolve na alma com a chegada da luz da divina graça. Na próxima seção, no ensinamento de São Gregório Palamas, veremos esse conhecimento de Deus, que é realmente uma “comunhão no ser”, a comunhão e a união do homem com Deus. Esse é um conhecimento que está acima de qualquer conhecimento humano, mesmo daquele obtido com a prática das virtudes, por meio do qual encontramos o próprio Cristo, que se esconde na profundidade dos mandamentos.

Santo Isaac o Sírio fala de três tipos de conhecimento. Vamos examinar no que eles diferem, pois pensão que isso mostrará o quanto a tradição Ortodoxa difere da tradição cultural humana, e o quanto o conhecimento divino difere do conhecimento humano.

Existem três modos concebíveis pelos quais o conhecimento ascende ou desce. Esses modos são o corpo, a alma e o espírito. Quando os Padres falam de corpo, alma e espírito eles não estão se referindo às três partes do homem, mas, com o termo ‘espírito’ eles querem dizer o dom da graça, dessa divina graça com a qual o homem é abençoado. Sem a graça de Deus o homem pode ser dito um homem de corpo ou de alma, enquanto que com a presença da graça ele é chamado de espiritual. Ao mesmo tempo em que a natureza do conhecimento é uma, ela é refinada e muda seus modos de acordo com esses três reinos inteligíveis e sensíveis. Então, assim como existem três modos sencientes e inteligíveis – corpo, alma e espírito- existem três tipos de conhecimento relacionados a eles. De acordo com o tipo de conhecimento que um homem possui, ele mostra seu progresso espiritual e sua condição espiritual. Ademais, o tipo de conhecimento que alguém possui é uma indicação de sua purificação e sua cura. Quando a pessoa não é saudável ela possui o conhecimento corporal, enquanto que a pessoa que está sendo curada possui o conhecimento da alma, e aquela que foi curada possui o conhecimento espiritual. Esse último mostra os mistérios do Espírito, que são incompreensíveis e desconhecidos para o homem de carne.

O primeiro conhecimento é adquirido por um estudo constante e pelo aprendizado diligente, o segundo provém de um modo de vida puro e bom e da fé mental, e o terceiro é “concedido apenas pela fé; pois pela fé o conhecimento é abolido, as obras chegam ao fim, e o emprego dos sentidos se torna supérfluo”.

A partir dos ensinamentos de Santo Isaac, vamos nos debruçar mais analiticamente sobre esses três tipos de conhecimento que indicam a doença ou a saúde da alma da pessoa.

Em primeiro lugar, o conhecimento corporal. Alguns dos elementos característicos do conhecimento humano que estão conectados com os desejos da carne são a riqueza, a vanglória, o adorno, o descanso do corpo, a diligência na sabedoria racional, tal como é adequada ao governo do mundo e que cria as invenções, as artes e das ciências. Esse conhecimento se opõe à fé, conforme já explicamos, porque ele considera que “todas as coisas são realizadas por sua própria providência”. A sabedoria e o conhecimento das coisas do mundo, sem os outros dois tipos de conhecimento são inúteis e acabam criando muitos problemas para o homem. Esse tipo de conhecimento é raso e rude, pois “está despido de tudo o que se refere a Deus”. Ele se refere apenas ao mundo, e por ser controlado pelo corpo, “introduz na mente uma impotência irracional”.

Muitos homens de nosso tempo, que não se curaram na alma, possuem esse conhecimento e o cultivam continuamente. Toda a civilização contemporânea, que criou tantas anomalias da alma e do corpo, se encontra nesse estado. Além disso, esse conhecimento unilateral cria muitos problemas, conforme descreve Santo Isaac. O homem que possui o conhecimento corporal está sujeito ao desencorajamento, à angústia, ao desespero, ao medo dos demônios, ao sobressalto diante dos homens, aos rumores de ladrões e ao relato de mortes, à ansiedade diante das enfermidades, à preocupação com os desejos e o não atendimento das necessidades, ao medo da morte e dos sofrimentos, dos animais selvagens e outras coisas do gênero, que configuram o mar da vida presente. O homem que possui esse conhecimento humano e corporal não sabe como se abandonar à misericórdia de Deus, mas tenta resolver todos os problemas por seus próprios meios. E quando ele não consegue chegar a soluções, por várias razões, ele “antagoniza com os outros homens, como se eles impedissem ou se opusessem” a esse conhecimento. Ele começa a se indispor com os homens porque eles atrapalham a aquisição dos bens do conhecimento corporal.

Esse conhecimento corporal, as preocupações mundanas, erradicam por completo o amor. Ele faz com que a pessoa examine os pequenos pecados e erros dos outros, suas causas e suas fraquezas, faz com que a pessoa dogmatize e se oponha à palavras dos demais, se torne maldosa para com todas as ações do outro e procure meios para desonrar os demais. Esse conhecimento contém a presunção e o orgulho.

Vemos claramente que o conhecimento corporal é típico da civilização contemporânea. Com intuição profética Santo Isaac apresenta as causas e a vocação desse homem carnal, descreve suas lutas e sua angústia, e ainda apresenta os temíveis resultados desse conhecimento corporal. Os distúrbios dos relacionamentos interpessoais, a falta de amor, a obstinação e a malícia em todas as ações são coisas que definem o homem contemporâneo que se encontra doente da alma e longe de Deus.

O segundo conhecimento é aquele da alma. Quando um homem renuncia ao primeiro, o conhecimento corpóreo e carnal, ele se volta para os desejos e as conversações da alma, e a isso seguem-se todas as boas ações do conhecimento da alma. Essas são o jejum, a prece, a misericórdia, a leitura das Escrituras, os modos da virtude, a batalha com as paixões, etc. Todas essas ações são perfeccionadas pelo Espírito Santo. Elas não acontecem pelo poder do homem, mas pelo trabalho conjunto do homem com o Espírito Santo. Existem estágios na aquisição do conhecimento. O segundo grau de conhecimento é tornado perfeito “quando lançou as fundações de sua ação no isolamento em relação aos homens, na leitura das Escrituras e na oração”. Ou seja, o possuidor desse conhecimento da alma vive na paz, com tudo o que ela implica, conforme descrevemos no capítulo precedente. Ele ora a Deus incessantemente e estuda as Escrituras nessa santa atmosfera de repouso e paz, de modo a alimentar sua alma, não para aprender as palavras de Deus por curiosidade. Essa categoria inclui as pessoas que estão em processo de cura das chagas psíquicas e das feridas de suas almas. Essa cura oferece um conhecimento que pode ser chamado de etapa preliminar e antessala do seguinte, o conhecimento espiritual, que aparece com a vida da graça de Deus no coração do homem.

O terceiro conhecimento é o espiritual. Quando o conhecimento do homem se eleva acima das preocupações mundanas e começa a olhar internamente “o que está oculto aos olhos”, e quando ele despreza as coisas “das quais nascem a perversidade das paixões” e se esforça em sua ânsia pelas promessas do século futuro e em sua busca pelos mistérios ocultos, “então a própria fé devora o conhecimento, transforma-o e faz nascer um novo, de tal modo que o torna total e completamente espírito”.

A partir daí ele pode voar pelos espaços dos anjos incorpóreos; ele conhece os mistérios espirituais, a governança do espiritual e do corpóreo. Ou seja, ele conhece os princípios internos dos seres. Então os sentidos interiores despertam e a alma recebe a ressurreição que lhe dá a certeza da ressurreição futura do homem. Santo Isaac, que possuía esse conhecimento espiritual – que é a vida na fé –, escreve: “Então ele pode planar nos reinos incorpóreos e tocar a profundidade de um oceano insondável, contemplando as maravilhosas e divinas obras de Deus sobre as criaturas inteligíveis e corporais. Ele procura por nossos mistérios espirituais que só são percebidos por um nous simples e sutil. Então os sentidos internos despertam para a ação espiritual, de acordo com a ordem que haverá na vida imortal e incorruptível. Pois desde já ele recebeu, como num mistério, a ressurreição inteligível como um testemunho verdadeiro da renovação universal de todas as coisas”.

Esse conhecimento foi possuído por todos os santos de Deus, como Moisés, Davi, Isaías, os Apóstolos Pedro e Paulo, e todos os santos que foram considerados dignos desse conhecimento perfeito, “no grau possível para a natureza humana”. Na realidade, esse conhecimento provém da visão de Deus e da luz incriada, das divinas revelações, ou, como coloca Santo Isaac, “das diversas contemplações e revelações divinas, pela visão eminente das coisas espirituais e dos mistérios inefáveis”. Então o conhecimento é engolido por essas visões de Deus e a pessoa se sente como poeira e cinzas. Ela adquire o abençoado estado de humildade e de simplicidade. Então o conhecimento espiritual, ou seja, o conhecimento de Deus, é fruto da theoria. Ele é recebido pela pessoa que progrediu do conhecimento carnal para o da alma e daí para o conhecimento espiritual.

Em resumo, podemos dizer que o primeiro conhecimento “torna a alma fria para as obras da busca de Deus”. O segundo conhecimento aquece a alma para uma corrida veloz “no nível da fé”. O terceiro conhecimento é o descanso das obras, “que é o tipo do século futuro, pois a alma extrai seu prazer apenas da meditação da mente sobre os mistérios das boas coisas que virão”.

Esse ensinamento de Santo Isaac é muito relevante para o tema que estamos tratando, pela seguinte razão. No começo do livro nós mencionamos que os membros da Igreja não se dividem em bons e ruins, morais e imorais, tomando a ética humana como critério, mas em doentes na alma, em processo de cura e curados. Precisamente essas três categorias correspondem aos três graus de conhecimento. Aqueles cuja alma está doente possuem o conhecimento corporal e mundano, os que estão em processo de cura são os que, em diferentes graus, estão adquirindo a sabedoria e o conhecimento da alma, e os que foram curados são os santos de Deus, que possuem o conhecimento espiritual e o verdadeiro conhecimento de Deus. Muitas pessoas de nosso tempo, que estão doentes da alma porque não conhecem nada do nous e do coração, se mantêm no primeiro conhecimento, o carnal. Outras pertencem ao segundo conhecimento, porque lutam para serem curadas pelos meios da método ascético disponível na Igreja Ortodoxa. E os santos, que mesmo hoje ainda existem, pertencem ao terceiro conhecimento, pois foram curados de suas enfermidades e adquiriram o conhecimento de Deus.


1.2. O conhecimento de Deus de acordo com São Gregório Palamas

Agora que explicamos o ensinamento de Santo Isaac o Sírio a respeito dos três graus do conhecimento, podemos nos debruçar sobre o conhecimento de Deus de acordo com o santo Athonita, Gregório Palamas. Quando uma pessoa se eleva do conhecimento corporal para o da alma e daí para o conhecimento espiritual, ela vê a Deus e possui o conhecimento de Deus, que é a salvação. O conhecimento de Deus, como será explicado adiante, não é intelectual, mas existencial. Ou seja, todo o ser é preenchido com o conhecimento de Deus. Mas para que seja possível atingir isso, o coração da pessoa deve ter sido purificado, ou seja, a alma, o nous e o coração devem ter sido curados. “Bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus[1]”.

Vamos ver as coisas mais analiticamente.

Conforme indicamos, Barlaam insistia em que o conhecimento de Deus não dependia da visão de Deus, mas do entendimento da pessoa. Ele dizia que podemos adquirir o conhecimento de Deus por meio da filosofia, e considerava que os profetas e apóstolos que viram a luz incriada, estavam abaixo dos filósofos. Ele dizia que a luz incriada era sensorial, criada e “inferior ao nosso entendimento”. Entretanto, São Gregório Palamas, que trazia em si a Tradição e era um homem da revelação, sustentou o ponto de vista oposto. Em sua teologia ele apresentou o ensinamento da Igreja de que a luz incriada, ou seja, a visão de Deus, não é apenas uma visão simbólica, nem sensorial nem criada, muito menos inferior ao conhecimento, mas ela consiste na deificação. Através da deificação o homem é considerado digno de ver a Deus. E essa deificação não é um estado abstrato, mas uma união do homem com Deus. Vale dizer que o homem que contempla a luz incriada a enxerga porque está unido a Deus. Ele a vê com os olhos interiores, e também com seus olhos corporais, os quais foram alterados pela ação de Deus. Consequentemente, a theoria é a união com Deus. E essa união é o conhecimento de Deus. A essa altura a pessoa é agraciado com o conhecimento de Deus, que está acima do conhecimento humano e acima dos sentidos.

São Gregório explica toda essa teologia ao longo de todos os seus escritos. Mas como não é nossa intenção neste capítulo de fazer uma exposição sistemática desse ensinamento a respeito do conhecimento de Deus, vamos nos limitar a analisar o ponto central tal como ele o apresenta em sua obra fundamental “Sobre os santos Hesiquiastas”, conhecida como “As Tríades”. Salientamos que não iremos apresentar todo o ensinamento, tal como se encontra nesse livro, mas apenas os pontos centrais.

Eis uma passagem característica, na qual ele apresenta seu ensinamento: “Aquele que limpou sua alma de toda conexão com as coisas desse mundo, que se desvinculou de tudo por meio da guarda dos mandamentos e pela impassibilidade que isso traz, e que passou além da atividade cognitiva por intermédio de uma prece contínua, sincera e imaterial, e que foi abundantemente iluminado pela luz inacessível numa união inconcebível, somente este homem, transformando-se em luz, contemplando através da luz e vendo a luz, na visão e no deleite dessa luz, reconhece que Deus é transcendentalmente radiante e além da compreensão; ele glorifica a Deus não apenas além do poder de compreensão do nous humano – pois muitas das coisas criadas estão além daí – mas até além da união maravilhosa que é o único meio pelo qual o nous se une com aquilo que está além das coisas inteligíveis, ‘imitando divinamente os nous supracelestiais’”.

Encontramos nessa passagem o ensinamento central de São Gregório. Para alcançar a visão da luz incriada, a pessoa deve cortar todas as conexões entre a alma e aquilo que está abaixo dela, desvinculando-se de tudo pela observância dos mandamentos de Cristo e por meio da impassibilidade que provém daí, e transcender toda atividade cognitiva “por intermédio de uma prece contínua, sincera e imaterial”. Para isso, ele já deve estar curado, por meio da guarda dos mandamentos de Cristo e pela libertação de sua alma de toda conexão pecaminosa com as coisas criadas. Ele será iluminado pela luz inacessível “abundantemente através de uma união inconcebível”. Ele vê a Deus através dessa união. Assim ele se torna luz e vê a luz. Ao ver a luz incriada, ele reconhece a Deus e adquire o conhecimento Dele, porque agora “ele reconhece verdadeiramente que Deus está acima da natureza e além da compreensão”.

São Gregório desenvolve esse ensinamento em outras passagens das Tríades.

A visão de Deus, a theoria da luz incriada, não consiste numa visão sensorial, mas numa deificação do homem. Falando sobre a visão de Moisés “face a face, e não por enigmas”, ele relembra a passagem de São Máximo o Confessor, que diz: “A deificação é uma iluminação direta e anipostática que não tem início, mas que surge naqueles que são dignos de algo que excede sua compreensão. Ela é de fato uma união mística com Deus, além do nous e da razão no momento em que as criaturas já não mais conhecerão a corrupção”. Portanto, a visão da luz incriada corresponde à deificação do homem. Ele vê a Deus através da deificação e não por cultivar sua inteligência. A visão da luz incriada é chamada de dom deificante. Ela não é um dom da natureza humana criada, mas do Espírito Santo. “Assim sendo, o dom deificante do Espírito é uma luz misteriosa que transforma em luz aqueles que recebem esse tesouro. Ele não apenas os enche com a luz eterna mas ainda lhes concede o conhecimento e uma vida agradável a Deus”. Portanto, a visão de Deus não é externa, mas vem pela deificação.

Assim é que a deificação é a união e a comunhão com Deus. De acordo com São Gregório, “a visão da luz incriada não é simplesmente uma abstração e uma negação, ela é a união e a divinização que ocorre mística e inefavelmente pela graça de Deus, depois de afastar todas as coisas inferiores que se imprimem no nous, ou melhor, depois da cessação de toda atividade noética; é algo que vai muito além da abstração”. A contemplação da luz incriada é a “comunhão divinizante do Espírito”. “Então, a contemplação dessa luz é uma união, ainda que ela não dure no imperfeito; mas pode a união com essa luz ser outra coisa do que uma visão?”.

São Gregório fala do êxtase. Mas esse êxtase, no ensinamento patrístico, não tem nada a ver com o êxtase da Pítia ou de outras religiões. O êxtase acontece quando, na oração, o nous abandona toda conexão com as coisas criadas: primeiro, “com tudo de ruim e de mau, e depois com as coisas neutras”. O êxtase é principalmente uma retirada em relação às opiniões do mundo e à carne. Com prazer sincero o nous “abandona todas as coisas criadas”. Esse êxtase é mais elevado do que a teologia abstrata, ou seja, do que a teologia racional, e pertence apenas àqueles que alcançaram a impassibilidade. Mas ele ainda não constitui a união. Vale dizer que o êxtase que é a prece incessante do nous, no qual o nous possui a lembrança contínua de Deus e não se relaciona com o “mundo do pecado” ainda não constitui a união com Deus. Essa união acontece quando o Paráclito “ilumina desde o alto o homem que na sua prece atingiu o estado que é superior às mais elevadas possibilidades, e que espera pela promessa do Pai, e que por Sua revelação é eletrizado pela contemplação da luz”. A iluminação por Deus é aquilo que mostra Sua união com o homem.

A visão, a deificação e a união com Deus são as coisas que oferecem ao homem o conhecimento existencial de Deus. A partir daí o homem possui um conhecimento real de Deus. O dom deificante do Espírito Santo, que é a luz misteriosa, transforma em luz divina aqueles que o alcançaram, e não apenas os enche com a luz eterna, “mas ainda lhes concede o conhecimento e uma vida agradável a Deus”. Nesse estado a pessoa possui o conhecimento de Deus. Em resposta ao ensinamento de Barlaam de que Deus só pode ser conhecido pelos maiores contemplativos, os filósofos, e de que o conhecimento de Deus transmitido “pela iluminação noética (...) de modo algum é verdadeiro”, São Gregório Palamas declara: “Deus se dá a conhecer não apenas através daquilo que é, mas através daquilo que não é, através da transcendência, ou seja, das coisas incriadas, e ainda através de uma luz eterna que transcende todos os seres”. Esse conhecimento, diz ele, é oferecido hoje como uma espécie de promessa àqueles que são dignos dele e “os ilumina sem nunca acabar, no século que nunca acabará”. É por isso que a visão que os santos têm de Deus é verdadeira, “e aquele que a declara como falsa se extraviou do divino conhecimento de Deus”. Assim, qualquer um que ignore ou desconsidere a visão de Deus, a qual oferece o verdadeiro conhecimento, este é na realidade ignorante a respeito de Deus.

Essas coisas mostram que a visão de Deus, a deificação, a união e o conhecimento de Deus estão intimamente ligados. Eles não podem ser entendidos independentemente uns dos outros. Quebrar essa unidade empurra o homem para longe de qualquer conhecimento de Deus. A base da epistemologia Ortodoxa é a iluminação e a revelação de Deus no interior do coração purificado do homem.

Como vimos, o conhecimento de Deus está além do conhecimento humano. A visão da luz incriada ultrapassa toda atividade epistemológica e está “além da intuição e do conhecimento”. Uma vez que a visão da luz incriada é oferecida apenas aos corações dos fiéis e dos perfeitos, por essa mesma razão “ela é superior à luz do conhecimento”. E não apenas ela é superior à luz do conhecimento humano “a partir dos estudos Helênicos”, como ainda a luz dessa theoria difere “da luz que provém das Sagradas Escrituras”, uma vez que a luz das Escrituras pode ser comparada a “uma lâmpada que brilha num local escuro, enquanto que a visão da luz incriada se assemelha à estrela da manhã que brilha durante o dia, ou seja, ao sol”. Assim sendo, a graça da deificação transcende a natureza, a virtude e o conhecimento humano.

A visão da luz incriada e o conhecimento que dela provém não são um desdobramento da potência racional, nem a perfeição da natureza racional, como afirmava Barlaam, mas são coisas superiores à razão. São o conhecimento oferecido por Deus aos puros de coração. Quem quer que afirme que o dom deificante é um desenvolvimento da natureza racional se coloca em oposição ao Evangelho de Cristo. Se a contemplação fosse um dom natural, todas as pessoas poderiam ser deuses, algumas mais e outras menos. Mas “os santos deificados transcendem a natureza”, eles são gerados por Deus, que lhes concede o poder de se tornarem “filhos de Deus”.

A visão da luz incriada, que oferece o conhecimento de Deus ao homem, é sensorial e suprassensorial. Os olhos do corpo são remodelados para poderem ver a luz incriada, “essa luz misteriosa, inacessível, imaterial, incriada, deificante, eterna”, essa “irradiação da Natureza Divina, essa glória da divindade, essa beleza do Reino celestial”. Palamas pergunta: “Você vê que essa luz é inacessível aos sentidos que não foram transformados pelo Espírito?”. São Máximo, cujo ensinamento é citado por São Gregório, diz que os Apóstolos viram a Luz incriada “por uma transformação da atividade de seus sentidos, produzida neles pelo Espírito”.

A visão da luz incriada e o conhecimento que provém dela transcendem não apenas a natureza e o conhecimento humano, mas também a virtude. A virtude e a imitação de Deus nos preparam para a união divina, mas a união misteriosa em si é efetuada pela graça.

Portanto, a deificação, que é o objetivo da vida espiritual, é uma manifestação de Deus no coração puro do homem, essa visão da Luz incriada é o que cria o deleite espiritual na alma. Pois, de acordo com São Gregório, a evidência dessa luz é que a alma cessa de se entregar aos maus prazeres e às paixões, adquirindo a paz e a quietude dos pensamentos, o repouso e a alegria espiritual, o desdém pela glória humana, a humildade unida a um júbilo secreto, a aversão ao mundo, o amor pelas coisas celestiais, ou melhor, o amor exclusivamente ao Deus dos Céus, e a visão da luz incriada, mesmo que os olhos da pessoa estejam cobertos ou tenham sido arrancados.

Daquilo que dissemos fica claro que o final da cura do homem é a visão da luz incriada. Mas como nesse capítulo estamos falando sobre a theoria, vejamos o que diz o ensinamento de Palamas sobre os diversos graus da theoria. Ele diz que a theoria tem um começo, e as coisas que se seguem a esse começo diferem em graus de escuridão ou claridade, mas que não existe fim, pois ela progride sempre assim como o arrebatamento da revelação, que é infinito. A iluminação é uma coisa, e a visão contínua da luz é outra, e outra ainda é a visão das coisas nessa luz, por meio da qual mesmo as coisas mais distantes ficam acessíveis aos olhos, e o futuro é mostrado agora como se já existisse. Portanto existem graus de theoria e, com esses, graus de conhecimento.

Esse ponto pode ser visto no ensinamento de São Pedro Damasceno sobre os oito estágios da theoria. Os primeiros sete pertencem a este século, enquanto que o oitavo pertence ao século futuro. A primeira theoria é o conhecimento dos desafios e tribulações desta vida. A segunda é “o conhecimento de nossas próprias faltas e da bondade de Deus”. A terceira theoria é o conhecimento das coisas terríveis antes e depois da morte. A quarta é o entendimento profundo da vida que nosso Senhor Jesus levou neste mundo, e também da de Seus discípulos e santos, ou seja, das palavras e das ações dos mártires e dos santos Padres. A quinta é o conhecimento da natureza e do fluxo das coisas, a sexta é a theoria dos seres criados, ou o conhecimento e o entendimento da criação visível de Deus. A sétima é o entendimento da criação espiritual de Deus, ou seja, dos anjos. A oitava é o conhecimento relativo a Deus, que é o que chamamos de “teologia”.

Consequentemente, a theoria possui muitos estágios e graus, e muitos devem vir antes da visão da luz incriada, que é a “beleza do século futuro”, “o alimento celestial”. Dentre os graus da theoria está a lembrança da morte, que é um dom de Deus, bem como a prece incessante, a inspiração para manter integralmente os mandamentos de Cristo, o conhecimento de nossa pobreza espiritual, ou seja, o entendimento de nossos pecados e de nossas paixões, e o arrependimento que se segue a isso. Todas essas coisas provêm de uma operação da graça divina. Certamente a theoria perfeita é a visão da luz incriada, a qual se diferencia entre visão e visão contínua, como diz Palamas.

Assim, a purificação que acontece pela graça de Deus cria as precondições necessárias para atingir a theoria, que é a comunhão com Deus, a deificação do homem e o conhecimento de Deus. O método ascético da Igreja conduz a esse ponto. Ele não está baseado em critérios humanos e não pretende tornar a pessoa “doce e amável”, mas sim curá-la perfeitamente e adquirir para ela a comunhão com Deus. Enquanto a pessoa estiver distante da comunhão e da união com Deus, ela não terá ainda alcançado a salvação. A pessoa espiritualmente treinada que vê a luz incriada é chamada, na linguagem dos Padres, de “deificada”. Essa expressão foi usada por São Dionísio o Areopagita, e repetida, como vimos, por São Gregório Palamas.

A cura da alma, do nous e do coração conduz a pessoa à visão de Deus e faz com que ela conheça a vida divina. Esse conhecimento constitui a salvação do homem.

Devemos orar fervorosamente a Deus para que nos conceda alcançar esse conhecimento de Deus. A exortação é clara:

“Venham, subamos a montanha do Senhor,
Até a causa de nosso Deus,
E contemplem a glória de Sua transfiguração,
Glória do Filho Único do Pai.
Possamos nós receber a luz de Sua luz,
E com os espíritos elevados
Possamos cantar louvores à Trindade consubstancial”.

Assim nos erguemos e cantamos:

“Ele se transfigurou sobre o monte, ó Cristo nosso Deus, mostrando Sua glória aos Seus discípulos, tanto quanto estes puderam compreender. Pelas intercessões da Mãe de Deus, que Sua luz eterna brilhe sobre nós, pecadores, o Dispensador da luz, glória a Ti[2]”.


1.3. Orações

1.3.1.        Na busca por um médico espiritual

“Ó Senhor, que não desejas a morte do pecador, mas que todos vivam, que vieste à terra para restaurar a vida daqueles que jazem mortos pelo pecado e para torna-los dignos de ver Tua verdadeira luz, tanto quanto isso é possível ao homem, envia-me um homem que Te conheça, para que, servindo-o e submetendo-me a ele com todas as minhas forças, como se a Ti fosse, e cumprindo Tua vontade através dele, eu possa agradar a Ti, o único e verdadeiro Deus, para que mesmo eu, pecador, possa me tornar digno de Teu Reino[3]”.

1.3.2.        Pelo conhecimento de Deus e o amor a Ele

“Tornai-me digno, ó Senhor, de conhecer-Te e amar-Te, não com o conhecimento exercido por um nous disperso; mas fazei-me digno desse conhecimento para que, contemplando-Te, o nous glorifique Tua natureza, na visão divina que retira a mente dos cuidados do mundo. Torna-me digno de me elevar acima dos caprichos do meu olho vagabundo que engendra imaginações, e para contemplar-Te na prisão da Cruz, na segunda parte da crucificação do nous, que voluntariamente deixa suas imagens conceituais para habitar na Tua visão contínua que ultrapassa a natureza. Coloca em meu coração um amor crescente por Ti, para que ele possa se retira deste mundo por um fervoroso amor por Ti. Desperta em mim o entendimento de Tua humildade, com que andastes pelo mundo revestido da carne que recobriu Teus membros pela mediação da Santa Virgem, para que, com essa contínua e infalível lembrança eu possa aceitar a humilhação de minha natureza com prazer[4]”.




[1] Mateus 5: 8.
[2] Festa da Transfiguração.
[3] São Simeão o Novo Teólogo, SC 129, 186-188.
[4] Santo isaac o Sírio, Homilias 36 e 16.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Hierotheus de Nafpaktos - Psicoterapia Ortodoxa - Capítulo V



1.       A hesíquia como método de cura

Um dos métodos de cura fundamentais consiste no repouso no pleno sentido do termo. Creio que já esclarecemos esse ponto. O homem contemporâneo está buscando a cura para sua vida, especialmente para sua condição interior, precisamente porque ele está hipertenso. Por isso uma das mensagens que a Ortodoxia pode oferecer o cansaço moderno, para o mundo desencorajado e que se debate, é a mensagem do silêncio. Penso que a tradição Ortodoxa tem muito a oferecer nessa área. Portanto, a seguir tentarei explicar mais a fundo o valor da hesíquia e do Hesiquiasmo na cura da alma, do nous, do coração e da inteligência. Acreditamos que a hesíquia e o Hesiquiasmo estão entre as medicinas mais básicas para obter a saúde interior. E uma vez que a falta de silêncio é o que cria os problemas, a pressão, a ansiedade e a insegurança, bem como as doenças psicológicas, psíquicas e físicas, tentaremos buscar as causas dessas coisas, que constituem o anti-hesiquiasmo.  O vento desértico do anti-hesiquiasmo que está soprando e queimando tudo prevalece por toda parte, e é a causa dominante dessas situações anormais. Vamos então estudar a hesíquia como uma método de cura da alma, e a anti-hesíquia como a causa das doenças físicas e psíquicas.

1.1. A hesíquia

Antes de definir a hesíquia, ou repouso, veremos o grande valor que ela tem para a alma.

Os santos Padres, que viveram a plenitude da tradição ortodoxa, enfatizaram a grande importância da hesíquia Ortodoxa. São Gregório o Teólogo considerava a hesíquia como essencial para atingir a comunhão com Deus. “É necessário estar em paz para poder ter uma conversa clara com Deus e gradualmente trazer o nous de volta de suas divagações”. Com a paz e o repouso o homem purifica seus sentidos e seu coração. Então ele conhece a Deus, e esse conhecimento de Deus constitui sua salvação.

São Thalassius, que adere totalmente a essa linha, declara: “A hesíquia e a oração são as maiores armas da virtude, porque elas purificam o nous e dão a ele uma percepção espiritual”. Por intermédio da hesíquia o nous é purificado e se torna um instrumento adequado para ver a Deus. Conforme sabemos pelos ensinamentos patrísticos, o nous é diferente da inteligência. Quando o nous é oculto pelas paixões e cessa de contemplar os mistérios de Deus ele está morto, enquanto que quando ele se liberta das paixões e percebe com clareza, ele vê a Deus como luz, e essa luz é a vida do homem. Como dissemos, essa purificação do nous acontece por meio da hesíquia.

É bem conhecido por quem estuda as obras dos Padres e por quem tenta viver essa vida de quietude, que existem uma hesíquia do corpo e uma hesíquia da alma. A primeira se refere às coisas exteriores e a segunda às coisas interiores. A hesíquia do corpo usualmente se refere à postura hesiquiasta e ao esforço para minimizar as representações exteriores, as imagens recebidas e trazidas à alma pelos sentidos. A hesíquia da alma significa que o nous atingiu a capacidade e o poder para não aceitar nenhuma tentação ou ilusão. Nesse estado o nous, possuindo atenção e compunção, está centrado no coração. O nous (energia) está concentrado no lugar do coração (essência), unido a ele, e se torna capaz de alcançar um conhecimento parcial ou maior de Deus.

O repouso do corpo é uma restrição do corpo. “O começo da hesíquia é um repouso divino”. O estágio intermediário é o de “um poder e uma visão iluminantes; e o final é o êxtase ou o arrebatamento do nous em direção a Deus”. São João Clímaco, referindo-se ao repouso exterior e corporal, escreve: “Quem ama o repouso mantém sua boca fechada”.

Mas não são apenas os chamados Padres népticos que mencionam e descreve a santa atmosfera da hesíquia, mas também aqueles conhecidos como “sociais”. Na verdade, na tradição Ortodoxa não existe uma oposição direta entre theoria e praxis, nem entre os Padres népticos e os sociais. Os népticos são eminentemente sociais e os que vivem em comunidade são inimaginavelmente népticos.

Gostaria de me referir a São Basílio o Grande como um exemplo da santa hesíquia. Numa carta ao seu amigo São Gregório ele escreve sobre a hesíquia como sendo o início da pureza da alma, e sobre a hesíquia do corpo, como o controle da língua, do olhar, do ouvido e das palavras. Por exemplo, ele diz: “O verdadeiro começo da purgação da alma é a tranquilidade, na qual a língua não tem permissão para discutir os negócios dos homens, nem os olhos para contemplar as faces rosadas ou os corpos bonitos, nem os ouvidos para rebaixar o tônus da alma escutando canções cujo único objetivo seja o de divertir, nem para as palavras espirituosas ou aquelas ditas por bufões – uma prática que, acima de todas as coisas, promove o relaxamento do tônus da alma”.

Isso expressa o estado de quietude que o santo Padre desfrutava no deserto quando buscava adquirir o conhecimento de Deus na universidade do deserto, depois do tempo que passara nas escolas dos homens adquirindo o conhecimento humano. Como resultado, esse luminar da Cesareia nos brindou com uma passagem clássica que mostra que ele possuía um excelente conhecimento da vida na hesíquia. Ele escreve: “Quando a mente não se encontra dissipada por coisas estranhas a ela, nem divagando pelo mundo através dos sentidos, ela se retira para dentro de si mesma, e por sua própria vontade ascende até a visão de Deus. Então ela se vê iluminada por dentro e por fora por essa glória, e se esquece até de sua própria natureza. Ela já não arrasta a alma para pensamentos sobre o sustento ou as necessidades do corpo, mas desfruta de um desligamento dos cuidados mundanos, e transfere todo o seu interesse para a aquisição dos bens eternos...”.

A hesíquia do corpo ajuda a atingir o repouso interno da alma. Nos ensinamentos patrísticos ela aparece como sendo, embora não inteiramente necessária, bastante útil na aquisição da vida divina. “O repouso do corpo é o conhecimento e a administração dos sentimentos e das percepções de uma pessoa”. Em outra parte São João Clímaco fala dessa hesíquia, que ele recomenda especialmente aos que “habitam solitários”.

Certamente, como já dissemos, o deserto, e em geral a hesíquia do corpo, são coisas úteis para atingir a hesíquia espiritual interior. Mas os Padres entenderam o Hesiquiasmo “não como uma vida reclusa, nem como o isolamento no deserto, mas como a morada ininterrupta em Deus”. Apesar do grande valor do deserto, na medida em que ele limita as imagens e as representações provenientes do mundo exterior, esse valor não é absoluto. Nicetas Stethatos é característico a respeito. Ele aponta que a virtude não está limitada a um local em particular e que a finalidade do homem é de “restaurar os poderes da alma e concentrar as virtudes gerais em um ponto, para agir conforme a natureza”. Afirmando que essas coisas não provêm do exterior mas que “nos foram concedidas pela criação”, ele conclui: “O deserto não é necessário pois podemos alcançar o Reino dos Céus sem ele, por meio do arrependimento e a guarda de todos os mandamentos de Deus”. É típico que Nicetas, ao formular o problema sobre o qual muitos disseram ser impossível adquirir o hábito da virtude sem o retiro e a fuga para o deserto, escreva: “Eu ficaria surpreso em saber que aquilo que não conhece limites só possa nos ser trazido num espaço delimitado”.

De qualquer modo, o deserto e a hesíquia do corpo em geral ajudam a pessoa a adquirir a hesíquia do espírito, cujo santo conteúdo vamos agora descrever.

São João Clímaco, escrevendo sucintamente em sua famosa obra, diz que o repouso da alma consiste num “conhecimento acurado e na organização dos pensamentos”. “O repouso da alma é a ciência dos pensamentos e de uma mente inviolável. Um pensamento corajoso e determinado é um amigo do repouso. Ele mantém uma vigília constante às portas do coração, e mata ou repele os pensamentos que chegam”.

São Simeão o Novo Teólogo, falando do repouso interior e descrevendo sua santa atmosfera, diz: “A hesíquia consiste num estado imperturbável do nous, na calma de uma alma livre e jubilosa, num coração sem perturbações e solidamente plantado, na visão da luz, no conhecimento dos mistérios de Deus, na palavra de sabedoria, num mergulho nas imagens conceituais de Deus, no arrebatamento do nous, numa conversa pura com Deus, no olho vigilante, na prece interior, na união com Deus, no contato com Ele, na completa deificação, e num repouso indolor nos grandes trabalhos ascéticos”.

Também outros Padres falam desse santo estado da alma, uma vez que a vida em Cristo é uma experiência comum a todos os santos. De acordo com São Gregório Sinaíta, “a hesíquia significa cortar todos os pensamentos, exceto o mais divino de todos, que provém do Espírito, para evitar que, aceitando aqueles como bons, percamos o que é maior”.

Essa rejeição das imagens conceituais é parte da tentativa do homem de purificar a parte inteligente de sua alma. O atleta da vida espiritual luta para afastar os pensamentos que o maligno nos apresenta com o único propósito de quebras a unidade interior das potências da alma e tornar o coração do homem doente. É um fato, que a Ortodoxia constitui uma ciência terapêutica. Como podemos ler nas obras dos santos Padres que se referem a essas coisas, vemos claramente que o Cristianismo cura a alma enferma e, dentre os meios de cura, o principal consiste na guarda do nous, repelindo os pensamentos intrusos e tentando expulsá-los antes que eles passem os portais do coração.

“O que é a hesíquia, senão manter o coração longe de dar e receber e agradar as pessoas, e coisas assim? Quando o Senhor falou ao escriba sobre o homem que caiu nas mãos dos ladrões e lhe perguntou então quem agira como seu próximo, Ele mesmo disse: “Aquele que mostrou misericórdia para com ele”. Em outra parte, Ele disse: “Eu desejo a misericórdia, não o sacrifício”. Se você simplesmente tiver misericórdia, isso vale mais do que o sacrifício. Incline seu coração para a misericórdia; porque o pretexto da hesíquia inclina a pessoa à arrogância antes que ela vença a si mesma e obtenha a perfeição: a hesíquia consiste em suportar a cruz. Se você for compassivo você encontrará ajuda. Mas se você força a si mesmo para ir além da medida, aprenda isso, você perderá até mesmo o que tem: não vá para o interior, nem para exterior, mas caminhe entre os dois, consciente da vontade de Deus, porque os dias são maus”.

Pois a hesíquia é, acima de tudo, a guarda do nous, a vigilância sobre os pensamentos, como São Thalassius expressou: “Lacre seus sentidos com o repouso e estabeleça o juízo sobre os pensamentos que atacam seu coração”.

São Gregório Palamas, por seu turno, é o principal defensor da hesíquia, como veremos. Com a graça de Cristo ele lutou por salvaguardar esse modo de purificar o coração e os pensamentos, que é um pré-requisito indispensável para o conhecimento de Deus e a comunhão com Ele. Em seu sermão da Apresentação da Virgem ele fala da vida hesiquiasta. É típico que este santo Athonita, falando de sua experiência, veja a Virgem como um modelo da hesíquia noética, uma vez que ela entrou em comunhão com a Santa Trindade no Santo dos Santos e m sua paz. Ele escreve que não podemos encontrar Deus nem comungar com Ele, a menos que nos tenhamos purificado e a menos que tenhamos abandonado as coisas sensoriais e os sentidos, e a menos que nos elevemos acima de todos os pensamentos e raciocínios do conhecimento humano e de todos os pensamentos em geral. É isso que fez a Virgem. Buscando essa comunhão com Deus, “a Virgem encontrou na santa hesíquia seu guia: silenciando a mente, deixando em paz o mundo, esquecendo as coisas externas, participando dos segredos do alto, deixando de lado as imagens conceituais e preferindo o melhor. Essa prática consiste na entrada na theoria da visão de Deus – ou melhor, no único exemplo de uma alma pura e saudável”. São Gregório descreve as virtudes como medicinas para as doenças da alma e as paixões; mas a theoria, diz ele, “é o fruto da remissão, cuja forma e finalidade é a deificação”. A alma, em outras palavras, é curada por meio das virtudes, mas quando se encontra curada ela se une a Deus pela theoria, à qual ela chega pela via do silêncio. “Por meio dessa theoria o homem é deificado, não refletindo sobre palavras ou sobre as coisas visíveis, mas ensinado pelo silêncio”.

Por intermédio de hesíquia e dos ensinamentos da Ortodoxia somos curados, “resgatados das coisas inferiores e retornados a Deus”. Através de constantes súplicas e orações “tocamos de algum modo a intocável e bendita essência. E assim, aqueles que foram purificados no coração por meio da santa hesíquia, depois de inefavelmente penetrados pela luz que está acima dos sentidos e do nous, veem a Deus dentro de si mesmos como num espelho”.

O principal ponto desse sermão é de que por meio do método Ortodoxo, que é essencialmente um método de hesíquia noética, nós purificamos nosso coração e nosso nous, e assim nos unimos a Deus. Esse é o único método de contato com Deus e de comunhão com Ele.

Os santos Padres chamam a isso de paz da alma e descanso do Sábado. O nous do homem, purificado pelo método de treinamento e pelo santo repouso, observa o Sábado e descansa em Deus. Palamas, falando do repouso divino, do descanso de Deus “quando ele descansou de seus trabalhos”, e do descanso de Cristo quando da descida de Sua alma com sua divindade aos infernos e da estada de Seu corpo com sua divindade no túmulo, escreve que também nós devemos buscar o descanso divino, ou seja, devemos concentrar nosso nous com atenção perseverante e uma prece ininterrupta. Esse descanso no divino Sábado é a hesíquia noética. “Se você retirar seu nous de todo pensamento, mesmo dos bons pensamentos, e se voltar por completo para si mesmo com uma atenção perseverante e uma prece ininterrupta, também você alcançará o descanso divino e a bênção das sete beatitudes, enxergará a si mesmo e, através de si mesmo, será elevado até a visão de Deus”. É digno de nota que o santo diz essas coisas ao rebanho de sua diocese em Tessalônica. Isso significa que todos, em diferentes graus, podem alcançar a experiência do descanso divino. Eu acredito que este é o ensinamento que foi perdido em nosso tempo.

A partir do que dissemos sobre a hesíquia noética, podemos ver porque a pessoa que a pratica é chamada de hesiquiasta. O hesiquiasta é alguém que segue o caminho do repouso, que, na verdade, é o caminho da tradição Ortodoxa. Seu objetivo é o de nos conduzir a Deus e nos unirmos a Ele. Podemos lembrar São João Clímaco: “Por estranho que pareça, o hesiquiasta é um homem que luta para manter seu eu incorpóreo em silêncio dentro da morada de seu corpo (...) Um hesiquiasta é como um anjo sobre a terra. Com o papel do amor e as letras do zelo, ele libertou sua prece da preguiça e da negligência. O hesiquiasta é alguém que clama: ‘Senhor, meu coração está pronto’. Ele diz: ‘Eu durmo, mas meu coração vigia’.”

De fato, como já apontamos, o Hesiquiasmo é o método mais adequado para a concentração e a subida da alma para Deus e sua comunhão com Ele. Ela é completamente necessária para a comunhão com Deus. São Gregório Palamas, depois de explicar extensamente que o nous do homem (energia) deve se voltar para o coração e que é no coração, que é o “reservatório da inteligência e o primeiro órgão inteligente do corpo”, o “reservatório dos pensamentos”, onde a graça de Deus se encontra, escreve: “Você pode ver, assim, o quão essencial é para aqueles que se determinaram a prestar atenção em si mesmos na quietude interior, que reúnam o nous e o encerrem no corpo, especialmente neste “corpo” mais interior, a que chamamos coração”.

Mas devemos enfatizar e sublinhar que o treinamento na hesíquia não consiste simplesmente numa tentativa humana de trazer o nous de volta a si mesmo, e que a união com o coração não se resume apenas a um método técnico. Esse treinamento na hesíquia é inspirado e dirigido pelo Espírito Santo e se expressa no arrependimento e na tristeza. Não se trata apenas de um método artificial, que em certa profundidade e largura pode ser encontrado também em sistemas antropocêntricos. “O Hesiquiasmo do monge Ortodoxo brota organicamente do arrependimento profundo e de seu anseio em cumprir o s mandamentos de Cristo. Não se trata de uma aplicação artificial à vida artificial da teologia Areopagita. O ensinamento teológico ‘areopagita’ não contradiz os resultados da quietude mental, e nesse sentido se aproxima e até recai no Hesiquiasmo. Mas existe uma diferença essencial: a ascese Ortodoxa não chega à quietude mental através da filosofia abstrata da teologia apofática, mas através do arrependimento e da luta contra a “lei do pecado[1]” que age na natureza humana”.

Todos os Padres fazem essa conexão entre a hesíquia noética e o arrependimento. São Gregório Sinaíta escreve: “Sem a prática constante das lágrimas, é impossível carregar o caldeirão fervente do repouso”. Aquele que pranteia as coisas que antecedem e sucedem à morte deve ter paciência e humildade, que são as duas pedras fundamentais da hesíquia. Sem o arrependimento e esses dois alicerces o hesiquiasta cairá “na presunção e na negligência”.

Por isso o método de treinamento na hesíquia – e isto deve ser fortemente enfatizado – está conectado com o arrependimento, com as lágrimas, a tristeza e a compunção. Sem essas coisas, ele será falso e inútil. Pois o objetivo da hesíquia é a purificação do coração e do nous. E isso não é concebível sem as lágrimas e a tristeza. Por isso, para o atleta da prece noética, as lágrimas são um modo de vida. Ao concentrar seu nous em seu coração ele se torna capaz de ver sua fraqueza, e então seus olhos e seu coração derramam lágrimas de arrependimento. Conforme o arrependimento cresce, ele se purifica e adquire o conhecimento de Deus.

Mas a hesíquia também está estreitamente conectada com a observância dos mandamentos de Cristo. As maiores armas para quem se esforça por levar uma vida de repouso interior com paciência são “o autocontrole, o amor, a atenção e as leituras espirituais”. De acordo com São Gregório do Sinai, qualquer um que pratique o Hesiquiasmo deve ter como base as virtudes “do silêncio, do autocontrole, das vigílias, da humildade e da paciência”. Da mesma forma, devemos ter três atividades agradáveis a Deus, ou seja, “a salmódia, a prece e a leitura, além do trabalho manual”. Em outra parte o mesmo santo enfatiza que “os primeiros requisitos da hesíquia são a fé e a paciência, e amar e esperar com todo coração, toda força e toda energia”. Em outra parte ainda ele enfatiza outras virtudes como o autocontrole, o silêncio e a auto reprovação, “ou seja, a humildade. Pois essas coisas sustentam e protegem umas às outras; delas nasce a prece, e cresce para sempre”. Claro que é preciso dar atenção ao alimento, exercitando sua restrição para que o nous não seja entorpecido pela comida: “quem pratica a hesíquia deve estar sempre insatisfeito, nunca saciado. Pois com o estômago pesado e a mente entorpecida dessa maneira, ninguém é capaz de orar com pureza e firmeza”. O excesso de comida leva ao sono, e inúmeros sonhos enchem a mente.

Essas coisas mostram que o modo de vida hesiquiasta pressupõe guardar os mandamentos de Cristo, uma vez que é deles que nascem as virtudes. Por sua vez, as virtudes não são independentes do repouso, nem este é independente da observância dos mandamentos de Deus, de seus “regulamentos”.

Ao contrário, não manter os mandamentos e encher-se de paixões não constitui a hesíquia Ortodoxa, e se por acaso a hesíquia nascer ela será logo devorada e desaparecerá. “Nada tem mais poder para perturbar o estado de repouso e despojá-lo do auxílio de Deus do que seguir as paixões: a presunção, a gula, a tagarelice e as vãs preocupações, a arrogância, e a mestra de todas as paixões: a vanglória”.

Todas essas coisas mostram que a santa hesíquia noética é necessária para manter a alma pura das paixões e em comunhão com Deus. Ela não é um luxo na vida, não é um treinamento para poucas pessoas, nem um método exclusivo para monges, mas existe para todo mundo. Ela é indispensável para atingir a contemplação de Deus e para a deificação, que é a finalidade do homem. Entretanto, existem graus diferentes de hesíquia.

Muitas vezes nos Evangelhos o Senhor aparece ensinando como purificar o coração das paixões, ou falando sobre a prece interior, sobre a libertação do jugo dos pensamentos, etc. Ele próprio demonstrou aos seus discípulos o valor do deserto, que ajuda a conquistar o inimigo. Assim é que também os Apóstolos incluíram diversos tópicos népticos nos seus próprios ensinamentos.

Não é este o lugar para desenvolvermos esses temas. Vamos apenas mencionar alguns.

É um fato conhecido que depois de Seu batismo, o Senhor “foi conduzido pelo Espírito a um lugar ermo para ser tentado pelo demônio[2]”. Foi ali que ele venceu o demônio, que apresentou a ele as três famosas tentações. Muitas vezes vemos o Senhor se retirar para lugares ermos para descansar, e também para deste modo mostrar aos seus discípulos o valor do deserto. “Ele partiu dali num barco e se dirigiu sozinho a um local deserto[3]”. E depois do milagre da multiplicação dos cinco pães, “depois de despedir as multidões, ele foi sozinho à montanha para orar; e quando veio a manhã seguinte, ele ainda estava lá a sós[4]”.

É significativo que quando os discípulos se juntaram “e Lhe disseram tudo o que tinha feito e falado”, o Senhor lhes tenha dito: “Vamos sozinhos para um lugar deserto para que vocês descansem um pouco[5]”.

O Senhor passava muitas noites em oração. Lucas o Evangelista conservou essa informação: “Ele ia para a montanha para rezar, e continuava por toda a noite a orar a Deus[6]”.

Ao ensinar o caminho da prece verdadeira, Ele disse: “Quando vocês rezarem vão para o seu quarto, e depois de fechar a porta, rezem ao seu Pai que está no secreto[7]”. Interpretando essa exortação do Senhor, São Gregório Palamas escreve: “A câmara da alma é o corpo; as portas são os cinco sentidos corporais. A alma entra em sua câmara quando a mente não divaga aqui e ali, vagando entre as coisas e os assuntos do mundo, mas permanece dentro, em nosso coração. Nossos sentidos se fecham e permanecem fechados quando não os deixamos se ligar às coisas sensoriais externas, e dessa forma nosso nous permanece livre de toda ligação mundana, e por meio de um prece mental secreta se une com Deus seu Pai. ‘E seu Pai, que vê tudo de um local secreto recompensará você’, completa o Senhor. Deus conhece todas as coisas secretas, vê a prece spiritual e a recompensa com grandes dons. Pois essa prece é verdadeira e perfeita quando enche a alma com a graça divina e os dons espirituais. Assim como o óleo sacramental perfuma mais o jarro quanto mais bem fechado ele está, também a oração, quanto mais rápida for aprisionada no coração, mais dispensará a graça divina”.

O Senhor disse aos seus discípulos que dormiam no Jardim das Oliveiras: “Vigiem e orem para não cair em tentação[8]”.

Mais adiante ele nos adverte para mantermos nosso nous, e especialmente nosso coração, puro das paixões de dos pensamentos: “Quando Jesus percebeu seus pensamentos, ele os questionou e disse: ‘Porque vocês pensam em seus corações?’[9]”. Ao acusar os Escribas e os Fariseus, Ele disse: “Fariseu cego, primeiro limpe o interior da taça e do prato, e assim o exterior poderá ficar limpo também[10]”.

As epístolas dos Apóstolos também apontam o grande valor do deserto, da hesíquia noética, da purificação interior e da vigilância. Vamos relembrar algumas passagens relevantes.

Depois de se converter a Cristo, o Apóstolo Paulo viajou pelo deserto da Arábia, e ali se arrependeu de seu comportamento anterior[11].

O Apóstolo, que conhecia o repouso interior do nous, aconselhava muito seus discípulos. Percebendo que os Cristãos que estavam unidos a Cristo possuíam também o nous de Cristo, ele escreveu: “Mas nós temos o nous de Cristo[12]”. Em outro trecho, ele exorta: “Deem morte aos seus membros que estão no mundo”. Pela graça de Deus o Apóstolo viu a lei interior de seus membros guerreando contra a lei do nous[13].

Nos ensinamentos dos Apóstolos é dada muita importância à atenção, vale dizer, à vigilância espiritual para evitar que a pessoa seja capturada por um poder maligno exterior. “Por isso não durmamos como os demais, mas vigiemos e estejamos sóbrios (...) nós que somos do dia sejamos sóbrios[14]”. Ele exorta o Apóstolo Timóteo: “Esteja atento a todas as coisas[15]”.

E a respeito da prece ele é claríssimo. A prece deve prosseguir incessantemente nos corações dos Cristãos. “Continuem confiantemente a orar, sejam vigilantes e deem graças[16]”. “Orem sem cessar[17]”.

 O Apóstolo Pedro dá os mesmos mandamentos, mostrando que os membros da Igreja possuem uma vida em comum. “Sejam sóbrios, sejam vigilantes, porque seu adversário o demônio ronda como uma leão que ruge, procurando a quem devorar[18]”.

Todas essas coisas mostram que praticamente todos os Cristãos podem alcançar o repouso e também a visão de Deus. A esse respeito os Padres são absolutos e expressivos.

Pedro Damasceno escreve: “Pois todos os homens precisam dessa devoção e dessa calma, total ou parcial, e sem isso é impossível alcançar a humildade e o conhecimento espiritual”.

Nesse ensinamento de Pedro Damasceno devemos notar as palavras “todos os homens necessitam de devoção e calma”. Se ele se refere assim a todos os homens, mais necessária ainda será essa condição para os monges. É inconcebível que exista um monge que não devote seu tempo em participar da santa hesíquia. Dizemos isso porque sempre existiram ideias diferentes em alguns círculos, especialmente entre aqueles que ao verem monges lutando para adquirir a divina hesíquia, os chamavam de iludidos. Por essa razão aproveitamos a oportunidade para apresentar outras ideias na próxima seção. Outro ponto que deve ser enfatizado é que “sem isso, é impossível alcançar a humildade e o conhecimento espiritual”. Esse é o único métodos e o único caminho para conhecer a Deus, como já mencionamos, de acordo com o ensinamento de São Gregório Palamas.

Algumas pessoas sustentam que a hesíquia, tal como descrita pelos Padres, é inação e que ela não é ação. Na realidade, acontece exatamente o oposto. A hesíquia é uma ação imensa feita na invisibilidade e no silêncio. A pessoa está em repouso e em paz para poder falar com Deus, de modo a obter sua própria liberdade e para receber o próprio Deus. E se considerarmos o fato de que os maiores problemas que nos atormentam são psíquicos e internos, e se pensarmos que a maior parte das moléstias (psicológicas e físicas) se originam da elaboração dos pensamentos, ou seja, da impureza do nous e do coração, poderemos entender o grande valor da hesíquia noética. Portanto, ela é ação e vida. A hesíquia oferece as condições indispensáveis para amar os irmãos desapaixonadamente, para adquirir um amor não egoísta e desinteressado. “Aquele que não é atraído pelas coisas mundanas ama a paz. Aquele que não ama a nada meramente humano ama todos os homens”, diz São Máximo o Confessor. Como pode alguém ter um amor não egoísta, que é um dos objetivos da vida espiritual, se estiver possuído pelas paixões?

Por isso a vida hesiquiasta é uma vida de intensa atividade, mas de uma atividade genuína e boa. “O repouso dos santos não deve ser visto como indolência, mas como uma forma de intensa atividade. Principalmente porque Deus se revela de modo similar em suas relações com os homens. o movimento de Deus em direção aos homens não é apenas um movimento de manifestação, mas também um movimento de revelação. Ele não é apenas a revelação de uma palavra, mas também a expressão da paz. É por isso que o homem, de modo a se aproximar de Deus, não se satisfaz com apenas receber Suas energias reveladas, mas ele também avança para receber em silencio o mistério de Seu desconhecido. Não é o bastante ouvir Sua palavra, mas é preciso avançar para o inaudível de Sua paz. Essa segunda parte conduz à perfeição, e a primeira parte é um pressuposto. De fato, como Santo Inácio observou, apenas ‘aquele que adquiriu a palavra de Jesus pode também ouvir Seu silêncio, de modo a se tornar perfeito’. Por isso o movimento do  homem em direção a Deus não se resume a um movimento de ação, mas é também um movimento de ocultação; ele será não apenas um testemunho de confissão, mas também um testemunho de silêncio e paz”.

Por isso os Padres falam de “repouso frutífero”. Quando praticado corretamente ele oferece uma grande ajuda à pessoa, remodela sua personalidade, renova seu ser e o une a Deus. A partir daí suas relações sociais se corrigem. Quando o homem adquire o amor a Deus ela também adquire o amor à humanidade.


1.2. O Hesiquiasmo

Até agora explicamos o melhor que pudemos no que consiste a hesíquia, quais são as suas características e o quanto ela é indispensável para nossa vida espiritual. Ela é recomendada por todos os Padres como sendo melhor método de purificação e de retorno a Deus. Acima de tudo, conforme apontamos, a Ortodoxia é uma ciência terapêutica que almeja curar as moléstias do homem. Isso nunca deve ser esquecido, porque fazê-lo equivaleria a destruir toda a essência e o conteúdo do Cristianismo. A purificação, como uma precondição necessária à deificação, é alcançada mediante o método da devoção Ortodoxa no qual a hesíquia desempenha um papel importantíssimo.

Todo esse método e mais seu modo de vida são chamados de hesiquiasmo. Vale dizer que a pessoa que luta numa atmosfera de repouso é chamada de hesiquiasta, e esse modo de viver na paz é chamada de hesiquiasmo. Certamente conhecemos o hesiquiasmo como uma movimento teológico do século XIV, representado especialmente por São Gregório Palamas, que emprega um método psicossomático específico e busca, com a ajuda da divina graça, unir o nous ao coração e também viver em comunhão com Deus. São Gregório sustenta que isso acontece no corpo da mesma forma. Ou seja, também o corpo pode adquirir a experiência da vida em Deus. Barlaam, ao contrário, sem conhecer o método, se tornou seu oponente, com o resultado de ter sido finalmente condenado pela Igreja e removido da esfera Ortodoxa. O conflito hesiquiasta, como ficou conhecido, terminou com os Concílios que tiveram lugar em Constantinopla nos anos de 1341, 1346 e 1351. O último desses Concílios, que “justificou” Palamas, proponente da vida hesiquiasta, foi considerado Ecumênico: “Acreditamos que o Concílio de Constantinopla no tempo de São Gregório Palamas em 1351, pode e deve ser contado entre os Concílios Ecumênicos da Igreja Ortodoxa, por não ser de modo algum inferior e pelo significado soteriológico de sua teologia. Esse Concílio constitui a prova da continuidade conciliatória da Igreja Ortodoxa e da experiência viva e da teologia relativa à salvação em Cristo”.

Entretanto, esse movimento hesiquiasta não fez seu primeiro aparecimento no século XIV, mas existiu desde os primeiros séculos da vida da Igreja. Encontramos a hesíquia na Sagrada Escritura e nos primeiros Padres da Igreja. Já mencionamos exemplos dos Padres de todos os séculos da história da Igreja, tais como Santo Inácio, São Basílio o Grande, São Gregório o Teólogo, São Máximo o Confessor, São Thalassius, São João Clímaco, São Simeão o Novo Teólogo e São Gregório Palamas. Este último não foi o introdutor do hesiquiasmo, mas seu expoente, aquele que viveu e expressou toda essa santa viagem da alma. Assim, o hesiquiasmo constitui a forma autêntica da vida Cristã.

Porém, o termo hesiquiasmo é utilizado também para caracterizar o método empregado para concentrar o nous no coração. Esse é um tema muito amplo e eu gostaria de apontar aqui apenas alguns tópicos.

No esforço para ser purificado, o nous “permanece orante no coração”, repetindo sem cessar a prece monológica de Jesus. Ele não é perturbado por muitas palavras. Incessantemente, ele repete o Nome de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, o nous vigia para que os pensamentos não passem pela porta do coração. Assim, conforme diz São Máximo o Confessor, a vigilância está ligada à oração.

“Mas o nous pode penetrar ainda mais profundamente no coração, quando, por um impulso divino, ele se une de tal maneira ao coração que ele se despe de todas as imagens e conceitos, enquanto o coração se fecha contra todo elemento estranho. Então a alma penetra numa ‘escuridão’ de natureza especial, e em seguida ela é considerada digna de permanecer diante de Deus inefavelmente, com um nous purificado”.

Muitos métodos são utilizados para atingir essa concentração e o retorno da divagação do nous ao coração. É essencial que o método que vamos usar esteja combinado com o arrependimento porque de outro modo ele pode degenerar num processo apenas mecânico.

Em seu sermão do Domingo do Fariseu e do Publicano, São Gregório Palamas apresenta a prece do Publicano, o modo como ele reza, como o protótipo da prece hesiquiasta. Ele se refere ao Evangelho: “O coletor de impostos, permanecendo à distância, não podia nem erguer os olhos para os céus, e batia no peito, dizendo: ‘Tem piedade de mim, pecador’[19]”. Interpretando essa passagem, diz que a palavra usada aqui para “permanecer” [makroqen], indica uma longa permanência, juntamente com uma persistência da súplica e das palavras penitenciais. O Publicano diz: “Deus, tem piedade de mim pecador”, e nada mais. “Nem visando nem pretendendo nada além, ele prestava atenção apenas em si mesmo e em Deus, fazendo girar sua prece, apenas multiplicando sua súplica simples, que é o modo mais eficaz de prece”. Podemos ver aqui valor da prece simples “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador”. O hesiquiasta, assim como o Publicano, não pensa em mais nada, mas concentra seu nous nas palavras da prece. Palamas interpreta as palavras de Cristo de que o Publicano “sequer erguia seus olhos para os céus”, como se referindo à figura do hesiquiasta: “Essa permanência era ao mesmo permanência e submissão, e simbolizava não apenas um servo humilde, mas também um condenado”. Por suas maneiras e postura o Publicano mostrava “a correta condenação e a autorreprovação, pois ele via a si mesmo como indigno tanto dos céus como do templo terreno”. O fato de que ele batia no peito também mostra a participação de seu corpo na dor e na tristeza da alma. “Ao bater em seu peito, com extrema compunção, e se apresentando como digno de punição, gemendo com profunda tristeza e inclinando sua cabeça como um condenado, ele se declarava pecador e com fé pedia piedade”.

Parece claro que a parábola do Publicano e do Fariseu foi usada por Cristo, e também por São Gregório Palamas – que interpretou a parábola “hesiquiasticamente”- para apresentar o repouso e a prece como a melhor maneira para receber a misericórdia de Deus. Essa é a prece mais perfeita. É a prece monológica, que contém uma profunda penitência, na qual o corpo, que participa da oração, também receberá a graça de Deus, enquanto a prece toda se desenvolve numa atmosfera de autorreprovação e justa condenação.

Devido ao fato de que Barlaam ridicularizou os hesiquiastas de seu tempo por praticarem uma inclinação de cabeça e do corpo específica para adquirir a concentração do nous e um desenvolvimento uniforme das potências da alma, São Gregório se referiu ao caso do profeta Elias, que orava a Deus com sua cabeça entre os joelhos: “E esse Elias, perfeito na visão de Deus, com sua cabeça entre os joelhos, concentrando assiduamente seu nous sobre si mesmo e sobre Deus, remediou a seca de muitos anos”. Assim, São Gregório recomendava um modo de concentrar o nous: “Para que os olhos não passeiem aqui e ali, mas, de algum modo, se deixem ficar sobre o lado direito do peito ou sobre o umbigo, para enviar o poder do nous, que foi disperso enquanto olhava para fora, de volta para o coração, por intermédio do corpo parado nessa posição”.

Referindo-se ao tema de como orar, São Gregório Sinaíta recomenda: “Pela manhã, sentado num banco baixo, force seu nous a descer da sua cabeça para o coração, e segure-o ali; curvando-se dolorosamente, com dores no peito, ombros e pescoço, clame incessantemente em sua alma e em seu espírito: ‘Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim’”. Ele diz ainda que devemos restringir a respiração de modo a concentrar o nous: “Limite a inalação do hálito para não respirar livremente, porque o movimento do ar, subindo desde o coração, obscurece o nous e ventila a razão, afastando o nous do coração”.

Existem muitos outros testemunhos patrísticos a esse respeito.

Em outra parte São Gregório Sinaíta descreve o método de oração que concentra o nous e que é chamado de hesiquiasmo. “Algumas vezes, e geralmente, por ser cansativo, sente-se num banco; outras vezes, mais raramente, deite-se esticado para relaxar. Ao sentar-se, adote uma postura de paciência, ‘persistindo na oração’. Não se desencoraje com o esforço laborioso, mas trabalhe em seu coração e dirija seu corpo, buscando o Senhor em seu coração. Por todos os meios, obrigue-se a esse trabalho. Pois para contemplar, disse o Profeta, ‘as dores me assaltaram como as dores da mulher em trabalho de parto’. Mas inclinando-se para baixo e reunindo seu nous em seu coração, desde que este já se encontre aberto, chame pelo socorro do Senhor Jesus. Mesmo que seu ombros estejam fracos e sua cabeça doa, persevere nessas coisas com diligência e amor, buscando o Senhor no seu coração. Pois ‘o Reino dos Céus sofre violência, e são os violentos que o tomam à força’. Com essas palavras o Senhor nos mostrou como devemos realmente perseverar nessa obra. Pois a paciência e a perseverança em todas as coisas gera os trabalhos tanto do corpo como da alma”.

Devemos enfatizar o fato de que o valor da hesíquia noética, a prece incessante, a repetição da prece monológica de Jesus, o modo específico de concentrar o nous e uni-lo ao coração, a postura do corpo durante a oração e o confinamento dos sentidos, o ensinamento de que a graça de Deus é incriada e de que a pessoa pode recebê-la em seu coração, que a luz do Tabor está acima do conhecimento humanos e nunca “inferior ao pensamento”, todas essas coisas definem aquilo que é chamado de hesiquiasmo, que foi “justificado” pelo Concílio de Constantinopla; consequentemente, quem falar contra essas coisas não apenas não estará mais dentro da tradição Ortodoxa, como ainda estará criando as condições para ser cortado da própria vida Ortodoxa.


1.3. O anti-hesiquiasmo

Uma vez que falamos rapidamente sobre o que é a hesíquia, sobre o que é o hesiquiasmo e sobre como o hesiquiasmo foi confirmado pelo Sínodo que é corretamente chamado de Ecumênico, vamos agora lançar um breve olhar sobre os métodos anti-hesiquiastas de conhecer a Deus e sobre o modo de vida anti-hesiquiasta, que infelizmente prevalece em nossos dias e que nos mostra que estes são realmente dias maus.

“A hesíquia sempre recebeu antagonismo, especialmente no Ocidente. Por falta da necessária experiência, seus oponentes argumentam de modo abstrato e chegam ao ponto de ver nessa prática algo puramente mecânico, um tipo de técnica espiritual que conduz a uma visão do Divino”.

Infelizmente esse modo de vida Ocidental chegou a influenciar a própria Grécia, de modo que temos hoje uma séria distorção da tradição Ortodoxa. Para ser exato, muitas pessoas afirmam que nós mudamos pelo espírito Ocidental, e elas identificam essa mudança em diversos outros aspectos, tais como os usos e costumes. Eu creio, porém, que a maior mudança aconteceu na questão da hesíquia e do hesiquiasmo. A hesíquia é vista como um método antiquado, como uma vida de inatividade, inadequada para os nossos dias, para nossa era de ação. Infelizmente, essas concepções prevalecem mesmo entre pessoas que desejam viver dentro da tradição Ortodoxa. Nosso tempo é um tempo de ação. “O mundo contemporâneo não é um mundo de anamnese e paz, mas um mundo de ação e luta”. Numa época como a nossa, hedonista e autogratificante, o hesiquiasmo não consegue encontrar eco. Está acontecendo aquilo que São João Clímaco disse: “O peixe se desvia rapidamente do anzol; e alma passional se desvia da solidão”. Uma época que ama o prazer é por completo anti-hesiquiasta. Uma monja me disse que em nossos tempos sopra “um vento quente anti-hesiquiasta” que queima tudo. Creio que essa visão é absolutamente verdadeira: esta é a realidade contemporânea. A atmosfera que prevalece hoje é muito mais a de Barlaam do que a de São Gregório Palamas.

Hoje em dia a teologia vem sendo desenvolvida através de elaborações lógicas. Ela se tornou nada além de um sistema lógico. Ela não é mais fruto da hesíquia e da participação em Deus. É por isso que apareceram tantas diferenças no pensamento e nas perspectivas teológicas. Hoje em dia a amior parte de nós não vive a teologia como uma ciência terapêutica, como eu disse anteriormente. Já não reconhecemos o caminho da devoção Ortodoxa. Se lermos a Filocalia, onde se encontram os textos mais representativos relativos ao método da teologia, poderemos ver que a maior parte deles fala da cura das paixões. Eles não fazem análises, nem de detêm a apresentar os estágios elevados, mas ao mesmo tempo eles descrevem os meios que devemos empregar para sermos curados das paixões. Acredito que existe uma falha fundamental na teologia contemporânea, que consiste em não se interessar pela Filocalia. Talvez devesse se introduzida uma cátedra especial para introduzir o ascetismo e o hesiquiasmo, baseada nos textos da Filocalia.

Além dessas coisas, é preciso uma experiência pessoal do método da teologia Ortodoxa, tal como descrito nos textos patrísticos.

O que o Arquimandrita Sofrônio diz é muito característico, quando ele mostra a diferença entre a teologia conjectural e aquela que acontece em Deus: “A menos que o coração tenha sido purificado é impossível atingir uma contemplação real. Somente um coração purificado é capaz dessa veneração especial e desse maravilhamento diante de Deus que coloca o nous num silêncio jubiloso”.

“O pensador teológico almeja a theoria por um caminho, o monge asceta por outro. O principal objetivo do monge é o de alcançar a paz da oração no coração, com o nous livre de reflexões, mantendo uma serena vigilância como uma sentinela para ter a certeza de que nada que venha de fora penetre no coração. Onde existe esse sagrado silêncio, o coração e o nous se nutrem do Nome de Cristo e de Seus mandamentos. Eles vivem como um, controlando todos os acontecimentos desde dentro, não por meio de uma investigação lógica, mas de modo intuitivo, por uma sentido espiritual específico”.

“Assim que o nous se une ao coração ele consegue ver todos os movimento no domínio do subconsciente (utilizamos aqui esse termo de um modo convencional a partir da psicologia científica contemporânea). Enquanto o nous habita no coração ele percebe as imagens e o pensamentos que o rodeiam provenientes da existência cósmica, que tentam capturar o nous e o coração. O ataque dos pensamentos intrusos é feroz. Para diminuir sua investida o monge é obrigado durante todo o dia a não admitir uma única consideração passional, nem se permitir predileção de nenhum tipo. Seu objetivo constante é o de reduzir o número de impressões externas ao mínimo. De outro modo, no momento da prece noética todas as impressões do dia se agitarão desordenadamente em seu coração, causando uma enorme perturbação”.

“O propósito do monge é adquirir uma vigilância contínua do nous no coração; e quando, após longos anos de esforço – que é a mais difícil de todas as práticas ascéticas, pior do que qualquer outra – o coração se torna mais sensível, enquanto o nous, depois de tantas lágrimas, recebe a força para expulsar p menor sinal de pensamento passional, então o estado de oração da pessoa pode continuar ininterruptamente, e o sentimento de Deus, presente e ativo, se torna poderoso e claro”.

A teologia Ortodoxa precisa estar embebida desse método hesiquiasta para ser realmente Ortodoxa e não acadêmica. Esforços têm sido feitos nessa área. Mas o problema permanece essencialmente. Será que a teologia contemporânea fala em lágrimas, tristeza, humildade e autorreprovação? Ela pode ser vista como uma caminho para o conhecimento de Deus “capaz de deter o nous e o mundo, esquecendo-se das coisas, deixando de lado o entendimento por aquilo que é o melhor?”. Será que ela pressupõe que para atingirmos a comunhão com Deus “devemos abandonar tudo o que é sensorial, juntamente com as sensações, elevando-nos acima dos pensamentos e raciocínios, do conhecimento e do próprio pensamento, totalmente envolvidos na energia da sensação espiritual, que Salomão chamou de sentido do divino, e em busca do desconhecido acima do conhecimento, ou seja, acima de toda forma da assim chamada filosofia”?

Ei acredito que, ao contrário, a teologia contemporânea é conjectural, racionalista. Ela é baseada na “riqueza”, que é a razão. O que diz o Arquimandrita Sofrônio é característico: “Outro tipo de imaginação sobre a qual queremos falar, é a tentativa da inteligência de penetrar o mistério da existência e aprender o mundo Divino. Esse esforço inevitavelmente envolve a imaginação, para a qual muitos estão inclinados a atribuir o rótulo exagerado de inspiração divina. O asceta, que se devota ao ativo silêncio interior e à prece pura, combate resolutamente esse impulso ‘criativo’ dentro de si mesmo porque ele o vê num ‘processo’ contrário à verdadeira ordem da existência, em que o homem ‘cria’ a Deus à sua própria imagem e semelhança”.

O Arquimandrita Sofrônio escreve ainda: “O teólogo que é um intelectual constrói seu sistema como um arquiteto constrói um palácio ou uma igreja. Conceitos empíricos e metafísicos são os materiais utilizados, e ele está mais preocupado com a magnificência e a simetria lógica de seu edifício ideal do que em sua conformidade com a verdadeira ordem das coisas. Por estranho que pareça, muitos grandes homens foram incapazes de resistir a essa vulgar tentação, cuja causa oculta é o orgulho. A pessoa se liga aos frutos da inteligência como uma mãe ao filho. O intelectual ama a sua criação como a si mesmo, se identifica com ela,  acabando por se encerrar nela. Quando isso acontece, nenhuma intervenção humana será capaz de ajudá-lo – se ele não renunciar àquilo que ele acredita ser seu tesouro, ele jamais alcançará a prece pura e a verdadeira theoria”.

Isso é uma teologia Barlaamita e não uma teologia Ortodoxa e Palamita.

Da mesma forma, existe hoje um preconceito contra a prece de Jesus e o modo como ela deve ser dita. Certamente devemos dizer que temos um florescimento da oração, de esforços para publicar os trabalhos dos Padres e os escritos sobre a oração, mas ao mesmo tempo se observa que as pessoas são ignorantes dessas coisas e são incapazes de se aproximar de uma vida de oração. Muitas das leituras são feitas para star na moda. E ainda vemos homens que se dizem “espirituais” ridicularizando a vida hesiquiasta, ou, o que é pior, prevenindo as pessoas sob sua influência de se engajar nessas coisas. A visão de que “essas coisas não são para nós”, e coisas assim, é recorrente. Muitos pensam que para as pessoas bastam alguns minutos pela manhã e à noite para dizer uma prece improvisada, ou que ler alguns trechos de passagens escolhidas é suficiente. Ainda por cima, até a santa atmosfera da hesíquia, ou seja, a compunção, a autorreprovação e a tristeza, são vistas como inadequadas para os leigos, em contraste com o que os Padres diziam, como vimos.

Pior do que tudo é o fato de que essa atitude “mundana”, a vida anti-hesiquiasta, está dominando mesmo os monges e invadiu os mosteiros, que se supõe serem “escolas dedicadas a Deus”, escolas médicas onde a ciência médica deveria ser ensinada. Uma atitude mental prevalece, no sentido que essas coisas devem ser conhecidas, mas elas não são para nós! Eu conheço pessoalmente monges “proeminentes”, responsáveis pela orientação de jovens monges Ortodoxos, que descrevem os temas relacionados com a vida hesiquiasta como “fábulas”, que não são dignas de que se fale delas, que são pura ilusão!

Isso realmente é triste. “A hesíquia desde o início foi a marca da vida monástica Ortodoxa. O monaquismo Ortodoxo é ao mesmo tempo um hesiquiasmo”.

Afortunadamente, ainda podemos ver algumas tentativas de retorno aos Padres. E com isso queremos dizer viver a vida dos Padres, em especial a vida hesiquiasta. Existem muitos jovens desencantados com o clima contemporâneo de luta e angústia, de ação sem descanso e missão sem silêncio, que se voltam para a vida hesiquiasta e começam a ser nutridos por ela. Muitas pessoas com esse desejo estão vindo para o monaquismo e voltando a viver das fontes dos santos Padres, que é a tradição Ortodoxa. Mesmo no mundo, centro de vida em paz estão sendo criados.

Essa vida deve ser desenvolvida e incentivada também nas cidades, é assim que eu vejo a organização da Igreja e da vida paroquial. Assim poderemos chegar a entender que a Igreja é o lugar onde as almas podem ser curadas – mas também é o lugar de uma teofania. Dentro da purificação surge o conhecimento de Deus, a visão de Deus. Talvez cada pessoa deva cultivar a prece de Jesus com suas melhores habilidades, e essa prece se tornará a mestra de toda a sua vida espiritual. Ela pode nos ensinar quando falar e quando calar, quando interromper a oração para ajudar o irmão e quando continuá-la, quando pecamos e quando recebemos as bênçãos de Deus. E devemos também lutar para ter e conservar um nous puro.

A exortação de São Thalassius deve se tornar uma regra de vida: “Prenda seus sentidos na cidadela da hesíquia para que eles não envolvam o nous em seus desejos”.

As palavras de São Gregório Palamas que anotamos no começo devem ser vistas como o objetivo básico da vida: “É necessário guardar silêncio para entrarmos em puro contato com Deus e para minimizar qualquer ilusão da alma”.

Devemos estar conscientes de que a hesíquia “é realmente a verdadeira e infalível maneira de se viver em Deus, conforme nos foi transmitida pelos Padres”, conforme as palavras de Calixto e Inácio Xanthopoulos.

Eu gostaria de terminar essas palavras sobre a hesíquia com o ensinamento de Calixto e Inácio Xanthopoulos: “Esse caminho, essa vida espiritual em Deus, essa prática sagrada do verdadeiro Cristianismo constitui a verdadeira e genuína vida secreta em Cristo. O dulcíssimo Jesus, o Deus-Homem, deixou esse caminho e lhe entregou Sua misteriosa guia; os divinos Apóstolos o percorreram, assim como todos depois deles. Desde o princípio, desde a primeira vinda de Cristo à terra até o nosso  tempo, nossos gloriosos mestres, que o seguiram, brilharam como lâmpadas sobre o mundo com a radiação de suas vivificantes palavras e de suas maravilhosas ações, transmitiram uns aos outros até os nossos dias essa boa semente, essa bebida sagrada, essa pedra preciosa, a herança divina dos Padres, esse tesouro enterrado no campo, essas bodas do Espírito, esse símbolo real, essa fonte de água da vida, esse fogo divino, esse sal precioso, esse dom, esse selo, essa luz. Essa herança continuará a ser transmitida de geração em geração, desde o nosso tempo, até a segunda vinda de Cristo. Pois é verdadeira a promessa que Ele fez: ‘Eu estarei sempre com vocês, até o final do mundo’. Amém”.



[1] Romanos 7: 23.
[2] Mateus 4: 1.
[3] Mateus 14: 13.
[4] Mateus 14: 23.
[5] Marcos 6: 30-31.
[6] Lucas 6: 12.
[7] Mateus 6: 6.
[8] Mateus 36: 41.
[9] Lucas 5: 22.
[10] Mateus 23: 26.
[11] Gálatas 1: 17.
[12] I Coríntios 2: 16.
[13] Romanos 7: 23.
[14] I Tessalonicenses 5: 6-8.
[15] II Timóteo 4: 5.
[16] Colossenses 4: 2.
[17] I Tessalonicenses 5: 17.
[18] I Pedro 5: 8.
[19] Lucas 18: 13.