sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Vladimir Lossky - Teologia Dogmática - Capítulo VI

Capítulo VI

A obra do Espírito Santo

1.       Economia do Filho e economia do Espírito Santo

A obra de Cristo deve ser situada na economia geral do Verbo. Ela representa, em relação à criação operada pelo Verbo, uma verdadeira recriação. Mais exatamente, como o Verbo encarnado já não age ex nihilo, mas a partir da carne da história humana, devemos aqui repetir o que dizia Santo Irineu: trata-se de uma “recapitulação”: Cristo retoma sobre si a humanidade perdida, torna-se seu chefe, e, como tal, a recria restaurando a natureza humana. Enfim, ele introduz no próprio seio da Trindade essa natureza deificada, ao mesmo tempo primícias e germe da transfiguração do cosmo.

Este, podemos dizer, passa a existir daí em diante segundo dois modos: um, relativamente ilusório – conforme esse paradoxo da “existência da não-existência” de que fala São Gregório de Nissa a respeito do mal[1] – e outro, que é o único verdadeiramente real. Enquanto corpo do Primeiro Adão, ele permanece submetido à vaidade, vale dizer, à separação e à morte. Mas enquanto corpo do Segundo Adão, suas primícias repousam à direita do Pai, no esplendor da divindade. Em Adão, nós somos consubstanciais ao pecado, entregues à angústia “noturna” da existência meônica; em Cristo, somos consubstanciais a Deus, participamos da obra da nova criação, na qual nada mais nos separa de Deus.

O papel do Espírito Santo é justamente o de reduzir essa dualidade, que dá à vida do cristão um caráter doloroso e às vezes dramático, com nossa livre colaboração, pois se trata de uma “sinergia”, que deve permitir a cada um tomar consciência de seu pertencimento ao Corpo deificado do Verbi, a fim de que o real absorva o ilusório, e o Segundo Adão absorva o Primeiro. O tempo da Igreja é feito dessa kenosis do Espírito Santo em relação com a liberdade humana, dessa paciência do Criador que ainda dispensa à humanidade a manifestação de seu amor, para que o fogo desse amor, quando irradiar sem medida, restaure, ao invés de consumir, o maior número de himens possível. O tempo da Igreja é, portanto, o tempo da paciência do Espírito e da tomada de consciência do homem. Pois a história em Cristo está terminada.

Não apenas Cristo recapitulou toda a história humana desde a queda, como ele a realizou plenamente. A Ressurreição preenche nossa espera. A natureza antropocósmica está deificada. A Parúsia está cumprida, pois esse termos, não o esqueçamos, não significa só espera, mas presença.

A Igreja é ao mesmo tempo o Corpo de Cristo e o Templo do Espírito Santo, a presença da eternidade e o tempo como tomada ou recusa de consciência de parte dos homens. A história da Igreja, coração e sentido da história humana, e assim eminentemente escatológica. Na Páscoa, participamos de um evento que se produziu de uma vez por todas, mas também da restauração final que a mesma vitória sobre a morte operará. Ora, cada domingo, cada dia, cada instante podem comunicar ao cristão a consciência da ressurreição, a da Páscoa e a do cosmo, que são indissociáveis.

Assim, na Igreja, o tempo e a eternidade se unem misteriosamente num tempo deificado. É por isso que é tão difícil escrever uma verdadeira história da Igreja (portanto, uma verdadeira história da humanidade), pois o historiador deveria mostrar ao mesmo tempo os aspectos temporais e eternos dos acontecimentos. O mais comum é que ele sobrecarregue com os restolhos mortos do tempo, e negligencie a única realidade que não passa, ou seja, a santidade. Ademais, a santidade aparente é rara e a santidade oculta escapa à investigação. Ora, talvez toda a história do mundo tenha dependido da prece de um santo desconhecido. E quando o historiador é descrente, ou seja, cego para a santidade, o tempo deificado, e portanto a realidade profunda da Igreja, lhe escapa totalmente.

A Antiguidade pré-Cristã, como ainda hoje a Índia e alguns povos primitivos, apresentam uma concepção cíclica do tempo, como que uma repetição perpétua: o tempo se renovaria regularmente pela representação litúrgica de um estado paradisíaco original; e, no contexto desses conhecimentos, esse retorno indefinido se torna o signo de uma condição ilusória e morna – “nada de novo sob o sol”, como dirá o Eclesiastes – da qual é preciso se libertar justamente pela reintegração a uma plenitude original. Ao contrário, nos profetas bíblicos, afirma-se a concepção linear do tempo que tende para o futuro; aqui, o presente não tem sentido senão em relação a um evento futuro que dará ao tempo sua realização e seu valor.

O tempo cristão ultrapassa e integra essas duas concepções da temporalidade. A nostalgia paradisíaca dos antigos é preenchida pela recapitulação cristológica que reabre ao homem o paraíso, ao qual os Padres assimilam a Igreja. Mas existe mais do que o Paraíso em Cristo (e, portanto, em sua Igreja): ali está desde logo a deificação da natureza antropocósmica. E no cristianismo a repetição litúrgica não constitui um impotente retorno às origens, mas o ritmo desse tempo deificado, por meio do qual o Espírito ao mesmo tempo vela e revela ao homem, para permitir a este uma livre assimilação, a plenitude teândrica da Igreja. Da mesma forma, o tempo dos profetas se reencontra na espera da Parúsia, mas essa espera já não é a tensão de um presente vazio em direção a um futuro, mas o lento amadurecimento de um presente por demais pesado. O tempo já não é a fé que ousa se tornar esperança, mas a esperança que ousa se tornar consciente do amor. Depois da cruz e da ressurreição, nada mais pode nos separar do amor de Cristo, nem os demônios, nem os anjos: “Sim, estou certo de que nem morte nem vida, nem anjos nem principados, nem presente nem futuro, nem poder nem altura, nem profundidade, nem seja lá o que for de criado poderá nos arrancar do amor que Deus nos demonstra em Cristo Jesus nosso Senhor[2]”. o sangue de Cristo lava continuamente nossos pecados: seu sacrifício libertador não é um evento passado, mas uma realidade eternamente atual. Nossa natureza recapitulada pelo Filho, acolhida em sua hipóstase, recebe agora a filiação divina. Consubstancial ao Pai pelo fogo da divindade, consubstancial a nós pelo sangue da humanidade, o Filho único faz de nós seus irmãos e nos concede o “Espírito de adoção”: “Vocês receberam o Espírito de adoção que nos faz clamar: Abba, Pai! O próprio Espírito se junta ao nosso espírito para atestar que somos filhos de Deus. Filhos, portanto, herdeiros; herdeiros de Deus e coerdeiros de Cristo, porque sofremos com ele para sermos também glorificados com ele[3]”. Essa herança, a divindade que não possuímos por natureza, é nossa desde a Encarnação: nós devemos nos tornar conscientes dessa riqueza deixando o Espírito se unir ao nosso espírito, permitindo que a graça deificante nos confira a filiação.

Assim é que nossa santificação, que é obra do Espírito, é inseparável da obra redentora de Cristo. Simultânea e separadamente, o Filho e o Espírito foram enviados à terra. Já entre os profetas do Antigo Testamento, a obra do Messias – liberar Israel de seu cativeiro – aparecia inseparável da profusão do Espírito, de uma milagrosa extensão da profecia a todo o povo. Joel descreveu em termos escatológicos a libertação messiânica de Israel, simultaneamente à efusão prodigiosa do Espírito: “Eu derramarei meu Espírito sobre toda carne, e seus filhos e filhas profetizarão, seus anciãos terão sonhos e os jovens terão visões; mesmo sobre os servos e servas nesses dias eu derramarei meu Espírito[4]”.

A chegada do Messias, a efusão do Espírito e o final dos tempos se tornaram entre os últimos profetas realidades complementares.

Ora, aquele no qual se cumprem os tempos disse: “Eu vim lançar fogo sobre aterra, e como eu queria que já estivesse aceso![5]”. E: “Aquele que crê em mim, de seu seio jorrarão rios de água viva[6]”. E João comenta: “Ele dizia isso do Espírito que deveriam receber aqueles que cressem nele[7]”. De fato, no corpo da Igreja – ou seja, na humanidade resumida por Cristo – os membros se tornam capazes de receber a graça, essa graça perdida no momento do primeiro pecado. Esse retorno à graça, ainda mais glorioso que o estado paradisíaco por implicar nossa incorporação ao Filho, realiza a “promessa do Pai”: “Ele lhes prescreveu que não se afastassem de Jerusalém, mas que aguardassem ali a promessa do Pai [...] pois [...] em poucos dias, vocês serão batizados no Espírito Santo[8]”. Jesus havia anunciado assim o Espírito: “É o Consolador, o Espírito Santo que meu Pai enviará em meu Nome, que lhes ensinará todas as coisas e lhes lembrará tudo o que eu lhes disse[9]”. E ainda: “Quando vier o Consolador que eu lhes enviarei desde junto de meu Pai, ele lhes dará testemunho de mim[10]”. Assim é que o Espírito que procede do Pai é enviado pela mediação do Filho. É por Cristo, e em seu Nome, que ele nos foi concedido. Num mesmo movimento, o Espírito se dá e é dado pelo Pai e pelo Filho, ao mesmo tempo em que procede exclusivamente do Pai pela diversidade absoluta da Trindade. Com efeito, uma espécie de reciprocidade une no plano da economia o Filho e o Espírito: é pelo Espírito que o Filho se encarna, e o Espírito não cessa de acompanhá-Lo durante sua vida terrestre: é Ele que o leva ao deserto onde Ele encontrará o tentador, e é por Ele que Cristo expulsa os demônios. Mas, enquanto que o Filho se encarna, a natureza do Espírito permanece não aparente: e ao contrário, ele se manifesta no Pentecostes, quando Cristo, tendo encerrado sua missão, envia as línguas de fogo sobre a Igreja.

Assim, para recordarmos dois adágios patrísticos, não apenas “Deus se fez homem para que o homem se torne deus[11]”, como ainda “Deus se tornou portador da carne (“sarcóforo”) para que o homem se tornasse portador do Espírito (“pneumatóforo”)[12]”.


2.       A descida do Espírito Santo e a graça do Pentecostes

A “promessa do Pai” é o Espírito Santo. “Vocês serão batizados pelo Espírito, diz Cristo aos Apóstolos, pois João Batista batizava na água, mas eu batizo no Espírito Santo[13]”.

Entre a Ressurreição e a Ascensão, o próprio Cristo modelou sua Igreja sobre a terra e, durante os dez dias misteriosos que se passaram a seguir, o chefe da Igreja terminou no céu o sacrifício que cumprira sobre a terra. Mas somente a descida do Espírito no Pentecostes constituiu plenamente a Igreja.

O momento pneumatológico é, de fato, tão importante quanto o momento cristológico. A vinda do Espírito não é apenas o acabamento da Encarnação. Esta restaurou a natureza humana, o corpo do “homem único” que a Igreja irá constituir daí por diante. Mas a força de vida que preenche esse corpo deificado não pode se impor automaticamente à liberdade humana; esta deve se abrir para a vida divina por meio de uma evidência interior, por uma convicção íntima. Cristo renovou o homem único; mas é preciso que cada hipóstase desse corpo possa assumir livremente essa renovação. Pois a Igreja não é apenas o Corpo de Cristo, ela é também sua esposa, consubstancial embora outra. E esse mistério da Igreja, que veneramos eminentemente na Santa Virgem, primeira pessoa humana integralmente santificada, é também o mistério de cada cristão, na medida em que a vida cristã consiste em personalizar, a “enipostasiar” livremente, poderíamos dizer, a natureza renovada da Igreja. Cada membro do Corpo de Cristo deve receber o “fogo da transformação”, para usarmos as palavras de Diádoco de Foticéia[14], ou seja, a graça incriada como princípio da deificação pessoal. Esse mistério pessoal e nupcial da Igreja, não em seu corpo cristificado, mas em seu rosto, vale dizer, no rosto único de cada cristão: este é o significado do Pentecostes. É esse significado pneumático do Pentecostes que o catolicismo romano esqueceu em grande parte. Ele vê na descida do Espírito Santo sobretudo o milagre das línguas, símbolo da expansão missionária do Corpo de Cristo. Mas o sentido integral do Pentecostes é a restituição na pessoa humana da graça que Adão não conseguiu conservar. O próprio Espírito vem habitar no homem, e a Crisma completa o Batismo, como a obra do Espírito completa necessariamente a de Cristo.

Quando falamos da Igreja, estamos evocando, não a unidade abstrata de uma coletividade, mas a unidade viva de um corpo. O membro de uma coletividade é um indivíduo, mas um corpo se exprime num rosto: aqui na diversidade absoluta dos rostos, na plenitude de cada destino pessoal. A pessoa não pode, portanto, ser apenas membro do corpo de Cristo, coisa que arriscaria abolir sua unicidade; ela deve ser também sua livre hipóstase, ela deve, pela unção do Espírito, tornar a si mesma um “cristo”, unir também ela as duas naturezas – ou antes, a natureza humana com a energia da natureza divina – mas dessa vez na unidade de uma pessoa criada. Na Igreja, assim como na Trindade, a natureza una não pode se manifestar senão na diversidade das pessoas, pois a Igreja, como não cessam de repetir os Padres, é uma imagem da Trindade, uma revelação da vida divina. Essa vida é uma vida de amor, e a Igreja não conhece, ao contrário das sociedades humanas, oposição entre individual e coletivo.

A pessoa se realiza pelo dom: ela não possui uma fração da natureza, mas, entregando tudo o que ela tem aos outros e recebendo dos outros tudo o que eles têm, ela finalmente é a totalidade da natureza. O homem renuncia a tudo e recebe tudo. A unidade do “homem único” não é uma fusão, mas a livre comunhão das pessoas. Eu descubro que existe um único homem, um só corpo, não me deixando absorver pelo outro, nem tentando absorvê-lo, tampouco começando por abolir a ambos numa essência transindividual, mas na graça do abandono e do acolhimento, na transparência dos únicos. E, como essa comunhão não existe senão por e para aquele que se assimila a Deus, a unidade da Igreja não possui outro fim do que a deificação de cada um. Por conseguinte, dentro de uma perspectiva ortodoxa, ninguém deve servir de instrumento à Igreja. Nenhum benefício para a Igreja pode ser adquirido em detrimento de uma alma; a comunhão se manifesta externamente, se objetiva, a partir do instante em que ela se serve de alguém, que ela se impõe a alguém, que ela não consegue ser unânime pela livre convicção de cada um.

A unidade se realiza, portanto, no Corpo de Cristo, a unicidade na graça do Espírito Santo. A Igreja, enquanto Corpo de Cristo, constitui uma única natureza humana “enipostatizada” por uma pessoa divina. A Igreja, enquanto esposa de Cristo, é uma diversidade absoluta de pessoas humanas enipostatizando a graça do Espírito. Nisso consiste a harmonia de uma unidade diversa: eu recebo pessoalmente o dom do Espírito, mas devo vivê-lo por todos, transfigurar por meio dele a natureza antropocósmica; e o Espírito Santo não pode ser comunicado a mim a menos que eu seja membro do Corpo. Inversamente, a unidade da natureza antropocósmica em Cristo não pode se completar senão pela descida do Espírito Santo sobre cada pessoa: pelo Espírito, cada pessoa recebe a verdade, não de fora, mas como uma convicção interior. A vida espiritual, para a Ortodoxia, não é a do espírito humano, mas a vida do Espírito em nós e a nossa vida no Espírito Santo. Ora, o Espírito Santo não pode fazer outra coisa do que tornar evidente para nós a divindade de Cristo e, nos “afiliando” ao Pai por intermédio do Filho, nos fazer clamar: “Abba, Pai”. A unidade da Igreja se reporta à da Trindade.

É por isso que, no Pentecostes, não existe uma só chama, mas muitas, uma para cada pessoa. A multiplicidade maligna é abolida na unidade de Cristo, e esta se derrama numa diversidade comunicante, na irradiação, cada vez única, dos “pneumatóforos”: “E eles viram aparecer línguas separadas, semelhantes ao fogo, que se colocaram sobre cada um deles[15]”. Deus não conhece coletividade sem rosto. No Reino, escreve São Simeão, Cristo é tudo em cada um, o acolhe, fala com ele e ao mesmo tempo olha e recebe milhares de eleitos[16].

O objetivo da vida cristã, dizia São serafim de Sarov, é a aquisição do Espírito Santo[17]. Adquirir o Espírito consiste em se abrir para a energia divina que ele nos comunica. A graça não é um habitus a preservar, um estado produzido na alma por uma causa exterior à pessoa: é a vida divina que brota do mais íntimo de nós mesmos. O Espírito Santo está sempre presente em nós, mas nós podemos nos desviar de sua irradiação: “Pois jamais Te furtaste a ninguém, lhe diz São Simeão o Novo Teólogo, mas somos nós que nos escondemos de Ti, tentando não caminhar contigo[18]”. Devemos assim procurar pela graça sempre presente, pois está escrito: “Procurem, e acharão[19]”.

Com o Espírito, é toda a Trindade que faz sua morada em nós, pois o Pai e o Filho são inseparáveis da divindade do Espírito Santo. “Nós recebemos o fogo da divindade, que não somos capazes de suportar, diz o Novo Teólogo, o fogo do qual o Senhor disse: ‘Eu vim lançar fogo sobre a terra[20]’. Que outro fogo, senão o do Espírito, consubstancial ao Filho por sua divindade, do Espírito Santo junto com o qual o Pai e o Filho penetram em nós e podem ser contemplados?[21]”. Mas é o Espírito que nos comunica a divindade, é por ele que brilha a energia divina: por Ele recebemos a força, a vida, a alegria – pois a raça não é outra coisa do que a alegria –, a emanação perpétua e luminosa da natureza divina.

É preciso, assim, distinguir em ter o doador, o Espírito, e o dom, que é a graça. A força incriada da divindade procede do Pai pelo Filho e nos é dada pelo Espírito. Este é verdadeiramente pura generosidade, pessoa secreta que se oculta no próprio gesto do dom, porque não o podemos identificar nem na origem, nem no uso daquilo que ele dá. Pois ele dá a vida comum às três pessoas que se originam no Pai, e o faz de tal maneira que nos permite apropriarmo-nos dela inteiramente. O doador permanece invisível para nós, imperceptível: essa é a kenosis do Espírito. Se o doador fosse indelicado e se colocasse em evidência, o homem não se sentiria possuidor de sua graça, e a vontade de Deus permaneceria externa a ele. A exinanição do Espírito Santo faz brotar a graça no mais íntimo de nosso ser, no modo mais livre de nossa liberdade: tal como um raio que se lança do sol para se tornar nossa própria luz, ao mesmo tempo em que continua a iluminar o universo. Por meio desse mistério, da apropriação da graça, o oceano da divindade se torna verdadeiramente presente em nós. Recebemos então como “herança de filhos” tudo o que Deus possui por natureza. Sabemos que essa natureza não é nossa, mas que nos foi dada plenamente; ela me pertence, mas já não sou eu, eu devo primeiro me abrir para essa minha realidade que me ultrapassa, me afogar alegremente nesse oceano do qual jamais alcançarei os limites.

O Filho, em sua kenosis, se revelou pessoa, mas dissimulando sob a “figura de um escravo” sua natureza divina. Dessa forma ele pôde recapitular a natureza humana decaída e resgatá-la. O Espírito, por uma economia complementar, manifesta sua natureza divina, mas dissimula sua pessoa. Assim ele pode fazer com que as pessoas humanas se apropriem dessa divindade atrás da qual ele se esconde. Sua obra está centrada sobre cada pessoa, como se ele não quisesse ter outra hipóstase além dela, como se ele quisesse que cada um emprestasse seu próprio rosto à divindade que recebe. Pois a graça do Espírito Santo, diz São Macário em suas homilias, está de tal modo próxima de nós, que ela se parece ao fermento na massa, e parece não se distinguir de nossa própria natureza[22].



[1] Gregório de Nissa, Discurso catequético VII, 40.
[2] Romanos 8: 38-39.
[3] Romanos 8: 16-17.
[4] Joel 3: 1-2.
[5] Lucas 12: 49.
[6] João 7: 38.
[7] João 7: 39.
[8] Atos 1: 4-5.
[9] João 14: 26.
[10] João 15: 26.
[11] Irineu de Lyon, Contra as heresias V, Prefácio; Atanásio de Alexandria, Sobre a Encarnação do Verbo, 54, 3; Gregório de Nazianze, Poemas dogmáticos, 10; Gregório de Nissa, Discurso catequético XXV; Agostinho de Hipona, De doctrina christiana I, 34, 38.
[12] Pseudo-Atanásio (Marcel de Ancira), De incarnatione et contra arianos.
[13] Atos 1: 5.
[14] Diádoco de Foticéia, Obras espirituais, 67.
[15] Atos 2: 3.
[16] Simeão o Novo Teólogo, Tratado ético III, 326-332.
[17] Serafim de Sarov, Entrevista com Motovilov, 2.
[18] Simeão o Novo Teólogo, Prece Mística, Introdução aos Hinos.
[19] Lucas 11: 9.
[20] Lucas 12: 49.
[21] Simeão o Novo Teólogo, Tratado ético I, 10, 46-51.
[22] Pseudo-Macário, Homilias espirituais 8, 2.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Vladimir Lossky - Teologia Dogmática - Capítulo V

Capítulo V

Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem

1.       A encarnação

No prólogo de São João, que se refere a um tempo a Cristo e à Trindade,  ressoa o versículo 14 da grande certeza cristã, aquela mesma que o jovem Agostinho buscou em vão na filosofia de Plotino: “O Verbo de fez carne”.

Tudo o que conhecemos da Trindade conhecemos pela Encarnação, sublinha São João. A Revelação se consuma quando uma pessoa divina, a do Filho de Deus, se torna filho do homem e “habita entre nós[1]”. Claro, o pensamento não cristão muitas vezes pressentiu o mistério do número três, mas através da ambiguidade de símbolos ambíguos, e a plena Revelação da Trindade exigia a Encarnação. A partir daí, o Antigo testamento se revela trinitário, o mestre do universo aparece como Pai, e o homem, contemplando a glória que um “Filho único[2]” recebeu do Pai, vê abrir-se a natureza divina: a teologia como contemplação do próprio Deus se torna possível

O Logos sarx egeneto’: “o Verbo se fez carne[3]”. Aqui começa a economia própria do Filho que entra na história do mundo. A “carne”, com efeito, é o limite último da “humanização”. Não apenas a alma, mas também o corpo, foram assumidos pelo Verbo. A palavra “carne” designa aqui a totalidade da natureza humana. E o “devir” do Verbo “tornado carne” se acrescenta à plenitude do ser divino, para grande escândalo dos metafísicos. O Filho permanece Deus no seio da Trindade inalterada. Mas alguma coisa é acrescentada à sua divindade, ele se torna homem. Paradoxo incompreensível, o Verbo, sem mudança de sua natureza divina, que nada é capaz de diminuir, se engaja plenamente em nossa condição a ponto de aceitar até mesmo a morte. Suprema manifestação do amor, esse mistério não pode ser abordado senão em termos de vida pessoal: pois a pessoa do Filho supera as fronteiras do transcendente e do imanente para se engajar na história humana. Um devir que ultrapassa as categorias da natureza divina, eterna, imutável, mas com a qual não se identificam as hipóstases: é por isso que Cristo se torna homem sem que as demais pessoas da Trindade sofram ou sejam crucificadas, e é por isso que se pode falar numa economia própria do Filho.

Claro está que a economia é prerrogativa da vontade divina, e que esta é única no que tange à Trindade; é claro também que a salvação do mundo é a vontade única dos Três, e que “aquele que se vê iniciado no mistério da Ressurreição compreende o fim pelo qual Deus criou todas as coisas no começo[4]”. Mas essa vontade comum se realiza de modo diferente para cada uma das pessoas: o Pai envia, o Filho obedece, o Espírito acompanha e assiste, e é por intermédio dele que o Filho entra no mundo. A vontade do Filho é a mesma da Trindade, mas ela se apresenta como obediência. É a Trindade que nos salva, mas é o Filho que se encarna pata realizar no mundo a obra da salvação. Para os patripassionistas, o Pai sofreu, o Pai foi crucificado com o Filho por causa da unidade de naturezas. Isso equivale a confundir em Deus a natureza e a pessoa. Mas nós percebemos bem que, se nossas distinções evitam a heresia, por outro lado elas sublinham o mistério: caminhos rigorosamente demarcados pela fé e a oração, sem estas últimas as distinções não passam de palavras. O mistério, aqui, é o da obediência. Pois, em Deus, tudo é unidade. Mas em Cristo não havia apenas a vontade divina, mas a vontade humana, e uma como que separação se introduziu entre o Filho e o Pai: o acordo das duas vontades em Cristo sela a obediência do Filho ao Pai, e o mistério dessa obediência é o mesmo da nossa salvação.

O Filho se encarna para tornar possível a união do homem com Deus, que fora não apenas interrompida, mas proibida, sem recurso humano, pelo mal. O primeiro obstáculo a essa união, a separação das duas naturezas – a do homem e a de Deus – foi suprimido pelo fato mesmo da Encarnação. Restaram dois outros obstáculos, ligados a condição decaída do homem: o pecado e a morte. A obra de Cristo consiste em vencê-los, banindo do cosmo terrestre sua necessidade. Não se suprimi-los simplesmente, o que seria forçar a liberdade que os criou. Mas tornar a morte inofensiva, o pecado curável pela submissão do próprio Deus à morte e ao inferno. Deste modo a morte de Cristo retira, entre o homem e Deus, o obstáculo do pecado; e sua ressureição rouba à morte seu “aguilhão”. Deus desce aos abismos meônicos[5] abertos na criação pelo pecado de Adão a fim de que o homem possa subir até a divindade. “Deus se tornou homem para que o homem possa se tornar Deus”: o tema aparece três vezes em Santo Irineu[6], e depois vamos encontrá-lo em Santo Atanásio[7], terminando por se tornar um adágio comum aos teólogos de todos os séculos. São Pedro, primeiramente, havia escrito que nós somos chamados a nos “tornarmos participantes da natureza divina[8]”. O sentido profundo da Encarnação reside nessa visão física e metafísica da natureza metamorfoseada pela graça, nessa restauração que doravante foi adquirida pela natureza humana, nessa brecha aberta através da opacidade da morte, e que conduz à deificação.

“O primeiro homem, Adão, se tornou uma alma viva. O último Adão se tornou espírito vivificante [...] O primeiro homem, extraído do barro, é terrestre; o segundo homem veio do céu. Tal como foi o terrestre, assim são os seres terrestres; tal como foi o celeste, assim serão os celestes. E, assim como trazemos a semelhança do homem terrestre, traremos também a semelhança do homem celeste[9]”.

Cristo é, portanto, o Novo Adão que veio do céu, o segundo e último homem. E este o “homem celeste”, não será ele a manifestação, sobre a nossa terra, de outra humanidade, de uma humanidade superior nos céus, como pensaram alguns gnósticos? Mas então, onde estaria a Encarnação? Pois se assim fosse Cristo passaria por sua mãe sem nada receber dela. O mistério da Encarnação é o do Deus-homem, que reúne verdadeiramente as duas naturezas e que recebe da Virgem sua humanidade. Milagre de humildade: o Verbo aceita de sua própria criatura, Deus solicita de Maria, no momento decisivo da Anunciação, as primícias de sua humanidade, sua própria natureza humana.

***

A Encarnação se dá pela ação do Espírito Santo. Isso equivale a dizer, como pretenderam alguns teólogos, que o Espírito é o esposo da Virgem, que ele supriu o papel do esposo na concepção virginal? Isso equivaleria a racionalizar grosseiramente o nascimento de Cristo. Pois, se podemos falar de esposo em relação à Virgem, e isso apenas de modo metafórico, na medida em que ela representa a Igreja ela não possui outro esposo que não seu Filho. Nessa concepção sem semente, a emente é o próprio Verbo. E o Espírito, longe de ser o esposo de Maria, acaba de purificar seu seio, tornando-a plenamente virgem, e lhe confere assim, pela própria plenitude da integridade, a força para acolher e gestar o Verbo; a mais total virgindade, que o Espírito concede como uma pureza de todo o ser, coincide com a maternidade divina.

***

Assim, não existe uma pessoa humana em Cristo: existe a humanidade, mas a pessoa é divina. Cristo é homem, mas sua pessoa vem do céu. Daí a expressão paulina de “homem celeste”.

Podemos falar de união das duas naturezas, de seu “concurso” como diziam os Padres? Os próprios Padres estão sempre se repreendendo e nos obrigando a purificar nossa linguagem. A humanidade de Cristo jamais constituiu uma natureza distinta e anterior, ela não veio se unir à divindade. Ela jamais existiu fora da pessoa de Cristo, foi Ele que a criou no interior de sua hipóstase, não ex nihilo, pois foi preciso recapitular toda a história, toda a condição humana, mas a partir da Virgem, purificada pelo Espírito Santo. A própria pessoa incriada criou sua natureza humana; e esta aparece desde o princípio como a humanidade do Verbo. Para falarmos rigorosamente, não se trata de união, nem mesmo de assumpção, mas de unidade de duas naturezas na pessoa do Verbo desde o momento de sua encarnação. “O ilimitado, escreve São Máximo, se limita de uma maneira inefável, enquanto que o limitado se desdobra até a medida do ilimitado[10]”. Deus penetra na carne e a carne entra na história. O história é risco; Deus corre um risco; Ele, plenitude, desce até os confins últimos do ser, que o pecado destrói pouco a pouco de implenitude, para levar aos seres livres a salvação possível sem destruir a sua liberdade.


2.       O dogma da Calcedônia

A Trindade está presente na própria estrutura intelectual do dogma cristológico, ou seja, na distinção entre a pessoa e a natureza. A Trindade é uma natureza em três pessoas, e Cristo é uma só pessoa em duas naturezas. A divindade e a humanidade estão separadas pela distância infinita que se abre entre o criado e o incriado, mas elas se reconciliam na unidade de uma pessoa.

Entre triadologia e Cristologia existe uma ligação, a consubstancialidade: pois o termo homoousios, primeiramente destinado a especificar a unidade entre o Pai e o Filho no interior da Trindade, se encontra no dogma cristológico definitivamente formulado na Calcedônia. Por um lado, Cristo é consubstancial ao Pai por sua divindade; por outro, ele nos é consubstancial por sua humanidade. Existem assim duas consubstancialidades, mas um só consubstancial, uma única pessoa, ao mesmo tempo verdadeiro Deus e verdadeiro homem. A hipóstase engloba as duas naturezas; ela permanece uma, ainda que se torne a outra, sem que a divindade se transforme em humanidade, nem a humanidade em divindade.

O dogma da Calcedônia, que especifica esse mistério cristológico do dois em um, é o desaguadouro de um longo combate contra as tentações de racionalizar a Encarnação, escamoteando, seja a divindade, seja a humanidade de Cristo. No plano de fundo se esboça a oposição das duas grandes escolas teológicas da Antiguidade cristã: Alexandria e Antioquia. A escola de Antioquia é uma escola de exegese literal, que se detém sobretudo no lado histórico das Escrituras. Toda interpretação simbólica, toda gnose do evento sagrado, lhe parece suspeita, e a presença do eterno na história muitas vezes lhe escapa. Dessa maneira, Jesus corre o risco de aparecer como um indivíduo na história da Judéia, numa história demasiado humana em seu enquadramento temporal. Em Antioquia, a história se fecha sobre si mesma a ponto de talvez negligenciar a visão grandiosa do Deus que se torna homem. Ao contrário, a escola de Alexandria, centrada na gnose cristã, esvaziava muitas vezes o evento bíblico de sua simplicidade concreta, em função de uma exegese muito alegórica, e tendia a depreciar o aspecto histórico, o aspecto humano da Encarnação. Essas duas escolas forneceram grandes teólogos, mas também grandes hereges, toda vez que cada uma delas se abandonava à tentação daquilo que lhe era próprio.

Nascido do pensamento antioquino, o Nestorianismo dissecava Cristo em duas pessoas diferentes. Como cada consubstancialidade suscitava um consubstancial, dois consubstanciais apareciam: o Filho de Deus e o filho do homem, separados enquanto pessoas. Na verdade, a terminologia não estava ainda fixada, a distinção entre pessoa e natureza era confusa, e o pensamento de Nestorius manteve a ilusão por muito tempo. Esse patriarca de Constantinopla pertencia à escola de Antioquia, onde ele teve por mestres grandes teólogos, dos quais alguns, como Teodoro de Mopsueste, tendiam claramente á heresia (Teodoro foi condenado post mortem). Nestorius distinguia com cuidado as duas naturezas, e sua construção parecia ortodoxa até o momento em que ele recusou à Virgem o título de Mãe de Deus (qeotokos) e pretendeu substituí-lo pelo de Mãe de Cristo (Cristotokos). Nesse momento a piedade dos simples se insurgiu e Nestorius criou um escândalo. É porque ele não conseguia captar o mistério pessoal, mas pensava a pessoa em termos de natureza, acabando por identificar a primeira à segunda. Ele opunha assim a pessoa do Verbo à de Jesus, unidas certamente, mas por um laço moral, por uma eleição que fazia de Jesus como que um receptáculo do Verbo. Para Nestorius, somente Jesus nascera da Virgem, que, por conseguinte, era mãe de Cristo, mas não Mãe de Deus. Os dois filhos, de Deus e do homem, estavam unidos mas não eram um em Cristo.

Ora, se Cristo não possuir unidade de pessoa, nossa natureza não estará autenticamente assumida por Deus, e a Encarnação cessará de ser uma restauração “física”. Se não existir verdadeira unidade em Cristo, tampouco poderá haver entre o homem e Deus. Toda a doutrina da salvação perde seu fundamento ontológico: nós permanecemos separados de Deus: a deificação está interditada, Cristo não passa de um grande exemplo, e o Cristianismo se torna uma moral, uma imitação de Jesus.

A reação da piedade, unânime no Oriente, expeliu rapidamente o Nestorianismo, mas sua própria violência gerou a heresia oposta. Para defender a unidade de Cristo, passou-se a expressá-la em termos de natureza, e de natureza divina por respeito ao Verbo. São Cirilo de Alexandria, em sua polêmica contra os nestorianos, lançou a fórmula: uma só natureza do Verbo encarnado. Aí temos uma simples falta de vocabulário, como o mostra o contexto; mas São Cirilo se mantém ortodoxo. Alguns de seus discípulos, porém, tomaram a fórmula ao pé da letra: haveria uma única natureza em Cristo, sua divindade. Daí provém o próprio nome dessa heresia: o monofisismo (de monh, um, e fusis, natureza). Os monofisistas não negavam a humanidade de Cristo enquanto tal , mas ela lhes parecia dissolvida na divindade, como uma gota de vinho no oceano. A humanidade se dissolvia na divindade, ou se volatilizava ao seu contato, como algumas gotas de água num braseiro. “O Verbo se fez carne”, não cessavam de repetir os monofisistas, mas este “se fez” era para eles como a água que se torna gelo: uma aparência, uma similaridade, porque tudo permanecia divino em Cristo.

Assim, Cristo seria consubstancial ao Pai, mas não aos homens. Ele teria passado pela Virgem sem nada emprestar dela, mas apenas se servindo dela para aparecer.

Por numerosas que tenham sido as suas nuanças, podemos dizer que um ponto sempre se manteve comum aos monofisistas: o Cristo verdadeiramente Deus, mas não verdadeiramente homem. No limite, a humanidade de Cristo não passaria de aparência, e o monofisismo desembocava no docetismo[11].

Nestorianismo, monofisismo, manifestações de duas tendências pré-cristãs no seio da Igreja, e que daí por diante jamais deixariam de ameaçar o Cristianismo: de um lado, o humanismo do Ocidente, herança de Atenas e de Roma; de outro o ilusionismo cósmico e a interioridade pura do velho Oriente, com seu absoluto no qual tudo se reabsorve (a imagem da água e do gelo é clássica na Índia para ilustrar a relação entre o finito e o infinito). De um lado, o humano se fecha em si mesmo, do outro ele é engolido pelo divino. Entre essas duas tentações contrárias, o dogma da Calcedônia definiu, em torno de Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro homem, as verdades de Deus e do homem, e o mistério de sua unidade sem separação nem absorção: “Em conformidade com a tradição dos Padres, nós proclamamos unanimemente que se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, sendo perfeito em divindade e perfeito em humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, composto de uma alma racional e de um corpo, sendo consubstancial ao Pai pela divindade e consubstancial a nós pela humanidade, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado, nascido do Pai antes de todos os séculos segundo a divindade, nascido nos últimos tempos de Maria a Virgem, Mãe de Deus, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação; um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deu a conhecer em duas naturezas sem mistura, sem alteração, indivisivelmente, inseparavelmente, de tal sorte que a união não destrói a diferença das duas naturezas, mas, ao contrário, as propriedades de cada uma se tornam ainda mais firmes quando se encontram unidas numa só pessoa e hipóstase que não se separa nem se divide em duas pessoas, sendo o único e mesmo Filho, Unigênito, Deus Verbo, Senhor Jesus Cristo...[12]”.

“Sem mistura, sem alteração, indivisivelmente, inseparavelmente”, é assim que estão unidas as duas naturezas na pessoa de Cristo, sendo que os dois primeiros termos visam os monofisistas e os dois últimos os nestorianos. De fato, as quatro definições são negativas: asugcutws, atreptws, adiairetws, acwpistws. Elas encerram apofaticamente o mistério da Encarnação, e nos impedem de imaginar “como”. Cristo é plenamente Deus: criança no berço ou agonizando sobre a cruz, ele não cessa de participar da plenitude trinitária e de governar o universo por seu poder onipresente. “Ó Cristo, presente de corpo no túmulo e de alma nos infernos, Tu estavas, enquanto Deus, no paraíso com o ladrão e sobre o trono com o Pai e o Espírito, Tu, o infinito que a tudo preenche”, exclamamos na liturgia de São João Crisóstomo[13]. Pois, por outro lado, a humanidade de Cristo é plenamente a nossa: ela não Lhe é própria por seu nascimento eterno, mas sua divina pessoa a suscitou em Maria.

Cristo possui assim duas vontades, duas inteligências, duas maneiras de agir, mas sempre unidas numa só pessoa. Em cada um de seus atos ele porá duas energias em jogo: a energia divina e a energia humana. Seria, portanto, pueril construir uma psicologia de Cristo e reconstituir seus “estados de alma”, escrevendo “vidas de Jesus”. Nós não podemos conjecturar – e esse é também o sentido das quatro negações do concílio de Calcedônia –,  “como” o divino e o humano coexistem numa mesma pessoa. Ainda mais que Cristo, repetimos, não é uma “pessoa humana”. Sua humanidade não possui sua própria hipóstase, dentre as inumeráveis hipóstases dos homens. como nós, Ele possui  um corpo, como nós uma alma, como nós um espírito, mas nossa pessoa não é este conjunto, ela vive através e além do corpo, da alma e do espírito, que não constituem jamais senão sua natureza. E, enquanto que o homem, por sua pessoa, pode sair do mundo, é por sua pessoa que o Filho de Deus pode nele penetrar; pois sua pessoa, cuja natureza é divina, “enipostasia” a natureza humana, como dirá Leôncio de Bizâncio no século VI.

As duas naturezas de Cristo, sem se misturar, contemplam entretanto uma certa interpenetração. As energias divinas irradiam da divindade de Cristo e penetram sua humanidade: esta é, assim, deificada desde o momento da Encarnação, tal como um ferro em brasa que se torna fogo ao mesmo tempo em que permanece ferro por sua natureza. A Transfiguração revela parcialmente aos Apóstolos esse flamejamento das energias divinas irradiando a natureza humana de seu Mestre. Essa interpenetração das duas naturezas, a um tempo penetração da divindade na carne e possibilidade doravante adquirida por esta de penetrar na divindade, é chamada de “pericorese”, perixwrhsis pros allhlas, como escreveu São Máximo o Confessor[14], ou, em latim, communicatio idiomatum, o “intercâmbio de propriedades”. Ao se identificar com o Verbo segundo a hipóstase, “a carne se tornou Verbo sem perder o que possuía”, diz São João Damasceno[15]. Cristo se torna homem por amor ao mesmo tempo em que permanece Deus, e o fogo de sua divindade abrasa para sempre a natureza humana: é por isso que os santos, ao mesmo tempo em que permanecem homens, podem participar da divindade e se tornarem Deus pela graça.


3.       “Forma de Deus” e “forma de servidor”

“Tenham em vocês os mesmos sentimentos que devemos ter em Cristo; Ele que possuía a forma divina não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas despojou-se de Si mesmo, tomando a forma de um escravo e se fazendo semelhante aos homens. Tendo assim se revestido do aspecto de um homem, Ele se rebaixou ainda se tornando obediente até a morte, e morte sobre a cruz. Por isso Deus O exaltou soberanamente e Lhe deu o Nome que está acima de todo nome, a fim de que, diante do Nome de Jesus, todo joelho se dobre, nos céus, na terra e nos infernos, e que toda língua professe que Jesus Cristo é o Senhor, na glória de Deus Pai[16]”.

Essa célebre passagem “kenótica” da epístola aos Filipenses define a exinanição do Verbo: estando na “forma de Deus” (morfh Qeou), ou seja, na própria condição de Deus, sendo de natureza divina, ele se esvaziou, se despojou, se humilhou (ekenwsen), tomando a condição de servidor (morfh doulou). O Filho de Deus, por meio de um prodigioso rebaixamento, pelo mistério de sua “kenosis”, desceu até uma condição de anulação – não no sentido do “nada” original, mas do abismo meônico aberto pela decadência do homem. Ele uniu paradoxalmente a plenitude integral de sua natureza divina à implenitude não menos integral da natureza humana decaída.

Essa passagem deve ser comparada com o texto de Isaías sobre o “homem do sofrimento[17]”, sobre a predição, escandalosa para tantos Israelitas, não de um Messias em glória, mas de um “Servidor de Yahvé”, sofredor e humilhado, entregando-se em silêncio ao “sacrifício expiatório[18]” e “traspassado por nossas infidelidades[19]”.

São Cirilo de Alexandria perguntou-se longamente a respeito dessa “kenosis” divina. Deus, disse ele, não poderia, ao se encarnar, despojar-se de sua natureza, senão não seria mais Deus e não poderíamos falar de Encarnação. É que o objeto da kenosis não foi a natureza divina, mas a pessoa do Filho. Ora, a pessoa se realiza no dom de si: ela se distingue da natureza, não para “se prevalecer” de sua condição natural, mas para renunciar a si totalmente; é por isso que o Filho “não se prevaleceu de sua igualdade com Deus”, mas “ao contrário, despojou-se de Si mesmo”, coisa que não constituiu uma decisão súbita nem um ato, mas a manifestação de seu próprio ser, de sua pessoa, e que tampouco foi de sua vontade própria, mas sua própria realidade hipostática como expressão da vontade trinitária, vontade da qual o Pai é a fonte, o Filho a realização obediente e o Espírito a realização gloriosa. Existe assim uma profunda continuidade entre o ser pessoal do Filho como renúncia e sua kenosis terrestre. Abandonando uma condição gloriosa da qual ele jamais “se prevaleceu”, ele aceitou a vergonha, a ignomínia, a maldição. Ele assumiu as condições objetivas do pecado e se submeteu à nossa condição mortal. Despojando-se de suas prerrogativas reais, ele mergulhou sua glória mais e mais no sofrimento e na morte. Pois foi preciso que ele descobrisse em sua própria carne o quanto o homem que ele criara à sua imagem perfeitamente bela se deformara pela corrupção.

A kenosis é, portanto, a Encarnação em seu aspecto de humilhação e de morte. Mas Cristo mantém completamente sua natureza divina, e sua exinanição é voluntária: permanecendo Deus, ele aceita se tornar mortal; pois o único modo de vencer a morte era deixá-la penetrar no próprio Deus onde ela não poderia encontrar lugar.

A kenosis consiste no rebaixamento do servidor que não busca sua própria glória, mas a do Pai que o enviou. Cristo não afirma jamais, ou quase nunca, sua divindade. Renunciando a si totalmente, deixando não aparente sua natureza divina, abandonando toda vontade própria a ponto de dizer que “o Pai é maior do que eu[20]”, ele realizou sobre a terra a obra de amor da Trindade. E, pelo respeito infinito que ele demonstrou para com a liberdade humana, a ponto de não mostrar aos homens senão o rosto dolorosamente fraternal do escravo e a carne dolorosamente fraternal da cruz, Ele despertou no homem a fé como uma resposta ao amor: pois somente os olhos da fé reconhecem a forma de Deus sob a forma do escravo e, decifrando sob um rosto humano a presença de uma pessoa divina, aprendem a perceber virtualmente em todo rosto o mistério da pessoa criada à imagem de Deus.

Porém, antes que a kenosis de Cristo chegasse ao fim com sua Ressurreição, produziram-se duas teofanias por intermédio de sua humanidade: uma no Batismo, outra na Transfiguração. Em cada uma dessas ocasiõs, Cristo se manifestou não na “forma de escravo”, mas na “forma de Deus”, e deixou que irradiasse através de sua humanidade deificada – pois, segundo São Máximo o Confessor, sua humanidade economicamente corruptível era naturalmente incorruptível – sua natureza divina, ou seja, sua unidade com o Pai e o Espírito. A voz do Pai, a presença do Espírito Santo sob a forma da nuvem ou da pomba, fizeram dessas duas manifestações da “forma de Deus” duas teofanias trinitárias. O kontakion da festa da Transfiguração sublinha que os discípulos viram a glória divina de Cristo “segundo sua capacidade”, a fim de que “quando vissem a Cristo crucificado, compreendessem que sua paixão foi voluntária[21]”, e não o efeito de uma necessidade de natureza.

Que essa luz da Transfiguração “não tenha começo nem terá fim[22]”, deve nos tornar ainda mais sensíveis à realidade da kenosis. Cristo aceitou total e voluntariamente as consequências de nosso pecado desde a Encarnação até a morte. Ele conheceu todas as enfermidades, todas as limitações de nossa condição, mas não as paixões destruidoras que dependem de nossa liberdade. Inclusive, este Segundo Adão, para se “configurar” por inteiro tal como o primeiro, permitiu a aproximação do tentador, e dessa vez não no paraíso, mas na condição de homem decaído. Somente em Cristo a não-existência se tornaria sofrimento e amor, e não mal e ódio: é por isso que o tentador foi rejeitado por Aquele que trazia em Si mais do que o paraíso, por “Aquele que é”.


4.       Duas energias, duas vontades

As definições de Calcedônia não visaram somente o Nestorianismo e o monofisismo, mas, na medida em que especificaram que Cristo, como homem perfeito, se compunha de uma alma racional e de um corpo, atingiram outra heresia ainda: o apolinarismo.

Apolinário de Laodicéia viveu no século IV e os grandes Capadócios lutaram contra ele. Ele foi um típico representante da escola de Alexandria, na qual se afirmava acima de tudo a unidade de Cristo. Oitenta anos antes do monofisismo, que seu pensamento não deixou de preparar, ele se perguntava como conciliar essa unidade com a dualidade, nela, do divino e do humano. Pensava ele que não podia se tratar de duas naturezas perfeitas, pois, segundo o pensamento helenístico do qual ele permanecia prisioneiro, “dois perfeitos não podem se tornar um só”, dois princípios perfeitos não podem se unir para formar uma terceira natureza, perfeita também. Ou essas duas naturezas não são perfeitas, ou sua unidade não passa de justaposição. Em suma, Apolinário hipostasiava as duas naturezas e refutava desde logo o Nestorianismo, pois é evidente que duas pessoas não podem, através de sua união, abolirem-se numa terceira. Como a unidade de Cristo é perfeita, seria preciso supor que um de seus constituintes não o fosse; como a divindade não estava em causa, Apolinário concluía que a humanidade de Cristo, para dar lugar à sua divindade, deveria ser imperfeita. O homem se aperfeiçoa pelo intelecto: assim parecia evidente a Apolinário que Cristo não possuía um intelecto, um nous humano, e que, para selar sua unidade, o espírito humano nele cedia lugar ao Logos divino. O Verbo unia assim a divindade a uma humanidade incompleta, e a divindade completaria a humanidade. Dessa forma, o Cristo de Apolinário era menos um Deus-homem do que um animal que se somava a Deus. Esse foi o germe do monofisismo, que não cessaria de retomar, a respeito de Cristo, a ideia de uma humanidade incompleta, que seria completada, e mesmo absorvida pelo Logos.

Em última análise, toda a construção de Apolinário se fundamenta sobre a identificação entre a pessoa humana e o nous; é a grande tentação dos metafísicos de associar à parte superior da natureza, o intelecto, aquela que lhes é mais familiar, o mistério da pessoa, não sem uma nora de desprezo pelo sentimento e o corpo.

Calcedônia escapou ao problema estabelecendo uma distinção entre pessoa e natureza. Essa distinção, que colocava a liberdade da pessoa em relação ao conjunto da natureza, permitia afirmar a unidade dos dois princípios perfeitos, unidade que não extingue, mas confirma “as propriedades de cada natureza”. A natureza humana conserva sua “enipostasia”, e que não é criada, mas divina. O Logos não substitui um elemento da natureza humana: ele é a pessoa que a assume em sua totalidade.

Cristo é, portanto, o homem perfeito, a um tempo corpo e alma racional. Aqui o termo “racional” deve ser tomado no sentido forte que lhe deram os Padres: a “alma racional” se identifica ao nous, o intelecto, e se distingue do corpo animado que podemos desdobrar em corpo e alma viva. Assim, a dicotomia da Calcedônia recorta a tricotomia paulina e tradicional do corpo, alma e espírito.

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Depois de Calcedônia apareceram novas formas de monofisismo que, ao mesmo tempo em que submetiam à letra do símbolo, buscavam esvaziar seu conteúdo. Esse longo esforço para “descalcedonizar” Calcedônia foi devido, seja ao tenaz instinto monofisista da espiritualidade oriental, seja à busca, acima de tudo política, de um compromisso com os monofisistas verdadeiros. A primeira motivação explica a doutrina do monoenergismo que se desenvolveu no final do século V e início do VI. Seus partidários reconheciam duas naturezas, mas afirmavam que sua operação, ou seja, a energia que as manifestava, permanecia única. A distinção entre a humanidade e a divindade já não passava de uma abstração: ou as duas naturezas se confundiriam, ou a humanidade seria inteiramente passiva e apenas a divindade agiria.

Essa doutrina foi refutada no século VII por muitos Padres, dentre os quais se destacou São Máximo o Confessor. É preciso conceber em Cristo ao mesmo tempo duas operações distintas e um só objetivo, um só ato, um só resultado. Cristo age por meio de suas duas naturezas como uma espada levada ao rubro pelo fogo corta e queima ao mesmo tempo. Cada natureza coopera com o ato único segundo o modo que lhe é próprio. “Não foi a natureza humana que ressuscitou Lázaro, e não foi a força divina que chorou diante de seu túmulo”, escreverá São João Damasceno[23].

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Outra forma de compromisso, dessa vez consciente, com o monofisismo, foi o monotelismo. Também este admitia duas naturezas, mas uma só vontade, a vontade divina, à qual a vontade humana adere até ser engolida por ela. Os representantes dessa doutrina eram sobretudo hábeis políticos; como pano de fundo, as províncias orientais do Império, marcadas pelo monofisismo e pela vontade imperial de união. Três patriarcas: Ciro de Alexandria, Sérgio de Constantinopla e Honório, papa de Roma, se misturaram na elaboração, passavelmente artificial, dessa doutrina; talvez Honório, mais ou menos iludido pelos outros dois, tenha sido o único sincero; aliás, após sua morte ele foi julgado herético pelo sexto concílio ecumênico.

São Sofrônio, patriarca de Jesrusalém, ainda teve tempo, malgrado sua idade avançada, de protestar antes de sua morte. Depois os sucessores de Honório, os papas São Martinho e Santo Agatão esboçaram uma reação. Mas quem salvou de fato a Igreja foi um simples monge, já grande adversário do monenergismo, São Máximo o Confessor. Junto com São Martinho, ele foi exilado. O papa morreu no exílio; Máximo recusou solenemente aderir ao compromisso que a Igreja parecia adotar. “Mesmo que todo o universo concordasse com vocês, eu sozinho continuaria não concordando[24]”, declarou ele em essência, fortemente, contra toda a hierarquia, proclamando a evidência da verdade. Como consequência disso ele foi cruelmente mutilado e reenviado ao exílio, onde acabou por morrer. Mas sua resistência havia salvado a verdade, que não tardou a se impor a toda a Igreja. Contra o monotelismo, assim, basta seguir a argumentação de Máximo, na qual abundam profundos dados antropológicos.

O monotelismo pressupunha, como a maior parte das heresias dessa tipo, uma definição da pessoa por uma de suas qualidades: aqui, era a vontade que se atribuía à hipóstase.

Para elucidar o problema das duas vontades em Cristo, São Máximo partiu dos dados triadológicos estabelecidos. Na Trindade, existem três pessoas em uma natureza; ora, a vontade é comum às três, e não existe senão uma vontade. A vontade se liga assim à noção de natureza, e não à de pessoa; caso contrário, seria preciso estabelecer três vontades no seio da Trindade.

Essa transcendência da pessoa em relação à vontade fere nossas concepções habituais; é porque elas se referem ao indivíduo, o qual, certamente, atribui a si mesmo uma vontade para afirmar seu “ego”. São Máximo analisa aqui com muita sutileza o conceito de vontade. Ele distingue duas espécies de vontade: a primeira, a “vontade natural” (qelhma fusikon ou qelhsis fusikh), consiste na tendência da natureza para aquilo que lhe convém, “uma força natural que tende para o que é conforme à natureza, força que abarca todas as propriedades essenciais da natureza[25]”. A natureza em seu estado “natural”, ou seja, não desfigurado pelo pecado, não pode desejar senão o bem, porque ela é “racional”, vale dizer que ela tende para Deus. A vontade de uma natureza perfeita é consciente do bem, sendo, portanto, uma adesão ao bem. Mas a queda obscurece essa consciência; daí por diante a natureza tende cada vez mais a ir “contra a natureza”; sua aspiração se atola no pecado. Porém, o homem é dotado de outra vontade, qelhsis gnwmikh, a “vontade deliberativa”, própria, desta vez, da pessoa. É a vontade de escolha, o julgamento pessoal que eu aplico sobre a vontade natural para aceitá-la, recusá-la ou dirigi-la para outro objetivo, para torná-la realmente natural purificando-a do pecado.

A própria utilização dessa vontade deliberativa se torna necessária por causa da adulteração de nossa verdadeira liberdade. O livre arbítrio corresponde ao estado ao qual o pecado nos reduziu; é pelo fato de que estamos em pecado, que devemos escolher o tempo todo.

É por isso que, em Cristo, existem duas vontades “naturais”, mas não existe um “livre arbítrio” humano. As duas vontades naturais não podem entrar em conflito na sua pessoa, não sendo essa pessoa uma hipóstase humana que deva escolher sem cessar entre o bem e o mal por ter provado do fruto fatal, mas uma hipóstase divina cuja escolha foi feita de uma vez por todas: a escolha da kenosis, da obediência incondicional à vontade do Pai.

A natureza humana de Cristo é, portanto, completa, mas aquilo que, no homem, pertence à pessoa, em Cristo pertence ao Verbo, pessoa divina. A humanidade que este assumiu é, portanto, semelhante numa certa medida àquela de Adão antes do pecado. Mas a kenosis do Verbo é também a kenosis dessa humanidade paradisíaca submetida pela vontade redentora do Salvador às condições objetivas do pecado, condições às quais ela não deve reagir pelo livre arbítrio, mas pelo sofrimento e o amor. Por outro lado, se a vontade do Filho é idêntica à do Pai, a vontade humana que se tornou a do Verbo é própria deste: e nessa vontade própria reside todo o mistério de nossa salvação.

5.       Dualidade e unidade em Cristo

O sexto concílio ecumênico, reunido em 680 e 681 em Constantinopla, explicitou as definições cristológicas da Calcedônia. Ele reafirmou a unidade e a dualidade de natureza, e precisou a existência em Cristo de duas vontades naturais que não podem se opor, pois a vontade humana se submete à vontade divina como à de Deus. Citando uma passagem de Santo Atanásio, extraída de um tratado perdido sobre as palavras de Cristo: “Agora minha alma está perturbada [...] Pai, preserva-me desta hora[26]”, os Padres do concílio sublinharam que a vontade humana, na Encarnação, constitui a vontade própria do Verbo. Que o Filho possua então uma vontade própria, e que sua vontade, por conseguinte, não seja somente a do Pai, provoca como que uma separação entre o Pai e o Filho. Toda a economia da salvação de estrutura na submissão dessa vontade própria do Verbo, sua vontade humana, à do Pai. Pois a vontade humana, “enipostatizada” pelo Verbo, não é destruída, assim como a carne de Cristo, embora deificada, mantém sua realidade de criatura. “E nós atribuímos, conclui o concílio, a uma única e mesma pessoa tanto os milagres (operados pela energia da divindade) como os sofrimentos (sofridos através da humanidade)[27]”.

Por trás dessas definições, encontramos a antropologia de São Máximo. Esta distingue a vontade natural (qelhsis fusikh) da vontade deliberativa (qelhsis gnwmikh), que não consiste numa tendência da natureza, mas numa possibilidade de decisão livre, ou seja, numa dimensão da pessoa. A vontade deliberativa, como escolha, estabelece o caráter pessoal do ato moral. Ela não existe em Cristo senão como liberdade divina; mas não podemos, a propósito de Deus, falar em livre arbítrio, pois a decisão única do Filho é a kenosis, a assumpção de toda condição humana, a submissão total à vontade do Pai. A vontade própria do Verbo, sua vontade humana, se submete ao Pai, mostrando por meios humanos que não se trata de oscilações entre o sim e o não, mas do sim, mesmo através do não do horror e da revolta, a adesão do Novo Adão a seu Deus: “Pai, preserva-me desta hora. Mas foi justamente para esta hora que eu vim; Pai, glorifica teu Nome[28]” “Pai, se for possível, afasta de mim este cálice. Entretanto, faça-se a tua vontade e não a minha[29]”. Assim, a própria atitude de Cristo implica uma liberdade, embora São Máximo negue que nele exista o livre arbítrio.

Mas essa liberdade não é uma escolha perpétua que decompusesse o Salvador; desde o princípio, não se trata de uma necessidade constante, para Cristo, de submeter, por uma escolha cada vez deliberada, sua carne deificada às limitações de nossa condição decaída, como o sono e a fome, porque isso seria fazer de Jesus um ator. A liberdade aqui é regida pela consciência pessoal, portanto única, de Cristo; é a escolha definitiva e permanente de assumir a implenitude de nossa condição até a última fatalidade da morte. é a escolha, consentida desde a eternidade, de deixar penetrar em si, até o fundo, tudo aquilo que constitui nossa condição, ou seja, nossa decadência, e esse fundo é feito de angústia, morte e descida aos infernos. Contrariamente ao esquema ascendente das doutrinas “kenóticas”, se existe um progresso de consciência em Cristo, ele está na descida, não na subida. Para os “kenotistas”, com efeito, Cristo cresce sem cessar na consciência de sua divindade. Assim, teria sido no Batismo que ele se deu conta de ser Filho de Deus, por uma espécie de “reminiscência”. Ao contrário, lendo o Evangelho, vemos a consciência do Filho descer cada vez mais baixo, e abrir-se cada vez mais para a decadência humana. O nascimento fôra virginal, aparição quase paradisíaca de uma carne deificada; a infância, de silenciosa sabedoria, triunfara sem dificuldade sobre os doutores; e o primeiro milagre em Caná foi um milagre de núpcias. Depois, tudo foi engolido em direção à “hora” para a qual Cristo veio, e para Ele o verdadeiro caminho da Cruz foi essa tomada de consciência cujo objeto não foi outro do que sua humanidade, essa exploração descendente de nosso abismo. Seria ilusório que o Verbo tomasse consciência de sua divindade; mas é terrivelmente necessário que ele tomasse consciência de nossa perdição, e que fizesse em Si como que a suma disto. Pois, aceitando todo o pecado, deixando-o penetrar em Si, que era sem pecado, ele o anulou. As trevas da Cruz penetraram numa pureza que elas apagar; o sofrimento da cruz penetrou numa unidade que ele não foi capaz de despedaçar.

A agonia de Cristo muito espantou as pessoas e as escandalizou. São João Damasceno se detém um pouco sobre isso: “Quando (em sua vontade humana) Ele se recusou a aceitar a morte, escreve ele, que sua vontade divina desejava e concedia, então o Senhor, em conformidade com a sua natureza humana, estava em luta e atemorizado, e pedia para ser afastado da morte. e quando sua vontade divina desejou que sua vontade humana aceitasse a morte, o sofrimento se tornou voluntário (para a humanidade de Cristo)”. O Filho de Deus devia aceitar a morte, resultado e tributo do pecado, por sua vontade humana. Ora, nele não existia a raiz do pecado; assim, Ele não deveria conhecer seu fruto de morte.

O homem, ao contrário, traz consigo essa raiz, e a morte, podemos dizer, lhe é “natural”, ou seja, biologicamente lógica e psicologicamente aceitável no estado infranatural no qual Deus deteve sua queda e onde Ele introduziu uma lei que é justamente a da morte. Assim, as palavras do bom ladrão ao mal ladrão: “Para nós é a justiça, porque nós recebemos o merecido por nossos atos; mas este homem não fez nada de repreensível[30]” – adquirem um alcance ontológico. E o bom ladrão morre mais facilmente do que Cristo. Mas este, ao aceitar o resultado terrível do pecado, quando, descendo ao fundo de nosso abismo meônico, ele toma consciência da morte, vê sua humanidade deificada se revoltar contra essa maldição contra a natureza. E quando a vontade própria do Verbo, ou seja, sua humanidade se submete, ela conhece uma angústia espantosa diante da morte, pois a morte lhe é estranha.

Somente Cristo conheceu o que é verdadeiramente a morte, porque sua humanidade deificada não poderia morrer. Somente ele pôde medir todo o tamanho da agonia, porque a morte se apoderava do seu ser desde fora, ao invés de surgir como uma fatalidade de seu íntimo, ao invés de ser, como para o home decaído, o nó irredutível de um ser misturado ao não-ser, quando a doença e o tempo corroeram sua polpa de carne. E por essa morte desmesurada, ou antes, a única mensurável, o pecado foi negado, ele se consumiu na unidade pessoal de Cristo em contato com a divindade onipotente: pois a redenção não é outra coisa do que a abertura para a última separação entre o homem e Deus, Daquele que permanecia inseparavelmente homem e Deus.

6.       Redenção

“Foi preciso que Deus se encarnasse e morresse para que nós revivamos”, escreveu São Gregório de Nazianze[31]. E Santo Atanásio siblinha que não foi por ter nascido que Deus morreu, mas que foi para morrer que ele nasceu[32]. A fatalidade da morte, com efeito, não estava enraizada na natureza humana de Cristo; mas seu próprio nascimento humano introduziu na sua pessoa divina um elemento que poderia se tornar mortal. A Encarnação suscitou como que um “espaçamento” entre o Pai e o Filho, um vazio que permitiu a livre submissão do Verbo feito carne, o lugar espiritual da redenção. Pela derrelição, pela maldição, uma pessoa inocente assumiu todo o pecado, se “substituiu” àqueles que seriam justamente condenados e por eles sofreu a morte. “Eis o Cordeiro de Deus, que toma sobre si os pecados do mundo[33]”, diz São João Batista, repetindo Isaías[34]. Toda a tradição sacrificial de Israel, desde o sacrifício de Isaac substituído por um cordeiro, culmina aqui. E toda a tipologia do cativeiro, toda a espera pela libertação de um “resto” se cumpre aqui. São Paulo pode escrever: “Cristo nos resgatou da maldição da Lei tornando-se ele próprio maldição por nós[35]”.

***

Momento central da economia do Filho, a redenção não deve ser separada do conjunto do plano divino. Este jamais mudou; seu objetivo nunca deixou de ser a união com Deus, com toda liberdade, dos seres pessoais tornados plenamente eles mesmos hipóstases do cosmo terrestre, para os homens, ou do cosmo celeste, para os anjos. O amor divino persegue sempre a mesma realização: a deificação dos homens e, através deles, de todo o universo. Mas a queda exigiu uma mudança, não no objetivo de Deus, mas nos meios, na “pedagogia” divina. O pecado destruiu o plano original, o de uma subida direta do homem para Deus. Uma fissura catastrófica se abriu no cosmo; é preciso curar essa ferida e recapitular a história rompida do homem para um novo começo: estes são os fins da redenção.

A redenção aparece então como a face negativa do plano divino: ela supõe uma realidade anormal, trágica, “contra a natureza”. Seria absurdo encerrá-la sobre si mesma, fazer dela um objetivo em si. Pois o resgate que se tornou necessário por causa de nosso pecado não é um fim, mas um meio, um meio para o único fim possível: a deificação. A própria salvação não passa de um momento negativo: a única realidade essencial permanece sendo a união com Deus. Que importa ser salvo da morte, do inferno, se não for para se perder em Deus?

Assim, colocada em seu lugar no plano divino, a redenção se reveste de muitos momentos progressivamente mais abertos sobre a plenitude da Presença; ela começa com a abolição dos obstáculos radicais que separam o homem de Deus, sobretudo o pecado que submete a humanidade ao demônio e permite a dominação dos anjos decaídos sobre o cosmo terrestre. Essa libertação da criatura cativa se faz acompanhar em seguida de uma restauração de sua natureza, que se torna capaz de receber a graça e de ir “de glória em glória” até a semelhança que a assimila à natureza divina e que lhe permite transfigurar o cosmo.

A imensidão dessa obra de Cristo, obra incompreensível para os anjos, como nos diz São Paulo, não poderia se fechar numa única explicação, nem numa única metáfora. A própria ideia de redenção se reveste de um claro aspecto jurídico: trata-se do resgate do escravo, da dívida paga em benefício daqueles que permanecem na prisão por não poder quitá-la. Jurídico também é o tema do mediador que, por meio da cruz, reúne o homem com Deus. Mas essas duas imagens paulinas, largamente retomadas pelos Padres, não devem ser endurecidas: isso seria construir entre Deus e a humanidade uma indefensável relação de direito. Antes seria preciso substituí-las dentro da multiplicidade quase indefinida de outras imagens, das quais cada uma é como uma faceta de um evento em si inefável. Surgindo do Evangelho, são essas imagens a do Bom Pastor que sai a buscar a ovelha perdida, a do “homem forte” que triunfa sobre o ladrão, o amarra e retoma seu butim, a da mulher que encontra e limpa a moeda na qual a imagem de Deus estava impressa sob a sujeira do pecado. Os textos litúrgicos, em especial durante a Semana Santa, têm como leitmotiv o tema do guerreiro vitorioso que destrói a fortaleza do inimigo e arrebenta as portas do inferno, por onde, como escreve Dante, “entram triunfalmente suas bandeiras[36]”. Abundam também entre os Padres as imagens de ordem física: a do fogo que purifica, e principalmente a do médico que cura as enfermidades de seu povo: assim, desde Orígenes, Cristo é o Bom Samaritano que cura e restaura a natureza humana que os bandidos, isto é, os demônios, haviam ferido[37]. Por fim, o tema do sacrifício é muito mais do que metafórico: é a conclusão de uma tipologia que participa da própria realidade que ela anuncia, do “sangue de Cristo que ofereceu a si mesmo a Deus com um Espírito de eternidade[38]”, como está na epístola aos Hebreus, onde essa imagem completa, em profundidade, o simbolismo jurídico.

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Substituindo-nos voluntariamente, Cristo “se tornou maldição por nós[39]”, escreveu São Paulo aos Gálatas. A derrelição de Cristo sobre a cruz é, assim, necessária, pois Deus se afasta do maldito, do separado a quem todos abandonam. “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?[40]”. essa total nudez da angústia possui também um valor tipológico, pois o último grito do Crucificado não é outra coisa que o primeiro verso do Salmo 21, a oração do justo sofredor. O começo desse Salmo proclama o desespero humano: “Eu sou como a água que escorre, e todos os meus ossos estão desconjuntados”. Depois vem a célebre passagem profética, as mãos e os pés perfurados, as vestes divididas, a túnica lançada à sorte. Assim, por meio de uma tipologia interior, a Paixão de Cristo responde e corresponde ao abandono, à agonia da natureza humana devastada por sua decadência. E o final do Salmo, como um anúncio da Ressurreição, canta o triunfo e o poder salvador de Deus.

Se Cristo retoma esse Salmo, é porque Ele assume toda a nossa condição até esse sentimento de ser abandonado por Deus que os moribundos conhecem quando morrem religiosamente: “Não te afaste de mim, porque a angústia me toma, aproxima-te, porque não há quem me ajude[41]”, quando experimentam a morte como uma passagem na qual se quebra a natureza limitada, exteriorizada, decaída desde o nascimento. Ora, não existe sofrimento nem tragédia no Verbo, eternamente consubstancial ao Pai. E é por isso que, penetrando em Cristo, o sofrimento e a tragédia chegam ao fim. Quando Cristo estava prisioneiro voluntariamente, a morte sofria as dores do parto, escreveu São João Damasceno num sermão de Páscoa: ela não pôde resistir, ela explodiu, ela nos libertou[42]. E Máximo o Confessor resume assim a obra redentora: a morte de Cristo sobre a Cruz foi o julgamento do julgamento[43]. Não podendo se exercer na pessoa do Filho de Deus, a maldição se torna bênção; pela cruz, todas as condições do pecado se tornam condições de salvação. Daí por diante, nem o pecado, nem a morte, nos separam mais de Deus, pois o Batismo nos sepulta na morte de Cristo para nos ressuscitar com ele, a penitência pode sempre nos conduzir a Deus, e a morte, cotidianamente assumida pela penitência, nos abre para a vida divina.

A maldição da morte jamais foi uma vingança de Deus. Ela foi a punição de um Pai amoroso, não a cólera obtusa de um tirano. Seu caráter foi educativo e reparador. Ela impediu a perpetuação de uma vida dissoluta, a instalação irresponsável numa condição contra a natureza. Não apenas ela colocou um limite à decomposição da nossa natureza, como ainda, pela angústia da finitude, ajudou o homem a tomar consciência de sua condição, para que ele se volta para Deus. Da mesma forma, a vontade injusta de Satanás não poderia se exercer senão com a justa permissão de Deus. A arbitrariedade de Satanás não apenas ficou limitada pela vontade divina, como ainda foi utilizada por ela, como vemos pelo caso de Jó.

Assim, nem a morte, nem a dominação de Satanás, jamais foram puramente negativas. Desde o começo elas foram sinais e meios do amor divino.

Mas, no momento da redenção, os poderes demoníacos foram cassados e uma transformação interveio nas relações entre o homem e Deus. Deus, poderíamos dizer, modificou sua pedagogia: ele retirou de Satanás o direito de dominar a humanidade; o pecado foi expulso, a dominação do Maligno foi enterrada. A palavra “resgate” adquiriu agora outro sentido: o de uma dívida reembolsada ao demônio, conforme sublinha a literatura patrística dos primeiros séculos. Deus concedeu um poder ao demônio e depois retirou-lhe esse poder, por haver transgredido seus direitos ao assaltar um inocente. Irineu, Orígenes, Gregório de Nissa mostram como Satanás, pretendendo colocar sob seu poder o único ser sobre o qual ele não possuía nenhum poder, foi justamente despojado. Alguns Padres, em especial Gregório de Nissa, propuseram o símbolo de uma armadilha divina: debaixo do anzol de sua divindade, a humanidade de Cristo foi a isca; o diabo se atirou sobre a presa, mas foi perfurado pelo anzol: ele não pôde engolir a Deus e morreu[44].

Dívida paga a Deus, dívida paga ao diabo: duas imagens que só têm valor juntas, para encerrar o ato, no fundo incompreensível, por meio do qual Cristo nos concedeu a dignidade de filhos de Deus. Uma teologia empobrecida pelo racionalismo, e que recua diante dessas imagens dos Padres, perde necessariamente a perspectiva cosmológica da obra de Cristo. Ao contrário, devemos alargar nosso sentido da redenção. Pois não foi apenas o demônio, mas também os anjos que foram relativamente despojados: no Segundo Adão, o próprio Deus se uniu diretamente à humanidade, fazendo-a participar de sua infinita superioridade sobre os anjos. A redenção é uma realidade grandiosa que se estende ao conjunto do cosmo, visível ou não. O “julgamento do julgamento” reconciliou o cosmo decaído com Deus: sobre a cruz, Deus estendeu seus braços para a humanidade. Como escreveu São Gregório de Nazianze: “Algumas gotas de sangue reconstituíram o universo inteiro[45]”.

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O diabo foi pisoteado, mas sem que seu direito tenha sido por assim dizer lesado. A lei da natureza mortal foi revogada, mas sem que nada, tampouco, tenha lesado a justiça divina. Com efeito, não devemos representar Deus como sendo um monarca constitucional submetido a uma justiça que o ultrapassa, nem como um tirano cuja fantasia criasse uma lei sem ordem nem objetividade. A justiça não é uma realidade abstrata superior a Deus, mas uma expressão de sua natureza. Assim como Ele criou livremente, mas se manifesta na ordem e na beleza da criação, também ele se manifesta na justiça: Cristo, que é a própria justiça, afirma em sua plenitude a justiça de Deus. Não se trata, para o Filho, de exercer uma justiça derrisória que traga uma satisfação infinita à vingança não menos infinita do Pai. “Por que, se pergunta Gregório de Nazianze, seria o sangue do Filho agradável ao Pai, que não quis aceitar Isaac oferecido em holocausto por Abrahão, substituindo então o sacrifício humano pelo de um cordeiro?[46]”.

Cristo não executou a justiça, mas a manifestou: ele manifestou aquilo que Deus espera da criatura, a plenitude da humanidade, o “homem máximo”, para usarmos a expressão de Nicolas de Cues[47]. Ele cumpre a vocação do homem, que foi traída por Adão: viver somente de Deus e nutrir o universo com Deus. Essa é a justiça de Deus. O Filho, idêntico ao Pai por sua natureza divina, adquire a possibilidade de realizá-la por meio da Encarnação; pois então ele pode se submeter ao Pai como se estivesse afastado dele, renunciar à sua vontade própria – que lhe foi dada por sua humanidade – e se entregar totalmente até a morte, para que o Pai seja glorificado. A justiça de Deus consiste em que o homem não seja mais separado de Deus, ela é a restauração da humanidade em Cristo, o verdadeiro Adão. “Não é evidente que o Pai aceitou o sacrifício, não porque ele exigia ou porque fosse necessário, mas por economia?, conclui Gregório de Nazianze. Era preciso que o homem fosse santificado pela humanidade de Deus, era preciso que Ele próprio nos libertasse triunfando sobre o tirano com sua própria força, que Ele nos chamasse para Si por intermédio de seu Filho que é o Mediador que a tudo realiza em honra de seu Pai, a quem ele obedece em tudo [...]. Que o resto seja venerado pelo silêncio[48]”.


7.       Ressurreição

O Pai aceitou o sacrifício do Filho “por economia”: “Era preciso que o homem fosse santificado pela humanidade de Deus[49]”. A kenosis culmina e se realiza com a morte de Cristo, para santificar toda a condição humana, inclusive a morte.

Cur Deus homo?” – por que Deus se fez homem? Não apenas por causa de nossos pecados, mas para nossa santificação, para introduzir todos os momentos de nossa vida decaída na verdadeira vida, aquela que jamais conhece a morte. Pela ressurreição de Cristo, a vida total é inserida na árvore seca da humanidade para revivificá-la.

A obra de Cristo apresenta assim uma realidade física, podemos dizer até biológica. Sobre a cruz, a morte foi engolida pela vida. Em Cristo, a morte penetra na dignidade e nela se consome, porque “ela não encontra espaço ali”. A redenção significa, assim, a luta da vida contra a morte e o triunfo da vida. A humanidade de Cristo constitui as primícias da criação nova; por meio dela uma força de vida se introduz no cosmo para ressuscitá-lo e transfigurá-lo na destruição final da morte. Desde a Encarnação e a Ressurreição, a morte foi esgotada e já não é absoluta. Tudo converge para a restauração integral de tudo o que foi destruído pela morte, em direção ao abrasamento de todo o cosmo pela glória de Deus que se tornará tudo em todos, sem excluir dessa plenitude a liberdade de cada pessoa diante da consciência plena de sua miséria, que lhe será comunicada pela luz divina.

É preciso então completar a imagem jurídica da redenção com uma imagem sacrificial. A redenção é também o sacrifício por meio do qual Cristo, segundo a epístola aos Hebreus, aparece como o sacrificador eterno, o grande sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque, que termina no céu aquilo que começara na terra. A morte sobre a cruz é a Páscoa da Nova Aliança, realizando numa realidade tudo o que a páscoa hebraica simbolizava. Pois a libertação da morte e a introdução da natureza humana no reino de Deus realizam o único Êxodo verdadeiro. Certamente esse sacrifício representa uma expiação, o abandono da vontade própria que Adão não pôde consentir. Mas ele representa acima de tudo um sacramento, o sacramento por excelência, o livre dom a Deus, por Cristo, com sua humanidade, das primícias da criação, a realização que a humanidade nova deverá completar, a imensa ação sacramental devolvida em primeiro lugar a Adão: a oferenda do cosmo como receptáculo da graça. A Ressurreição opera uma mudança na natureza decaída, ela abre uma possibilidade prodigiosa: a de sacrificar a própria morte; daí por diante, a morte deixa de ser um impasse e se transforma numa porta para o Reino. A graça nos é concedida, e, se a trazemos em nós como “vasos de barro”, como receptáculos ainda mortais, nossa fragilidade possui virtualmente uma força que vence a morte. A tranquila segurança dos mártires, insensíveis não somente ao temos, mas à própria dor física, prova que uma consciência eficaz da Ressurreição é doravante possível ao cristão.

São Gregório de Nissa sublinhou bem esse caráter sacramental da Paixão. Cristo, explica ele, não esperou ser forçado pela traição de Judas, pela malícia dos sacerdotes e pela inconsciência do povo. Ele se adiantou a essa vontade do mal e, antes de ser obrigado, ele se entregou livremente na vigília da Paixão, na quinta-feira santa, entregando sua carne e seu sangue[50]. É o sacrifício do Cordeiro imolado antes do começo do mundo que se realiza aqui livremente. A verdadeira Paixão começa desde a quinta-feira santa, mas com uma liberdade total.

Logo depois virão o Jardim das Oliveiras e a Cruz. A morte sobre a cruz é a de uma pessoa divina: ela é vivida pela humanidade de Cristo, e sofrida também conscientemente por sua hipóstase eterna. E a separação entre a alma e o corpo, aspecto fundamental da morte, também intervém no Deus-homem. A alma que desce aos infernos permanece “enipostasiada” no Verbo, assim como o corpo pendurado na cruz. Da mesma forma, a pessoa humana permanece presente tanto em seu corpo retomado pelos elementos como em sua alma: é por isso, aliás, que nós veneramos as relíquias dos santos. Com mais razão ainda, em Cristo a divindade permanece ligada tanto ao corpo que dorme no sepulcro o “sono branco” do Sábado santo, como à alma vitoriosa que destrói as portas do inferno. De fato, como poderia a morte destruir essa pessoa que a sofre em toda a sua trágica dissociação, sendo essa uma pessoa divina? É por isso que a Ressurreição já está presente na morte de Cristo. A vida brota do túmulo, ela é manifestada pela morte e na morte mesma de Cristo. A natureza humana triunfa sobre uma condição antinatural. Porque ela está inteiramente contraída em Cristo, “recapitulada” por Ele, para retomarmos uma expressão de Santo Irineu[51]. Cristo é o chefe da Igreja, ou seja, da humanidade nova no seio da qual nenhum pecado, nenhuma potência contrária poderão doravante separar definitivamente o homem da graça. Em Cristo, uma vida de homem pode sempre recomeçar, por pesada que esteja de pecados; um homem pode sempre abandonar sua vida a Cristo, para que este a torne livre e intacta. E essa obra de Cristo é válida para o conjunto da humanidade, para além dos limites visíveis da Igreja. Toda fé no triunfo da vida sobre a morte, todo pressentimento da Ressurreição, são crenças implícitas em Cristo: pois somente a força de Cristo ressuscita e ressuscitará os mortos.

Depois da vitória de Cristo sobre a morte, a Ressurreição se tornou uma lei universal para a criação: e não apenas para a humanidade, mas para os animais, as plantas e as pedras, para o cosmo inteiro, do qual cada um de nós é a cabeça. Somos batizados na morte de Cristo, enterrados na água para ressuscitarmos com ele. E para a alma que foi lustrada na água batismal das lágrimas e abrasada pelo fogo do Espírito Santo, a Ressurreição não é apenas esperança, mas realidade presente; a Parúsia começa nas almas dos santos e São Simeão o Novo Teólogo pôde escrever: “Sobre os que se tornarão filhos dessa luz e filhos do dia por vir, e que podem caminhar dignamente na luz, o Dia do Senhor não virá jamais, pois eles já estão nele desde já e para todo o sempre[52]”. Um oceano infinito de luz se derrama do corpo ressuscitado do Senhor.



[1] João 1: 14.
[2] João 1: 8.
[3] João 1: 14.
[4] Máximo o Confessor, Capítulos teológicos e econômicos I, 66.
[5] Refere-se ao “não-ser” (me on) relativo dos Gregos.
[6] Irineu de Lyon, Contra as heresias III, 10, 2.
[7] Atanásio de Alexandria, Sobre a encarnação do Verbo, 54, 3.
[8] II Pedro 1: 4.
[9] I Colossenses 15: 45-49.
[10] Máximo o Confessor, Cartas, 21.
[11] Doutrina existente nos séculos II e III que negava a existência de um corpo material a Jesus Cristo, que seria apenas espírito.
[12] Ver Concílios Ecumênicos, tomo II: Decretos.
[13] Oração após a preparação dos dons.
[14] Máximo o Confessor, Opúsculos teológicos e polêmicos.
[15] João Damasceno, A fé Ortodoxa III,11.
[16] Filipenses 2: 5-11.
[17] Isaías 53: 3.
[18] Isaías 53: 10.
[19] Isaías 53: 5.
[20] João 14: 28.
[21] Ver Livro das Horas, pg. 254.
[22] Gregório Palamas, Homilia sobre a Transfiguração.
[23] João Damasceno, A fé Ortodoxa III, 15.
[24] Máximo o Confessor, Disputatio Byzae. 14.
[25] Máximo o Confessor, Opúsculos teológicos e polêmicos, 1.
[26] João 12: 27.
[27] Concílios Ecumênicos, tomo II: Os Decretos.
[28] João 12: 27-28.
[29] Mateus 26: 39.
[30] Lucas 23: 41.
[31] Gregório de Nazianze, Discurso 45, 28.
[32] Atanásio de Alexandria, Sobre a Encarnação do Verbo, 9.
[33] João 1: 29.
[34] Isaías 53: 7.12.
[35] Gálatas 3: 13.
[36] Dante, Inferno, Canto IV.
[37] Orígenes, Homilias sobre São Lucas XXXIV, 3.
[38] Hebreus 9: 14.
[39] Gálatas 3: 13.
[40] Mateus 27: 46.
[41] Salmo 21: 12.
[42] João Damasceno, Homilias sobre a Páscoa, 3.
[43] Máximo o Confessor, Questões a Thalassius, 42.
[44] Gregório de Nissa, Discurso catequético, XXIV; In Christi ressurrectionem, I.
[45] Gregório de Nazianze, Discurso 45, 29.
[46] Gregório de Nazianze Discurso 45, 22.
[47] Nicolas de Cues, De docta ignorantia III, 4.
[48] Gregório de Nazianze, Discurso 45, 22.
[49] Ibid.
[50] Gregório de Nissa, In Christi ressurrectionem, I.
[51] Irineu de Lyon, Contra as heresias III, 16, 6.
[52] Simeão o Novo Teólogo, Tratado ético X, 132-135.