domingo, 19 de março de 2017

João Damasceno - A Fé Ortodoxa - Livro II

João Damasceno - A Fé Ortodoxa - Livro II


15 (II, 1)

O século

Foi ele quem criou os séculos[1], ele que existe antes de todos os séculos e a quem o divino Davi se dirige: “Tu existias antes dos séculos[2]”. E de quem o Apóstolo divino falou: “Por quem ele criou os séculos[3]”.

É preciso ter em mente que o termo aion possui muitos sentidos, pois ele designa muitas coisas. Chamamos aion à vida de cada homem. Chamamos de aion uma duração de mil anos. Chamamos ainda de aion a toda a vida presente, bem como a vida futura, aquela depois da ressurreição, a que não tem fim. Também falamos de aion a respeito, não do tempo ou de uma porção do tempo medida pela revolução e pelo curso do sol, vale dizer, pela sucessão dos dias e das noites, mas a respeito daquilo que se estende por eternidades, sejam movimentos ou intervalos temporais. Pois aquilo que o tempo representa para o que está sob a dependência do tempo, o aion representa para o que é eterno.

Falamos, por conseguinte, de sete eras (aions) do mundo desde a criação do céu e da terra até a realização e a ressurreição geral do gênero humano. Uma realização parcial corresponde à morte de cada pessoa, mas existirá ima realização geral e universal, quando se produzir a ressurreição geral dos homens. A oitava era virá a seguir.

Antes da fundação do mundo, quando o sol ainda não estava aí pata distinguir o dia da noite, não havia um aion mensurável, mas uma espécie de movimento e de intervalo temporais, estendendo-se sobre as eternidades. Desse ponto de vista, que é também o que se usa para dizer que Deus é eterno (aionios), ou seja, pré-eterno, não existe senão um único aion. Efetivamente, o próprio Deus fez o aion: sendo só e sem começo, Deus é o autor do universo, dos séculos e de todos os seres. Quando digo Deus, estou evidentemente falando do Pai, de seu Filho monogênio, nosso Senhor Jesus Cristo, e de seu Espírito santíssimo, nosso Deus único.

Falamos de “séculos dos séculos” no sentido em que as sete eras do mundo presente compreendem idades, também chamadas de vidas de homens num número imenso, sendo que o aion único compreende todas as idades (aions). Também chamamos de “século do século” aquele em que estamos agora, mais o que virá a seguir. As expressões de “vida eterna” e “castigo eterno” indicam o caráter sem fim do século futuro. Pois após a ressurreição o tempo não mais será contado em dias e noites; haverá um dia único sem entardecer[4], sob o brilho ofuscante do sol de justiça para os justos, mas também uma profunda e interminável noite para os pecadores. Sendo assim, como contar o tempo de mil anos da apocatástase[5] de Orígenes? Deus é o autor único de todos os séculos, ele que também criou o conjunto do universo, e que existe desde antes de todos os séculos.

16 (II, 2)

A criação

Ora, sendo Deus bom e além de toda bondade, ele não se contentou em contemplar a si mesmo; pela superabundância de sua bondade, ele desejou que fossem produzidos seres que se beneficiassem de sua liberalidade e que participassem de sua bondade; ele trouxe do não-ser à existência todo o conjunto do universo, visível e invisível, assim como o homem, composto do visível e do invisível. Ele a tudo criou concebendo intelectualmente: sua concepção veio à luz como uma obra realizada pelo Verbo e levada à sua perfeição pelo Espírito.

17 (II, 3)

Os anjos

Ele é o autor e o criador dos anjos, que ele trouxe do não-ser à existência, a quem ele criou à sua imagem com uma natureza incorpórea, como um sopro ou um fogo imateriais, segundo as palavras do divino Davi: “Aquele fez dos ventos seus anjos e das chamas do fogo seus servidores[6]”. Isso bem representa a agilidade, o ardor, o calor, a extrema penetração, a vivacidade no desejo e no serviço a Deus, sua aspiração para o alto e sua  independência de todo pensamento material.

Um anjo, por conseguinte, é uma essência intelectiva, em perpétuo movimento, livre, incorpórea, a serviço de Deus, que recebeu pela graça em sua natureza a imortalidade; e somente o criador conhece o gênero e a definição de sua essência. Mas quando dizemos que o anjo é incorpóreo e imaterial, é apenas em relação a nós; pois todo objeto comparado com Deus, o único incomparável, se mostra grosseiro e material, pois somente a divindade é realmente incorpórea e imaterial.

Assim é que o anjo é uma natureza racional, intelectiva e dotada de livre arbítrio, suscetível de mudar por sua própria iniciativa, ou seja, que se move à vontade. Com efeito, toda criatura é também suscetível de mudança; somente o incriado é imutável, enquanto todo ser racional é dotado de livre arbítrio. Na medida em que é racional e intelectivo, a criatura é dotada de livre arbítrio; na medida em que é criada, ela está destinada à mudança, com o poder de se manter e de progredir para o bem ou de se voltar para o mal.

Incorpóreo, o anjo é inacessível ao arrependimento. Pois o homem, devido à fraqueza de seu corpo, pode sentir o arrependimento. O anjo é imortal, não por natureza, mas por graça: tudo o que teve começo terá, por natureza, um fim. Somente Deus é eterno, ou antes, ele está além da eternidade: autor do tempo, ele está longe de ficar sob a dependência do tempo, e permanece além do tempo.

Os anjos são as luzes intelectivas do segundo escalão que recebem a iluminação da luz primigênia e sem começo. Eles não recorrem à voz, nem ao ouvido: sem proferir palavra, eles comunicam mutuamente seus pensamentos e desígnios particulares.

Portanto, pelo Verbo foram criados todos os anjos, e foi pela ação do Espírito Santo que eles foram levados à perfeição da santidade, participando da iluminação e da graça na proporção de sua dignidade e de seu posto.

Os anjos são circunscritos: quando eles estão no céu eles não estão sobre a terra e, se Deus os envia à terra, eles cessam de estar no céu. Eles não sofrem a limitação de muralhas, portas, cercas, selos, etc., pois eles não possuem limitação espacial. Digo “sem limitação espacial”, pois eles não se manifestam tal como são àqueles a quem Deus considera merecedores de sua aparição; eles se transformam segundo a capacidade de visão daqueles que os veem. “Pois, sem limitação espacial por natureza e no sentido próprio, somente o incriado; todas as criaturas recebem seus limites do Deus que as criou”.

Como eles recebem sua santificação do exterior de sua essência, do Espírito santo, é pela graça divina que eles profetizam; e eles não precisam se casar, pois não são mortais.

Como eles são espirituais, eles vivem em lugares igualmente espirituais, sem estar corporalmente circunscritos (pois sua natureza não comporta figura corporal e eles não possuem extensão num espaço de três dimensões), pelo fato de estarem espiritualmente presentes e agindo aonde quer que tenham sido ordenados fazê-lo; e eles não podem agir aqui e ali no mesmo instante.

Se eles são por essência iguais ou diferentes uns dos outros, isso nós ignoramos. Somente Deus, seu criador, o sabe, ele que conhece tudo. Porém eles diferem uns dos outros por sua iluminação e seu status, seja esse status proporcional à iluminação, seja por participarem da iluminação em função de seu status e por iluminarem uns aos outros por causa da superioridade de seu posto ou de sua natureza. Pois é evidente que são os superiores que transmitem aos inferiores a iluminação e a ciência.

Firmes e prontos a cumprir a vontade divina, nós os encontramos em toda parte onde o ordene um sinal divino, graças à sua prontidão natural, para proteger uma parte da terra, governar as nações e seus territórios segundo as prescrições do criador, administrar nossos negócios e vir em nosso socorro. De qualquer maneira, como eles estão acima de nós em virtude da vontade e da ordem divina, eles vivem constantemente na corte de Deus.

É muito difícil levá-los ao mal, mas eles podem ceder nesse ponto; na realidade, eles não cedem jamais; não por natureza, porém, mas pela graça, e porque eles se mantêm próximos somente do bem. Eles estão acima de nós porque são incorpóreos e livres de toda paixão corporal, mas eles não são impassíveis; somente a divindade é impassível. Eles se transformam em função das ordens de Deus, seu mestre, e assim eles aparecem aos homens e lhes revelam os mistérios divinos. Eles vivem no céu e sua única atividade é o louvor a Deus e o serviço neste lugar da vontade divina.

Como diz a respeito das coisas divinas o santíssimo, venerável e sábio Denis o Areopagita, “a Teologia inteira, vale dizer a santa Escritura, forneceu nove nomes para as essências celestes que nosso divino iniciador das coisas sagradas dividiu em três ordens tríplices. A primeira, diz ele, está constantemente ao redor de Deus e se une a ele de modo permanente e imediato; trata-se, segundo a tradição, dos Serafins de seis asas, dos Querubins de inumeráveis olhos e dos tronos santíssimos. A segunda é a das dominações, das virtudes e das potências. A terceira e última é a dos principados, dos arcanjos e dos anjos”.

Alguns dizem que eles vieram à existência antes de toda a criação; é o que diz Gregório o Teólogo: “Em primeiro lugar ele concebeu as potências angélicas e celestes, e este pensamento foi uma obra”. Outros dizem que foi depois da criação do primeiro céu. Que tenha sido antes da criação do homem, todos o reconhecem. Para mim, eu me coloco com a opinião de Gregório o Teólogo: com efeito, convinha que em primeiro lugar fosse criada a essência intelectiva, depois a do sensível e enfim, nascido das anteriores, o homem.

Todos os que afirmam que os anjos são os criadores de uma essência qualquer são filhos da boca do diabo. Sendo criaturas, os anjos não podem ser criadores. O autor de todas as coisas, que provê e mantém a tudo, é Deus, o único incriado, aquele que é louvado e glorificado no Pai, no Filho e no Espírito Santo.

18 (II, 4)

O diabo e os demônios

Dentre as potências angélicas, o chefe da coluna encarregada por Deus da proteção da ordem circunterrestre e terrestre não era mau por natureza. Ao contrário, bom, feito para o bem, desprovido, graças ao criador, de todo traço de malícia, por não haver suportado a iluminação e a dignidade que o criador lhe concedera, desviou-se, por uma escolha deliberada, daquilo que era conforme à sua natureza, voltando-se para o seu contrário. Ele se dirigiu contra Deus, seu criador, decidido a lhe resistir; pois ele foi o primeiro a se desviar do bem e a se engajar no mal. O mal não é outra coisa do que a privação do bem, assim como a escuridão é a privação da luz. Com efeito, se o bem é a luz do intelecto, o mal é a treva do intelecto. Tendo sido criado bom por seu criador e bom desde que chegou à existência – efetivamente, Deus “viu tudo o que havia feito e viu que era muito bom[7]” – por uma livre escolha de sua vontade, ele se tornou treva. Com ele, em sua companhia, foi arrastada na queda uma multidão infinita de anjos que haviam sido colocados sob sua autoridade. Certamente, estes eram da mesma natureza dos demais anjos, mas se tornaram maus depois de desviarem voluntariamente sua livre escolha do bem para o mal.

Entretanto, eles não têm nem poder nem força contra ninguém, senão em virtude de um consentimento providencial de Deus, como, por exemplo, no caso de Jó[8], ou segundo o que está escrito no Evangelho a respeito dos porcos[9]. Com a autorização de Deus, porém, eles têm força, eles mudam de aspecto e se transformam, no plano do imaginário, na figura que quiserem.

Nem os anjos nem os demônios conhecem o porvir. Porém, os anjos predizem, por revelação de Deus e sob sua ordem, e eis porque eles anunciam o que irá acontecer. Também os demônios fazem previsões, seja porque conseguem visualizar o que acontecerá dentro de algum tempo, seja porque o conjuram, e é por isso que, na maior parte das vezes, eles se enganam. Não se deve confiar neles, mesmo se eles disserem a verdade seguidas vezes, como dissemos. E eles também conhecem as Escrituras.

É através deles que todas as maldades são concebidas, bem como as paixões impuras. E, se por um lado, eles têm a possibilidade de fazer sugestões ao homem, por outro eles não são capazes de obrigar ninguém. Porque está em nosso poder aceitar ou não suas sugestões. É por isso que para o diabo e seus demônios, e também para aqueles que os seguem, foi preparado o fogo inextinguível, esse castigo eterno[10].

Finalmente, devemos saber que aquilo que a morte representa para os homens, a queda representou para os demônios. Depois da queda o arrependimento já não é possível para eles, assim como não o é para os homens após a morte.

19 (II, 5)

A criação visível

Foi nosso Deus, a quem sejam dadas glórias na trindade e na unidade, que fez o céu e a terra e tudo o que neles se encerra, levando do não –ser à existência o conjunto de todas as coisas. Algumas, como o céu, a terra, o ar, o fogo, a água, não provêm de uma matéria pré-existente; outras, como os animais, as plantas, as sementes, provêm daquelas coisas que foram criadas por ele. Essas coisas extraem sua origem da terra, da água, do fogo e do ar sob a ação ordenadora do criador.

20 (II, 6)

O céu

O céu é a envoltória das criaturas visíveis e invisíveis. Com efeito, no seu interior estão encerradas as potências intelectivas dos anjos e todas as realidades sensíveis; ele as circunscreve. Somente a divindade é impossível de delimitar, ela que preenche tudo, envolve tudo, limita tudo, porque está além de tudo e a tudo criou.

Assim é que a Escritura fala do céu, do “céu do céu[11]” e dos “céus dos céus[12]”, e o bem-aventurado Paulo declara ter sido “arrebatado até o terceiro céu[13]”. Por conseguinte, afirmamos ter recebido por tradição que o céu foi criado no decurso da cosmogênese do universo, este céu que os sábios exteriores, apropriando-se da doutrina de Moisés, chamam de esfera sem astros. Por outro lado, Deus chamou de céu[14] também o firmamento cuja existência ele prescreveu em meio às águas, tendo o papel de fazer a separação entre as águas de cima do firmamento e as águas debaixo do firmamento. Segundo o divino Basílio, que recebeu sua iniciação da Santa Escritura, a natureza desse firmamento é sutil como a de uma fumaça. Para outros, ela é aquosa, por ter sido produzida em meio às águas; segundo outros, ela foi extraída dos quatro elementos; para outros ainda, trata-se de um quinto corpo diferente dos quatro elementos.

Alguns pensaram que o céu envolveria circularmente o universo, que ele teria uma forma esférica e que em todas as direções ele constituiria a parte mais elevada; que, por outro lado, a parte mediana do lugar que ele envolve seria uma parte inferior e que os corpos leves e pouco consistentes teriam recebido do criador um lugar elevado, enquanto que os corpos pesados e grosseiros se voltariam para baixo, ocupando a região inferior, ou seja, a do meio. Assim, o elemento mais leve e ascendente, o fogo, seria aquele que, segundo eles, estaria colocado imediatamente depois do céu, que eles chamam também de “éter”; depois dele, um grau abaixo, estaria o ar. A terra e a água, por serem pesados e voltados para baixo, estariam suspensas na parte mais central. Dessa forma, haveria uma oposição: em baixo, a terra e a água – mas a água, por ser mais leve do que a terra, é também mais móvel do que ela – e no alto, em todas as direções e formando como que uma envoltória circular, o ar, e, ao redor do ar, em todos os sentidos, o éter; finalmente, ao redor de tudo, exteriormente e circularmente, o céu.

O movimento do céu, afirmam eles, é circular; e ele mantém apertado tudo o que ele contém, de modo a que tudo permaneça fixo e ao abrigo de quedas.

O céu, dizem eles, possui sete zonas superpostas. Ele é, segundo eles, de uma natureza extremamente sutil, comparável à do vapor, e a cada zona corresponde um planeta. Existem sete destes: sol, lua, Zeus, Hermes, Ares, Afrodite e Cronos. Eles denominam como Afrodite aquele que é tanto a estrela da manhã como a estrela da tarde. E eles os chamam de planetas porque eles realização seu movimento num sentido contrário ao do céu: o céu e os outros astros se movem do oriente para o ocidente, e aqueles se movem do ocidente para o oriente. Esse fenômeno pode ser reconhecido pela lua, que retrocede um pouco a cada entardecer.

Os que atribuíram ao céu uma forma esférica são os mesmos que afirmam que ele está a uma mesma distância da terra para cima, para os lados e para baixo. Para baixo e para os lados, com certeza, conforme nossa percepção, porque do ponto de vista da lógica o céu ocupa de todos os lados a parte alta e a terra a parte baixa. Eles dizem ainda que o céu envolve circularmente a terra como uma esfera, e que, pela extrema rapidez de seu movimento, ele acompanha o sol, a lua e os astros, e que, no momento em que o sol está por cima da terra é dia aqui e noite sob a terra. E que, quando o sol está abaixo da terra, é dia lá e noite aqui.

Outros, ao contrário, imaginaram um céu semiesférico, segundo as palavras inspiradas de Davi: “Ele desdobrou o céu como um manto de couro[15]”, o que designa uma tenda, e também as palavras do bem-aventurado Isaías: “Ele dispôs o céu como uma abóboda[16]”. Ademais, ao se por, o sol, a lua e os astros contornariam a terra desde o ocidente pelo norte e assim chegariam outra vez ao oriente. No entanto, nas duas hipóteses, tudo se produziu e se estabeleceu pela ordem divina e pela vontade e o desígnio divinos, que a tudo deram um fundamento inquebrantável. “Pois ele falou e eles surgiram; ele comandou e tudo foi criado. Ele estabeleceu a tudo pelos séculos e pelos séculos dos séculos, e estabeleceu uma lei que não será transgredida[17]”.

O primeiro céu é, portanto, o céu do céu, situado acima do firmamento. Já temos dois céus. “E Deus chamou ‘céu’ ao firmamento[18]”. Por outro lado, a santa Escritura também costuma chamar de “céu” os ares, porque o vemos acima de nós. “Bendiga, diz ela, os pássaros do céu[19]”, e entendo com isso os ares. Pois são os ares, não o céu, o domínio dos pássaros. Eis, assim, os três céus de que fala o divino Apóstolo. Se quisermos agora tomar as sete zonas no sentido de sete céus, a palavra da verdade[20] não seria afetada. Também é comum, em hebraico, designar o céu no plural, como “céus[21]”. Para dizer “céu do céu”, diz-se “céus dos céus[22]”, o que mostra que o céu do céu designa o que está acima do firmamento e as águas acima dos céus, ou dos ares e do firmamento, ou as sete zonas do firmamento, ou o firmamento, designado segundo o costume hebraico pelo nome de “céus”.

Assim, de um lado, tudo o que tem uma origem está submetido à corrupção, na linha direta de sua natureza; e também os céus são mantidos e conservados por uma favor divino. Somente a divindade é sem começo nem fim por natureza. Por isso foi dito: “Eles passarão, mas tu permanecerás (embora os céus não sejam extintos por completo); eles envelhecerão e, como velhas vestimentas serão amassados e transformados[23]”, e “haverá novos céus e uma nova terra[24]”.

De resto, as dimensões do céu são bem maiores do que as da terra. Quanto à essência do céu, não devemos inquiri-la, pois ela não nos pode ser conhecida.

Enfim, ninguém deve supor que os céus ou os luminares sejam animados: eles são desprovidos de alma e de sensibilidade. Assim, mesmo que a Escritura afirme: “Que os céus se rejubilem e que a terra exulte[25]”, o que ela faz é chamar os anjos do céu e os homens da terra a que se regozijem. A Escritura trabalha com personificações e fala dos seres sem alma como se eles fossem animados. Assim: “O mar fugiu, o Jordão bateu em retirada[26]”; e: “Porque fugiste, ó mar?[27]”. Montanhas e colinas são interrogadas sobre as razões de seus tremores, do mesmo modo como dizemos: “A cidade se reuniu”, sem pretender designar os edifícios, mas os habitantes da cidade. E ainda “Os céus contam a glória de Deus[28]”, não que eles digam por palavras que possam ser ouvidas por nossos ouvidos sensíveis, mas porque nos apresentam por sua própria imensidão o poder do criador, e pela contemplação de sua beleza nos façam dar glórias ao autor, como a um perfeito artesão.

21 (II, 7)

A luz, o fogo, os luminares, o sol, a lua e as estrelas

O fogo é um dos quatro elementos, ele é leve e sobe mais alto do que os outros, é capaz de queimar e de iluminar. Ele foi criado pelo demiurgo no primeiro dia; com efeito, a santa Escritura diz: “Disse Deus: ‘Faça-se a luz’. E a luz foi feita[29]”. Pois o fogo, como dizem alguns, não é outra coisa senão a luz. Outros afirmam que acima dos ares se encontra o fogo cósmico, que eles chamam de “éter”. No princípio[30], portanto, ou, dito de outra forma, desde o primeiro dia, Deus fez a luz, veste e ornamento de toda a criação; pois se suprimirmos a luz tudo se torna irreconhecível na escuridão, sem poder manifestar sua bela aparência. “Deus chamou à luz ‘dia’ e chamou de ‘noite’ a escuridão[31]”. A escuridão não é uma substância, mas um acidente: ela é a privação da luz. Com efeito, o espaço, em sua substância própria, não possui luz. Portanto, Deus chamou de escuridão o próprio fato de que o espaço não possui luz. E não é a substância do espaço que é a escuridão, mas a privação de luz, o que denota um acidente, mais do que uma substância. Não foi a noite que foi primeiro nomeada, mas o dia, de tal modo que o dia é o primeiro e a noite vem por último. A noite se segue ao dia, e do começo do dia até o dia seguinte temos uma jornada. Com efeito, a Escritura diz: “Houve um entardecer e uma manhã, um só dia[32]”.

Portanto, durante esses três dias, houve dia e houve noite, porque a luz se espalhava e se retirava sob a ordem de Deus[33]. Mas no quarto dia, Deus fez o grande luminar, o sol, com poder e autoridade sobre o dia (de fato, é por causa dele que o dia existe: pois um dia consiste em que o sol esteja acima da terra e o espaço de um dia é aquele do decurso do sol sobre a terra desde o levante até o poente), e fez os pequenos luminares, ou seja, a luz e as estrelas, com poder e autoridade sobre a noite para iluminá-la. A noite consiste em que o sol esteja debaixo da terra e o espaço de uma noite é o decurso do sol sob a terra do poente até o levante. A lua e as estrelas, por conseguinte, receberam a ordem de iluminar a noite; não que elas estejam sempre por sob a terra durante o dia (pois mesmo durante o dia existem estrelas no céu sobre a terra), mas o sol as dissimula, assim como a lua, não deixando que elas sejam percebidas por causa de seu brilho excessivo.

Nesses luminares o criador depositou a luz primordial, não porque faltasse a outra luz, mas para que esta luz não permanecesse inativa. Pois um luminar não é a luz em si, mas um receptáculo da luz.

Dentre esses luminares, existem sete aos quais chamamos de planetas. Eles se movem, conforme se diz, com um movimento oposto ao do céu, e daí vem seu nome de planetas. Pois o céu se move do levante para o poente, e os planetas do poente para o levante. Por ser mais rápido, o céu arrasta os sete planetas em seu movimento: o sol, a lua, Júpiter, Mercúrio, Marte, Vênus, Saturno. A cada zona do céu corresponde um dos sete: para a primeira, o mais elevado, Saturno; para a segunda, Júpiter; para a terceira, Marte; para a quarta, o sol; para a quinta, Vênus; para a sexta, Mercúrio; e para a sétima, que é também a mais baixa, a lua.

Eles percorrem uma trajetória sem fim, que o criador lhes assinalou em conformidade com o modo como os estabeleceu, como disse o divino Davi: “Lua e astros que estabelecestes[34]”; por este termo “estabelecestes” ele indica o caráter fixo e imutável da ordem e do encadeamento que lhes foram dados por Deus. Pois a cada um ele dispôs seus momentos, seus dias e seus anos.

Com efeito, é por intermédio do sol que são constituídas as quatro estações. A primeira é a primavera: foi durante ela que Deus fez todo o universo; o que o demonstra é que, até hoje, a eclosão das flores ocorre nessa estação, que é também a do equinócio: tanto o dia como anoite contam doze horas cada. Ela se produz a partir do nascer mediano do sol, ela é temperada, ela faz crescer o sangue, ela é quente e úmida e constitui por si própria um termo médio entre o inverno e o verão, mais quente e seca do que o inverno, mais fria e úmida do que o verão. Ela se estende desde 21 de março até 24 de junho. A seguir, na medida em que o nascer do sol sobe para as regiões mais boreais, vem a estação do verão, meio termo entre a primavera e o outono, recebendo da primavera o calor e do outono a secura: ela é quente e seca e faz crescer a bile amarela. É no verão que está o dia mais longo, com quinze horas, e a noite mais curta, com uma duração de nove horas. O verão se estende de 24 de junho a 25 de setembro. Depois o sol retorna para o meio levante e a estação do outono sucede a do verão; ela forma de certo modo a média entre o frio e o calor, o seco e o úmido, e constitui um meio termo entre o solstício de verão e o do inverno, recebendo do verão a secura e do inverno o frio; sendo ao mesmo tempo quente e fria, ela faz crescer a bile negra. É igualmente uma estação de equinócio, com o dia e anoite de doze horas. Ela se estende desde 25 de setembro até 25 de dezembro. Quando o sol desce para a parte mais baixa e mais próxima do nível da terra, também chamada de a mais meridional do levante, chega a estação do inverno, fria e úmida, o que a situa entre o outono e a primavera: ela recebe o frio do outono e a umidade da primavera. Ela apresenta o dia mais curto, de nove horas, e a noite mais longa, de quinze horas; ela faz crescer a fleuma. Ela se estende de 25 de dezembro a 21 de março. Em sua sabedoria, com efeito, o criador previu não nos fazer passar do frio, do calor, da umidade ou da secura ao extremo oposto, a fim de que não caíssemos em graves dificuldades de saúde. De fato, é notório para a razão que as mudanças súbitas são perigosas.

Assim, portanto, o sol regula as estações e por meio delas todo o ano, e também os dias e as noites, os primeiros erguendo-se e se mantendo acima da terra, estas deitando-se sob a terra; enfim, ele assiste aos outros luminares, à lua e às estrelas, emprestando a elas seu brilho.

Costuma-se dizer que doze figuras formadas por estrelas se encontram no céu, que elas apresentam um movimento contrário ao do sol, da lua e dos demais cinco planetas, e que os sete planetas passam pelos doze signos do zodíaco. O sol percorre cada signo do zodíaco em um mês e em doze meses ele atravessa os doze. Eis os nomes dos signos e os meses que a eles correspondem: Áries (recebe o sol em 21 de março), Touro (em 23 de abril), Gêmeos (em 24 de maio), Câncer (em 24 de junho), Leão (em 25 de julho), Virgem (em 25 de agosto), Libra (em 25 de setembro), Escorpião (em 25 de outubro), Sagitário (em 25 de novembro), Capricórnio (em 25 de dezembro), Aquário (em 25 de janeiro) e Peixes (em 25 de fevereiro).

A lua atravessa a cada mês os doze signos do zodíaco, porque ela é mais baixa e os percorre mais velozmente; é como se fosse um círculo dentro do qual se traça um outro círculo; o círculo inscrito será menor; da mesma forma, a trajetória da lua, que é mais baixa, é menos longa e termina mais depressa.

Ora, os gregos afirmavam que tudo o que nos concerne é regulamentado pelo nascente, o poente e o encontro desses astros, do sol e da lua: é disso que se ocupa a astrologia. Quanto a nós, afirmamos que daí provêm os sinais de chuva e de ausência de chuva, de resfriamento e de aquecimento, de umidade e de secura, de ventos e de outras coisas semelhantes; mas não nossos atos. Pois fomos dotados de livre arbítrio pelo criador e, sendo assim, somos mestres de nossos atos. Com efeito, se fizermos tudo em função da revolução dos astros, será por necessidade que o fazemos; ora, o que se faz por necessidade não é nem virtude, nem vício. Se por outro lado não possuímos nem virtude nem vício, tampouco merecemos elogios, nem recompensas, nem reprimendas, nem castigos; e Deus se mostrará injusto, ele que prodiga bens a uns e adversidades a outros. Por outro lado, Deus não exercerá nem governo, nem providência para com suas próprias criaturas, se tudo for conduzido e levado pela necessidade. E a razão será supérflua para nós: com efeito, se não somos mestres de nenhuma de nossas ações, será supérfluo deliberar sobre elas. A razão nos foi dada essencialmente tendo em vista a deliberação; daí se segue que todo ser racional é também dotado de livre arbítrio.

Quanto a nós, afirmamos que essas conjecturas celestes não são a causa de seja lá o que for que aconteça, nem da produção do que acontece, nem da corrupção do que se corrompe. Antes, são os sinais da chuva e das mudanças atmosféricas. Podemos sem dúvida dizer também que elas não são causas, mas sinais da guerra, e que a qualidade da atmosfera produzida pelo sol, a lua e as estrelas produz, seja de um modo, seja de outro, misturas, estados e disposições diferentes. Mas as atitudes da alma provêm de nós: pois elas são governadas pela razão e por ela levadas a se modificar.

Frequentemente também aparecem cometas, sinais anunciadores da morte dos reis; não se trata de astros constituídos desde o princípio, mas que surgem por ordem da divindade em função de qualquer circunstância, e que se desagregam a seguir; é assim que não estava entre os astros surgidos no princípio a estrela vista pelos magos na época do nascimento do Senhor por nós, segundo a carne, num gesto de benevolência e de salvação. O que torna a coisa evidente é que os cometas fazem seu percurso tanto do levante para o poente, quanto do norte para o sul, e ora se escondem, ora aparecem, coisas que não pertencem à ordem natural dos astros.

Devemos saber, por outro lado, que a lua recebe sua luz do sol, não porque a Deus lhe faltasse uma luz específica para lhe dar, mas a fim de introduzir na criação medida e ordem entre o ser que comanda e o que é comandado, a fim de nos ensinar as comunicações e as trocas entre uns e outros, bem como, em primeiro lugar, a subordinação para com Deus, autor, criador e soberano mestre, a seguir para com os chefes estabelecidos por ele, sem examinarmos qual a razão pela qual outro comanda e não eu, a fim de que a tudo aceitemos de Deus com gratidão e reconhecimento.

O sol e a lua sofrem eclipses, que mostram a tolice daqueles que adoram a criação ao invés do criador[35], e que nos ensinam que eles são objetos que se movem e que e são sujeitos a alterações. Ora, tudo o que é mutável não é Deus: pois tudo o que muda é corruptível por natureza.

O sol é eclipsado quando a massa da lua se interpõe como uma espécie de muro e produz sombra ao invés de deixar que ele derrame sua luz sobre nós. O eclipse dura pelo tempo em que a massa da lua esconder o sol. Embora a massa da luz seja muito pequena, não devemos nos espantar: com efeito, no dizer de alguns, o sol é muito maior do que a terra, e, segundo os Padres, ele é igual à terra. Ademais, muitas vezes uma pequena nuvem, uma colina ou um muro o escondem.

Quanto ao eclipse da lua, ela é produzida pela sombra da terra, no momento em que lua chega ao seu décimo quinto dia, e quando, em oposição relativamente ao seu ponto culminante, o sol se encontra abaixo da terra e a lua acima da terra. A terra então projeta uma sombra e a luz do sol não chega a iluminar a lua, que, por conseguinte, se eclipsa.

Devemos saber que a lua foi criada cheia pelo demiurgo, ou seja, no seu décimo quinto dia, pois ela devia ser produzida pronta e acabada. Ora, o sol foi criado no quarto dia. A lua, assim, está defasada do sol em onze dias, pois do quarto ao décimo quarto existem onze dias. É por isso que, em relação ao tempo, os doze meses lunares deixam por onze dias de concordar com os doze meses solares. Pois os meses solares contam 365 dias e um quarto. É por isso que, adicionando este quarto a cada quatro anos, resulta um dia, ao qual chamamos bissexto. Esse ano conta então 366 dias. Mas os anos lunares são de 354 dias. De fato, a luz, desde seu nascimento, também chamado de renovação, cresce até chegar a quatorze dias e três quartos; então ela começa a decrescer até o vigésimo nono dia e meio, quando se torna inteiramente escura. Depois ela se liga outra vez ao sol, renasce e se renova, trazendo-nos uma lembrança de nossa ressurreição. Assim, a cada ano ela deixa onze dias ao sol. assim, para os hebreus, constitui-se a cada três períodos um mês intercalado, e então o ano comporta treze meses pela adição consecutiva dos onze dias.

Evidentemente o sol, a lua e os astros são compostos e submetidos por sua natureza à corrupção. Quanto a essa natureza, ignoramo-la. Alguns pretendem que o fogo não surge sem alguma espécie de matéria, de sorte que, uma vez extinto, ele desaparece. Outros pretendem que, uma vez extinto, ele se transforma em ar.

O ciclo zodiacal se move obliquamente, dividido em doze sessões às quais chamamos de signos do zodíaco; um signo do zodíaco possui três decanatos e trinta partes; e cada parte comporta sessenta subdivisões. Assim sendo, o céu possui 360 graus, sendo 180 no hemisfério acima da terra e 180 no hemisfério abaixo da terra.

As casas dos planetas são as seguintes: Áries e Escorpião, casa de Marte; Touro e Libra, casa de Vênus; Gêmeos e Virgem, casa de Mercúrio; Câncer, casa da Lua; Leão, casa do Sol; Sagitário e Peixes, casa de Júpiter; Capricórnio e Aquário, casa de Saturno.

São os ascendentes: Áries, ascendente do Sol; Touro, da lua; Câncer, de Júpiter, Virgem, de Mercúrio. Libra, de Saturno; Capricórnio, de Marte; Peixes, de Vênus.

As fases da lua são: conjunção, quando ela está na região onde se encontra o sol; nascimento, quando ela aparece; nascente, quando ela está a quinze graus do sol; os dois crescentes, quando ela está a uma distância de sessenta graus; as duas meias-luas, quando está a uma distância de noventa graus; os dois chifres, quando está a uma distância de cento e vinte graus; semiplena ou semiluminosa, por duas vezes, quando está a uma distância de cento e cinquenta graus; lua cheia, quando está a uma distância de cento e oitenta graus. Quando falamos em duas vezes, significa uma crescente e uma minguante. A lua ocupa cada signo do zodíaco por dois dias e meio.


22 (II, 8)

O ar e os ventos

O ar é um elemento muito sutil, úmido e quente, mais pesado do que o fogo, mais leve do que a terra e as águas. Ele é a causa da respiração e da voz, ele é incolor, ou seja, por sua natureza ele não possui cor, ele é límpido, transparente (pois ele acolhe a luz); ele é um auxiliar para três de nossos sentidos (pois graças a ele vemos, ouvimos e sentimos); ele acolhe o aquecimento e o resfriamento, a secura e a umidade, é nele que se fazem todos os movimentos locais, movimentos para o alto, para baixo, para o interior e o exterior, para a direita, a esquerda e em círculo. Ele não possui a luz, mas é iluminado pelo sol, a lua, os astros e o fogo. É o que diz a Escritura: “Havia trevas sobre o abismo[36]”; com isso ela significa que o ar não possui luz própria e que a essência da luz é outra.

O vento é um movimento do ar. O lugar também provém do ar, pois o lugar de cada corpo é aquilo que o rodeia. E o que envolve os corpos, senão o ar? Existem lugares diferentes, e daí provém o movimento do ar, e é deles que os ventos tiram seus nomes: no total de doze. Diz-se, de resto, que o ar é um fogo extinto ou o vapor da água que se aquece. Em todo caso, o ar é quente por sua própria natureza, mas ele se resfria ao contato com a água e a terra, de tal maneira que ele é frio nas camadas baixas e quente nas altas.


22b

Os ventos

O vento é uma superabundância da exalação quente e seca em movimento ao redor da terra.  Os ventos que sopram do levante no verão são os seguintes: o caekias e o meses; do levante no equinócio: o apeliotes; do levante no inverno: o euro; do poente no inverno: o lips; do poente no equinócio: o zéfiro; do poente no verão: o argestes ou olímpias, aos quais chamamos também de japix ou ergastes. Depois vêm o noto e o aparctias que sopram em sentido contrário um do outro. Entre o arpactias e o caekias, sopra o bóreas; entre o euro e o noto, o fênix, também chamado de euronotos; entre o notos e o lips, o libonotos, também chamado de leuconotos; entre aparctias e argestes, o trácias, também chamado de cercias pelas pessoas da região.

Existem assim doze ventos, que descrevemos aqui: vento leste estival, vento leste de equinócio, vento leste invernal: caekias, apeliotes, euro, meses, euronotos, bóreas, fênix, arctos; apractias, notos; mesembria; trácias, libonotos, meses, leuconotos, cercias, lips; vento oeste estival: argestes; vento oeste invernal: japix, olímpias; vento oeste estival: ergastes, zéfiro.


23 (II,9)

As águas

A água é igualmente um dos quatro elementos, uma obra prima de Deus. A água é um elemento úmido e frio, denso, pesado e fluído. A santa Escritura a menciona quando diz: “As trevas estavam sobre o abismo e o Espírito de Deus planava sobre as águas[37]”; o abismo, com efeito, não é outra coisa do que a água profunda, cujo fundo o homem não pode sondar. No começo, portanto, a água recobria toda a terra. E Deus criou primeiro o firmamento que separa ao meio a água situada acima da que está situada abaixo[38]: ele foi estabelecido por ordem do Senhor nomeio do abismo das águas. Eis porque Deus disse: “Que haja um firmamento[39]”, e eis que houve o firmamento. Porque colocou Deus a água acima do firmamento? Em razão da combustão por demais ardente do sol e do éter; com efeito, o éter se desenvolveu imediatamente após o firmamento. E o sol, a lua e os astros se encontram no firmamento; assim, se a água não se interpusesse, o firmamento teria se inflamado por causa do calor.

Em seguida, Deus ordenou às águas que se reunissem numa única concentração. A expressão “uma única concentração[40]” não quer dizer que elas estivessem reunidas em um único lugar. Eis o que a Escritura diz a seguir: "Ele deu o nome de mares às massas de água[41]”. A fórmula mostra que as águas se separaram da terra juntas e num mesmo momento. As águas se reuniram em suas concentrações e a terra apareceu[42]. A partir daí os dois mares que envolvem  Egito (pois este está situado entre dois mares) se formaram em toda sua extensão, suas montanhas, suas ilhas, seus promontórios, seus diversos portos, cercados de golfos, de margens e de falésias – o litoral arenoso tem o nome de praias, o rochoso e escarpado se chama falésia. O mesmo acontece em relação ao mar oriental, a que chamamos índico, e com o mar do norte ou cáspio. Também neste momento os lagos foram reunidos.

Quanto ao oceano, ele é como que um rio que envolve toda a terra. É a respeito dele, me parece, que a Escritura disse: “Um rio corria do Paraíso”, cuja água era potável e doce. É ele que fornece a água aos mares, que, ao se estagnar e permanecer sem movimento, se torna amarga; na medida do possível, o sol e os sifões[43] fazem com que se evapore a sua parte mais sutil. Daí provém a constituição das nuvens e a produção das chuvas, proporcionando um filtro que adoça a água.

Esse oceano se divide também em quatro braços ou quatro rios: “O primeiro se chama Fison[44]” e corresponde ao Ganges indiano; “O nome do segundo é Geon[45]“: trata-se do Nilo, que desce da Etiópia ao Egito. O terceiro se chama Tigre; e o quarto tem o nome de Eufrates. Existem ainda muitos rios grandes, dos quais alguns se jogam no mar e outros se perdem na terra. Entretanto, a própria terra é perfurada por subterrâneos, como se ela tivesse veias; recebendo neles as águas do mar, ela faz brotar as fontes. É, portanto, nessa qualidade da terra que está a origem da água das fontes. A terra filtra a água do mar, que se torna doce. Se o lugar onde jorra a fonte é amargo ou salgado, a água será tal qual a terra de onde brota. Muitas vezes a água. Comprimida, escapa com violência e é aquecida; daí provêm as águas naturalmente quentes. Segundo a ordem divina, por conseguinte, formaram-se cavidades na terra, e nesses receptáculos se reuniram as águas; daí também provêm as montanhas.

Agora, foi da água que Deus ordenou que surgisse primeiro um ser vivo, dado que é pela água e pelo Espírito Santo, levado sobre as águas no princípio, que o homem deve se renovar; de fato, é isso que afirma o divino Basílio. Deus fez surgir os animais pequenos e grandes, os cetáceos, as serpentes e os peixes que nadavam nas águas e os pássaros alados. Por meio dos pássaros se reúnem a água, a terra e o ar, pois eles saíram da água, eles vivem sobre a terra e eles voam no ar. A água é a obra-prima dos elementos, ela é de grande utilidade, ela purifica a sujeira – apenas a sujeira do corpo, a menos que se adicione a ela a graça do Espírito, dirigindo-a à alma.


23b

Os mares

Ao Egeu sucede o Helesponto, que termina em Abidos e Sestos; depois vem a Propôntide, que termina na Calcedônia e em Bizâncio. Lá estão os estreitos, onde começa o Ponto; depois vem o Paulus Meótida. Por outro lado, falando da Europa e da Líbia temos o mar ibérico, que vai das colunas até os Pirineus, o mar da Ligúria que vai até os limites da Etrúria, o mar da Sardenha, que vai do alto da Sardenha até em baixo, na direção da Líbia, o mar tirreno que para na Sicília e parte das pontas da Ligúria; em seguida vem o mar líbio, depois os de Creta, da Sicília, o mar jônico, o adriático, aquele que se desvia do mar da Sicília e ao qual chamamos de golfo de Corinto ou mar de Alcione. O mar encerrado entre os cabos de Sunion e Cila é o mar sarônico. Depois vem o mar de Mirto e o de Ícaro, onde se encontram as Cíclades; depois os mares de Cárpatos, da Panfília e o Egito. Acima do mar de Ícaro e na sua sequência vem o mar Egeu. A travessia do mar da Europa da embocadura do Tanais até as colunas é de 609.709 estádios; a do mar líbio a partir de Tinges até o estuário canópico é de 209.252 estádios; a do mar da Ásia, de Canopo até Tanais, incluído dos golfos, é de 400.111 estádios. O conjunto das margens, com os golfos, que bordeiam as terras habitadas é de 1.309.072 estádios.

24b (II, 10)

A terra e o que ela encerra

A terra é um dos quatro elementos, ela é seca, fria, densa e imóvel, e foi trazido do não-ser à existência no primeiro dia. Foi dito, com efeito: “No princípio criou Deus os céus e a terra[46]”. Nenhum homem jamais pôde dizer sobre qual fundamento ela se assenta. Uns afirmam que ela está fundada e fixada sobre as águas, segundo a declaração do divino Davi: “Aquele que fixou a terra sobre as águas[47]”. Outros falam do ar, e outro diz: “Aquele que fixou a terra sobre nada[48]”. Dai, inspirado, direto, empresta ao criador as palavras: “Eu firmei as colunas da terra[49]” (pelo termo de “colunas”, ele designa a capacidade de coesão da terra. Quanto à frase: “Sobre os mares ele fundou a terra[50]”, ela mostra que a água, por sua natureza, se espalha de todos os lados ao redor da terra. Portanto, se concordamos que ela está fundada sobre si mesma, sobre o ar, sobre a água ou sobre nada, não devemos nos afastar da concepção verdadeiramente religiosa, mas confessar que todo o conjunto é governado e conservado pelo poder do criador.

Portanto, no princípio, segundo afirma a Escritura, a terra estava oculta sob as águas, e ela era informe, ou seja, sem ordem. Ao comando de Deus, formaram-se os receptáculos das águas; então as montanhas vieram à existência e, mediante o comando divino, a terra recebeu sua ordem própria, depois de haver se ornado com toda espécie de verduras e plantas, nas quais a ordem divina depositou um poder de crescimento, de nutrição e de germinação, vale dizer, de reprodução do semelhante. Depois, ao chamado do criador, surgiram todas as espécies de animais, os rastejantes, as feras e os animais de carga. Todos estão destinados a um uso eventual pelo homem, alguns para sua alimentação, como cervos, cordeiros e cabras, etc., outros para seu serviço, como os camelos, bois, cavalos, asnos, etc., outros para sua diversão, como os macacos e também, entre os pássaros canoros, os papagaios, etc. Dentre as árvores e as plantas, algumas trazem frutos bons para comer, outras nos forma dadas por suas flores perfumadas e outras para a cura das doenças. Pois não existe animal ou planta no qual o criador não tenha depositado alguma energia que sirva às necessidades dos homens. Este, com efeito, “que conhece todas as coisas antes de seu nascimento[51]”, sabia que o homem iria cometer uma transgressão voluntária e ser atirado à corrupção; por conseguinte, ele a tudo criou para o uso do homem no tempo oportuno, tanto o que está no firmamento, como o que está sobre a terra e nas águas.

Assim, antes da transgressão tudo estava submetido ao poder do homem, pois Deus o estabelecera como mestre de tudo o que há na terra e nas águas. E a serpente, mais do que todos, era familiar ao homem; ela o frequentava e se dirigia a ele com mímicas sedutoras. Foi a partir daí que o diabo, príncipe do mal, insinuou aos nossos primeiros parentes o pior dos conselhos. Até então, a terra produzia espontaneamente os frutos indispensáveis aos seres vivos submetidos ao homem, e sobre a terra não havia chuva nem tempestade. Mas depois da transgressão, quando o homem se tornou comparável aos animais privados de inteligência e se reuniu a eles[52], disposto a deixar que o desejo irracional comandasse seu intelecto racional, recusando-se a ouvir o preceito do Senhor, a criação, até então submissa, se revoltou contra o metre escolhido pelo criador e ele teve que trabalhar com seu suor a terra do qual fora tirado.

Mesmo no presente, porém, a frequentação dos animais selvagens não deixa de ter utilidade: ela inspira o temor e leva ao reconhecimento e à invocação de Deus, seu autor. Os espinhos nasceram da terra depois da transgressão de acordo com a sentença do Senhor; segundo esta, os espinhos foram acrescentados à rosa para nos lembrar a transgressão, por cuja causa a terra foi condenada[53] a gerar cardos e espinhos.

Podemos acreditar que foi assim que as coisas se passaram, pois até hoje a palavra do Senhor fez subsistir os seres, pois ele disse: “Crescei, multiplicai-vos e enchei toda a terra[54]”.

De resto, alguns afirmam que a terra tem o formato de uma esfera, enquanto outros dizem que ela tem a forma de um cone. Ela é muito menor do que o céu, como um ponto suspenso no meio deste. Também ela passará e será transformada. Bem-aventurado aquele que herdar a terra dos mansos[55]: pois a terra que deve receber os santos é imortal. Quem, portanto, não admitirá com justeza a infinita e incompreensível sabedoria do criador? E quem seria capaz de render graças como convém ao dispensador de tão grandes benesses?

24b

Eis as províncias conhecidas na terra.

Existem 34 províncias na Europa, 10 cartas: 1. Ibérnia, ilha britânica; 2. Albion, ilha britânica; 3. Espanha bética; 4. Espanha Lusitânia; 5. Espanha tarragonesa; 6. Gália Aquitânia; 7. Gália lionesa; 8. Gália céltica; 9. Gália narbonesa; 10. Grande Germânia; 11. Récia e Vindelícia; 12. Nórica; 13. Panônia superior; 14. Panônia inferior; 15. Ilíria; 16. Dalmácia; 17. Itália; 18. Ilha de C´rsega; 19. Ilha da Sardenha; 20. Ilha de Sicília; 21. Sarmácia da Europa; 22. Chersonésia táurica; 23. Iáziges nômades; 24. Dácia; 25. Mésia superior; 26. Mésia inferior; 27. Trácia; 28. Chersonésia; 29. Macedônia; 30. Épira; 31. Acádia; 32. Ilha de Eubeia; 33. Peloponeso; 34. Ilha de Creta.

Existem 12 províncias da Líbia, 8 cartas: 1. Mauritânia tingitana; 2. Mauritânia cesariana; 3. Numídia; 4. África inteira; 5. Pentapolis cirenaica; 6. Marmárica; 7. Líbia; 8. Baixo Egito; 9. Egito tebano; 10. Líbia interior à África; 11. Etiópia acima do Egito; 12. Etiópia além dessas regiões todas.

Existem 48 províncias no grande continente da Ásia, 12 cartas: 1. Bitínia do Ponto; 2. Ásia propriamente dita ao redor do Éfeso; 3. Grande Frígia; 4. Lícia; 5. Galácia; 6. Paflagônia; 7. Panfília; 8. Capadócia; 9. Pequena Armênia; 10. Cilícia; 11. Sarmácia interior à Ásia; 12. Cólcida; 13. Ibéria; 14. Albânia; 15. Grande Armênia; 16. Ilha de Chipre; 17. Celessíria; 18. Síria Fenícia; 19. Síria Palestina;  20. Arábia pétrea; 21. Mesopotênia; 22. Arábia desértica; 23. Babilônia; 24.Assíria; 25. Susiânia; 26. Média; 27. Pérsia; 28. Parciênia; 29. Carmânia desértica; 30. Carmânia segunda; 31. Arábia feliz; 32.Hircânia; 33. Margiânia; 34. Bactrinana; 35. Sogdinana; 36. Sácia; 37. Scítia iterior aos monres Imaos; 38. Scítia exterior aos montes Imaos; 39. Sérica; 40. Ária; 41. Paropamisades; 42. Drangiana; 43. Aracósia; 44. Gedrósia; 45. Índia interior aos Ganges; 46. Índia exterior ao Ganges; 47. China; 48. Ilha do Ceilão.

No total, a Europa apresenta 10 cartas, 34 províncias e 118 cidades dignas de nota; a Líbia, 8 cartas, 12 regiões, 52 cidades importantes; Grande Ásia. 12 cartas, 48 regiões, 180 cidades importantes. O conjunto do ecomeno contempla 94 regiões e 350 cidades.

Quanto aos povos que habitam os confins: do lado do apeliotes, os Bactrianos, do lado do euros, os Indianos, do lado da Fenícia, Mar Vermelho e Etiópia, do lado do notos branco, os Garamantes que estão acima da Scirta, do lado do lips, os Etíopes e os Mauros ulteriores do ocidente, do lado do zéfiro as Colunas e o começo da Líbia e da Europa, do lado do argestes a Ibéria, hoje em dia Espanha, do lado do trácias, os Celtas e seus vizinhos, do lado do norte, os Scitas de além da Trácia, do lado do bóreas, o Ponto Meótidae os Sarmates, do lado do caekias, o mar Cáspio e os Saces.


25 (II, 11)

O paraíso

Um vez que Deus estava a ponto de criar o homem a partir da criação visível e da invisível, e de criá-lo à sua imagem e semelhança[56], como um rei e um mestre de toda a terra e de tudo o que ela encerra, ele preparou para esse homem uma espécie de reino onde ele pudesse viver uma vida de alegria e prosperidade. Esse foi o jardim divino plantado no Éden[57] pelas mãos de Deus, tesouro de toda felicidade do espírito e do coração. Situado a oriente, mais elevado do que toda a terra, temperado e iluminado por um ar sutil e puríssimo, plantado com plantas sempre em flor, saturado de perfumes exóticos, ultrapassando todo sentimento de graça e de beleza que se possa conceber, lugar verdadeiramente divino, moradia digna de uma imagem de Deus, onde nenhum ser dotado de razão habitaria senão o homem, obra realizada pelas mãos divinas.

No seu centro, Deus havia plantado uma “árvore da vida[58]” e uma “árvore do conhecimento[59]”. A árvore do conhecimento, como uma prova, um exame, um exercício[60] para a obediência ou a desobediência do homem. Por essa razão ela também foi chamada de “árvore do discernimento dobem e do mal[61]”; fosse porque ela dava aos que dela se alimentavam uma capacidade de conhecer sua própria natureza, o que é um bem para os perfeitos[62], fosse porque ela constituía um mal para os menos perfeitos, aqueles cuja sensibilidade era por demais ávida, como acontece com os alimentos sólidos em relação àqueles que ainda têm necessidade de leite.  Com efeito, Deus, nosso criador não desejava que fôssemos atormentados e agitados por mil objetos e que desde o começo não nos preocupássemos em sustentar a nossa vida. Ora, isso foi o que se passou com Adão: depois de haver provado o fruto, ele reconheceu que estava nu e que precisava procurar algo para se cobrir. Então ele se vestiu com folhas de figueira. Ao contrário, antes de provar, “Adão e Eva estavam ambos nus e não sentiam vergonha[63]”. Ora, Deus desejava que fôssemos assim isentos de paixão (pois esse é o ápice da impassibilidade[64]), e que, ademais, tivéssemos como única atividade aquela mesma dos anjos: cantar sem cessar e sem interrupção ao criador, nos abandonarmos à sua contemplação e entregar a ele nossas próprias inquietudes. É o que ele proclamou em nossa intenção por intermédio do profeta Davi: “Entregue ao Senhor toda a tua inquietação, e ele te nutrirá[65]”. E nos santos Evangelhos, ensinando aos seus discípulos, ele disse: “Não se preocupem por vossa própria vida sobre o que haverão de comer, nem para vossos corpos sobre o que haverão de vestir[66]”. Ou ainda: “Buscai o Reino de Deus e sua justiça, e todo o resto vos será acrescentado[67]”. E ao se dirigir a Marta: “Marta, Marta, tu te inquietas e te agitas a respeito de muitas coisas, quando só uma é necessária; mas Maria escolheu a melhor parte, e esta não lhe será tirada[68]”. Esta parte consistia em estar sentada a seus pés e escutar suas palavras[69].

Quanto à “árvore da vida[70]”, tratava-se, seja de uma árvore que possuía uma energia que dava a vida, seja de uma árvores boa para alimentar aqueles que mereciam a vida e que não estavam submetidos à morte. Hoje em dia, algumas pessoas representam o paraíso como uma realidade sensível, outras como uma realidade inteligível. Na minha opinião, porém, assim como o home foi criado com sensibilidade e inteligência, também esse domínio[71] santíssimo do homem era a um tempo sensível e inteligível e possuía uma dupla forma. Por intermédio de seu corpo, de fato, o homem habitava num lugar plenamente divino e maravilhoso, como reportamos; por sua alma, ele vivia num lugar sublime, incomparável, feito só de beleza, onde Deus habitava nele e ele em Deus, que o envolvia como uma vestimenta de glória; e ele estava envolvido pela graça de Deus, como se fosse ele também um anjo, e desfrutava do fruto único, o mais suave, da contemplação de Deus, e dele se alimentava. Eis porque essa árvore foi chamada de “árvore da vida”: a suavidade da participação divina comunica aos que tomam parte dela uma vida que a morte não pode interromper. Essa árvore é a que foi chamada por Deus de “todas as árvores”: “Comereis o fruto de todas as árvores do paraíso[72]”. Ela é o todo no qual e pelo qual tudo existe.

Quanto à “árvore do conhecimento do bem e do mal”, ela representa o discernimento da contemplação penetrante. Esse discernimento é o reconhecimento da natureza própria; ela é boa para os perfeitos e para aqueles que vivem na contemplação de Deus – ela proclama por si só a grandeza da obra do criador – ela é boa para aqueles que não temem a queda por terem progredido com o tempo até se habituar a essa contemplação. Mas esse reconhecimento não é bom para os que ainda são noviços e demasiado ávidos em seu desejo. Quanto àqueles cuja perseverança ainda não é sólida e que ainda não estão suficientemente estabelecidos na busca assídua do bem e de nada além do bem, o cuidado com seu próprio corpo pode atirá-los no sentido inverso dessa contemplação e fazer com que se percam.

Assim, acredito eu, o divino paraíso apresentava um aspecto duplo. E, de fato, alguns dos Padres divinamente inspirados nos transmitiram esse ensinamento, outros outro. Além disso, podemos pensar que a expressão “todas as árvores” significa o reconhecimento do poder divino a partir de todas as criaturas, como disse o divino Apóstolo: “Desde a criação do mundo, com efeito, seus atributos invisíveis se tornaram visíveis à inteligência por intermédio de suas obras[73]”. Dentre todas essas concepções e especulações, a que nos concerne, vale dizer, a que se refere à nossa constituição, é a mais elevada, como disse o divino Davi: “O conhecimento que tenho de ti a partir de mim (ou seja, a partir de minha constituição) me encheu de espanto[74]”. Pelas razões que apresentamos, esse conhecimento era perigoso para uma Adão recentemente criado – e então a árvore da vida poderia representar o pensamento mais divino gerado a partir de todas as realidades sensíveis, a retomada da ascensão por meio delas, em direção ao autor, criador e causa de tudo.  Por essa razão ela teria sido chamada de “todas as árvores”, plena e indivisível, trazendo em si apenas a participação no bem. Pelo contrário, a árvores do conhecimento do bem e do mal designaria o alimento sensível e deleitável, que é doce na aparência, mas que na verdade faz com que aquele que o tome participe do mal. Com efeito, Deus disse: “Que ele coma de todas as árvores do paraíso[75]”, querendo dizer, na minha opinião: “suba até mim, seu criador, graças a todas as criaturas e recolha dentre todas um fruto único, ou seja, eu, a verdadeira vida[76].  Assim, que tudo, para você, lhe traga o fruto da vida e faça de sua participação em minha vida o sustento de sua própria existência. Assim, você será imortal”. “Mas não comei da árvore do conhecimento do bem e do mal. No dia em que comerdes dela, morrereis[77]”. Com efeito, segundo a natureza, o alimento sensível toma o lugar daquilo que é consumido, e depois passa aos lugares de satisfação e daí à corrupção[78]: é impossível que aquele que toma parte da alimentação sensível permaneça incorruptível.

Ou ainda: a árvore da vida consiste na participação em Deus, da qual se nutrem os anjos, e da qual deveríamos receber a incorruptibilidade. Com efeito, seria preciso antes de tudo nos submetermos sem fazermos juízo da lei de Deus, até que alcancemos a plena posse da virtude, e depois receber de Deus, como um dom, a faculdade de discernir o bem do mal – que é precisamente a árvore do conhecimento do bem e do mal. Com efeito, para quem acabou de se formar, o discernimento dos raciocínios e de sua refutação ainda não estão assegurados, por causa dos elementos afetivos e sensuais que se juntam ao raciocínio. Por conseguinte, a árvore da vida, em minha opinião, é o mandamento dado por Deus – pois a justiça é a árvore da vida para os que se ligam a ela. “É bendita a árvore por cujo intermédio a justiça desabrocha[79]”, diz Salomão. Quanto à árvore do conhecimento, trata-se do discernimento do bem e do mal. Adão devia assim, por sua obediência sem discriminação, estar unido a Deus e, por meio dessa união, adquirir, no momento em que o Deus por natureza julgasse bom, tanto a divinização como o conhecimento verdadeiro, o discernimento de todas as coisas e a vida sem limites. Mas era preciso que ele fizesse a experiência de obedecer sem discriminar.  Para isso Deus lhe dera seu mandamento: não provar da árvore do conhecimento[80], não confiar em seu próprio discernimento, não comer do fruto de uma árvore cuja ação natural lhe traria o conhecimento de si próprio, ou seja, de sua própria natureza. Ora, o maligno, tendo abordado o homem por intermédio da serpente, disse-lhe: “Vocês serão como deuses, conhecedores do bem e do mal[81]”; Adão confiou em seu próprio discernimento, e lhe pareceu bom se tornar um deus e conhecer. Ele sequer sonhou que no tempo oportuno tudo seria bom para ele, que o bem não é um bem se não se produz adequadamente, e que não devemos nos apropriar antecipadamente daquilo que nos será dado, indo contra o sentimento daquele que dá a existência e o bem ser. E ele viu que isso era bom, comeu o fruto e foi despojado de sua atração por Deus; os olhos de seus corpos se abriram, suas paixões se puseram em movimento, eles conheceram que estavam nus e tiveram vergonha[82]. E eles se afastaram de Deus e, como crianças, precipitaram-se para o prazer e foram afastados da árvore da vida e se tornaram mortais. O inimigo, por sua experiência, sabia que se manter ao lado de Deus traz o privilégio da divinização e da vida eterna.


26 (II, 12)

O homem

Assim, pois, Deus estabeleceu a substância intelectiva, pela qual eu entendo os anjos e todas as ordens celestes – pois sua natureza é evidentemente intelectiva e incorpórea; digo “incorpórea” por oposição à matéria grosseira, pois somente a divindade é realmente sem matéria e incorpórea. Depois ele estabeleceu também a substância sensível, céu, terra e tudo o mais que tem lugar nesse intervalo; enfim, a substância que lhe é própria (pois a substância racional é própria a Deus e só pode ser captada pelo intelecto), mas que de certo modo é extremamente afastada dele, uma vez que se encontra no domínio dos sentidos. Era preciso que, a partir das duas nascesse uma mistura que fosse o símbolo “da maior sabedoria e munificência em relação às naturezas”, segundo a expressão de Gregório o Teólogo, uma espécie de lugar “entre a natureza visível e a natureza invisível”. Eu digo “seria preciso”, subentendendo aí o desígnio do criador. Pois esse desígnio é a regra e a lei mais adequada e, e porque ninguém dirá àquele que o modelou: “Porque me fizeste assim?[83]”. O oleiro tem todo o direito, ao usar a argila de que dispõe, de fabricar diferentes modelos de vasos, para demonstrar sua habilidade.

Isto posto, foi a partir de uma natureza visível e de uma natureza invisível que Deus criou o homem com suas próprias mãos, à sua imagem e semelhança[84]: ele modelou o corpo a partir da terra e deu a esse corpo uma alma racional e intelectiva por intermédio de seu próprio sopro, que é precisamente o que dizemos ser a imagem de Deus. Com efeito, a expressão “à sua imagem” designa o aspecto intelectivo e o livre arbítrio, e “à sua semelhança”, a semelhança na ordem da virtude, no limite do possível.

O corpo e a alma foram modelados ao mesmo tempo, não um primeiro e depois o outro, como tolamente afirma Orígenes.

Portanto, Deus criou o homem inocente, reto, virtuoso, sem cuidados nem inquietações, resplendente de toda virtude, adornado com todos os bens, como um segundo mundo, um pequeno mundo dentro do grande, um outro anjo, um adorador misto[85], um contemplador da criação visível, um iniciado à criação pensante, um rei dos seres terrestres, mas um rei governado desde o alto, terrestre e celeste, temporário e imortal, visível e intelectivo, intermediário entre a grandeza e a pequenez, a um tempo espírito e carne, carne por seu orgulho, espírito pela graça, sendo o primeiro aspecto para que sofra as paixões e para que, sofrendo-as, se recorde e aprenda, e o segundo para que ele persista e glorifique seu benfeitor que o honrou com tal grandeza, vivendo com aquilo com que se ocupa aqui em baixo, ou seja, na vida presente e que se transfere para outra parte no século futuro e – cúmulo do mistério – divinizado por sua inclinação para Deus e também pela participação e iluminação divina, sem que no entanto seja transferido para a substância divina.

Ele criou o homem como uma natureza sem pecado e uma vontade dotada de livre arbítrio. Digo “sem pecado”, não porque o homem seja incapaz de pecar (somente a divindade não é susceptível ao pecado), mas porque ele não possui o pecado em sua natureza; isso depende apenas de sua escolha; dito de outra forma, ele tem pleno poder de permanecer no bem e nele progredir cooperando com a graça divina, e também de se desviar do bem e se engajar no mal, com a permissão de Deus, por causa do seu livre arbítrio. Pois não é virtude o que acontece sob violência.

Portanto, a alma é uma substância viva, simples, incorruptível, invisível aos olhos do corpo segundo a natureza que lhe é própria, racional e intelectiva, sem forma, que utiliza um corpo organizado ao qual ela dá vida, crescimento, sensibilidade e poder gerador. Ela não tem junto a si o intelecto como algo outro, mas como sua parte mais pura: o que o olho representa para o corpo, o intelecto representa para a alma. Dotada de livre arbítrio, capaz de querer e de agir, ela é susceptível de mudança, ou seja, ela muda à vontade, porque ela é uma criatura. Tudo isso ela recebeu em virtude da sua natureza pela graça daquele que a criou, graça pela qual ela recebeu sua existência e seu ser por natureza.

Entendemos os seres incorpóreos, invisíveis e sem forma de suas maneiras: alguns o são segundo sua substância, outros pela graça, uns por sua natureza, outros em relação à matéria grosseira. Deus é chamado assim em virtude de sua natureza, enquanto que os anjos, os demônios e as almas, pela graça e em relação à matéria grosseira.

O corpo se estende por três dimensões, ou seja, ele possui comprimento, largura e profundidade, também chamada de espessura. Todo corpo é constituído pelos quatro elementos, e os corpos dos seres vivos, também pelos quatro humores.

Devemos saber que existem quatro elementos: a terra seca e fria, a água fria e úmida, o ar quente e úmido e o fogo quente e seco. Da mesma forma, existem quatro humores, que correspondem aos quatro elementos: a bile negra corresponde à terra, ela é seca e fria; a fleuma corresponde à agua, é fria e úmida; o sanguíneo corresponde ao ar, é úmido e quente; a bile amarela corresponde ao fogo, é seca e quente. Os frutos se constituem a partir dos quatro elementos, os humores a partir dos frutos, os corpos do seres vivos a partir dos humores, e eles se dissolvem nos mesmos humores. Pois todo composto se dissolve nos mesmos elementos de que é composto.

Devemos reconhecer que o homem possui ao mesmo tempo características comuns com os seres inanimados, que ele participa da vida dos seres desprovidos de razão e que recebeu sua parte do pensamento dos seres racionais. Ele tem características comuns com os seres inanimados por seu corpo e pela mistura que há nele dos quatro elementos, com as plantas segundo esses elementos e pelas faculdades da nutrição, do crescimento da reprodução (também chamada de geração), e com os seres desprovidos de razão tanto por esses aspectos, como também, em acréscimo, pelo apetite, também chamado de paixão, e pelo desejo, pela sensibilidade e pelo movimento conforme o impulso.

Ele possui cinco sentidos: a visão, a audição, o olfato, o paladar e o toque. Do movimento conforme o impulso decorre sua capacidade de se deslocar de um lugar a outro, bem como a mobilidade de todo o corpo, a voz e a respiração; esses são atos que cabe a nós fazer ou não fazer.

Por outro lado, sua razão liga o homem às naturezas incorpóreas e intelectivas; ele raciocina, concebe, julga cada coisa, busca as virtudes, ama a piedade, esse ápice das virtudes. Eis porque o homem é um pequeno mundo.

Devemos saber que as seguintes coisas são próprias apenas ao corpo: a divisão, a efusão e a mudança. A mudança se faz segundo a qualidade, como o resfriamento, o aquecimento, etc. a efusão se faz por evacuação: esvaziamo-nos do seco, do úmido, do vento, coisas das quais temos necessidade de nos enchermos novamente; são afecções naturais, como a fome e a sede.

São próprias à alma a piedade e o pensamento. São comuns à alma e ao corpo as virtudes, que encontram uma referência na alma na medida em que esta se serve do corpo.

Devemos reconhecer que, por natureza, o racional comanda o irracional. Com efeito, as faculdades da alma se dividem em racionais e irracionais. Na parte irracional cabem duas partes, uma que é indócil à razão, ou seja, que não obedece à razão, e outra que é dócil e obediente em relação à razão. São indóceis à razão e não a obedecem: a faculdade vital a que chamamos também de pulsante, a faculdade espermática ou geradora, a faculdade vegetativa, também chamada de nutritiva; a esta última pertence também a faculdade aumentativa, que modela os corpos. Eis o que não é governado pela razão, mas pela natureza. Quanto ao que é dócil e submetido à razão, podemos dividi-lo em apetite concupiscente e apetite irascível. A parte irracional da alma é comumente chamada de parte passional ou impulsiva. Devemos saber que o movimento por impulsão também faz parte daquilo que obedece à razão.

É preciso reconhecer que dentre os objetos alguns são bons e outros são ruins. Um objeto bom esperamos que suscite um desejo, um bem presente, um prazer; um objeto mau esperamos que suscite medo, um mau presente, uma tristeza. Registre-se que nesta passagem, quando falamos de “bem”, falamos de um bem real ou de um bem aparente, e que o mesmo vale para o mal.


27 (II, 13)

Os prazeres

Dentre os prazeres, alguns são espirituais, outros são corporais. São espirituais todos aqueles que procedem da alma, tais como os que se referem à ciência e à contemplação. Os prazeres corporais provêm tanto da alma como do corpo, e por esse motivo tomam o nome de corporais; são por exemplo os que se referem à alimentação, às relações sexuais e outras coisas do gênero. Mas não existem prazeres exclusivamente corporais.

Dentre os prazeres, alguns são verdadeiros e outros falsos; os primeiros estão relacionados apenas com a inteligência, vinculando-se à ciência e à contemplação; os outros, que dependem do corpo, relacionam-se às sensações. Dentre os prazeres do corpo, alguns são naturais e necessários – viver sem eles seria impossível –, como os alimentos para matar e a fome e as vestes indispensáveis. Outros, naturais, não são necessários, como as relações sexuais segundo a natureza e a lei. Pois essas relações contribuem para a conservação da espécie como um todo, mas também é possível viver sem eles na virgindade. Outros prazeres, por fim, não são nem naturais nem necessários, como a embriaguez, a luxúria e os excessos à mesa. Com efeito, longe de contribuir para a manutenção de nossa vida ou para a continuação da espécie, eles são nocivos. Quem vive segundo Deus deve desde o início buscar os prazeres necessários e naturais, colocando em segundo lugar os prazeres naturais mas não necessários (no momento), da maneira e na medida convenientes. Os demais devem ser absolutamente proscritos.

É preciso ver como sendo bons prazeres aqueles que não vêm mesclados de tristeza, nem seguidos de arrependimento, nem são causa de qualquer prejuízo, que não passam dos limites da moderação, que não nos tiram além da medida das ocupações sérias, ou que não nos sujeitam.


28 (II, 14)

A tristeza

A tristeza adquire quatro formas: a aflição, o tédio, a inveja, a pena. A aflição é uma tristeza que nos deixa sem voz, o tédio, uma tristeza que nos oprime, a inveja, uma tristeza que nos toma diante da prosperidade de outrem, a pena, uma tristeza que nos toma diante da infelicidade de alguém.


29 (II, 15)

O temor

O temor se apresenta sob seis aspectos: a indecisão, o pudor, a vergonha, o medo, o terror e a angústia. A indecisão é o temor de ter que agir. O pudor, o temor de incorrer em censura, e é uma excelente paixão. A vergonha é o temor de uma ação desonrosa; ela também não é irrecuperável perante a salvação. O medo é o temor produzido por uma grande imaginação. O terror é um temor produzido por uma imaginação desordenada. a angústia é um temor do erro, ou seja, do fracasso: por medo de fracassarmos, o agir nos angustia.


30 (II, 16)

O furor

O furor é uma fervura do sangue que envolve o coração devido a um aquecimento ou de uma turbulência da bile. Eis porque ele também é chamado de “bile” ou de “humor bilioso”. Também pode acontecer que o furor seja um apetite por vingança; quando alguém nos prejudicou, ou achamos que nos prejudicou, ficamos enfurecidos e nossa paixão de se torna uma mistura de desejo e fúria.

Existem três tipos de furor: a cólera (também chamada de bile), o ressentimento e a raiva. A furor, em seu princípio e seu movimento, se chama cólera, assim como bile ou humor bilioso. O ressentimento é uma bile que persiste ou um rancor enraizado; seu nome contém uma referência à persistência e à sua transmissão pela memória. A raiva é uma cólera que espera pela ocasião de se vingar; seu nome contém uma referência à sua obstinação.

O furor é o lanceiro do raciocínio, o justiceiro do desejo. Com efeito, quando desejamos alguma coisa e alguém nos impede, enfurecemo-nos contra isso como se estivéssemos sendo lesados; nosso raciocínio, evidentemente, julga que o que aconteceu merece a indignação em relação aos que mantém sua própria posição, de acordo com a natureza.

As faculdades nutritiva, geradora e pulsativa não obedecem à razão. As faculdades nutritiva e geradora são também chamadas de faculdades aumentativas, e a faculdade pulsativa, de faculdade vital

A faculdade nutritiva possui quatro aptidões: a absorção, por absorver o alimento; a de retenção, por reter o alimento e impedir que ele seja eliminado imediatamente; a de transformação, por transformar o alimento em humores; e a de triagem, por separar e rejeitar os resíduos nos lugares convenientes.

Devemos saber que dentre as faculdades que servem aos seres vivos, algumas são espirituais, outras naturais, outras vitais. São espirituais as que implicam uma escolha deliberada, também chamada de movimento por impulso, e a sensibilidade. Procedem do movimento por impulso a mudança de lugar, os movimentos do corpo, a voz e a respiração; pois está em nosso poder executar ou não esses atos. As faculdades naturais e vitais excluem a livre escolha. São naturais as faculdades de nutrição, de crescimento e de reprodução, e a faculdade pulsativa é vital; todas elas operam, quer queiramos, quer não.


31 (II, 17)

A imaginação

A imaginação é uma faculdade da alma irracional que opera por meio dos órgãos sensoriais, aquilo a que chamamos de sensibilidade. É imaginável e sensível tudo o que cai no domínio da imaginação e da sensibilidade; da mesma forma, a faculdade visual em si é a vista, enquanto que o que é visto é o visível, como por exemplo uma pedra ou qualquer coisa do gênero. A imagem é um estado modificado da alma não racional, produzido por qualquer objeto imaginável; o fantasma é um estado modificado da alma sem conteúdo nas partes não racionais da alma produzido sem a presença de qualquer objeto imaginável. O órgão da imaginação é a cavidade anterior do encéfalo.


32 (II, 18)

A percepção sensorial

A percepção sensorial é a faculdade da alma capaz de captar as realidades materiais, ou seja, de discerni-las. Os órgãos sensoriais são os instrumentos ou membros por meio dos quais percebemos. Sensíveis são as coisas que cabem em nossos sentidos. O que sente é o ser vivo que possui a faculdade de sentir. Existem cinco sentidos e, por conseguinte, cinco órgãos sensoriais.

O primeiro sentido é a visão; os órgãos sensoriais da visão são os nervos que partem do encéfalo e os olhos. A visão percebe diretamente as cores e reconhece, ao mesmo tempo que a cor do corpo colorido, seu talhe, sua forma, o lugar em que ele se encontra, o espaço intermediário, seu número, mais o movimento e o repouso, a rugosidade e o polimento, o liso e o saliente, mais a rapidez e a lentidão, assim como a consistência, se aquosa ou terrosa, ou seja, se úmida ou seca.

O segundo sentido é a audição, capaz de perceber os sons e os ruídos. Ela distingue se são agudos ou graves, suaves, rudes, e também sua intensidade. Seus órgãos são os sutis nervos que saem do cérebro e da estrutura auricular. Somente o homem e os macacos não possuem orelhas móveis.

O terceiro sentido é o olfato: pelas narinas os vapores sobem até o cérebro e penetram até o fundo de suas cavidades anteriores. O olfato é capaz de perceber e captar os vapores. Dentre estes, a distinção genérica se estabelece entre os odores bons, ruins e intermediários, que não são nem bons nem ruins. O odor agradável provém dos líquidos perfeitamente cozidos existentes nos corpos; no meio está o cozimento mediano; enfim, um cozimento insuficiente ou inexistente produz o mau odor.

O quarto sentido é o paladar. Ele é capaz de perceber e sentir os sabores. Seus órgãos são a língua, particularmente sua extremidade, e o palato, que alguns denominam “véu”. É lá que terminam os nervos que provêm do cérebro, lá que eles percebem e transmitem à faculdade mestra a percepção ou a sensação produzida. Eis o que chamamos de qualidades do gosto nos humores: a doçura, a pungência, a acidez, a aspereza, o azedume, o amargor, a salinidade, a untuosidade, a viscosidade; o paladar é capaz de distinguir todas essas coisas. Em relação a isso, a água é sem qualidades: ela não possui nenhuma delas. A aspereza é uma intensificação, uma superabundância do azedume.

O quinto sentido é o tato, comum a todos os seres vivos. Sua origem está nos nervos presentes em todo o corpo que enviam sinais ao cérebro. Eis porque todo o corpo, incluindo aí os outros órgãos sensoriais, possuem a sensação do tato. Estão submetidos ao tato o frio e o calor, o mole e o duro, o viscoso e o friável, o pesado e o leve; essas são, com efeito, coisas que reconhecemos unicamente pelo tato. São comuns ao toque e à visão o rugoso e o polido, o seco e o úmido, o grosseiro e o fino, o alto e o baixo, a localização e o talhe, quando é tal que um único toque é capaz de o reconhecer; depois também o compacto e o inconsistente, também chamado de suave, o redondo, desde que seja pequeno, e mais ainda do que outras formas. Da mesma forma, com a ajuda da memória e do raciocínio, o tato percebe um corpo que se aproxima, bem como o número, até dois ou três, se esses corpos são pequenos e fáceis de abraçar. Nesses casos, porém, a vista percebe melhor do que o tato.

Devemos reconhecer que o criador dotou cada um dos outros sentidos de um órgão duplo, a fim de que, caso um seja prejudicado, o outro possa preencher sua função; dois olhos, duas orelhas, duas vias nasais e duas línguas, ainda que estas, distintas em certos animais como a serpente, se encontrem reunidas em outros, como no homem. Quanto ao tato, ele se acha espalhado por todo o corpo, com exceção dos ossos, dos nervos, das unhas, dos chifres dos animais, dos pelos, dos ligamentos e de algumas outras partes.

Devemos saber que a visão enxerga em linha reta, e que o olfato e a audição funcionam não somente para a frente, mas em todos os sentidos. O tato e o paladar não se exercem nem para frente nem em sentido algum, mas apenas quando entram em contato com seus próprios objetos sensíveis.


33 (II, 19)

O pensamento discursivo

Do pensamento discursivo provêm os julgamentos, os consentimentos, o impulso que leva à ação, as aversões em relação a esta e a rejeição à ação, e, em especial, as concepções dos inteligíveis, as virtudes, as ciências, os princípios das artes, as faculdades de deliberar e de escolher. A ele pertencem ainda a faculdade de prever por sonhos o que deve acontecer, que é a única adivinhação verdadeira de acordo com os pitagóricos, que nisto seguem os hebreus. Seu órgão é a cavidade mediana do cérebro e o sopro vital que está contido aí.


34 (II, 20)

A memória

A memória é a causa e o receptáculo da lembrança e da rememoração. De fato, a lembrança é a imagem deixada por uma percepção sensorial que se segue a um ato, ou ainda a conservação de uma percepção ou de uma intelecção. A alma capta ou sente os objetos sensíveis por meio dos órgãos dos sentidos e assim forma a opinião; ela percebe os objetos inteligíveis por meio do intelecto e assim forma os conceitos. Quando ela conserva as marcas, tanto de opiniões, como de conceitos, que ela formou, nós dizemos que ela se lembra.

É preciso saber que a captura dos inteligíveis não acontece senão a partir de um saber ou de uma intuição da natureza, não a partir de uma sensação; pois enquanto que os objetos sensíveis se tornam por si próprios objetos da memória, só guardamos uma lembrança dos objetos inteligíveis se os tivermos estudado de alguma forma; mas de sua substância, não possuímos lembrança.

A rememoração é a recuperação de uma lembrança que desapareceu por causa do esquecimento; o esquecimento é a perda da lembrança. Com efeito, a imaginação percebe os objetos materiais por intermédio das sensações e os transmite à inteligência e ao raciocínio (pois essas duas coisas não são idênticas); estes acolhem e julgam os objetos, e depois os transmitem à memória. O órgão da memória é a cavidade posterior do cérebro, a que chamamos cerebelo, bem como o sopro vital que se encontra aí.


35 (II, 21)

O verbo interior e o verbo proferido

Por sua vez, a função racional da alma se divide em verbo interior e verbo proferido. O verbo interior é um movimento da alma que se produz na parte racional sem nenhum som distinto; por esse motivo às vezes desenvolvemos dentro de nós silenciosamente todo um discurso, e também mantemos conversações em nossos sonhos. É principalmente sob este aspecto que somos seres racionais: com efeito, os surdos de nascença ou os que perderam a palavra por qualquer enfermidade não são menos racionais. O verbo proferido revela sua atividade pela palavra e nas discussões; em outras palavras, trata-se do verbo emitido pela língua e pela boca. Eis porque ele é chamado “proferido”. Ele é o mensageiro do pensamento. Sob esse aspecto, somos chamados de “seres falantes”.


36 (II, 22)

A paixão e o ato

O termo “paixão” costuma ser empregado de modo equívoco. Com efeito, chamamos de “paixão” uma realidade corporal, como as enfermidades e os ferimentos, e também uma realidade espiritual, como o desejo ou o enfurecimento.  Por outro lado, existe, de maneira comum e genérica, uma paixão do animal, da qual provêm o prazer e a tristeza; de fato, a tristeza advém da paixão, mas ela não é em si uma paixão: os seres insensíveis podem sofrer uma paixão, sem que experimentem qualquer tristeza. Por conseguinte, a paixão não é o sofrimento, que é assim a percepção sensível da paixão. É preciso que esta última tenha uma certa intensidade, que seja grande o suficiente para atingir a sensibilidade.

Quanto às paixões da alma, eis aqui sua definição: a paixão é um movimento da faculdade concupiscente que torna sensível a representação de um bem ou de um mal. Outra definição: a paixão é um movimento irracional da alma devido à concepção de um bem ou de um mal. A concepção do bem provoca o desejo, a concepção do mal, o furor. Quanto à paixão genérica, ou comum, assim a definimos: a paixão é um movimento no interior de um ser a partir de um outro ser. Quanto à ação, ela é um movimento eficaz: por “eficaz”, entendemos algo que se move por si próprio. Assim, o furor é uma ação da irascível, mas para as outras duas partes da alma ele é uma paixão, e também para o resto do corpo, quando faz violência a este para levá-lo ao ato; o movimento acontece a partir de um ser no interior de outro ser, e é justamente a isso que damos o nome de “paixão”. Mas de outro ponto de vista a ação é chamada também de paixão: com efeito, é ação um movimento conforme à natureza, e paixão um movimento contrário à natureza. Desse ponto de vista a ação é chamada de “paixão” quando ela não se move em conformidade com a natureza, venha ela desse ser ou do outro. Assim, os batimentos do coração são uma ação, porque constituem um movimento natural; mas as palpitações, por serem exageradas e não conformes com a natureza, são uma paixão e não uma ação.

Nem todo movimento da parte afetiva é chamado de paixão, mas apenas os mais violentos e que atingem a sensibilidade. Os movimentos fracos e que escapam à sensibilidade não chegam a ser paixões. Com efeito, a paixão precisa ter uma força suficientemente intensa. Eis porque acrescentamos à definição de paixão o “movimento perceptível”: os movimentos fracos que escapam à sensibilidade não criam paixões.

Devemos saber que nossa alma possui dois jogos de faculdades, um de ordem cognitiva, outro de ordem vital. As faculdades cognitivas são o intelecto, o pensamento discursivo, a opinião, a imaginação, a sensibilidade; as faculdades vitais, também chamadas de apetites, são a vontade e a livre escolha. Para tornar mais clara nossa afirmação, vamos examinar em detalhe o que diz respeito a elas, começando pelas faculdades cognitivas.

Sobre a imaginação e a sensibilidade, basta o que foi exposto acima. Ora, é por intermédio da sensibilidade que uma paixão se estabelece na alma, paixão a que chamamos de “imaginação”; a partir da imaginação nasce a opinião. Depois o pensamento discursivo exerce um juízo sobre a opinião: será ela verdadeira ou falsa? Ele de fato julga, e é por isso que o chamamos de “pensamento discursivo” (dianoia), porque esse pensamento distingue e julga. Aquilo que foi julgado e definido como verdadeiro se chama intelecto.

Em outros termos: é preciso saber que o primeiro movimento do intelecto (nous) é chamado de “intelecção” (noesis). A intelecção relativa a qualquer coisa é chamada de “concepção” (ennoia). Esta, depois de amadurecer e de haver modelado a alma em relação ao que foi concebido, toma o nome de “reflexão”. Esta, depois de se ligar à mesma coisa, depois de ter sido experimentada e julgada por si mesma, toma o nome de “pensamento”. O pensamento se alastra e produz o raciocínio, que tem o nome de “verbo interior”. Ele pode ser definido assim: um movimento completamente realizado da alma, que se produz em sua parte discursiva, sem nenhuma expressão vocal; é dele que provém o verbo proferido, expresso pela língua. Depois de termos tratado das faculdades cognitivas, falemos agora das faculdades vitais, também chamadas de apetites.

Devemos ter em mente que na alma foi semeada naturalmente uma faculdade apetitiva daquilo que está em conformidade com sua natureza e agora de tudo o que é apanágio essencial dessa natureza. Nós a chamamos de “vontade”. Com efeito, a substância possui, segundo o intelecto e segundo a sensibilidade, um apetite de ser, de viver, de se mover; ela deseja sua própria plenitude natural de ser. É por isso que definimos assim esse querer natural: um desejo racional e vital ligado unicamente aos objetos naturais. De tal forma que é esse apetite natural e racional no estado simples de faculdade. Pois entre os seres desprovidos de razão, esse apetite, por não ser racional, não é chamado de vontade.

A intenção é uma vontade natural qualificada, vale dizer, um apetite natural e racional por um dado objeto. Efetivamente, reside na alma humana uma faculdade de apetite racional. Assim, quando essa faculdade racional se coloca em movimento, em virtude de sua natureza, na direção de qualquer objeto, falamos de intenção; a intenção é assim um apetite e um desejo racional por algum objeto.

Falamos de intenção tanto a respeito de coisas que dependem de nós, como de coisas que não dependem de nós, ou seja, tanto do possível como do impossível. Muitas vezes, por exemplo, temos a intenção de nos distrairmos, ou de sermos temperantes, ou de dormimos ou de outras coisas do mesmo gênero, que dependem de nós e pertencem ao domínio do possível. Mas também podemos querer ser reis, coisa que não depende de nós. E podemos também querer não morrer, e isso já pertence ao domínio do impossível.

A intenção viso o fim, não os meios que conduzem ao fim. O fim é aquilo que se deseja, como reinar ou ter boa saúde; refere-se ao fim aquilo que é objeto da deliberação, ou seja, o meio pelo qual chegaremos a ter boa saúde ou reinar. Depois da intenção vêm a pesquisa e o exame. Depois, se isso depende de nós, vem o projeto, também chamado de deliberação. O projeto é o apetite que se põe em busca de ações que dependem de nós fazer. Deliberamos se cabe ou não a nós nos envolvermos com determinado assunto. Depois julgamos o que é preferível, que é o que chamamos de julgamento. A seguir nos tomamos de afeição por aquilo que foi julgado ao final da deliberação, e a isso chamamos de resolução; nos casos em que, depois do julgamento, não sentimos afeição pelo que foi julgado, não se pode falar em resolução. Depois de nos envolvermos assim, chegamos à livre escolha ou à conclusão. A livre escolha consiste em, diante de dois elementos dados, escolher e eleger a um de preferência ao outro. A seguir lançamo-nos à ação, e então falamos de “impulso”. Depois nos pomos a executar, e então falamos em “execução”. Depois da execução o apetite se apazigua.

No caso dos seres desprovidos de razão, desde que se produz o apetite por alguma coisa, segue-se imediatamente o impulso para a ação. O apetite, com efeito, entre os seres desprovidos de razão, é irracional, e esses seres são movidos por um apetite natural. Eis porque não podemos chamar de vontade nem de intenção ao apetite dos seres desprovidos de razão; a vontade é um apetite natural penetrado pela razão e pelo livre arbítrio. No caso do homem, devido à presença da razão, o apetite natural é mais dirigido do que dirige. Pois ele está sob o comando do livre arbítrio e da razão, visto que as faculdades cognitivas e vitais se conjugam no homem. Seu apetite, seu projeto, sua pesquisa, seu exame, sua deliberação, seu juízo, suas afeições, sua escolha, seu impulso, sua ação referente aos seus objetivos naturais se desenvolvem todos sob a influência do livre arbítrio.

Devemos saber que, a propósito de Deus, podemos falar em intenção, mas não de livre escolha no sentido próprio do termo: Deus não delibera. Pois deliberar é próprio da ignorância; a respeito do que é conhecido, ninguém delibera. Ora, se a deliberação é própria da ignorância, não há dúvida de que também o é a livre escolha. Deus, que sabe tudo, não tem sobre quê deliberar.

No caso da alma do Senhor, também não se pode falar de deliberação ou livre escolha, pois ele era isento de ignorância. Apesar de que ela tinha uma natureza que ignorava o futuro, por estar unida ao Deus Verbo segundo a hipóstase, ela possuía o conhecimento de todas as coisas, não por graça, mas como dissemos, ou seja, devido à sua união segundo a hipóstase. O Senhor, com efeito, era Deus e homem. Por isso ele também não tinha querer por resolução. A vontade natural, simples, aquela que podemos observar igual em todas as hipóstases do homem, sim, esta ele possuía; mas a resolução, a saber, desejar contrariamente ao seu querer divino, sua alma santa não possuía; ela também não tinha querer que fosse de encontro ao seu querer divino. Pois a resolução é distinta para cada hipóstase, salvo para a santa, simples, una e indivisível divindade. Nela, como as hipóstases não se encontram em nada divididas nem separadas, também o querer não é dividido. Nela, ademais, como a natureza é única, única também é a vontade da natureza; visto, por outro lado, que as hipóstases são inseparáveis, também é único o querer e único o movimento das três. Ao contrário, no caso dos homens, como a natureza é única, única é também a vontade natural; por outro lado, como as hipóstases são separadas e se distinguem umas das outras pela localização e o tempo, bem como por sua disposição diante das tarefas a cumprir e inúmeras outras coisas, os quereres e as resoluções são, por isso, diferentes. No caso de nosso Senhor Jesus Cristo, como as naturezas são diferentes, diferentes são também as vontades naturais, ou faculdades volitivas, de sua divindade e de sua humanidade; mas, como sua hipóstase é única e único é aquele que quer, único também é o que essa vontade quer, vale dizer, o querer por resolução; com efeito, sua vontade humana segue sua vontade divina e quer o que quer a vontade divina.

É preciso saber que uma coisa é a vontade, outra coisa a intenção, outra o que se quer, outra ainda a capacidade de querer, e outra mais o sujeito que quer. A vontade é a simples faculdade de querer tomada em si mesma; a intenção é a vontade relativa a alguma coisa; o que se quer é a realidade que se torna objeto da vontade, seja precisamente o que se quer (por exemplo, o apetite é movido em direção ao alimento; o apetite em si é a vontade racional, o apetite voltado para o alimento é a intenção, o alimento é em si mesmo o que o apetite quer). Um ser volitivo é aquele que possui a faculdade de querer; aquele que quer é aquele que utiliza essa vontade.

Devemos saber que o termo “querer” designa tanto a vontade, também chamada de faculdade volitiva, a que chamamos de “querer natural”, como aquilo que se quer, a que chamamos de “querer por resolução”.


37 (II, 23)

O ato

Devemos saber que todas as faculdades de que falamos, sejam elas cognitivas, vitais, naturais ou fabricantes, são chamadas de “atos”. Com efeito, são “ato” o poder e o movimento naturais de cada substância. Ou ainda: é ato natural o movimento inato de toda substância. Segue-se daí que que, onde a substância é idêntica, o ato é idêntico, e onde as naturezas são diferentes, os atos são também diferentes. Pois é impossível que uma substância seja desprovida de ato natural.

E também: que o ato natural é o poder indicativo de casa substância. É ato natural, em primeiro lugar, a potência sempre em movimento da alma intelectual, também chamada de seu verbo, sempre em movimento que brota permanentemente por sua própria natureza. É ato natural a potência e o movimento de cada substância, coisas das quais somente o nada é privado.

Também damos o nome de ato a atividades tais como falar, caminhar, comer, beber e outras do gênero. Mesmo às paixões naturais, como a fome e a sede, damos frequentemente o nome de ato. Também chamamos de ato a realização da potência.

Falamos de potência e ato de duas maneiras. Com efeito, dizemos que o bebê ainda no seio da mãe é gramático em potencial, pois ele possui a aptidão para se tornar gramático por meio do estudo. Por sua vez, dizemos de um gramático que ele o é em potência e em ato: em ato, porque ele possui o conhecimento da gramática, e em potência, na medida em que ele pode expor esse conhecimento mas não o está realizando num dado momento. E o chamamos de gramático em ato também a partir do momento em que ele age, ou seja, quando ele expõe seu conhecimento.

O segundo modo é comum ao ato e à potência; mas ele é secundário em relação à potência e primário em relação ao ato.

A vida da escolha espontânea, ou seja, aquela na qual se exerce a razão e o livre arbítrio, a vida que dá consistência à nossa espécie, é um ato primeiro, único e verdadeiro da natureza. Que o Senhor seja privado disso, nem por isso deixa de se afirmar sua encarnação, não sei. O ato é um movimento operatório da natureza; chamamos “operatório” aquilo que se move por si próprio.


  38 (II, 24)

O voluntário e o involuntário

O que fazemos voluntariamente constitui uma ação e o que somos obrigados a fazer contra nossa vontade constitui uma ação; por outro lado, muitas pessoas classificam o que é realmente involuntário não apenas no domínio da paixão, mas também no da ação; deve-se ter em mente que a ação é uma operação racional. Das ações podem resultar a aprovação ou a reprovação; algumas são feitas com prazer, outras com tristeza; algumas delas são escolhidas pelo agente, outras são evitadas por ele; na primeira categoria, existem as que escolhemos todo o tempo, e outras em determinado momento; e o mesmo acontece com aquelas que são evitadas. E mais: dentre as ações, algumas suscitam a piedade, outras são consideradas dignas de perdão, outras são vergonhosas e castigadas. Assim sendo, as consequências constantes daquilo que é voluntário são a aprovação ou a desaprovação, o fato de agir com prazer e o fato de que essas ações constituem escolhas, sejam permanentes, sejam ocasionais, dos agentes; quanto àquilo que é involuntário, ele traz em si um veredito de perdão ou de piedade, a tristeza na ação, a ausência de uma escolha deliberada e ainda o fato de que não se trata de uma ação cumprida por si mesma, podendo inclusive que sejamos obrigados a fazê-la.

A ação involuntária acontece, seja por violência, seja por ignorância. Pela violência, quando o princípio eficiente, também chamado de causa, provém do exterior, ou seja, quando somos violentados por outrem, sem que consintamos e sem que forneçamos a colaboração de nosso próprio impulso, sem nossa cooperação e sem que fizéssemos por nós próprios aquilo que somos forçados a fazer. Podemos expressar isso com uma definição: aquilo cujo princípio é exterior, sem a colaboração de um impulso próprio do sujeito que recebe a violência. Como “princípio”, entendemos a causa eficiente. Quanto ao que é involuntário por ignorância, acontece quando não fornecemos por nós mesmos a causa de ignorância, que é puro acidente. Com efeito, se um homem bêbado comete um assassinato, ele o cometeu por ignorância, mas não o fez involuntariamente; pois ele é o autor da embriaguez, que é a causa de sua ignorância. Ao contrário, se alguém pratica tiro ao arco num lugar habitual e vem a matar seu pai que se encontra ali, dizemos que ele cumpriu isso involuntariamente e por ignorância.

Dado que a ação involuntária se revestes dos dois aspectos da violência e da ignorância, a ação voluntária irá se colocar oposta tanto a um como a outro. É voluntário aquilo que se produz tanto sem violência quanto sem ignorância. Assim sendo, é voluntário aquilo cujo princípio, ou causa, reside naquele que conhece em detalhe os motivos e o meio em que acontece sua ação. Esses detalhes são aqueles que os mestres de retórica chamam de “circunstâncias parciais”, como “quem?”, ou seja, o agente; “sobre quem?”, ou seja, o paciente; “o que?”, ou seja, o objeto da ação (por exemplo, um assassinato); “com que?”, ou seja, o instrumento; “onde?”, ou seja, o lugar; “quando?”, ou seja, em que momento; “como?”, ou seja, o modo da ação; “por que?”, ou seja, por qual motivo.

Devemos ter em mente que existem certos intermediários entre o voluntário e o involuntário, e casos em que aceitamos contrariedades e tristezas por causa de um mal maior; é como no caso de um naufrágio, quando atiramos a carga ao mar.

Devemos ter em mente que as crianças e os seres desprovidos de razão agem voluntariamente, e, não obstante, sem escolha prévia; também as ações que executamos por enfurecimento, as fazemos sem deliberação prévia, voluntariamente, mas também sem livre escolha. Às vezes um amigo chega de improviso; isso agrada à nossa vontade, mas não existiu livre escolha. E que, de modo inesperado, descobre um tesouro, o faz alegrando sua vontade, mas não por sua livre escolha. Tudo isso é voluntário porque encontramos o consentimento nessas coisas, mas não em virtude de uma livre escolha, porque nada disso é resultado de uma deliberação. Ora, para que existe escolha, é absolutamente necessário que tenha havido antes uma deliberação.


39 (II, 25)

O que depende de nós, ou seja, o livre arbítrio

O discurso relativo ao livre arbítrio, ou seja, sobre o que depende de nós, comporta como primeiro item de pesquisa a seguinte questão: alguma coisa depende de nós? Pois muitos o contestam. Como segundo item:  o que depende de nós, e sobre o que se exerce nosso libre arbítrio? E em terceiro lugar é preciso examinarmos o porquê de Deus, nosso criador, nos ter dotado de livre arbítrio. Voltemos ao primeiro ponto e comecemos por fornecer a demonstração de que algumas coisas dependem de nós, partindo daquilo a respeito de que nossos adversários estão de acordo. Digamos, portanto, o seguinte:

De todos os acontecimentos que se produzem, Deus é a causa, segundo essas pessoas, ou a necessidade, o destino, a natureza, a sorte ou o azar. Mas a obra de Deus é a existência e a providência; a da necessidade, o movimento dos seres que existem sempre da mesma maneira; a do destino consiste no cumprimento necessário daquilo que se realiza por ele (de fato, ele depende da necessidade); a obra da natureza é o nascimento, o crescimento, a corrupção, as plantas e os animais; a da sorte, aquilo que é raro e inesperado (com efeito, eles definem a sorte como o encontro ou a conjunção de duas causas que têm sua origem numa escolha e que produzem algo diferente do que seria natural; como descobrir um tesouro ao cavar uma fossa. Com efeito, nem aquele que depositou o tesouro o fez para que este fosse descoberto, nem aquele que cavou o fez para descobri-lo, mas o primeiro o fez para recuperar seu tesouro quando quisesse, e o segundo para cavar uma fossa; então, aconteceu algo que nenhum dos dois havia se proposto). Quanto ao azar, trata-se de coincidências relativas aos seres desprovidos de alma ou de razão, nas quais não intervêm nem a natureza nem a arte. Isso é o que dizem eles. Agora, a qual desses fatores iremos reportar a atividade humana, se concordarmos que o homem não é nem causa nem princípio de sua ação? pois não é legítimo atribuir a Deus ações que por vezes são vergonhosas e injustas; isso também não pode ser atribuído à necessidade, pois não se trata de seres sempre iguais a si mesmos; nem ao destino, pois, conforme confessam essas pessoas, o que procede do destino não é o possível, mas o necessário; nem à natureza, porque sua obra são os animais e as plantas; nem à sorte, pois as ações dos homens não são nem raras, nem inesperadas; nem ao azar, porque dissemos que dele dependem as coincidências entre seres sem alma e sem razão. Resta, portanto, ser o homem que age e opera o princípio de suas próprias obras, e que seja ele dotado de livre arbítrio.

A isso podemos acrescentar que se o homem não for o princípio de nenhuma ação, será em vão que ele possui o poder de deliberar. Com efeito, de que servirá deliberar, se não formos senhores de nenhuma ação? Toda deliberação acontece tendo em vista uma ação. Ora, declarar como supérfluo o mais perfeito e precioso dos dons do homem seria a maior dos absurdos. Portanto, se o home delibera, é em vista de uma ação; pois toda deliberação acontece tendo em vista uma ação, e para uma ação.


 40 (II, 26)

Os acontecimentos

Dentre os acontecimentos, alguns dependem de nós, outros não. Dependem de nós aqueles que temos livremente o poder de operar ou de não operar, ou seja, tudo o que fazemos por nós mesmos por nossa própria vontade (pois não diríamos ter sido feita por nossa vontade uma ação que não dependa de nós), e também, simplesmente, tudo o que incorre em censura ou aprovação, tudo aquilo a respeito de que exortamos ou legislamos. No sentido pleno, dependem de nós todas as operações psíquicas e aquelas a respeito das quais deliberamos: a deliberação se faz sobre possibilidades que se equilibram. Existe equilíbrio entre possíveis sempre que podemos tanto fazer uma coisa quanto seu contrário. A escolha sobre esse ponto é feita por nosso intelecto e constitui o princípio da ação. Eis, por conseguinte, aquilo que depende de nós, onde os contrários se equilibram; por exemplo, quando se trata de nos movermos ou de não nos movermos, de nos lançarmos ou não nos lançarmos, de desejarmos ou não desejarmos o que não é necessário, de mentir ou não mentir, dar ou não dar, de nos regozijarmos nas ocasiões propícias e paralelamente não nos regozijarmos quando não couber o regozijo. E em muitos outros casos semelhantes, onde estão em jogo a virtude e o vício. Pois é sobre esses pontos que desfrutamos de nosso livre arbítrio. Dentre as possibilidades de equilíbrio estão também as artes: depende de nós, orientarmo-nos ou não para aquilo que queremos.

Devemos reconhecer que a escolha de nossas ações depende sempre de nós; mas uma ação sempre pode ser impedida por alguma determinação da Providência.


41 (II, 27)

Porque fomos nós dotados de livre arbítrio

Diremos agora que o livre arbítrio acompanha a racionalidade. Todo ser que nasce, com efeito, é também sujeito à mudança. Pois tudo o que nasce por um princípio de mudança, está necessariamente sujeito à mudança. A mudança consiste em passar do nada à existência e em se tornar alguma coisa diferente a partir de uma matéria pré-existente.  Assim é que os seres desprovidos de alma e aqueles desprovidos de razão mudam segundo as alterações corporais que mencionamos; mas os seres racionais mudam segundo sua livre escolha. De fato, o racional se divide em especulativo e prático. Especulativa é a consideração dos seres tais como eles são em si mesmos, e prática é a faculdade deliberativa, aquela que determina a justa regra em relação às ações que deverão ser executadas. Também chamamos o especulativo de “intelecto” e o prático de “razão”, o especulativo de “sabedoria” e o prático de “prudência”. Assim, todo homem que delibera o faz tendo em vista o pensamento de que a escolha de seus atos lhe cabe, de modo a escolher aquilo ao que sua deliberação o induz e a executar aquilo que escolheu; isto posto, necessariamente o libre arbítrio acompanha a razão; com efeito, ou bem não se tratará de um ser racional, ou, sendo racional, ele será mestre de seus atos e será dotado de livre arbítrio. Os seres desprovidos de razão também são desprovidos de livre arbítrio. Sua natureza os conduz, mais do que é conduzida por eles; por essa razão, eles não se opõem aos seus apetites naturais; tão logo eles experimentam um apetite qualquer, se põem imediatamente em ação. Ao contrário, o homem, que é racional, dirige sua natureza, mais do que é dirigido por ela; eis porque, mesmo sendo presa de algum apetite, ele tem o poder soberano, à sua vontade, de refrear esse apetite ou de segui-lo. Desse modo, não podemos atribuir aos seres desprovidos de razão nem elogio nem condenação, enquanto que podemos fazê-lo no caso do homem.

Devemos reconhecer que os anjos, sendo seres racionais, possuem o livre arbítrio e que, na medida em que foram criados, eles são susceptíveis de mudança. O diabo já demonstrou isso, ele a quem o criador fez bom, mas que, por uma livre escolha, descobriu o mal, bem como as potência que, como ele, se afastaram de Deus, ou seja, os demônios, enquanto que as demais ordens dos anjos perseveraram no bem.


42 (II, 28)

O que não depende de nós

Dentre as coisas que não dependem de nós, algumas têm seus princípios ou causas em coisas que dependem de nós; por exemplo, a retribuição de nossa ações no século presente ou no século futuro. Todas as demais estão ligadas ao conselho divino. Com efeito, a gênese de todas as coisas é de origem divina, enquanto que a corrupção nos foi infligida por causa de nossa malignidade, para nos castigar e nos socorrer. “Pois Deus não criou a morte e não sente prazer algum em perder os vivos”[86]. Antes foi pelo próprio homem que veio a morte[87], ou seja, por intermédio da transgressão de Adão, assim como todos os demais castigos. Mas todo o resto deve ser atribuído a Deus: seu poder criador nos fez nascer, seu poder conservador nos faz durar, seu poder providencial nos governa. Mas, como alguns negam a Providência, vamos acrescentar algumas palavras a respeito dela.


43 (II, 29)

A Providência

A Providência é a solicitude que Deus exerce para com os seres. Ou ainda: a Providência é a intenção divina em virtude da qual todos os seres recebem a direção apropriada. Se a Providência é a intenção de Deus, é absolutamente necessário que tudo o que é feito pela Providência o seja em conformidade com a correta razão e de modo perfeito, convindo plenamente a Deus, e de tal maneira que seria impossível fazer melhor. Com efeito, necessariamente, aquele que é o autor dos seres é também sua Providência: não é conveniente nem lógico que seja um o autor dos seres, e outro a Providência; nessa hipótese, ambos seriam fracos, um para produzir, outro para governar. Portanto, Deus é tanto o autor como Providência, e seu poder criador, tanto quanto seu poder conservador e seu poder providencial estão no mesmo nível em sua vontade excelente: “Tudo o que quis, o Senhor fez[88]”, e ninguém se opõe à sua vontade[89]. Ele quis que tudo existisse[90], e tudo existiu; ele quis que o mundo se formasse e este se formou, assim como tudo existe porque ele o quis.

O modo correto de perceber é prever, e prever bem. Somente Deus é, por natureza, bom e sábio; na medida em que ele é bom, ele prevê (de fato, quem não prevê não pode ser bom, tanto os homens como os seres desprovidos de razão exercem, por sua natureza, uma previsão em favor de sua progênie e aquele que não o faz é condenado). Na medida em que é sábio, Deus cuida dos seres à perfeição.

Tendo isso tudo em vista, devemos admirar tudo, a tudo louvar, devemos acolher todas as obras da Providência sem prévio exame, mesmo que elas pareçam injustas para a maioria, devido ao caráter incognoscível e impalpável da providência divina. Por “tudo”, eu entendo aquilo que não depende de nós. Pois o que depende de nós não é da esfera da Providência, mas do nosso livre arbítrio.

Quando se trata da Providência, certas coisas estão relacionadas ao bom prazer, outras à permissão. Procede do bom prazer tudo o que é indiscutivelmente bom. Quanto à permissão, ela adquire múltiplas formas. Com efeito, muitas vezes Deus permite que mesmo o justo caia na infelicidade, para mostrar aos outros a justiça que esconde nele, como no caso de Jó[91]. Outras vezes ele permite que se realize alguma ação exorbitante, para que, por meio dessa ação exorbitante se efetue alguma maravilha, como a salvação dos homens pela cruz. De outra maneira ainda, ele permite que o homem piedoso sofra um infortúnio, para que ele não se afaste da retidão de consciência, ou ainda para que o poder e a graça que recebeu não o façam cair no orgulho[92], como no caso de Paulo. Alguém pode ser abandonado por algum tempo a fim de servir para que outro se emende, para que outros se instruam, como no caso de Lázaro e do rico[93]; pois, por natureza, a visão de certos sofrimentos nos tornam conscientes de nós mesmos. Outro é abandonado para glória de um terceiro, não por causa de seus pecados ou dos de seus pais; é o que aconteceu ao cego de nascença, para a glória do Filho do homem[94]. Ou ainda, é permitido que um outro sofra em vista da emulação de outro, a fim de que, tendo crescido a glória da vítima por essa prova, ela sirva para dar esperança aos demais para a glória que virá, e para que eles desejem os bens futuros, como no caso dos mártires. A alguém é permitida uma queda num ato mau para corrigir uma paixão ainda pior. É o caso de uma pessoa que se orgulha de suas virtudes e de suas ações brilhantes, e que Deus deixa que caia em lascívia, a fim de que essa queda lhe mostre o sentimento de sua própria fraqueza, e para que ela se humilhe e venha a se confessar ao Senhor.

Devemos estar cientes de que a decisão sobre o que fazer depende de nós, mas que a realização em matéria de bem provém da assistência divina, a qual, em sua justiça, coopera com aqueles que devido à retidão de sua consciência escolheram o bem, em conformidade com sua presciência. Ao contrário, a realização em matéria de mal provém do abandono por Deus, que, mais uma vez, em conformidade com sua presciência, abandona com justiça aquele que escolheu o mal.

Existem duas formas de abandono: um abandono que entra no plano divino e que tem fins pedagógicos e um abandono que é uma negação total. O abandono em virtude do plano divino é aquele que visa à correção, à salvação e à glória do paciente ou à emulação de outrem, à sua imitação ou à glória de Deus. A negação total acontece quando Deus fez de tudo para a salvação de um homem que permanece insensível, incurável, intratável, por sua própria escolha; então ele é entregue à perdição definitiva, como Judas. Que Deus nos afaste de tal abandono, e que nos preserve dele!

É preciso ter consciência de que são inúmeras as voltas que dá a divina providência, e que somos incapazes tanto de explicá-las por palavras quanto de captá-las pelo intelecto.

Devemos reconhecer que todas as sombrias provações conduzem à salvação os que as acolhem com gratidão[95] e que elas lhe trazem sem dúvida um grande benefício.

É preciso saber que primitivamente Deus quer que todos sejam salvos e alcancem seu reino[96]. Ele não nos moldou para o castigo, mas para a participação à sua bondade, porque ele é bom. Mas, como ele é justo, ele quer que os pecadores sejam punidos.

Por conseguinte, dizemos que a vontade primeira e antecedente, assim como o bom prazer, provêm dele, enquanto que da vontade segunda e consequente, bem como da autorização, como nós os responsáveis. E essa autorização possui dois aspectos, sendo que um entra no plano divino e em sua pedagogia para nossa salvação, enquanto que o outro é uma negação que conduz ao castigo final, como já dissemos. Isso em relação ao que não depende de nós.

Quanto ao que depende de nós, Deus quer originalmente o que é bom e traz prazer; quanto ao que é perverso e mau, ele não o deseja, nem primitivamente, nem por via de consequência. Essas ele remete ao livre arbítrio; pois o que se produz por violência não é nem racional nem virtuoso. Deus exerce sua providência sobre toda a criação, espalhando suas benesses e seu ensinamento por meio de toda a criação, até mesmo por meio dos demônios, como no caso de Jó[97] e dos porcos[98].


44 (II, 30)

A presciência e a predeterminação

É preciso reconhecer que Deus conhece tudo previamente, mas que ele não determina tudo previamente. Ele conhece previamente, de fato, mesmo aquilo que depende de nós, sem no entanto predeterminá-lo. Pois ele não quer que o mal aconteça, mas tampouco constrange a virtude. De sorte que a predeterminação é obra do imperativo divino que conhece previamente. Assim é que ele predetermina segundo seu conhecimento prévio aquilo que não depende de nós. Com efeito, Deus distingue tudo previamente em virtude de sua bondade e de sua justiça.

É preciso reconhecer ainda que a virtude, provinda de Deus, foi inserida na natureza, e que ele é o princípio e a causa de todo o bem, e que, sem sua cooperação e sua ajuda, nos é impossível querer e fazer o bem. Por outro lado, depende de nós, seja persistir na virtude e seguir a Deus que nos chama para ela, seja nos afastarmos da virtude, o que equivale a mergulhar no mal e a nos colocarmos sob o jugo do diabo, que nos chama para isso, mas sem nos forçar. Pois o mal não é outra coisa senão a desaparição do bem, assim como a escuridão é o desaparecimento da luz. Portanto, se nos mantivermos firmes naquilo que é conforme à natureza, permaneceremos na virtude; mas se abandonarmos o que é conforme à natureza, nos afastaremos dela e cairemos no mal.

A conversão é um retorno para aquilo que é conforme à natureza a partir do que lhe é contrário, assim como o retorno do diabo para Deus por meio da ascese e das obras.

Assim é que o Criador formara o homem masculino, participante de sua graça divina e por isso em comunhão com ele. Imediatamente esse homem procedeu de modo soberano à denominação dos animais[99], gesto que proclamava o dom que lhe fora dado e que fazia deles seus servidores. Criado à imagem de Deus, racional, intelectivo e dotado de livre arbítrio, ele se encarregou da direção dos seres sobre esta terra, sob a autoridade do criador e mestre de todas as coisas.

Mas Deus sabia em sua presciência que o homem chegaria à transgressão e ficaria sujeito à corrupção; sendo assim, ele extraiu dele a mulher, auxiliar e semelhante a ele[100], com vistas a permitir a subsistência da espécie por meio da geração, após a transgressão. Com efeito, a primeira modelagem é denominada “gênese”, e não “geração”. A gênese é a primeira modelagem feita por Deus, enquanto que a geração é o modo de suceder uns aos outros a partir da condenação à morte por causa da transgressão.

Este homem foi colocado por Deus no paraíso espiritual e sensível; com efeito, vivendo corporalmente sobre a terra no paraíso sensível, ele estava primitivamente em contato com os anjos, cultivando pensamentos divinos e deles se alimentando, nu na simplicidade e na ausência de artifícios, que o elevavam através de todas as criaturas à altura do único criador, arrebatado e maravilhado pela contemplado deste.

E como ele havia sido dotado por natureza de livre arbítrio sem sua vontade, Deus lhe deu como regra não provar da árvore do conhecimento[101]. Já falamos suficientemente dessa árvore, na medida de nossas forças, no capítulo sobre o paraíso. Deus deu ao homem esse preceito prometendo-lhe que se ele preservasse a dignidade de sua alma, dando a vitória à razão, reconhecendo aquele que o havia criado e guardando seu mandamento, ele participaria da eterna beatitude e viveria para sempre, vitorioso sobre a morte. Mas se ele submetesse a alma ao corpo, desconhecendo sua própria dignidade, assimilando-se aos animais sem inteligência[102], desembaraçando-se de seu autor e desdenhando sua prescrição divina, ele estaria exposto à morte e à corrupção, e seria submetido ao sofrimento depois de viver uma vida miserável. Pois não era benéfico para o homem ser incorruptível, sendo ele ainda sem experiência e sem mérito, e arriscando-se a cair no orgulho e na condenação do diabo. Este, de fato, devido à sua incorruptibilidade, depois de uma queda livremente escolhida, fixou-se no mal[103] sem esperança de arrependimento ou mudança, ao oposto dos anjos que, depois de sua livre escolha pela virtude, foram inquebrantavelmente fundados no bem sob o efeito da graça.

Seria, portanto, necessário que o homem primeiramente sofresse um exame e atingisse a perfeição por meio das provas de um mandamento a ser obedecido, para depois receber a incorruptibilidade em recompensa por sua virtude. Pois ele era um intermediário entre Deus e a matéria; de um lado, depois de se ter liberado, pela observação do mandamento, de sua relação de natureza com os seres criados, ele deveria alcançar um enraizamento indestrutível no bem; por outro lado, devido à transgressão, ele se aproximou da matéria; ao destacar seu intelecto de sua causa – a saber, Deus – ele adquiriu uma afinidade com a corrupção; ele se tornou passional ao invés de impassível, mortal no lugar de imortal; ele teve necessidade da cópula e da geração copulativa, e se ligou por desejo de vida aos prazeres, como se estes favorecessem a vida, detestando, ao contrário, aqueles que prudentemente tentassem privá-lo desses prazeres; ele transferiu seu desejo por Deus por um desejo pela matéria, e sua hostilidade se voltou contra os membros de sua espécie ao invés de contra o autêntico inimigo de sua salvação. De fato, foi a inveja do diabo[104] que levou à perdição do homem. Invejoso e inimigo do bem, o diabo não pôde suportar, tendo ele próprio caído por causa de sua revolta, que os bens do alto se tornassem nossa herança. Eis porque este mentiroso seduziu o pobre homem com a promessa de que ele se tornaria um deus; ele o conduziu ao cume de sua própria revolta e o precipitou no abismo de uma decadência semelhante à sua.




[1] Cf. Provérbios 8: 22-23.
[2] Salmo 89: 2.
[3] Hebreus 1: 2.
[4] Cf. Miquéias 3: 30.
[5] A restauração final de todas as coisas em sua unidade absoluta com Deus.
[6] Salmo 103: 4.
[7] Gênese 1: 31.
[8] Cf. Jó 1: 12.
[9] Cf. Mateus 8: 31.
[10] Cf. Mateus 25: 41.
[11] Salmo 113: 24.
[12] Salmo 148: 4.
[13] II Coríntios 12: 2.
[14] Cf. Gênese 1: 7-8.
[15] Salmo 103: 2.
[16] Isaías 40: 22.
[17] Salmo 148: 5-6.
[18] Gênese 1: 8.
[19] Deuteronômio 3: 80.
[20] Cf. Efésios 1: 13.
[21] Salmo 113: 6.
[22] Salmo 148: 4.
[23] Salmo 101: 27.
[24] Isaías 65: 17.
[25] Salmo 95: 11.
[26] Salmo 113: 3. 5-6.
[27] Salmo 113: 5.
[28] Salmo 18: 2.
[29] Gênese 1: 3.
[30] Gênese 1: 1.
[31] Gênese 1: 5.
[32] Idem.
[33] Gênese 1: 16.
[34] Salmo 8: 4.
[35] Cf. Romanos 1: 25.
[36] Gênese 1: 2.
[37] Gênese 1: 2.
[38] Cf. Gênese 1: 7.
[39] Cf. Gênese 1: 6.
[40] Cf. Gênese 1: 9. 19-20.
[41] Gênese 1: 10.
[42] Gênese 1: 9.
[43] Considerado um fenômeno meteorológico em que a água do mar é aspirada para o céu.
[44] Cf. Gênese 2: 10-14.
[45] Id.
[46] Gênese 1: 1.
[47] Salmo 135: 6.
[48] Jó 26: 7.
[49] Salmo 74: 4.
[50] Salmo 23: 2.
[51] Deuteronômio 13: 42.
[52] Salmo 48: 13.
[53] Cf. Gênese 3: 19.
[54] Gênese 1: 28.

[56] Cf. Gênese 1: 26.
[57] Cf. Gênese 2: 8.
[58] Cf. Gênese 2: 9.
[59] Ibid.
[60] Esses três termos evocam a pedagogia divina que não busca pegar em erro o homem recentemente instalado sobre a terra, mas sim fazê-lo adquirir o pleno exercício do seu livre arbítrio: apopeira é um termo concreto (“tentar o combate”, por exemplo, que sublinha a intervenção divina); docime possui um valor jurídico (“indício comprobatório”; cf. II Cor. 2: 9; 8: 2; 13: 3); gymnasion possui um valor moral (exercício para formar a alma). Deus quer que o homem, tomando consciência de suas capacidades, chegue a utilizá-las e atinja por seu próprio movimento a perfeição que lhe é oferecida. A “vida feliz” do Paraíso não é um mero presente, ela exige a livre cooperação do homem. (N.T.)
[61] Cf. Gênese 3: 7.
[62] Cf. Gregório de Nazianze, Orat. 38, 12. À primeira vista, João parece se inspirar nessa passagem, mas, sem prevenir o leitor, ele transforma o texto de Gregório e substitui efesin por aisqhsin (sensibilidade). O que quer dizer João? Sem dúvida, o seguinte: para Adão, “conhecer sua própria natureza” equivale a se colocar a meio caminho como um ser intermediário, entre o visível e o invisível, feito de inteligência e sensibilidade. (N.T.)
[63] Gênese 2: 25.
[64] A apaqeia é a marca da divinização do cristão. O pensamento de Damasceno a esse respeito é perfeitamente coerente: ser isento de paixão equivale a afastar a preponderância da sensibilidade em proveito da parte superior (nous), sem, no entanto, reduzir em nada a própria sensibilidade. (N.T.)
[65] Salmo 54: 23.
[66] Lucas 12: 22.
[67] Mateus 6: 33.
[68] Lucas 10: 41-42.
[69] Por meio dessas citações, João sublinha a proeminência no homem da atividade espiritual. (N.T.)
[70] Cf. Gênese 2: 9.
[71] Temenos é um termo que possui um sentido mais forte do que “domínio”. Poderíamos empregar “apanágio”, para frisar a continuidade do pensamento. Esse domínio terrestre é um dom gratuito do Pai. Da mesma forma, efgasis poderia ser traduzido por “aparência”, no sentido de que o ser humano por si mesmo se manifesta na criação como um ser duplo. (N.T.)
[72] Gênese 2: 16.
[73] Romanos 1: 20.
[74] Salmo 138: 6.
[75] Gênese 2: 16.
[76] Cf. I Timóteo 6: 19.
[77] Gênese 2: 17.
[78] Cf. Mateus 15: 17.
[79] Provérbios 11: 30.
[80] Gênese 2: 17.
[81] Gênese 3: 5.
[82] Cf. Gênese 3: 6-7.
[83] Romanos 9: 20.
[84] Gênese 1: 26.
[85] Ou “formado por diversos elementos”.
[86] Sabedoria 1: 13.
[87] Cf. Romanos 5: 12.
[88] Salmo 134: 6.
[89] Cf. Romanos 9: 19.
[90] Cf. Salmo 148: 5.
[91] Cf. Jó 1: 12.
[92] Cf. II Coríntios 12: 7.
[93] Cf. Lucas 16: 19-31.
[94] Cf. João 9: 2-3.
[95] Cf. Romanos 8: 28.
[96] Cf. I Timóteo 2: 4.
[97] Cf. J[o 1: 12.
[98] Cf. Mateus 8: 20-32.
[99] Cf. Gênesis 2: 19.
[100] Cf. Gênesis 2: 18.
[101] Cf. Gênesis 2: 17.
[102] Salmo 48: 3.
[103] Cf. I Timóteo 3: 6.
[104] Cf. Sabedoria 2: 24.