quarta-feira, 14 de março de 2018

Arquimandrita Sofrônio - Excertos do Ensinamento de São Silouane o Athonita: Das Diversas Formas da Imaginação e do Combate Ascético Contra Elas






O capítulo precedente (*) sobre o “santo hesiquiasmo”, tema que o Starets Silouane tinha em alta estima, nos leva a examinar a necessidade da luta contra a imaginação. Esse árduo aspecto da vida espiritual é de tal complexidade que nosso tratamento não poderá ser exaustivo. Sendo nosso objetivo a exposição de uma experiência concreta, cremos ser nosso dever nos atermos as perspectivas que prevaleceram até hoje entre os ascetas do Monte Athos, das quais o Starets Silouane compartilhava. Deixamos intencionalmente de lado as teorias da psicologia moderna e nos absteremos de criticá-las ou de confrontá-las com o ponto de vista da ascese ortodoxa; advertimos apenas que aquelas não concordam com esta, pois derivam de concepções cosmológicas e antropológicas radicalmente distintas.

O Starets escreve: “Meus irmãos, esqueçamo-nos da terra e de tudo o que ela traz, pois nos distrai da contemplação da Santa trindade, inacessível ao nosso espírito, mas que os Santos contemplam no céu pelo Espírito Santo. Quanto a nós, perseveremos na oração sem a menor imagem”.

(*) Ver o capítulo: "Da Oração Pura", postagem de 3 de Fevereiro de 2018. 

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 A faculdade imaginativa é muito variada em suas manifestações. O asceta luta contra a imaginação associada às paixões carnais. Sabe que a cada paixão corresponde uma imagem, pertencente ao mundo criado, já que qualquer energia puramente cósmica – e, portanto, limitada –inevitavelmente precisa se revestir de uma forma, de uma imagem, por razões já expostas, a energia de um desejo, despertado por imagens passionais, não adquire força suficiente para desencadear o pecado, a não ser que a imagem, recebida interiormente, atraia para si a atenção do intelecto. Se, ao contrário, o entendimento declina da oferta da imagem, a paixão não consegue se desenvolver e, cedo ou tarde, acaba por se apagar. Assim, quando sobrevém o desejo carnal, por mais que seja fisiologicamente normal, o asceta guarda seu intelecto ao abrigo de qualquer imagem exterior proposta pela paixão; a paixão, incapaz de desenvolver sua ação se a imagem não for acolhida pelo intelecto, não poderá senão morrer. Descobrimos aqui um novo aspecto por meio do qual o intelecto, faculdade eminentemente ativa, se opõe às flutuações mentais da razão discursiva: a atenção. Essa “salvaguarda” do intelecto em relação às imagens passionais explica porque é possível, mesmo a um home robusto, conservar a castidade durante toda sua vida; isso é garantido por uma experiência ascética milenar confirmada pelo exemplo do Starets. Se, em câmbio, o intelecto acolhe com deleite a imagem passional, a energia desta poderá submeter a uma sujeição tirânica mesmo um corpo esgotado, enfermo e impotente.

O ódio, para acrescentarmos outro caso, se reveste igualmente de uma imagem sui generis, por exemplo de uma forma mais ou menos clara de vingança. Desde que o intelecto evite se somar a ela, a paixão desaparece por si mesma; mas se ele se une a essa imagem, a violência da paixão crescerá proporcionalmente a essa união, e sua violência poderá chegar mesmo à obsessão, e até à possessão.

Outra forma de imaginação com a qual o asceta está habitualmente em conflito é o sonho. O homem que se afasta do curso normal das coisas não faz mais do que se estabelecer num mundo imaginário, onde a realidade concreta não é superada, mas deformada. Com efeito, como a imaginação é incapaz de criar algo “do nada”, vale dizer, do que nem existe nem preexiste, seus frutos não podem ser alheios ao mundo que nos rodeia e cuja realidade nos é “dada”. Em outras palavras, seus ingredientes serão inevitavelmente emprestados ao mundo concreto; isso acontece, ademais, nos sonhos, e por isso o mundo onírico é relativamente acessível. Um pobre homem que se imagina rei, profeta ou grande sábio, participa de certo modo dessas realidades; e a história menciona exemplos de pessoas que, ocupando o último escalão da hierarquia social, se convertem em imperadores. Mas não é isso que costuma acontecer aos “sonhadores”.

Pensar na solução de um problema técnico, por exemplo, e tentar a realização prática por meio de tal ou qual ideia também coloca em jogo a imaginação. Esse tipo de atividade intelectual apoiada na imaginação tem um papel importante na cultura e favorece o desenvolvimento da civilização humana. Mas o asceta, em sua aspiração à oração pura, tende a se privar de qualquer sucesso, material ou espiritual, para que a imaginação, inclusive em suas formas superiores, não o impeça de “oferecer a Deus seu primeiro pensamento e sua primeira energia”, ou seja: concentrar-se inteiramente em Deus.

Mencionaremos por último outra atividade interior vinculada com a imaginação, a saber, as tentativas de penetrar intelectualmente o mistério da existência e de chegar ao conhecimento do ser divino. As tentativas desse tipo comportam inevitavelmente uma atividade da imaginação; isso é palpável na ilusão de levar a cabo uma “criação” de ordem teológica ou filosófica. O asceta hesiquiasta, em sua aspiração à oração pura, combate resolutamente esse “voo” criador, essa tentação de se colocar do ponto de vista de Deus, pois ele distingue nisso um processo oposto à ordem real da existência, uma espécie de imitação fraudulenta do plano divino, na qual o homem se presta a “criar” a Deus à sua imagem e semelhança.

O que acabamos de expor suscitará sem dúvida muitas objeções nas quais pouco poderemos nos deter; nos interessava tão somente descrever um pouco os fundamentos do hesiquiasmo.

Para o asceta, a consciência de que fomos criados do nada por Deus é um ponto de partida, não uma possibilidade que se trata de elucidar; o asceta exclui desde o início, por conseguinte, a ideia “ontologista” de conceber a Deus a partir do nada e de “refazer a teogonia”, ele se proíbe de querer preceder, pelo intelecto, Àquele que precede todo intelecto; e, por se abster de “recriar” a criação metafisicamente, sua oração, orientando-se não do nada ao criado, mas do criado ao Incriado, vai se despojando mais e mais de qualquer imagem. É certo que a graça divina, descendo sobre o homem que ora e concedendo a ele degustar da proximidade de Deus, pode fazê-lo entrever através de uma imagem a Quem está além de toda imagem; essas imagens – não “inventadas” pelo asceta (ou profeta), mas “entregues” e “recebidas” desde o alto – consomem suas paixões e o santificam, mas o asceta jamais deve considerá-las como o coroamento da revelação; isso equivaleria a transformar a condescendência do Altíssimo num obstáculo intransponível em relação a um conhecimento mais perfeito de Deus.

Enquanto que o pensamento criador de Deus se atualiza e objetiva no mundo, o livre movimento da criatura segue o caminho inverso: renuncia às coisas criadas e busca a Deus enquanto Deus, seu fim último. O universo não se basta a si mesmo; não é criado em função de si, mas em função da transfiguração final e da deificação da criatura pelo conhecimento do Criador[1].

O desejo de explicar o mistério da existência, incitando a razão a reduzir a Criação a uma causação necessária, pode obscurecer a superabundante bondade de Deus enquanto Causa do criado. Acredita-se, por exemplo, ser possível fundamentar a criação a partir da necessidade de encarnação do Verbo divino (Logos). Ora, a Encarnação do Verbo não era de modo algum indispensável ao Verbo enquanto Verbo (Filho in divinis), de modo que a criação não pode ser explicada unicamente como uma condição preliminar da Encarnação. Criação e Encarnação procedem, uma e outra, livremente e, portanto, independentemente uma da outra, do mesmo Amor soberano; vale dizer, de um Amor irredutível ao princípio lógico da razão suficiente.

A condescendência do Logos tampouco é um índice do valor intrínseco do mundo; para entrever o fim e o sentido dessa condescendência, é preciso descobri-lo no próprio Nome que o Deus Verbo atribuiu a si mesmo, humildemente encarnado, Jesus Salvador: “E lhe darás o nome de Jesus, porque é ele quem salvará seu povo dos seus pecados[2]”.

É que Deus não é um mundo ideal no sentido do “mundo das ideias”; ele é infinitamente mais que o “substrato inteligente” da existência empírica; a “ideia divina” do mundo não é coextensiva a Deus, e Deus não necessita atualizar o mundo para “terminar” sua perfeição. A opinião contrária peca por antropomorfismo. A ideia do homem, com efeito, orientada para o mundo, busca a realização de suas criações, sua “encarnação”, sem a qual seu desenvolvimento permaneceria inconcluso. Mas no mundo divino, a encarnação do Deus Verbo não é o coroamento de um processo teogônico, vale dizer, o acabamento de um processo que se situaria no seio da Divindade mesma, sendo, nesse sentido, necessária ao próprio Deus com vistas a alcançar a plenitude de seu Ser. Não, em Deus a perfeição exclui qualquer luta e tragédia intradivinas. Deus não está “além do bem e do mal”, porque ele é Luz na qual não existem trevas.

Esse é, brevemente resumido, o fundamento dogmático da oração hesiquiasta.

Essa oração não é nem uma criação artística, nem um trabalho científico, nem uma busca filosófica, nem uma meditação religiosa, nem uma reflexão teológica. A vida espiritual autêntica não consiste em satisfazer nossas tendências espirituais dando rédeas, como se faz nas artes, à sua expansão na ordem emotiva ou visual. Nas diferentes manifestações da atividade “imaginativa” que enumeramos, existem aquelas que são nobres em maior ou menor grau; ou seja, podemos classificá-las hierarquicamente a partir de sua origem e fim; todas elas pertencem, no entanto, a uma esfera que deve ser superada para que a consciência possa chegar à oração perfeita, à “teologia” verdadeira, à vida no Espírito de Deus.

Nessa ascensão do criado ao Incriado, o asceta não nega nem a realidade nem o valor da criação: ele apenas não se detém aí; evitando imaginá-la ou conceituá-la, ele não a “absolutiza” jamais. Deus não criou o mundo para viver da vida de sua criatura, mas para associar o homem à obra divina. Assim, quando o homem não alcança a deificação – irrealizável sem sua participação – o próprio sentido da criatura desaparece. Reciprocamente, a alma consciente de sua vocação divina, ao contemplar a obra do Criador que a deifica, é tomada de uma admiração que lhe confere um sentido muito realista das coisas criadas; essa admiração é tanto mais profunda e realista quanto mais se desprende a alma da criatura enquanto tal, a fim de poder encontrar a Deus numa oração sem mediações.

Essa renúncia, como se percebe, não se fundamento sobre a realidade do criado. O asceta hesiquiasta, diferentemente de certos ascetas alheios à nossa tradição, não considera ilusória – ou como um simples espelhismos – a existência daquilo que proíbe a si mesmo; sua renúncia tampouco constitui um voo às esferas inteligíveis e desencarnadas, já que essa atitude desemboca de novo, cedo ou tarde, no mundo imaginário. Não: essa renúncia provém da atração que o Deus vivo nos faz experimentar de nosso amor ao Criador, um amor que brota de nossa vocação para viver com Aquele que é Fim e Valor em si, e do qual somos imagem.

O fiel humilde e simples se liberta do poder da imaginação mediante uma aspiração total a viver segundo a vontade de Deus. Isso é a um tempo tão simples e “oculto” aos sábios e inteligentes, que resulta impossível comunicá-lo por palavras.

A “renúncia” ao mundo se situa na busca da vontade divina. A alma quer viver com Deus, segundo Deus, e não “ao seu bel-prazer”, e isso não é possível sem uma abdicação radical de sua vontade própria e de suas faculdades imaginativas que, incapazes de produzir uma existência total a partir do nada, constituem-se mais como “trevas exteriores”.

O mundo da vontade e da imaginação é um mundo de “espelhismos”, comum aos Anjos e aos demônios; a imaginação enquanto tal pode se converter em um veículo da energia demoníaca.

As imagens demoníacas, assim como as imagens concebidas pelo homem, podem adquirir um valor considerável; não que elas sejam reais no sentido radical do termo, como é real o poder divino que cria a partir do nada, mas elas o são na medida em que o homem se rende diante delas, e somente quando o homem se deixa vencer é que sua vontade se conforma com essas imagens e elas o escravizam realmente. Mas o arrependimento liberta do poder da paizão e da imaginação, e o cristão, livre então graças ao Senhor, se ri do poder das imagens.

O poder do mal cósmico sobre o homem é tão forte que nenhum filho de Adão é capaz de vencê-lo sem Cristo, sem Jesus Salvador, na acepção própria e única desse Nome. Essa é a fé do asceta ortodoxo; assim é que sua oração, no próprio seio do silêncio do intelecto, consiste numa invocação ininterrupta do Nome de Jesus Cristo: essa é a “Oração de Jesus”.

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O Starets Silouane reduzia as diversas manifestações da imaginação às quatro formas indicadas anteriormente, o que lhe permitia caracterizar a própria essência do combate que tratamos aqui.

A primeira forma se refere de modo geral à luta contra qualquer paixão.

A segunda caracteriza os que praticam o primeiro modo de oração, ou “meditação visual”; aqui o homem se esforça por evocar em seu interior imagens visuais da vida de Cristo e dos Santos. São preferentemente os neófitos ou os ascetas pouco experientes que recorrem a essa “visualização”. Nessa oração imaginativa o intelecto não está presente no coração; em lugar de avançar para uma vigilância interior, o que ele faz é deter-se no aspecto visual das imagens consideradas como divinas; daí resulta um estado de excitação psíquica; se a concentração é muito intensa, esse estado pode chegar a traduzir-se num êxtase patológico. As próprias “realizações” são celebradas, surge um apego a esses estados, que são cultivados e considerados “espirituais”, carismáticos (frutos da graça) e tão sublimes que a pessoa se crê santa e digna de contemplar os mistérios divinos. Na realidade, porém, esses estados produzem alucinações e, quando não se sucumbe a uma doença psíquica evidente, no mínimo se permanece na “ilusão”, e a vida transcorre assim num mundo fantasmagórico.

As formas terceira e quarta da imaginação se inserem na origem de toda cultura racionalista; é particularmente difícil a um homem instruído renunciar a elas, porque ele vê na cultura sua riqueza espiritual, cuja renúncia é muitas vezes mais dolorosa do que aquela dos bens materiais. Pudemos observar a esse propósito um fenômeno digno de ser notado: é muito frequente vermos ascetas de origem simples e incultos que se elevam a um estado de pureza superior à que alcançam os intelectuais, predispostos a imobilizarem-se no segundo modo de oração.

As pessoas profundamente religiosas e de tendência ascética distinguem rapidamente na terceira forma de imaginação uma orientação para a terra que simplifica sua luta contra ela, por lhes ficar evidenciada sua incompatibilidade com a oração.

Isso já não acontece com a quarta forma de imaginação, com frequência tão sutil que parece ser a própria vida de Deus. Sua importância excepcional na ascese nos obriga a nos determos aqui nela.

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A imaginação sonhadora predomina naqueles que oram conforme o primeiro modo de oração, a tentação de dissipar os mistérios por meio da inteligência ameaça aos que oram conforme o segundo modo. A vida se concentra no cérebro, dissociado do coração, o intelecto tende constantemente, em sua aspiração a tudo compreender e a tudo englobar, a se lançar ao exterior. Quando os que oram assim estão providos de alguma experiência espiritual autêntica, mas insuficiente, tentam completar sua lacunas por meio de sua “própria inteligência”; seu esforço no sentido de esclarecer com o entendimento os mistérios do ser divino – em lugar de deixar que a graça ilumine sua inteligência – os conduz inevitavelmente ao erro, que consiste em conceber segundo o intelecto a Aquele a cuja imagem o intelecto foi criado.

“Conceituar” a Deus é inverter a verdadeira hierarquia da existência, subordinando o Incriado ao criado, o Modelo à imagem; é introduzir a imagem no Modelo e assim, mais cedo ou mais tarde, substituir o Modelo, reduzindo o ser divino às dimensões daquilo que se parece com ele. A esfera “inteligível” na qual se movem concede a essas pessoas uma superioridade aparente, que excita perigosamente sua confiança em si mesmas.

O resultado inevitável do segundo modo de oração é o intelectualismo.

O teólogo intelectualista atua como um arquiteto que projeta a edificação de um palácio ou de um templo: ele utiliza noções empíricas e metafísicas como materiais de construção e se preocupa menos com a adequação de seu edifício ideal à ordem real das coisas do que com sua grandeza e harmonia lógicas.

É surpreendente que muitos homens extraordinários não tenham podido resistir a uma tendência que no fundo é tão ingênua, e cuja fonte secreta é o orgulho.

Acontece com frequência um apego aos frutos da inteligência que é parecido com o de uma mãe para com seu filho. O intelectual ama sua criação como a si mesmo, se identifica com ela, confiando-se em seu recinto. A intervenção humana nesses casos não é de nenhuma valia: se o homem não renuncia, por ele mesmo, a essa pseudo-riqueza, ele não alcançará nem a oração pura, nem a contemplação verdadeira.

A vitória sobre o pensamento discursivo é uma prova de sensibilidade espiritual, mas não atesta por si só uma “fé verdadeira”. Para além do domínio racional, vale dizer, mental, situa-se com efeito o das intuições intelectuais; mas esse domínio, por mais que seja supra mental, não consegue superar o plano da existência criada.

A compreensão da relatividade das leis da razão humana e a impossibilidade de encerrar a existência nos círculos afiados das conclusões lógicas abre certamente horizontes contemplativos, mas o objeto dessa contemplação intelectual ainda é a beleza do criado à imagem de Deus. Quem penetra assim pela primeira vez no domínio do “silêncio” do intelecto experimenta um certo pavor místico e, sentindo-se “transportado” para além da existência criada, toma facilmente esse “êxtase intelectual” por uma experiência de comunhão com o Incriado, quando, na realidade, permanece ainda dentro dos limites da natureza criada. Em casos assim, a consciência supera as fronteiras do tempo e do espaço e consegue contemplar de longe a sabedoria eterna. Essa experiência dos confins do intelecto, seja lá qual for a interpretação dogmática que lhe seja dada, tem um caráter “panteísta”.

Quando o homem chega a esses “limites da luz e das trevas[3]”, contempla na realidade a beleza e a profundidade seu próprio intelecto, que muitos filósofos identificaram com o ser divino. É com certeza uma luz que eles contemplam, mas não a “verdadeira luz” na qual “não há trevas”; por ser natural, a luz do intelecto continua sendo “treva” em relação à luz Incriada; é a noite nua e abstrata na qual Deus não está; a ela se podem aplicar as palavras do Senhor: “Cuide para que a luz que está em ti não seja treva[4]”. Não foi a queda de Lúcifer, primeira “catástrofe” cósmica e supra histórica, uma consequência precisamente da contemplação amorosa de sua beleza angélica, arquétipo cósmico de toda autodeificação?

Quem já visitou esses lugares do espírito perguntará talvez com espanto: mas onde se encontra a garantia da união verdadeira com Deus? Como excluir que não se trata de uma experiência situada no plano da imaginação, da filosofia ou do panteísmo?

O santo Starets afirmava categoricamente que o único critério, no domínio do controlável, é o amor aos inimigos. Ele dizia: “O Senhor é humilde e doce. Ele ama suas criaturas; onde está o Espírito do Senhor, ali reina infalivelmente o humilde amor aos inimigos e a oração pelo mundo. Se você não possui esse amor, peça-o, e o Senhor que disse: “Pedi se vos será dado, buscai e encontrareis[5]”, o outorgará a você”.

Que a ninguém ocorra minimizar esse indício como algo “psicológico”, pois se trata de um estado psíquico que deriva diretamente da ação divina. Deus Salvador salva o homem por inteiro. O critério ao qual nos referimos indica a santificação realizada por Deus, não só do intelecto espiritual, como também, e simultaneamente, da alma psíquica e, progressivamente, do corpo.

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Não fizemos nada além de aflorar os problemas seculares mais complexos da existência espiritual do homem. Estamos longe de resolvê-los dialeticamente. Se fosse esse o nosso objetivo, seria preciso estudar numerosos exemplos de contemplativos do Oriente e do Ocidente, mas deixamos essa tarefa a quem se sentir chamado a ela. Pessoalmente, acreditamos que seja impossível esgotar as diferentes formas de oração, e estamos persuadidos de que o único caminho que leva ao conhecimento da verdade é a fé e a experiência viva, sendo esse o caminho do própria existência.

Não obstante, é importante esclarecer, a esse propósito, que a experiência mencionada não depende apenas do querer do ser humano: ela chega a este desde o alto como dom gratuito do amor de Deus, enquanto que as experiências de ordem puramente intelectual dependem das capacidades naturais do ser humano e de sua vontade de realizá-las. A experiência cristã da comunhão sobrenatural com Deus depende essencialmente do Querer de Outro e se diferencia dos caminhos intelectuais na medida em que é vivida sempre como graça.

A vida cristã consiste no acordo entre duas vontades: a de Deis, incriada, e a do homem, criada. Deus pode se mostrar ao homem em qualquer de seus caminhos, a todo momento, e em todos os lugares espirituais e espaciais; mas, por estar acima de qualquer necessidade, Deus não violenta a liberdade de sua própria imagem. Deus não a impede nem de dobrar-se sobre si mesma nem de se identificar com o princípio divino. Pretendendo assim ter alcançado o cume da contemplação, o homem fecha para si próprio a ação da graça divina.

A comunhão de Deus se realiza por intermédio da oração, e é de oração que estamos falando. Se, apesar de tudo, fizemos uma digressão pelo domínio da dialética, não foi porque buscamos convencer a alguém, mas porque quisemos mostrar que também esse território da condição humana está incluído dentre os caminhos da oração. Qualquer tentativa de explicar de forma dialética a experiência espiritual se presta a encontrar as objeções mais variadas. Essa possibilidade provém do dato de que, na esfera ideal de sua visão de mundo, cada um de nós é livre para fixar indistintamente sua própria hierarquia de valores.

Seguindo em nosso tema da oração, tentaremos descrever esquematicamente um dos combates mais dolorosos que o asceta ortodoxo encontra em seu caminho: a passagem do segundo para o terceiro modo de oração, ou seja, a luta contra a imaginação intelectual.

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Observando a si próprio com atenção, o homem descobre que seu pensamento racional possui uma propriedade psicológica que pode ser definida como a certeza imanente de nosso pensamento, ou, em outros termos, como uma evidência subjetiva da correção de nossas deduções lógicas. Existe algo premente nas demonstrações da razão, em suas provas. É preciso uma grande cultura para descobrir essa estranha sedução; quanto a libertar-se de seu poder, isso requer uma profunda experiência espiritual.

É possível rastrear esse engano mediante um exame atento dos princípios que governam o mecanismo de nosso pensamento: o princípio da identidade e o princípio da razão suficiente.

O princípio de identidade (da não contradição) representa o momento estático do nosso pensamento, seu ponto imóvel de apoio, carente de vida devido a essa imobilidade.

O princípio da razão suficiente (da causalidade necessária) representa o momento dinâmico de nosso pensamento: a experiência secular demonstra de sobra sua extrema debilidade. O juízo fundamentado sobre a razão suficiente é sempre subjetivo: o que parece suficiente a uma pessoa pode não sê-lo para outra. Assim, observando com maior atenção, nos damos conta de que na realidade a razão nunca é perfeitamente suficiente.

O asceta ortodoxo, por sua vez, descobre a relatividade de nossa inteligência por outros meios, da mesma maneira como resolve de modo distinto todos os problemas da existência: a saber, por meio da fé e da oração. Não confia em si mesmo, mas crê em um Outro que não é ele, em Deus todo-poderoso. Ele já não aceita medida infalível ou cânone de verdade que não os mandamentos de Cristo, cuja peculiaridade consiste em ser a um tempo critério de verdade e fonte de vida divina. Essa fé o leva a submeter todos os seus juízos ao juízo de Deus, o único equitativo e “último”. Qualquer ato, qualquer palavra, qualquer pensamento ou sentimento inexpressado, por ínfimo que sejam, “comparece” diante da palavra de Cristo.

Quando a graça de Cristo nos cativa e se converte numa força de Deus atuante, os impulsos de nossa alma se aproximam mais, obviamente, da perfeição dos mandamentos. Mas quando sobrevêm o alheamento e o abandono de Deus, e a luz divina é substituída pelas espessas trevas da rebelião das paixões, tudo muda e dá lugar a uma luta interior.

A luta interior é muito variada: a mais profunda e dolorosa é a luta contra o orgulho. O orgulho é inimigo da lei divina. Ao falsear a ordem divina da existência, não traz por toda parte nada além de desagregação e morte. O orgulho se manifesta também na carne, mas o plano intelectual e espiritual é o seu lugar preferido. Ele coloca em mira desespiritualizar o intelecto, que é o órgão por excelência de nossos juízos, e o incita a descartar como contraditório o mandamento de Cristo: “Não julgueis para não serdes julgados[6]”. Ele nos insinua que nossa faculdade de julgar, sendo um privilégio distintivo do homem, não está chamada a morrer junto com as demais faculdades psíquicas ou corporais, mas a vencer e dominar o mundo.

O orgulho intelectual pode chegar a afirmações como essa, que não inventamos, onde fica manifesta a tristeza do despeito: “Como posso aceitar, se Deus existe, não sê-lo eu?”. Ou essa: “Já escutei de tudo e não encontrei nada maior do que eu; portanto, eu sou Deus”.

É próprio do orgulho intelectual, com efeito, cegar a inteligência a respeito de tudo o que a ultrapassa, o q eu a leva a confundir-se com o princípio divino. Esse é o limite extremo da “imaginação intelectual”, e, ao mesmo tempo, a queda nas travas mais profundas.

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Há quem aceite essas pretensões, que as aceitem como verdadeiras e que se lancem em busca dessa perspectiva espiritual; o asceta ortodoxo, por sua vez, trava uma luta contra elas, esse combate revela a intervenção de forças estranhas; ele pode alcançar uma intensidade extrema e chega a ser trágico. A saída vitoriosa depende da fé do asceta, “pois aquele que nasceu de Deus triunfa sobre o mundo, e a vitória que triunfa sobre o mundo é nossa fé[7]”.

Para vencer o inimigo, o monge evita instalar-se num interior confortável; no silêncio da noite, longe do mundo, nem visto nem escutado por ninguém, ele se prosterna diante de Deus derramando muitas lágrimas e diz, como o publicano: “Deus, tem piedade de mim[8]”, ou como São Pedro: “Senhor, salva-me[9]”.

Ele percebe no espírito o abismo das “trevas exteriores”, e por isso sua oração é ardente. A palavra é impotente para descrever o mistério dessa visão e a intensidade dessa luta que pode durar anos, na medida em que a luz divina não chega para revelar a iniquidade de nossos juízos e introduzir a alma na imensidão da vida verdadeira.

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Conversamos muitas vezes com o Starets a respeito dessas questões. Ele dizia que a causa da luta não estava tanto na razão enquanto tal, quanto no orgulho de nosso espírito, que dirige o intelecto contra Deus. O orgulho alimenta a imaginação, a humildade a faz cessar. O orgulho se incha pata criar seu próprio mundo, a humildade aceita a vida que provém de Deus.

Largos anos de duro combate haviam dado ao Starets a força para guardar constantemente sua inteligência em Deus e de fechar o caminho a qualquer pensamento. Havia passado por dolorosos sofrimentos, mas quando o conhecemos reinava uma grande paz em sua alma. Ele evocava o passado em termos muito simples:

“O intelecto luta contra o intelecto: o nosso contra o do Inimigo. O orgulho, unido à imaginação, fez com que caísse o Inimigo, e este quer nos arrastar na mesma queda. Um valor vigilante é necessário nesse combate. O Senhor permite que seu servidor lute, e o segue com seu olhar, assim como contemplava a Antônio o Grande lutando contra os demônios. Vocês se recordam de que, em sua biografia, conta-se que Antônio havia estabelecido sua morada em um sepulcro onde os demônios o surraram até o ponto de perder a consciência; o amigo que o servia transportou-o até a igreja do povoado; chegada a noite, Antônio recuperou-se e pediu ao amigo que o levasse de novo ao sepulcro. Enfermo e sem poder permanecer de pé, orava deitado. Depois da oração, os demônios retomaram o ataque e quando, torturado por esses suplícios, levantou os olhos e viu a luz, nela reconheceu a chegada o Senhor. Então exclamou: ‘Onde estavas, Jesus misericordioso, quando os inimigos me atormentavam?’. Cristo respondeu: ‘eu estava ali, Antônio, e observava seu valor’. Não devemos nunca esquecer que Deus vê nossa luta contra o Inimigo e, por conseguinte, não há porque assustar-se, ainda que o inferno inteiro nos assalte. Jamais devemos perder o ânimo”.

“Os Santos aprenderam a lutar contra o Inimigo; conhecendo sua maneira fraudulenta de atacar através dos pensamentos, eles os rechaçaram durante toda a vida. O pensamento não parece mau de início, mas pouco a pouco consegue separar a inteligência do coração; é, pois, indispensável rechaçar a todos os pensamentos, inclusive os que parecem ser bons, e concentrar o intelecto purificado somente em Deus. Se sobrevém um pensamento, não convém perturbar-se; os inimigos se comprazem com nossa confusão. Orem, e o pensamento se afastará por si próprio. Esse é o caminho dos Santos”.

Aos olhos do Starets o orgulho se caracterizava por pretensões desmesuradas. Em seus escritos encontramos a respeito a seguinte parábola:

“Um dia, um caçador, que gostava de percorrer os campos e bosques em busca de caça, escalou uma alta montanha para despistar um animal; cansado, sentou-se sobre uma rocha. Divisando no céu um bando de pássaros que voavam de cume em cume, pôs-se a falar consigo mesmo: ‘Por que Deus não deu asas ao home para que ele possa voar?’. Naquele momento passou um humilde eremita que, adivinhando os pensamentos do caçador, disse-lhe: ‘Pensas que Deus não te deu asas; mas se as tivesse dado, não ficarias satisfeito, e diria: ‘Minhas asas são fracas, não posso subir ao céu e saber o que contém em seu interior’. Se recebesses asas capazes de transportar-te aos céus, ainda assim te queixarias e dirias: ‘Não compreendo o que acontece aqui’. E se estivesses dotado de inteligência capaz de saber o que acontece ali, tampouco te contentarias e dirias: ‘Por que não sou um anjo?’. Transformado em Querubim, dirias: ‘Por que Deus não me confiou o governo do céu?’. Feito governador do céu, tua impertinência, seguindo na mesma linha, não cessaria de exigir mais. De onde vem esse não contentar-te com o que Deus te deu? Sê humilde, e viverás com Deus’. O caçador compreendeu que o eremita tinha razão e deu graças a Deus por lhe ter enviado aquele monge que o havia orientado mostrando-lhe o caminho da humildade”.

O Starets lembrava com insistência que os Santos Padres aspiravam a purificar o espírito de qualquer imagem por meio do caminho da humildade.

“Os Santos diziam: ‘Eu sou digno do inferno’. E isso, quando realizavam milagres! Eles sabiam por experiência que se a alma, esperando a misericórdia divina, condena a si própria ao inferno, a força de Deus a visita: o Espírito lhe testemunha sua salvação. Condenada, a alma se humilha; humilhada, se liberta de qualquer pensamento, e se apresenta com o intelecto purificado diante de Deus. Essa é a sabedoria espiritual”.

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O homem perfura a terra com o aço para extrair petróleo e consegue seu objetivo. O homem sonda os céus com sua inteligência para roubar o fogo divino, mas Deus o repudia por causa de seu orgulho.

As contemplações divinas são concedidas ao homem, não quando se esforça por buscá-las por si mesmo, mas quando a alma desce ao inferno da penitência e se dá conta de que está abaixo de toda criatura. As contemplações que resultam de uma tensão imposta pela inteligência não são verdadeiras, mas aparentes. Quando essas pretensas contemplações são tomadas como autênticas, origina-se na alma um estado que torna difícil mesmo a possível intervenção da graça e, por conseguinte, a verdadeira contemplação.

A contemplação concedida pela graça revela realidades que superam em riqueza a imaginação mais fecunda. Como disse São Paulo: “São coisas que o olho não viu, que o ouvido não escutou e que não chegaram ao coração do homem[10]”. Quando, semelhante aos Apóstolos, o homem é elevado pela graça à visão da luz eterna, ele já não se entrega a seguir à teologia especulativa, mas “narra” aquilo que viu e ouviu. A teologia autêntica não é conjectura, postulado, dedução, nem o resultado de qualquer investigação, mas a narrativa daquela realidade à qual o homem teve acesso sob a ação do Espírito Santo. A palavram quanto mais brota de sua fonte, tanto mais dificuldade encontra em apresentar noções e expressões aptas para comunicar o que está além de todo conceito e imagem terrestre. Não obstante, apesar dessas dificuldades e de sua tradução diversa inevitável em termos humanos, aquele que conheceu saberá reconhecer e distinguir, seja qual for o revestimento verbal, entre uma verdadeira contemplação e uma visão, talvez genial, mas proveniente da pura inteligência.



[1] João 17: 3.
[2] Mateus 1: 21.
[3] Jó 25: 11.
[4] Lucas 11: 35.
[5] Mateus 7: 7.
[6] Mateus 7: 1.
[7] I João 5: 4.
[8] Lucas 16: 13.
[9] Mateus 14: 30.
[10] I Coríntios 2: 9.

quarta-feira, 7 de março de 2018

Arquimandrita Sofronio - Excertos do Ensinamento de São Silouane o Athonita: Ensinamentos do Starets



INTRODUÇÃO

A Revelação nos diz: “Deus é Amor”, “Deus é Luz, nele não existe treva alguma[1]”.

Quão difícil é para nós, homens, aceitarmos essas palavras! Difícil, porque nossa própria vida e a do mundo inteiro que nos rodeia mostram o contrário.

Onde se encontra, com efeito, essa Luz de Amor do Pai, se, chegando ao ocaso de nossas vidas, com a amargura no coração, somos obrigados a reconhecer, como Jó: “Meus melhores projetos, os desejos mais queridos de meu coração, se desmancharam. Meus dias ruíram, minha casa será o lugar dos mortos... Onde está, pois, minha esperança? E aqui que, desde a minha juventude, secreta e ardentemente, meu coração perseguia, quem o verá?[2]”.

O próprio Cristo assegura que Deus, em sua Providência, vela atentamente por toda a criação. Ele se lembra do mais pequenino pássaro, e cuida mesmo da erva do campo. Sua solicitude pelos homens é entretanto incomparavelmente maior, até o ponto de que “todos os seus cabelos estão contados[3]”.

Mas onde está essa Providência que vela até os menores detalhes? Estamos desconcertados pelo espetáculo do desencadeamento irrefreável do mal pelo mundo. Milhões de vida, com frequência apenas iniciadas, e ainda antes que tenham qualquer consciência de si mesmas, são arrancadas com incrível crueldade.

Por que então essa vida absurda nos foi dada? A alma anseia por encontrar a Deus e dizer-lhe: “Por que me deste a vida? Estou coberto de sofrimentos, as trevas me rodeiam. Por que te escondes de mim? Sei que és bom, mas como podes ser tão indiferente à minha dor? Por que és tão cruel, tão implacável comigo? Não posso compreender-te”.

Um homem possuído pelo desejo de Deus vivia na terra. Seu nome era Simeão. Havia orado durante longo tempo, chorando sem cessar: “Tem piedade de mim”. Mas seu grito se perdia no silêncio de Deus.

Perseverou meses e meses nessa oração; as forças de sua alma estavam esgotadas. Chegou ao limite do desespero e gritou: “És inexorável!”. E quando, com essas palavras, algo se rompia em seu espírito destroçado pelo desespero, viu de repente, no relâmpago de um instante, a Cristo vivo. Seu coração e seu corpo foram invadidos por um fogo tão violento, que se a visão houvesse se prolongado um instante a mais, ele não teria sobrevivido. Desde então, ele nunca mais pôde esquecer o olhar de Cristo, um olhar de indizível doçura, infinitamente amoroso, cheio de alegria e de paz. E durante os muitos anos de sua vida que se sucederam desde então, ele testemunhou incansavelmente que Deus é Amor, Amor infinito e insondável.

É desse testemunho do amor divino que vamos falar.



ENSINAMENTOS DO STARETS

O leitor encontrará nos escritos do Starets Silouane curtos relatos nos quais ele fala se alguns acontecimentos de sua vida; quanto a nós, vamos expor aqui apenas sua doutrina. Não que ele tenha professado, propriamente falando, uma doutrina no sentido usual do termo. O que iremos expor não é mais doque uma tentativa de resumir em poucas palavras o que escutamos durante os anos que vivemos junto a ele. Nos parece impossível explicar as razões profundas que nos levaram a depositar nossa confiança no Starets, mas talvez não seja ocioso dizer brevemente qual foi nossa atitude diante dele.

Os temas de nossas conversas com o Starets eram presididos por nossas próprias necessidades e perguntas. Muitos dos problemas que foram abordados desse modo não figuram nos escritos do Starets. Quando nos dirigíamos a ele para propor perguntas, o quando simplesmente o ouvíamos, estávamos cientes de que suas palavras procediam de uma experiência concedida desde o alto. De certo modo nos comportávamos em relação a elas do mesmo modo como o mundo cristão o faz com a sagrada Escritura, que nos fala das verdades como de fatos conhecidos e indiscutíveis. Aquilo que o Starets dizia não era fruto de “sua” reflexão individual. Não; seu processo interior era radicalmente diferente: uma experiência real e um autêntico conhecimento sustentavam suas palavras e lhes conferiam o caráter de um testemunho verídico sobre as realidades do mundo espiritual. O recurso a uma argumentação dialética era-lhe completamente alheio, como algo supérfluo, como acontece também com a sagrada Escritura. De modo parecido com São João Evangelista, ele dizia “nós sabemos[4]”. Tomemos esse exemplo de seus escritos:

“Nós sabemos que quanto maior é o amor, maiores são os sofrimentos da alma; quanto mais completo é o amor, mais completo é o conhecimento; quanto mais ardente o amor, mais fervorosa a oração; quanto mais perfeito o amor, mais santa é a vida”. Cada uma dessas quatro afirmação poderia ser aduzida como coroamento de profundas e complexas indagações filosóficas, psicológicas e teológicas; mas o Starets não sentia nenhuma necessidade delas, e tampouco delas se servia.

Nossa proximidade com o Starets era de índole muito particular. Cremos que graças à sua conversação, cujo tom era tão simples, e graças à força da sua oração, ele possuía o dom de introduzir seu interlocutor num universo distinto. O mais notável disso era que o interlocutor não era introduzido nesse universo de modo abstrato, senão que penetrava nele realmente, mediante uma experiência interior que lhe era transmitida. Para falar a verdade, quase ninguém, que saibamos, foi capaz de manter mais tarde o estado espiritual recebido e de realizar em sua vida o que conhecera nas conversações com o Starets. É certo que isso foi para muitos uma fonte inesgotável de sofrimentos, durante toda a vida, pois a alma que um dia viu a luz e a perdeu em seguida não pode deixar de se afligir. E, no entanto, não seria mais triste, mais desesperador, não ter tido notícia alguma dessa luz, e – o que não é raro – sequer suspeitar de sua existência? Sabemos com certeza que foram numerosos os que, tendo se aproximado com amor do Starets para receber seus ensinamentos, mais tarde se afastaram dele, incapazes que eram de viver em conformidade com sua palavra. Sua palavra era simples, mansa, doce e cheia de bondade, mas para segui-la era preciso ser tão implacável consigo mesmo como o era o Starets. Era necessário possuir aquele espírito decidido que o Senhor pede aos que desejam segui-lo, até o extremos de odiar a própria vida[5].
DO CONHECIMENTO DA VONTADE DIVINA

O Starets gostava de dizer: “É bom tentar a todo o tempo e circunstância ser iluminado por Deus para saber como trabalhar e como orar”. Em outras palavras, é preciso tentar em qualquer circunstância conhecer a vontade de Deus e os caminhos que permitem colocá-la em prática.

A busca da vontade de Deus é a obra mais importante de nossa vida, já que, entrando na corrente dessa vontade, o homem se vê introduzido na vida eterna e divina.

Existem diversos caminhos para chegar ao conhecimento da vontade de Deus. Um deles é a Palavra de Deus, os mandamentos de Cristo, sem embargo, os preceitos evangélicos, apesar de sua perfeição – ou antes, em virtude dessa mesma perfeição – enunciam a vontade de Deus de forma universal, enquanto que muitas vezes o homem, que encontra em sua vida cotidiana situações infinitamente variadas, não sabe como deve proceder para que seus atos se integrem à corrente da vontade divina.

Para que uma ação chegue a um fim que seja bom, não basta conhecer a vontade de Deus, tal como se encontra expressa nos mandamentos: amar a Deus com todo seu coração, com toda sua inteligência e com todas as forças, e ao próximo como a si mesmo. De resto, não é preciso ser iluminado por Deus acerca da maneira concreta de realizar os mandamentos em nossa vida; mas para isso necessitamos da assistência de uma força proveniente do alto.

Aquele cujo coração está cheio do amor de Deus e que é movido por esse amor, trabalha motivado por razões que estão próximas da vontade divina, mas que não deixam de ser apenas aproximadas. Como a vontade de Deus permanece inacessível para nós, precisamos dirigirmo-nos sem cessar a Deus por meio da oração, pedindo-lhe sabedoria e apoio.

Não é apenas a perfeição do amor, que falta ao homem, como também lhe falta a onisciência perfeita. Atos que procedem, ao que parece, da melhor das intenções, levam com frequência a consequências contrárias ao que se desejava, e até funestas. É que os meios ou o modo de colocá-los em prática eram, ou maus, ou simplesmente inadequados a uma dada situação. Ouvimos com frequência pessoas que tentam se justificar alegando suas boas intenções, mas isso não é suficiente. A vida humana está cheia de erros desse tipo. Por causa disso, o homem que ama a Deus busca sempre ser instruído desde o alto, prestando constantemente o ouvido à voz de Deus.

Isso se consegue na prática do seguinte modo: quando um cristão, em especial um bispo ou um sacerdote, se encontra diante da necessidade de tomar, numa circunstância concreta, uma decisão conforme à vontade divina, ele deverá fazer interiormente a abstração de todos os seus conhecimentos, de suas ideias preconcebidas, de seus desejos e projetos; liberto, assim, de seu próprio “eu”, deverá orar atentamente em seu coração. E receberá como um sinal vindo do alto o primeiro pensamento que nasça dessa oração.

Essa maneira de tentar conhecer a vontade divina, mediante o recurso direto a Deus através da oração, especialmente nas dificuldades e atribulações, conduz o homem àquele estado do qual o Starets diz: “Escuta na sua alma a resposta de Deus e comece a compreender como Deus guia o homem... assim devemos todos a prender a reconhecer a vontade de Deus. Mas se não fazemos esforços para aprendê-lo, jamais conheceremos esse caminho”.

Em sua forma mais perfeita, essa busca pressupõe a prática da oração ininterrupta, concentrando, aquele que ora, a atenção em seu coração. Para escutar inequivocamente em si mesmo a voz de Deus, o homem deve dispensar sua vontade própria e estar disposto a sacrificar tudo, como o fez Abrahão, e mesmo, conforme as palavras de São Paulo, como Cristo, “obediente até a morte[6]”.

O homem que entrou por esse caminho irá progredir nele quando tiver conhecido por experiência o modo como a graça do Espírito Santo opera no ser humano, e ainda se uma implacável abnegação própria se enraizar em seu coração; em outras palavras, se renunciar resolutamente à sua própria vontade individual, com o fim de conhecer e cumprir a santa vontade de Deus. A esse homem será revelado o verdadeiro sentido da pergunta colocada pelo Starets Silouane ao Padre Estratônico: “Como falamos perfeitos?”. As palavras dos Apóstolos: “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós[7]”, serão para ele familiares; ele compreenderá claramente as passagens do Antigo e do Novo Testamento nas quais se descreve a alma a entrar diretamente em diálogo com Deus; ele se encaminhará para uma verdadeira compreensão do modo de falar dos Apóstolos e dos Profetas.

O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus; ele é chamado a à plenitude de uma comunhão imediata com Deus. Por essa razão, todos os homens sem exceção deveriam seguir esse caminho, mas a experiência mostra que esse caminho está longe de ser acessível a todos. Isso acontece porque a maior parte dos homens não escuta a voz de Deus em seu coração, não a compreendem, ao contrário, seguem a voz das paixões que vivem em sua alma e que sufocam com seu tumulto a discreta voz de Deus.

Para escapar dessa lamentável situação, existe na Igreja outro caminho: pedir conselho ao pai espiritual e obedecer-lhe. O próprio Starets amava esse caminho e o seguia; ele se remete a ele e o menciona em seus escritos, em especial em “Dos pastores e dos pais espirituais”. Ele acreditava que o humilde caminho da obediência era de modo geral o mais seguro de todos. Estava firmemente convencido de que, graças à fé daquele que pede conselho, a resposta do pai espiritual será sempre boa, proveitosa e agradável a Deus. Sua fé na eficácia do sacramento da Igreja e na realidade da graça do Salvador foi reforçada a partir do dia em que viu o Starets confessor Abrahão transfigurado “à imagem de Cristo”, “revestido de um inefável esplendor”. Isso aconteceu no Velho Rossikon[8], durante as vésperas, no decurso da Grande Quaresma.

Mergulhado numa fé abençoada, ele vivia a realidade dos sacramentos; mas percebia que, mesmo no plano humano e psicológico, é fácil sentir as vantagens da obediência a um pai espiritual. Dizia que quando um confessor, no exercício de seu ministério, responde às perguntas que lhe são propostas, ele está livre nesse instante da energia passional, sob cujo império se encontra aquele que pergunta; assim ele pode ver as coisas com maior clareza e estará mais acessível à ação da graça divina.

Na maior parte dos casos, a resposta do pai espiritual terá um caráter imperfeito e relativo, não porque ele esteja privado da graça do conhecimento, mas porque quem pergunta carece de forças para realizar um ato espiritual perfeito. Sendo assim, em que pese o caráter relativo das orientações ministradas pelo confessor, essas darão bons frutos sempre, desde que sejam acolhidas com fé e fielmente seguidas. Desgraçadamente, esse caminho se vê no mais das vezes alterado, pelo fato de que quem pede conselho, não vendo diante de si mais do que um “homem”, vacila em sua fé e, como resultado, não capta a primeira palavra do padre espiritual; faz-lhe objeções, opondo a ele suas próprias ideias e dúvidas.

O Starets Silouane conversou sobre esse importante assunto em 22 de Janeiro de 1940 com o higoumeno do Mosteiro, o Arquimandrita Misael, homem espiritual que, segundo diziam, gozava de grande benevolência e proteção divinas. O Starets Silouane perguntou ao higoumeno:
- Como um homem pode conhecer a vontade de Deus?
- Ele deve receber minha primeira palavra como sendo a expressão da vontade de Deus, respondeu o higoumeno. A graça divina repousará sobre aquele que trabalha assim, mas, se alguém me resiste, então, como homem, eu cedo.

Eis o sentido das palavras do higoumeno Misael: quando se pede conselho a um pai espiritual, este ora para ser iluminado por Deus, mas, enquanto homem, responde na medida de sua fé, segundo as palavras do apóstolo Paulo: “Nós cremos, por isso falamos[9]”; mas não se esquece de que: “Nosso conhecimento é parcial, nossa profecia é parcial[10]”. Em seu desejo de não cometer erros, ele se submete ao juízo de Deus quando dá conselho ou orientação; assim, na medida em que topa com uma objeção ou simplesmente com uma resistência interior por parte do que pergunta, não insiste sobre o que foi dito e não se permite afirmar que sua palavra seja a expressão infalível da vontade de Deus, e, “como homem, cede”.

Essa consciência se manifestou de modo surpreendente na vida do higoumeno Misael. Um dia ele chamou à sua presença um noviço, e lhe confiou uma complexa obediência dificilmente compatível com a oração do coração. O noviço aceitou com prontidão e, depois de haver feito a profunda reverência de praxe, dirigiu-se para a porta. Logo o higoumeno voltou a chamá-lo. Inclinando ligeiramente a cabeça sobre o peito, disse com calma e gravidade:
- Saiba, Padre: Deus não julga duas vezes; quando você fizer algo em obediência a mim, eu serei julgado por Deus; quanto a você, não perderá a graça”.

Se alguém resistia, ainda que ligeiramente, a uma ordem ou uma orientação do higoumeno Misael, esquecendo a posição institucional que ocupava, o animoso asceta respondia habitualmente: “Pois bem, faça como quiser”, e não repetia o que havia dito. Do mesmo modo, o Starets Silouane se calava, a partir do momento em que encontrava a menor oposição.

Por que razão? Por um lado, porque o Espírito Santo não tolera nem violência nem discussão; por outro, porque a vontade de Deus é algo demasiado grande, a vontade de Deus não pode ser contida por inteiro na palavra do pai espiritual – pois essa composta doses inevitáveis de relatividade – nem encontrar nela sua expressão perfeitamente adequada. Somente quem aceita a palavra de seu pai espiritual com fé, acreditando ser agradável a Deus, sem submetê-la ao seu próprio juízo, sem “raciociná-la”, somente esse encontrou o verdadeiro caminho, pois crê que “a Deus, tudo é possível[11]”.

Esse é o caminho da fé, conhecido e sancionado pela experiência milenar da Igreja.

***

Nem sempre é isento de perigos enfrentar esses temas que constituem o “mistério sem segredos” da vida cristã, e que, sem embargo, ultrapassam os limites da vida cotidiana e de uma experiência espiritual pouco extensa. Muitos, com efeito, poderiam compreender mal o sentido dessas palavras e colocá-las em prática de forma incorreta, de tal modo que elas, ao invés de fazer o bem, se tornariam nocivas, em especial se o homem abordar a vida ascética com uma orgulhosa confiança em si mesmo.

Quando alguém pedia conselho ao Starets, ele não gostava nem queria responder confiando em sua própria inteligência. Recordava as palavras de São Serafim de Sarov: “Quando falava confiando em minha própria inteligência, cometia erros”, e acrescentava que os erros podiam ser leves, mas que também poderiam ser graves.

O estado espiritual a que se referia o Starets ao falar com o Padre Estratônico, que “os perfeitos não dizem nada por si mesmos (...) mas só aquilo que o Espírito lhes confia”, nem sempre é concedido, nem sequer àqueles que se aproximam da perfeição; pela mesma razão, não era sempre que os Apóstolos e outros Santos operavam milagres constantemente, e o espírito de profecia não operava sempre e no mesmo grau nos profetas, mas, assim como operava poderosamente neles, também os abandonava.

O Starets fazia uma clara distinção entre a “palavra fundamentada na experiência” e a inspiração direta recebida do alto, vale dizer, a “palavra concedida pelo Espírito”. A primeira certamente não está desprovida de valor, mas a segunda lhe é superior e mais digna de fé[12].

Quando era perguntado, dizia às vezes sem vacilar e com precisão: “A vontade de Deus é que você faça isso”, mas às vezes respondia que não conhecia a vontade de Deus a respeito daquela pessoa. Dizia que mesmo aos Santos o Senhor nem sempre revelava sua vontade, porque quem se dirigia a eles o fazia com um coração incrédulo e perverso.

 Segundo o Starets, aquele que ao com todo o seu coração passa por muitas vicissitudes em sua oração: luta contra o Adversário, luta com os homens, luta consigo mesmo, com suas paixões e sua imaginação. Em tais condições, o intelecto não é puro, e nada é claro. Mas quando a oração se torna pura, quando o intelecto, unido ao coração, se coloca silencioso diante de Deus, quando a alma, livre da ação perturbadora das paixões e da imaginação, percebe em si mesma a presença da graça, então o homem que ora pode ouvir a inspiração da graça.

Quando o homem empreende essa tarefa – a busca da vontade de Deus no coração – desprovido de suficiente experiência que lhe permita discernir “pelo gosto” entre a ação da graça e a manifestação das paixões, em especial do orgulho, é absolutamente imprescindível que ele busque a um pai espiritual. Na presença de qualquer fenômeno espiritual ou de uma inspiração, enquanto não houver escutado o parecer de seu instrutor, deve ater-se à regra ascética de “não aceitar nem rechaçar”.

Não aceitando, o cristão se previne contra o perigo de tomar uma ação ou sugestão demoníaca como sendo coisa divina, e de se acostumar a prestar atenção nos espíritos sedutores e nos ensinamentos demoníacos[13], e de brindar aos demônios com a adoração devida a Deus somente.

Não rechaçando, o homem escapa de outro perigo, o de atribuir aos demônios algo que provém de Deus, caindo assim no pecado de blasfêmia contra o Espírito Santo. É o que faziam os fariseus quando diziam que Cristo expulsava os demônios pelo poder de Belzebu, príncipe dos demônios.

Esse último perigo é mais temível do que o primeiro, porque a alma pode se habituar a rechaçar a graça, a odiá-la e a endurecer-se num estado de oposição a Deus, até o ponto de determinar assim o próprio plano eterno, posto que “esse pecado não será perdoado nem nesse século nem no século futuro[14]”. Pelo contrário, no primeiro caso, o homem pode reconhecer mais rapidamente seu erro, obtendo assim a salvação pelo arrependimento, já que nenhum pecado é imperdoável, com exceção daquele do qual não nos arrependemos.

Muito teríamos a falar sobre essa regra de “não aceitar nem rechaçar”, e sobre sua aplicação sobre a vida espiritual. Mas como nos fixamos como objetivo limitarmo-nos aos princípios fundamentais sem entrar em detalhes, é conveniente voltarmos ao nosso tema.

Em sua forma mais perfeita, o conhecimento da vontade divina pela oração é algo excepcional: ele não é acessível senão ao custo de prolongados esforços e de uma grande experiência na luta contra as paixões, e só pode ser adquirido depois de muitas e dolorosas tentações demoníacas, de um lado, ao mesmo tem em que requer, por outro, uma poderosa intervenção de Deus. Mas orar de todo coração para pedir a ajuda divina é uma obra boa e necessária para todos: para o que governa e para o governado, para os mestres e os discípulos, para os anciãos e para os jovens, para os pais e para os filhos. O Starets insistia em que todos, sem exceção e independentemente de sua condição, de seu estado ou de sua idade, deveriam pedir sempre a Deus que lhes ilumine em todas as coisas a fim de poder aproximar assim, progressivamente, o próprio caminho dos caminhos da santa vontade de Deus, até alcançar a perfeição.


DA OBEDIÊNCIA

A questão do conhecimento da vontade de Deus e do abandono de todo nosso ser a essa vontade está estreitamente ligada à questão da obediência. O Starets deva extraordinária importância à obediência, não apenas para a vida pessoal de qualquer monge e de qualquer cristão, como ainda pela a vida de todo o “corpo da Igreja”, de todo o seu pleroma.

O Starets Silouane não tinha discípulos no sentido usual do termo; ele não se comportava como “mestre”, e ele próprio nunca foi discípulo deste ou daquele ancião. Mas, como a maior parte dos monges athonitas, ele se formou através da corrente comum a todos: a assistência regular aos ofícios da Igreja, os estudos e a leitura da Escritura e das obras dos Santos Padres, a conversação com outros ascetas da Santa Montanha, a estrita observância dos jejuns estabelecidos, a obediência ao higoumeno, ao seu pai espiritual e ao seu chefe de trabalho.

O Starets atribuía especial importância à obediência espiritual ao higoumeno e ao pai espiritual, considerando isso como um dom da graça, como um mistério sacramental da Igreja. Quando se acercava de seu pai espiritual, pedia ao Senhor misericórdia pela mediação de seu servidor, e que lhe revelasse sua vontade e o caminho que conduz à salvação. Sabendo que o primeiro pensamento que nasce na alma em oração é uma indicação proveniente do alto, vigiava a primeira palavra de seu pai espiritual, a primeira alusão, e não prolongava mais a entrevista. Eis aqui a sabedoria e o segredo da verdadeira obediência, cujo fim é o de conhecer e cumprir a vontade de Deus e não a do homem. Tal obediência espiritual, sem nenhuma objeção ou resistência, não apenas expressa, como também interior e silenciosa, é normalmente a condição sine qua non para a recepção da Tradição viva.

A Tradição viva da Igreja, transmitida através dos séculos de geração em geração, é um dos aspectos mais essenciais e ao mesmo tempo mais sutis de sua vida. Quando um mestre espiritual não encontra resistência alguma em seu discípulo, em resposta à fé e humildade deste sua alma se abre com facilidade e, talvez, completamente. Mas basta que apareça a menor resistência ao pai espiritual, para o fio da pura Tradição se rompa, e a alma do mestre se feche.

Com frequência se pensa que o pai espiritual “não passa de um homem imperfeito”, que é preciso “explicar-lhe tudo em detalhe, sem o que ele não compreenderá”, e que é necessário, portanto, “corrigi-lo”. Contradizer o pai espiritual e corrigi-lo equivale a colocar a si mesmo acima dele, e assim deixa-se de ser seu discípulo. Certo, ninguém é perfeito, e quem ousaria ensinar como Cristo, “com autoridade”? O objeto do ensino espiritual “não provém de um homem”, “não está na medida de um homem[15]”, ao contrário, é em “vasos de barro” que foi depositado esse tesouro inestimável dos dons do Espírito Santo, que não apenas é inestimável, como permanece escondido por sua própria natureza. Apenas quem segue o caminho com sincera e total obediência é capaz de penetrar no segredo desse tesouro.

Um discípulo ou penitente prudente comporta-se com seu pai espiritual da seguinte maneira: em poucas palavras lhe abre seu pensamento, ou o essencial de seu estado; depois disso, se cala. De sua parte, o confessor, que desde o começo da entrevista se colocou em oração, pede a Deus para ser iluminado pela graça; se percebe em sua alma uma “notícia[16]”, dá sua resposta, sobre a qual é conveniente estar atento. Porque quando se deixa escapar a “primeira palavra” do pai espiritual, a força do sacramento se debilita e a confissão está a um triz de se transformar numa simples discussão humana.

Se um discípulo (ou penitente) e o confessor observam uma atitude correta a respeito do sacramento, a notícia de Deus não se faz esperar; mas se por qualquer razão tal não acontece, então o confessor pode pedir esclarecimentos complementares, e só nesse caso eles serão oportunos. Mas se o penitente não presta a devida atenção à primeira palavra do confessor e o importuna com explicações, trai com essa atitude sua falta de fé e de compreensão e obedece a um desejo secreto de inclinar o confessor ao próprio parecer. Isso marca o começo de uma conflito psicológico “sem utilidade[17]”, segundo as palavras do Apóstolo.

A fé no poder do sacramento, a certeza de que o Senhor ama o homem e não abandona jamais a quem renunciou à sua vontade própria e individual por amor a seu Nome e de sua santa Vontade tornam o homem firme e decidido. Um verdadeiro discípulo, tendo recebido de seu pai espiritual uma ordem ou simplesmente uma orientação, irá em seu desejo de executá-la até o desprezo pela morte; pois, conforme pensamos, ele “passou da morte para a vida”.

Desde os primeiros dias de sua vida no mosteiro, o Starets Silouane foi esse noviço perfeito; assim, qualquer confessor era para ele um bom mestre. O caminho do Starets era tal que aqueles que o seguem logo recebem os dons da infinita misericórdia de Deus. Mas os que só confiam em sua própria vontade e inteligência, por mais instruídos e perspicazes que sejam podem muito bem se destruir a custa de proezas ascéticas, ainda que das mais austeras, ou de trabalhos de erudição teológica, mas jamais chegarão a receber as migalhas que caem do altar da Misericórdia.

O Starets dizia: “Crer em Deus é uma coisa; conhecê-lo é outra”.

No imenso oceano que é a vida da Igreja, a verdadeira e pura Tradição do Espírito segue seu caminho como um pequeno riacho. Quem deseja aproximar-se dele deve renunciar ao seu “juízo próprio”. Pois onde intervém o juízo próprio a pureza desaparece inevitavelmente, porque a sabedoria e a justiça humanas se opõem à sabedoria e à justiça divinas[18]. Isso poderá parecer intolerável e mesmo uma loucura para os que não se fiam senão em sua própria inteligência, mas só quem não tem converter-se em “louco[19]” conhecerá a verdadeira vida e a autêntica sabedoria.


DA SANTA TRADIÇÃO E DA ESCRITURA

Aos olhos do Starets, a obediência é uma condição indispensável para progredir na vida espiritual. Sua concepção de inteligência estava em estreita relação com sua maneira de entender a santa Tradição e a Palavra divina.

Ele concebia a vida da Igreja como a vida no Espírito Santo, e a santa Tradição como sendo a ação ininterrupta do Espírito Santo na Igreja. Enquanto presença eterna e imutável do Espírito Santo na Igreja, a Tradição constitui o fundamento mais profundo de sua existência. Desse modo, a Tradição abarca a vida inteira da Igreja, a tal ponto que a própria sagrada Escritura não se apresenta senão como uma de suas expressões.

Segue-se daí que, se a Igreja se visse privada de sua Tradição, ela deixaria de ser o que é, pois o ministério do Novo Testamento é um ministério do Espírito; ele se realiza “não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo; não sobre tábuas de madeira, mas sobre as tábuas de carne do coração[20]”.

Supondo-se que, por qualquer razão, a Igreja se visse privada de todos os seus livros – do Antigo e do Novo Testamentos, das obras dos Santos Padres, e dos livros litúrgicos, a Tradição recomporia a Escritura, não textualmente, ponto por ponto, sem dúvida, mas como outra linguagem. Mas em seu conteúdo essencial essa nova Escritura continuaria sendo a expressão da mesma “fé que foi entregue aos Santos de uma vez por todas[21]”, e a manifestação do único e mesmo Espírito que opera imutavelmente na Igreja.

A sagrada Escritura não é nem mais profunda, nem mais importante do que a santa Tradição, mas é, como dissemos anteriormente, uma de suas formas. Essa forma é das mais preciosas, porque é fácil guardá-la e servir-se dela; mas, retirada da corrente da santa Tradição, a Escritura não poderia ser compreendida corretamente por nenhuma explicação científica[22].

Se é certo que o apóstolo Paulo possuía “o espírito de Cristo[23]”, com maior razão a Igreja possui esse espírito, contendo, como contém, a Paulo em seu seio. E se os escritos de São Paulo e dos demais Apóstolos constituem a sagrada Escritura, então, no caso hipotético que esses livros não existissem, a nova Escritura da Igreja seria igualmente santa. Porque, segundo a promessa do Senhor, Deus, a Santíssima Trindade, permanece para sempre na Igreja.

Os que rechaçam a Tradição da Igreja e, acreditando ir às fontes da Igreja, se dirigem diretamente à sagrada Escritura, elegem um caminho sem saída. Não é a sagrada Escritura, mas a santa Tradição, que é a fonte da Igreja. No decurso das primeiras décadas de sua história, a Igreja ainda não possuía os livros do Novo Testamento e não vivia senão da Tradição, a Tradição que o Apóstolo Paulo exortava aos fiéis que lessem[24].

É bem conhecido o fato de que todos os heresiarcas sempre se apoiaram sobre a sagrada Escritura, mas com a ressalva de que a interpretavam “ao seu modo”. Já São Pedro alertava contra o perigo de deformar o sentido da Escritura com interpretações pessoais[25].

Tomados isoladamente, os membros da Igreja, incluindo seus melhores filhos e mestres, não chegam a reunir a totalidade dos dons do Espírito Santo; por isso, suas doutrinas e escritos podem apresentar certas imperfeições e até mesmo erros. Mas em seu conjunto, o ensinamento da Igreja, detentora dos dons espirituais e do conhecimento, permanece verdadeiro através dos séculos.

Uma fé inquebrantável na verdade do ensinamento da Igreja ortodoxa em seu conjunto e uma profunda confiança em tudo aquilo que ela aceitou e confirmou pela sua experiência, são pressupostos na vida do monge athonita e o preservam de qualquer diletantismo e de indagações vacilantes à margem da Tradição. Entrando assim, pela fé, na vida da Igreja, o monge se converte em herdeiro de suas riquezas incomensuráveis e, desde logo, sua experiência pessoal assume um caráter categórico, já livre de toda dúvida.

Estudando a sagrada Escritura, as obras dos Santos Padres e os livros litúrgicos – tesouros inesgotáveis do ensinamento dogmático e do espírito de oração – o monge descobre riquezas imensas. Por essa razão, ele não se sentirá inclinado a escrever sobre as mesmas coisas sem aportar algo essencialmente novo. Mas se, na vida da Igreja, tal necessidade se apresentar, novos livros não deixarão de ser escritos.

Cada novo livro que pretende se incorporar ao ensinamento da Igreja ou ser uma expressão sua será submetido ao seu juízo, o qual, mediante um processo necessariamente lento, provará e examinará todos os aspectos desse livro, e antes de tudo sua repercussão na vida. Esse critério, a saber, a influência da doutrina sobre a vida, tem uma importância capital em virtude da estreita circularidade que existe entre a consciência dogmática e o ato da vida. A Igreja rechaçará tudo o que se mostrar contrário ou incompatível com o Espírito do amor de Cristo, do qual ela vive.

A caminho desse Amor, e vistos isoladamente, os filhos e membros da Igreja podem balançar e cair, chegando mesmo a cometer graves transgressões; mas em sua profundidade, a Igreja conhece por intermédio do Espírito Santo o verdadeiro amor de Cristo. Onde quer que apareça esse termo “amor”, ainda que carregado de distintos significados, a Igreja não se confunde.

Nós acreditamos que o santo Starets, filho fiel da Igreja, nos indica sem seus escritos o supremo e mais seguro critério da verdade da Igreja. Esse critério é a humildade de Cristo e o amor de Cristo aos seus inimigos.

O Starets escreve: “Ninguém pode conhecer por si mesmo o amor divino, a menos que seja instruído pelo Espírito Santo; mas na nossa Igreja o amor de Deus e conhecido pelo Espírito Santo, e por isso falamos dele (...) O Senhor é bom e misericordioso, mas não poderíamos falar nada de seu amor fora da Escritura se o Espírito Santo não nos instruísse (...) Nós não podemos julgar, senão na medida em que tivermos conhecido a graça do Espírito Santo (...) Os Santos não dizem nada por sua própria inteligência”. Conforme diz também São Paulo: “Os Santos falam do que viram realmente e do que conhecem. Não falam do que não viram[26]”.

A Escritura divinamente inspirada é palavra verídica, útil para ensinar e para aprender e para por em pratica toda boa obra, agradável a Deus[27]; mas o conhecimento de Deus que deriva daí não pode alcançar a perfeição almejada, se o Senhor não vier pessoalmente nos instruir por intermédio do Espírito Santo.

Ainda que o Starets fosse verdadeiramente humilde e doce, ele afirmava, como inquebrantável segurança e certeza interior, que o homem não pode compreender o divino “por sua própria inteligência”, que o divino não é conhecido senão “pelo Espírito Santo”. Por isso a sagrada Escritura, “escrita pelo Espírito Santo”, não pode realmente ser compreendida por meio de estudos científicos; estes não penetrarão mais do que nos detalhes e nos aspectos exteriores, mas jamais na sua essência.

Enquanto um home não tiver recebido do alto o dom de “compreender as Escrituras” e de conhecer “os mistérios do Reino de Deus”, enquanto ele não tiver se tornado humilde por meio de uma longa luta contra as paixões, enquanto não houver conhecido pela experiência a ressurreição de sua alma e tudo aquilo que se encontra nesse majestoso e misterioso caminho, será para ele absolutamente imprescindível ater-se estritamente à Tradição e ao ensinamento da Igreja, sem se permitir doutrina alguma fundada em sua própria autoridade, por mais sábio que seja no plano humano, pois os pensamentos humanos, ainda que os mais geniais, estão muito longe do verdadeiro caminho do Espírito.

Até certo ponto, o Espírito Santo, o Espírito de Verdade, vive em todos os homens, em especial nos cristãos, mas não é conveniente exagerar a importância dessa experiência, ainda insuficiente, da graça, nem apoiar-se audaciosamente nela.

O Espírito Santo, presente sempre realmente na Igreja, busca com paciência e doçura a qualquer alma, mas é o próprio homem que não lhe concede a liberdade de operar nele, e assim ele se mantém fora da luz e do conhecimento dos mistérios da vida espiritual.

Sucede com frequência que, depois de haver provado de uma certa experiência da graça, o homem não progride nela, mas a perde; sua vida religiosa vai se tornando cerebral e toma a forma de um conhecimento abstrato. Permanecendo nesse estado, ele se considera de posse do conhecimento espiritual, mas não se dá conta de que uma compreensão abstrata, mesmo precedida de uma certa experiência da graça, é na realidade uma deformação sui generis da Palavra de Deus. A sagrada Escritura na sua essência permanece para ele como “um livro selado com sete selos[28]”.

A sagrada Escritura é a palavra que “homens inspirados pelo Espírito Santo pronunciaram da parte de Deus[29]”. Mas as palavras dos Santos não podem ser vistas como algo inteiramente desvinculado do nível intelectual e dos estado espiritual de seus destinatários. Trata-se de palavras vivas dirigidas a seres vivos, concretos, e, por isso, uma exegese científica – histórica, arqueológica, filológica, etc. – estará indefectivelmente contaminada por erros.

Em todas as partes da sagrada Escritura subjaz o fim último e concreto do homem. A esse fim único e imutável os profetas, os Apóstolos e os demais doutores da Igreja conduziram os homens vivos, que se encontravam ao seu redor, adaptando-se ao seu nível de compreensão.

Encontramos um exemplo particularmente ilustrativo disso no Apóstolo Paulo. Ele, que certamente nunca se separou de sua visão singular e de seu conhecimento de Deus, fez-se sem embargo “tudo para todos, a fim de salvá-los a todos[30]”. Em outras palavras, ele falava a todos de modo particular; se suas cartas forem analisadas de uma perspectiva exclusivamente científica, a essência de seu “sistema teológico” permanecerá inevitavelmente inalcançada.

O Starets tinha em alta estima a ciência teológica e aos que se dedicavam a ela. Considerava, porém, que a ciência teológica só desempenha um papel positivo no plano da vida da Igreja, mas nenhum na verdadeira vida do Espírito.

Uma certa vagueza e imprecisão é, inevitavelmente, inerente à palavra humana. Essa peculiaridade se encontra inclusive na sagrada Escritura; por causa disso, as palavras humanas não conseguem expressar a verdade divina para além de um certo ponto. Não queremos dizer que a Palavra divina seja rebaixada ao nível da simples relatividade humana. Não. O pensamento do Starets é que a compreensão da Palavra divina encontra sua chave no cumprimento dos mandamentos de Cristo, e não na busca científica. É isso o que ensina o Senhor: “A admiração fazia com que os judeus exclamassem: ‘Esse homem não fez estudos; de onde lhe vem esse conhecimento das Escrituras?’. Jesus lhes respondeu: ‘Minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou; se alguém quiser cumprir sua vontade, discernirá se minha doutrina é de Deus ou se falo por mim’.[31]”.

O Senhor resumiu toda a sagrada Escritura numa fórmula muito breve: amar a Deus e ao próximo[32]. Mas o que significa a palavra “amar”, quando pronunciada por Cristo, permanecerá um mistério aos filólogos até a consumação dos séculos. A palavra “Amor” é o próprio Nome de Deus, e seu sentido não se revela de outra maneira que não pela ação de Deus.


DO NOME DE DEUS

O Starets utilizava preferencialmente, para nomear a Deus, o nome de “Senhor”. Mediante esse nome, se referia algumas vezes à santa Trindade, outras a Deus Pai, outras a Deus Filho. Muito poucas vezes designava assim ao Espírito Santo, ao qual invocava com frequência; mesmo quando teria sido lícito utilizar um pronome, o Starets repetia sem descanso o nome de “Espírito Santo”. Orava assim, sem dúvida, porque esse nome, assim como o de “Senhor” e os demais nomes divinos, suscitava sempre em sua alma um eco intenso, um sentimento de alegria e de amor.

Esse fenômeno, ou seja, essa alegria e sentimento de luz e amor no coração ao invocar a Deus, foi causa de longas controvérsias teológicas no Monte Athos por causa da publicação do livro de um eremita cossaco, o monge Hilário, intitulado Nas Montanhas do Cáucaso. A disputa chegou mais tarde à Rússia, onde, entre 1912 e 1916, atraiu a atenção do pensamento teológico russo e da hierarquia eclesiástica. No plano dogmático. Essas discussões finalizaram com um resultado plenamente satisfatório.

A controvérsia sobre o nome de Deus coincidiu com um período da vida espiritual do Starets, durante o qual ele se encontrava empenhado numa dura luta contra toda manifestação de vanglória e de orgulho, causa principal de seus grandes tormentos. Ele guardava constantemente em seu coração o doce nome de Cristo, pois a oração de Jesus atuava nele sem cessar. Entretanto, ele se manteve à margem de todas as discussões sobre a natureza desse Nome. Sabia que, mediante a oração de Jesus, a graça do Espírito Santo invade o coração, e que a invocação do nome divino de Jesus santifica o homem por inteiro, consumindo as paixões que habitam em seu interior; mas ele se absteve de interpretar dogmaticamente sua experiência interior, temendo “enganar-se em seu juízo racional”. De lado a lado muitos erros foram cometidos, antes que fosse encontrada uma solução dogmática correta.

A controvérsia adquiriu um tom extremamente violento e tempestuoso, e isso afligiu a alma do Starets, que passava suas noites no “pranto de Adão”.


PENSAMENTOS DO STARETS SOBRE AS PLANTAS E OS ANIMAIS

O santo Starets foi para nós um presente extraordinário recebido desde o alto, um encontro excepcional. Sua imagem perfeita de verdadeiro cristão era o que mais nos impressionava; nele víamos como se dava a união surpreendente e harmoniosa de disposições aparentemente incompatíveis. Assim, por exemplo, ficava patente nele uma grande compaixão por qualquer ser vivo, por qualquer criatura, traço pouco comum em homens tão viris como ele; e essa compaixão alcançava tais dimensões que podia ser confundida com uma sensibilidade patológica. Mas, por outro lado, diversos aspectos de sua vida demonstram que essa compaixão não era fruto de um fenômeno patológico, senão que era a expressão de uma magnanimidade sobrenatural e de uma bondade alimentada pela graça.

O Starets se comportava com doçura, inclusive para com as plantas. Considerava qualquer gesto brutal ou daninho em relação a elas como algo contrário aos ensinamento da graça. Recordo que um dia íamos juntos pelo caminho que conduzia do mosteiro à cela onde eu vivi por todo um ano, e que se encontrava a um quilômetro do mosteiro. O Starets ia conhecer minha morada. Levávamos bastões nas mãos, como é costume em lugares montanhosos. De lado e outro do caminho brotavam algumas moitas de ervas selvagens. Querendo eu impedir que o caminho fosse invadido pela proliferação dessas ervas, golpeei com a ponta do bastão na extremidade de um tronco para não deixar que se formassem novos brotos de ramos. Meu gesto pareceu brutal ao Starets, que voltou a cabeça de leve e com surpresa. Compreendi o que aquilo significava e fiquei envergonhado.

O Starets dizia que o Espírito de Deus ensinava a compaixão por qualquer criatura, até o ponto de que, desnecessariamente, não se devia desejar fazer dano algum sequer às folhas de uma árvore: “A folha estava verde na árvores e você a arrancou sem necessidade. É certo que isso não chega a ser pecado, mas o coração que aprendeu a amar se compadece de toda criatura, mesmo uma pequena folha”.

Essa piedade para com a folha verde de uma árvore, ou para com as flores do campo pisadas pelos pés, conciliava-se nele com uma atitude perfeitamente realista a respeito das coisas que existem no mundo. Como cristão, ele era consciente de que tudo foi criado a serviço do homem; assim, quando necessário, o homem pode se utilizar de tudo. Ele próprio não deixava de cortar a erva, aparar as árvores, preparar as provisões de lenha para o inverno, comer pescado.

Ao ler os escritos do Starets, convém prestar atenção aos seus pensamentos e sentimentos no que se refere aos animais. Nesse ponto, surpreendemo-nos diante de sua compaixão diante de qualquer criatura. Podemos fazer uma ideia a respeito, lendo, como conta um de seus relatos, quando deplorou a crueldade com as criaturas, por alguém haver matado uma mosca sem necessidade, ou por ter derramado água fervente sobre um morcego que havia se instalado no terraço do armazém, ou ainda “como a compaixão tomou todo o ser por toda criatura e todo ser que sofre” quando viu uma serpente despedaçada no caminho. Mas, por outro lado, sua ardente tendência a Deus o desprendia do criado.

Pensava que os animais dão “da terra”, e que o espírito do homem não deve se afeiçoar a eles, pois devemos amar a Deus com toda inteligência, com todo o coração, com todas as forças, vale dizer, com nosso ser inteiro, esquecendo-nos da terra.

Vemos com frequência pessoas que se afeiçoam aos animais, chegando mesmo a travar “amizade” com eles. O Starets via isso como uma perversão da ordem estabelecida por Deus, e como algo contrário à condição normal do homem[33]. Acariciar a um gato dizendo “bichano, bichano”, brincar e falar com um cão, esquecendo-se de Deus, ou então preocupar-se com os animais até o ponto de esquecer o sofrimento do próximo, ou, por causa deles, discutir com as pessoas, tudo isso era para o Starets uma violação dos mandamentos divinos, que quando são cumpridos fielmente conduzem o homem à perfeição. Em todo o Novo Testamento não encontramos uma única passagem na qual se diga que o Senhor tenha fixado sua atenção nos animais, mesmo amando ele a criação em sua integralidade. Alcançar essa humanidade perfeita, a imagem do Cristo Homem, é nossa vocação, em conformidade com a nossa natureza criada à imagem de Deus. Assim, o Starets via o apego interior e a paixão pelos animais como um rebaixamento da condição humana. Eis aqui o que ele escreve a respeito: “Algumas pessoas se afeiçoam aos animais, mas isso ofende o Criador, pois o homem é chamado a viver eternamente com o Senhor, a reinar com ele e a não amar senão a Deus. Não convém ter apego aos animais; basta um coração acolhedor a todas as criaturas”.

Dizia que tudo foi criado a serviço do homem; de modo que, em caso de necessidade, é lícito servir-se de todo o criado. Mas, a seu tempo, o homem tem a obrigação de cuidar de todas as criaturas, e por essa razão qualquer mal infligido sem necessidade a um animal ou uma planta contradiz a lei da graça. Mas todo apego pessoal aos animais é também contrário ao mandamento de Deus, na medida em que diminui o amor a Deus e ao próximo. Aquele que ama verdadeiramente aos homens e que em suas orações chora pelo mundo inteiro, não pode apegar-se aos animais.


DA BELEZA DO MUNDO

A beleza do mundo visível enchia de alegria a alma do Starets. Ele não manifestava sua emoção, nem por suas atitudes, nem por gestos; somente transparecia pela expressão do seu rosto e pela entonação de sua voz. Essa discreta reserva não fazia senão ressaltar mais ainda a autenticidade de uma profunda emoção. Concentrado habitualmente em sua vida interior, não se fixava muito no mundo externo; mas quando seu olhar se estendia sobre a beleza do mundo visível, encontrava aí novas ocasiões para contemplar a glória divina e dirigia seu coração ainda mais a Deus.

A esse respeito, era como uma criança: tudo o maravilhava. Em seus escritos, observava sabiamente como o homem que perdeu a graça não sabe perceber a beleza do mundo, e nada é capaz de lhe despertar admiração. O esplendor inexprimível da criação não o afeta. Por outro lado, quando a graça está no homem, tudo o que existe no mundo é ocasião para maravilhar-se, e ao contemplar a beleza visível a alma se dá conta da admirável presença de Deus em todas as coisas.

Com um agudo sentido de beleza, o Starets contemplava as nuvens, o mar, as montanhas, os bosques, os prados, uma solitária arvorezinha. Dizia que a glória do Criador resplandece inclusive n no mundo visível, mas acrescentava que o fato de contemplar a glória do Senhor no Espírito Santo é algo que supera infinitamente o pensamento humano.

Observando um dia o jogo das nuvens no céu intensamente azul da Grécia, ele disse: “Penso o quão pleno está o Senhor de majestade! Quanta beleza ele criou para sua glória, para o bem de seu povo, a fim de que as nações glorifiquem com alegria o seu Criador! Rainha dos Céus, torna teu povo digno de contemplar a glória do Senhor!”.

Assim, depois de se deixar levar durante um breve instante pela contemplação da beleza visível e da glória de Deus manifestada nela, ele voltava em seguida à oração pelo mundo.


OS SERVIÇOS LITÚRGICOS

O Starets gostava muito dos longos serviços celebrados na igreja, cuja riqueza de conteúdo espiritual é imensa. Estimava grandemente o esforço dos cantores e leitores, e orava por eles pedindo a Deus que lhes concedesse sua ajuda, em especial nas vigílias que duram toda a noite. Segundo a regra do mosteiro, ao longo do ano são celebradas sessenta e seis vigílias durante a noite inteira. Sem embrago, apesar de seu amor pela esplêndida beleza dos cantos litúrgicos e dos ofícios, considerava que esses, embora formados graças à ação do Espírito Santo, não representam a forma perfeita de oração, mas são concedidos ao “povo dos fiéis” porque são acessíveis e úteis a todos.

“O Senhor nos deu os serviços cantados, como a frágeis crianças; nós ainda não sabemos orar como se deve, e o canto é útil para todos, desde que se cante com humildade. Mas vale mais que nosso coração se converta em templo do Senhor e nosso espírito seu altar”, escreve ele. E acrescenta: “O Senhor é glorificado nas santas igrejas, mas os monges eremitas o glorificam no coração. O coração de um eremita é um templo, e seu espirito serve de altar, pois o Senhor ama habitar no coração e no espírito do homem”.

Do mesmo modo, ele pensava que quando a oração ininterrupta se assenta na profundidade do coração, o universo inteiro se transforma em templo de Deus.


DA SEMELHANÇA DO HOMEM COM DEUS

O Starets costumava dizer e escrever que aqueles que observam os mandamentos do Senhor são semelhantes a Cristo. Essa semelhança pode ser maior ou menor, mas não tem um limite definido. É essa a inconcebível grandeza da vocação do homem: tornar-se verdadeiramente semelhante a Deus.

Com efeito, São Silouane afirmava: “Tanto amou Deus à sua criatura que o homem se converteu em semelhante a Deus”. Ao dizer isso, ele recordava as palavras de São João o Teólogo: “Seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como é[34]”.

O Starets amava infinitamente as palavras de Cristo: “Pai, aonde eu estiver desejo que estejam comigo aqueles a quem me destes, a fim de que contemplem minha glória[35]”. Não é possível ver essa glória sem participar dela. Por conseguinte, essas palavras “a fim de que contemplem minha glória” significam: a fim de que essa glória seja outorgada também a eles.

Deus é Amor, e, enquanto Amor infinito, quer dar-se inteiramente ao homem: “Eu lhes dei a glória que me destes[36]”. E se essa glória é outorgada aos homens, então, subsistindo em sua essência criada, o homem se converte em deus pela graça; vale dizer, ele recebe o modo de existência divina. Assim como Cristo assumiu em sua Encarnação a forma da existência humana, por mais que sua condição fosse divina, também o homem recebe em Cristo a forma da existência divina, ainda que em sua condição natural ele não passe de um escravo.

Mesmo a sagrada Escritura mantém uma discreta reserva a esse respeito e prefere não falar disso. Por que? Talvez porque, entre aqueles que escutariam essa verdade, alguns poderiam cair na tentação de dar rédea solta à sua imaginação e lançar-se em seus sonhos até as alturas vertiginosas, esquecendo-se ou desconhecendo que Deus é Humildade.

Vendo o Senhor como o pai mais próximo, mais terno e mais íntimo, o Starets dizia: “O Espírito Santo nos outorga um parentesco próximo com Deus”. Por meio de sua chegada na alma, o Espírito Santo estabelece um parentesco entre o homem e Deus, de modo que com um sentimento de profunda certeza a alma chama ao Senhor de “Pai”.

***

A alma do Starets estava penetrada pela ideia da grandeza do Senhor que sofre pelos pecados dos homens, pelo mundo inteiro. Ele ficava maravilhado com a imensidão do amor de Deus e de sua humildade. Em sua alma, ele cantava um hino de louvor ao Senhor por seu sofrimento redentor. Sabia que a graça do Espírito Santo lhe havia ensinado esse louvor, e o hino era-lhe mais doce do que qualquer outra coisa.

Ele entendia a doxologia das forças celestes como um louvor ininterrupto dirigido ao Senhor por sua humildade e sofrimentos, por meio dos quais havia resgatado o homem da morte eterna. Em seu espírito, o Starets percebia misteriosamente esses cantos dos Querubins que, dizia ele, “são ouvidos em todos os céus”, e que são “doces, porque são proferidos pelo Espírito Santo”.


DA BUSCA DE DEUS

O Starets tinha uma visão muito pessoal sobre esse ponto: não pode buscar a Deus senão aquele que um dia o conheceu e logo o perdeu. Considerava assim que toda busca de Deus é precedida por uma certa experiência de Deus.

Deus não violenta o homem; pacientemente, se coloca junto da porta de seu coração, esperando humildemente o momento em que o coração se abre. O próprio Deus busca o homem antes mesmo que o homem busque a Deus. Quando, elegendo o momento oportuno, o Senhor se revela ao homem, só então o homem conhece a Deus na medida que lhe tenha sido concedido e na medida em que o homem em seguida se apresse a buscar a Deus, que se oculta novamente em seu coração.

O Starets dizia: “Como buscará você aquilo que não perdeu? Como poderá você buscar algo que jamais conheceu? Mas a alma conhece o Senhor e, por essa razão, o busca”.


DAS RELAÇÕES COM O PRÓXIMO

A atitude de um homem para com seu próximo constitui um indício seguro do grau de seu conhecimento da graça e do grau a que ele próprio chegou.

Quem, por um lado, experimentou em si mesmo a intensidade que podem chegar a ter os sofrimentos do espírito humano quando se encontra separado da vida divina, e quem, por outro lado, conheceu aquilo que é o homem quando está em Deus, sabe também que todo ser humano é de um valor eterno e imperecível, mais precioso do que o resto do mundo; ele conhece a dignidade do homem, sabe que cada um “desses pequeninos[37]” é precioso aos olhos de Deus. Desse modo, jamais terá o menor pensamento de homicídio, nem se permitirá prejudicar a seu próximo ou afligi-lo de qualquer modo que seja.

Quem apenas “crê”, quem não experimentou em si mesmo mais do que um ligeiro toque da graça e não “pressente” ainda com clareza a vida eterna, evita pecar na medida de seu amor a Deus, mas seu amor ainda está longe de ser perfeito e pode ofender ao seu irmão.

Mas o homem que, sem respeito aos demais, os prejudica “por interesse” e por “vantagem própria”, o homem que pensa em cometer homicídio ou que o comete, ou bem é semelhante a um animal selvagem e, em seu foro interno, sabe que leva tal existência – vale dizer, não crê na vida eterna –, ou bem está comprometido numa vida espiritual demoníaca.

***

A aparição de Cristo ao Starets o fez descobrir essa semelhança com Deus que está oculta em qualquer homem. Para ele todos os homens eram filhos de Deus e portadores do Espírito Santo. O Espírito Santo, Espírito e Luz de Verdade, vive em algum grau em cada ser humano e o ilumina. Quem permanece na graça, percebe sua presença também nos outros; mas aquele que não o experimenta em si mesmo, tampouco o percebe nos demais. O Starets dizia que a atitude de uma homem para com seu próximo é indicativa do grau de graça que possui: “Se um homem percebem a presença do Espírito Santo em seu irmão, isso indica a presença de uma graça extraordinária nele, mas o que odeia ao seu irmão está possuído por um espírito perverso”.

Este último não oferecia dúvida alguma ao Starets. A seus olhos era evidente que todo aquele que odeia a seu irmão se converteu, em seu coração, no covil do espírito do mal, e por isso está separado de Cristo.


DA UNIDADE DO MUNDO ESPIRITUAL E DA GRANDEZA DOS SANTOS

O Starets concebia a vida do mundo espiritual como um todo. Em virtude dessa unidade, qualquer fenômeno espiritual repercute inevitavelmente no conjunto desse mundo. Se o fenômeno é benéfico, o mundo dos espíritos celestes, “todos os Céus”, se alegram; mas se ao contrário é maléfico, eles se afligem. Por mais que cada fenômeno espiritual deixe assim sua marca no estado do mundo espiritual, são antes de tudo os Santos que estão dotados de uma sutil capacidade de percebê-lo. O Starets atribuía à ação do Espírito Santo essa intuição capaz de abolir os limites humanos normais. A alma cheia do Espírito Santo “vê” o mundo inteiro e o engloba em seu amor.

O Starets estava firmemente convencido de que os Santos escutam nossas orações. Dizia que isso era demonstrado pela experiência constante da comunhão que se estabelece com eles na oração. Na terra, os Santos recebem do Espírito Santo esse dom, mas apenas em parte; esse dom só alcança sua perfeição depois que se abandona esse mundo.

Quando se referia à capacidade propriamente divina dos Santos, ficava maravilhado com o amor infinito de Deus pelos homens: “O Senhor amou os homens a tal ponto que lhes deu o Espírito Santo, e no Espírito Santo o homem se converteu em semelhante a Deus. Aqueles que não o creem, e não dirigem sua oração aos Santos, ignoram o quanto o Senhor ama o homem e quanto o enalteceu.


DA VISÃO ESPIRITUAL DO MUNDO

O Starets dizia com frequência: “Quando o espírito está concentrado em Deus, esquece o mundo”; entretanto, também é ele que escreveu: “O homem espiritual voa como uma águia nas alturas, sua alma experimenta a presença de Deus e, muito embora ore nas trevas da noite, ele vê todo o universo”.

Podemos nos perguntar se não existe uma contradição aqui. Por outro lado, não seria ilusória essa percepção do mundo?

Mas é também ele quem escreve: “São raras as almas que te conhecem, e poucos aqueles com que se pode falar de ti”. Vamos nos permitir uma empreitada audaz: revelar, ainda que parcialmente, o sentido das palavras do Starets.

***

A oração pura atrai o intelecto para o coração, unifica o homem inteiro, incluindo seu corpo. Abismando-se no coração, o intelecto abandona as imagens do mundo; a alma, voltada para Deus com todas as suas forças na oração interior, vê-se, sob a luz que emana de Deus, de uma maneira muito peculiar. Não são os fenômenos exteriores, nem as condições de existência que ela percebe então, mas vê-se desnuda na raiz profunda de sua própria natureza.

Apesar da ausência de qualquer visualização, apesar da extrema concisão e simplicidade dessa contemplação inteiramente orientada para a fonte da vida, para Deus, os limites dentro dos quais se move a existência do mundo espiritual explodem aqui. A alma, despojada de tudo e não vendo nada, “vê” em Deus o universo inteiro e, consciente de sua unidade com esse universo, ora por ele.

“E eu, escreve o Starets, não desejo senão uma coisa: orar por todos como por mim mesmo”.

Todos nós já nos entusiasmamos algum dia ao contemplar a grandiosidade e a beleza da natureza. Mas eis que temos aqui diante de nossos olhos uma pequena fotografia descolorida: em lugar dos vastos espaços cuja imensidão escapa a qualquer olhar, vemos um pequeno pedaço de papel e, em lugar da indescritível riqueza da luz, de movimentos, cores e formas, vemos não mais do que uma justaposição insignificante de manchas mais ou menos escuras. Que diferença entre a pequena fotografia sem vida e aquilo que ela representa! A mesma diferença, e ainda maior, existe entre as palavras referidas e a vida que se esconde por detrás delas.


DAS FORMAS DE CONNHECER O MUNDO

O Starets era dotado de uma bela e viva inteligência, excepcionalmente audaciosa. Ele escreve: “Por meio de nossa inteligência não conseguimos saber como foi feito o sol. E se pedimos a Deus: ‘Dize-nos como foi feito o sol’, escutaremos claramente a resposta: ‘Humilha-te, e conhecerás não apenas o sol, como seu Criador’. Mas quando a alma conhece o Senhor pelo Espírito Santo, então, com alegria, esquece o mundo inteiro e já não se preocupa com os conhecimentos terrenos”.

Essas palavras quase ingênuas enceram uma alusão a duas formas distintas de conhecimento da realidade. O caminho habitual e conhecido para chegar ao conhecimento consiste em orientar a faculdade cognitiva do espírito humano para o mundo exterior. Ali a alma encontra uma incontável variedade de fenômenos, de aspectos, de formas e um entrelaçamento infinito de tudo o que existe. Assim, esse conhecimento nunca é integral e não pode alcançar a verdadeira unidade. Mediante essa forma de conhecimento, a inteligência, buscando a unidade a qualquer preço, recorre a uma síntese que será sempre e inevitavelmente artificial. A unidade à qual a inteligência chega por esse caminho não é algo real e objetivo, mas uma entidade intelectual própria do raciocínio abstrato.

O outro caminho que conduz ao conhecimento consiste em dirigir o espírito primeiro ao interior de si mesmo e em seguida a Deus. Aqui se dá a situação inversa do primeiro conhecimento: o intelecto se retira da multiplicidade e da fragmentação indefinidas do mundo exterior e se volta para Deus com todas as suas forças; permanecendo em oração, ela se integra ao ato criador de Deus e então vê a si mesma e a todo o universo.

Para o homem decaído é natural recorrer à primeira forma de conhecimento; a segunda forma é o caminho do Filho do Homem.

“O Filho não pode fazer nada por si mesmo, mas apenas aquilo que vê fazer o Pai (...) Mas o Pai ama o Filho e lhe mostra tudo o que faz (...) Como o Pai, com efeito, possui a vida em si mesmo, assim concedeu ele ao Filho ter igualmente a vida em si[38]”.

Como são ingênuos aqueles que esperam alcançar um conhecimento perfeito e integral pelos caminhos da ciência experimental!

A segunda forma de conhecimento começa com a oração pura e com o dom de fazer milagres. Inserindo-se na corrente da vontade do Pai, os Santos, tal qual o Filho de Deus, realizaram milagres e assim se converteram em partícipes[39] e cooperadores de Deus[40] no ato da criação do mundo[41]. Nos limites da vida terrestre, uma experiência cognitiva desse tipo é sempre parcial, mas, depois de deixar esse mundo, os que creem em Deus recebem em parte a onisciência e a onipotência divinas[42].

Para essa forma de conhecimento adquirido pela oração tendia o Starets. Ele se manteve até o final de seus dias à margem dos assuntos do mundo, alheio a toda vã curiosidade e livre de todo apego passional. Seu espírito estava continuamente ocupado por Deus e pelo homem.


DO DISCERNIMENTO ENTRE GRAÇA E ILUSÃO

Em nosso desejo de aprender com o Starets se existe um critério que permita distinguir de modo seguro entre o verdadeiro caminho espiritual e os “espelhismos de verdade” que encontramos quando nos afastamos do caminho, conversamos com ele a respeito desse particular. Suas palavras foram preciosas: “Quando o Espírito Santo enche o homem inteiro com a doçura de seu amor, o mundo é inteiramente esquecido e a alma contempla a Deus com indizível alegria. Mas quando a alma se recorda outra vez do mundo, então ela chora cheia de amor a Deus e de compaixão pelos homens, e pede por todo o universo”.

“Entregue às lágrimas e à oração pelo mundo que o amor suscita nela, a alma, cheia de doçura do Espírito Santo, pode novamente esquecer-se do mundo e descansar em Deus. E quando volta a ela a recordação do mundo, mais uma vez ela ora, derramando lágrimas, implorando, sumida em aflição, pela salvação de todos os homens. Eis aqui o verdadeiro caminho que o Espírito Santo ensina”.

“O Espírito Santo é amor, paz e doçura. O Espírito Santo ensina a amar a Deus e ao próximo. Mas o espírito da ilusão é um espírito de orgulho; ele não perdoa nem ao homem nem às demais criaturas, porque não criou nada. Atua como ladrão e raptor: seu caminho está cheio de ruínas. O espírito de ilusão não pode trazer verdadeira doçura, ele não traz senão o ansioso gozo da vaidade; nele não existe nem vaidade, nem paz, nem amor; ele só conduz à gélida indiferença do orgulho”.

“O Espírito Santo ensina o amor a Deus; a alma deseja o Senhor e o busca dia e noite, cheia de doçura e de lágrimas, enquanto que o Adversário exala sua angústia sufocante e tenebrosa, que destrói a alma. Esses são os indícios que permitem distinguir claramente a graça divina da ilusão do Inimigo”.

Dissemos ao Starets que existem pessoas que consideram a impassibilidade não como amor a Deus, mas como uma contemplação situada acima do bem e do mal, e que consideram que essa contemplação superior ao amor cristão. O Starets respondeu: “Essa doutrina provém do inimigo, não é isso que o Espírito Santo ensina”. Escutando o Starets, não podíamos deixar de invocar a imagem sinistra desses “super homens” que se lançam “além do bem e do mal”.

O Starets dizia: “O Espírito Santo é Amor e dá à alma a força de amar até aos nossos inimigos. Quem não possui esse amor ainda não conheceu a Deus”. Aos olhos do Starets, esse critério de amor aos inimigos se revestia de uma importância decisiva. Ele dizia: “O Senhor é Criador misericordioso e tem compaixão por todos, o Senhor tem piedade de todos os pecadores, como uma mãe tem por seus filhos, ainda que sigma pelo mau caminho. Onde não existe amor pelo inimigos e pelos pecadores, o Espírito do Senhor está ausente”.


OBSERVAÇÕES SOBRE A LIBERDADE

Contamos anteriormente uma conversa entre o Starets e um jovem estudante[43], graças à qual pudemos formar uma ideia sobre como ele concebia a liberdade. Queremos agora completar o quadro, referindo outros pontos de vista que o Starets expôs por escrito ou oralmente, numa linguagem dificilmente compreensível à maior parte dos homens.

A vida do Starets transcorria acima de tudo em oração. O intelecto que ora não “pensa”, não raciocina, apenas vive. O intelecto em estado de oração não opera por meio de conceitos abstratos, mas participa diretamente do ser. O intelecto que ora verdadeiramente opera mediante categorias qualitativamente distintas daquelas utilizadas pelo pensamento racional. Esse tipo distinto de categorias consiste numa percepção existencial direta que não se deixa encerrar no estreito quadro dos conceitos abstratos.

O Starets não era um filósofo no sentido habitual do termo, mas era na verdade um sábio que possuía o conhecimento daquilo que se encontra mais além da filosofia.

Tomemos como exemplo a experiência da “lembrança da morte”. Com essa expressão os escritos ascéticos dos Padres não entendem a consciência que o homem tem normalmente de sua própria mortalidade, a simples recordação do fato que morremos. A “lembrança da morte” começa por uma “sensação espiritual” muito particular sobre a brevidade de nossa existência terrestre; seja debilitando-se, seja reforçando-se, essa sensação vai se transformando numa percepção profunda do caráter corruptível e efêmero de tudo o que é terrestre, modificando com isso o comportamento do homem diante de tudo o que encontra pelo mundo. Tudo o que não permanece na eternidade perde valor aos seus olhos, ao mesmo tempo em que surge um sentimento da vacuidade de todas as coisas que podem ser adquiridas aqui em baixo. A sensação do intelecto se separa do entorno ambiental, concentrando-se no interior, onde a alma enfrenta o abismo insondável das trevas. Essa visão mergulha a alma numa angústia que provoca nela uma oração intensa que não cessa dia e noite. No princípio, o tempo perde sua duração; mas não porque a alma veja a luz da vida eterna, mas, ao contrário, porque tudo se vê sepultado por uma sensação de morte eterna. Por fim, depois de haver franqueado numerosas e variadas etapas, a alma, sob a ação da graça, chega à contemplação da luz divina. Não se trata de uma superação conseguida por meio de um itinerário filosófico, mas da própria vida em sua manifestação mais verdadeira, e sem que haja necessidade de “provas” dialéticas extrínsecas. É um conhecimento indefinível, indemonstrável e oculto; mas, apesar de seu caráter indefinível, esse conhecimento, enquanto autêntica vida, é sem comparação mais poderoso e interiormente mais convincente do que a mais impecável dialética abstrata.

O Starets ora: “Os homens se esqueceram de Ti, seu Criador, e buscam sua própria liberdade sem se dar conta de que Tu és misericordioso, de que amas os pecadores que se arrependem e de que lhes concede a graça do Espírito Santo”. Dirigindo sua oração ao Deus onisciente, o Starets utiliza poucas palavras e não desenvolve suas ideias. “Os homens buscam sua própria liberdade, vale dizer, fora de Deus, fora da verdadeira vida, onde ela não está nem pode estar, ali onde ficam as “trevas exteriores” do nada, porque a liberdade não existe senão onde desaparece a morte e onde se encontra a verdadeira vida eterna, ou seja, em Deus”.

“Tu és misericordioso e lhes concede a graça do Espírito Santo”. Deus concede o dom do Espírito Santo e o homem se torna livre. “Onde está o Espírito do Senhor, ali está a liberdade[44]”. “Todo homem que se entrega ao pecado se torna escravo. E o escravo não permanece eternamente na casa. Assim, pois, se o Filho vos libertar, sereis realmente livres[45]”.

O conhecimento “existencial”, ou, como dizia o Starets, o conhecimento por experiência vivida da liberdade humana é extremamente profundo na oração que nasce da graça. Com toda sua alma, o Starets estava convencido de que a única escravidão real é a do pecado e que a única liberdade verdadeira é a ressurreição em Deus.

Enquanto o homem não tenha efetuado sua ressurreição em Cristo, tudo permanece deformado nele pelo temor da morte e, portanto, pela escravidão do pecado[46]. Entre os que ainda não conheceram a graça de sua ressurreição, somente poderão evitar essas deformações aqueles que ouviram: “Bem-aventurados os que não viram, mas creram”.

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Não encontramos nenhum termo para delimitar a vida espiritual, pois ela é insondável e propriamente indefinida em sua raiz, em sua origem eterna, e ao mesmo tempo é simples e uma em sua natureza. Talvez pudéssemos chamar de “supra consciente” a esse domínio, mas essa denominação tampouco seria suficientemente clara, e, por outro lado, com ela não estaríamos especificando mais do que a relação existente entre a consciência reflexiva e aquilo que se encontra para além de suas limitações.

Se nos deslocarmos desse território indefinível para a esfera acessível à nossa observação, e inclusive a um certo controle de nossa parte, veremos que a vida espiritual se manifesta de duas maneiras: como estado ou ato espiritual e como consciência dogmática. Esses dois aspectos, diferentes e inclusive de certo modo separados em sua “concretude”, ou seja, em sua expressão formal no plano de nossa vida empírica, não constituem em sua essência senão um todo único e indivisível. Em outras palavras, todo ato ascético, todo ato espiritual, está indissoluvelmente unido à consciência dogmática que lhe corresponde.

Tendo em vista o que precedem tentamos agarrar a consciência dogmática subjacente à grande oração do Starets e nas ardentes lágrimas que ele derramava pelo mundo. Ao transpor para uma linguagem mais acessível ao homem contemporâneo as palavras do Starets, dificilmente compreensíveis em sua extrema simplicidade, esperamos aproximarmos mais do conteúdo de sua consciência dogmática.

O Starets dizia e escrevia que o amor de Cristo não suporta a perda de nenhum homem e que, em seu desejo de salvá-los a todos e com vistas a alcançar esse objetivo, segue o caminho do sacrifício.

O Senhor dá ao monge o amor do Espírito Santo, e esse amor enche o coração do monge de dor pelos homens, porque esse não estão todos no caminho da salvação. O próprio Senhor afligiu-se de tal maneira pelo seu povo que se entregou à morte na cruz. A Mãe de Deus levava em seu coração essa mesma compaixão pelos homens; e como seu Filho amado, desejava com todo seu ser a salvação de todos. É o próprio Espírito Santo, que o Senhor entregou aos Apóstolos, aos nossos Santos Padres e aos pastores da Igreja.

Não é possível salvar aos demais de uma maneira autenticamente cristã senão por meio desse amor, ou seja, atraindo-os – aqui não há lugar para a coação. Buscando a salvação de todos os homens, o amor quer chegar até o limite; por isso abraça não apenas o mundo dos que vivem atualmente na terra, mas também aos que já morreram, e ainda o próprio inferno, e aqueles que ainda não nasceram, ou seja, o Adão total. Alegre e gozoso quando vê a salvação dos irmãos, o amor geme e suplica quando vê sua perdição.

Nós perguntamos ao Starets: “Como podemos amar a todos os homens? Onde se encontra um amor que permita que sejamos todos um?”.

O Starets respondeu: “Para chegar a ser um com todos os homens, conforme a palavra do Senhor, ‘que todos sejam um[47]’, não precisamos inventar nada de novo: todos formamos parte da mesma natureza, por isso seria natural que nos amássemos uns aos outros; e quem dá a força para amar é o Espírito Santo”.

A força do amor é grande e vitoriosa, mas não é ilimitada. Existe no ser humano uma zona na qual sequer o amor é capaz de se impor, algo que marca o limite de seu poder. E qual é?

É a liberdade.

A liberdade do homem, com efeito, é tão grande e real que nem o sacrifício de Cristo, nem o de todos os que o seguiram, conduz necessariamente à vitória.

O Senhor disse: “Quando eu for levantado da terra (ou seja, crucificado), atrairei todos os homens para mim”. Assim, o amor de Cristo espera atrair a todos os homens para si, e para isso ele desce aos infernos. Mas mesmo a esse amor perfeito e esse sacrifício perfeito alguém – quem? Quantos? Não o sabemos – pode responder com uma recusa, inclusive no plano eterno, e dizer: “não quero”.

É essa terrível possibilidade da liberdade que a Igreja conhecia bem, graças à sua experiência espiritual, e foi isso que a levou a rechaçar a doutrina dos origenistas.

Ninguém pode duvidar que uma oração pela salvação de todos, tal como a vemos na vida do Starets, não poderia nascer de uma consciência origenista.

O que o Starets conhecera quando Cristo lhe apareceu era para ele uma certeza inquebrantável. Ele sabia que quem lhe havia aparecido era o Senhor onipotente. Sabia que graças à ação do Espírito Santo ele havia conhecido a humildade de Cristo e que havia sido cumulado de um amor que excedia a medida do suportável. Pelo Espírito Santo ele conheceu que Deus é amor ilimitado e misericórdia infinita. E, sem embargo, o conhecimento dessa verdade não o induziu a pensar que “em qualquer caso, todos se salvarão”. Seu espírito permaneceu sempre consciente da possível perdição eterna, porque à alma em estado de graça se revela toda a amplitude da liberdade humana.

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A liberdade absoluta consiste na faculdade de determinar a existência em todos os planos, sem nenhuma dependência, necessidade ou limite impostos desde o exterior. Essa é a liberdade de Deus; o homem não possui tamanha liberdade.

A tentação do homem, criado à imagem de Deus, é querer criar sua própria existência, determinar a si mesmo em todos os níveis, fazer-se igual a Deus; pois não receber mais do que o que foi dado implica um sentimento de dependência.

O santo Starets dizia que essa tentação, como todas as outras, pode ser vencida pela fé em Deus. A fé na bondade e misericórdia infinita de Deus pode fazer descer a graça na alma, e então desaparece essa penosa sensação de dependência: a alma ama a Deus como ao seu próprio Pai e vive para ele.

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O Starets era um pouco instruído; seu desejo de conhecer a verdade não era, sem embargo, menor do que o de qualquer outro homem; mas para obter a verdade seguia um caminho inteiramente distinto do da filosofia especulativa. Sabendo disso, observávamos com grande interesse o modo como, numa atmosfera peculiar e de modo muito pessoal, os problemas teológicos iam se apresentando ao seu espírito, e de que maneira sua solução tomava forma em sua consciência.

Silouane não podia desenvolver uma questão segundo as regras da dialética, nem expô-la numa linguagem conceitual, pois temia “confundir-se em seus raciocínios”; mas as teses que expunha estavam marcadas por uma profundidade excepcional. Surgia espontaneamente a pergunta: de onde lhe vinha tanta sabedoria?

O Starets era um testemunho vivo de que o conhecimento das verdades espirituais mais elevadas é obtido mediante a observância dos mandamentos de Cristo, não pela erudição proveniente do exterior. Ele vivia em Deus e recebia de Deus suas iluminações, e seu conhecimento não constituía um saber abstrato, mas era a própria vida.

No começo desse capítulo nos propusemos expor o ensinamento do Starets, mas na medida em que o tentávamos nos veio a ideia de que talvez conseguíssemos alcançar melhor nosso objetivo descrevendo na medida do possível sua experiência espiritual. Sendo uma ação de Deus no homem, toda experiência espiritual traz, em cada caso histórico concreto, algo inteiramente novo; por outro lado, todos os pensamentos do Starets referentes aos problemas espirituais eram fruto de sua ascese de oração e das visitas da graça divina.

O cristianismo não é uma filosofia, não é um “ensinamento”, uma doutrina, mas a própria vida, e todas as conversas do Starets e todos seus escritos são testemunhos dessa vida.


DA RELAÇÃO PESSOAL DO HOMEM COM O DEUS PESSOAL

O Senhor disse a Pôncio Pilatos: “Eu vim ao mundo para dar testemunho da verdade”. Pilatos, cético, respondeu: “O que é a verdade?”, e, convencido de que não havia resposta para essa pergunta, não atendeu mais a Cristo e o enviou a comparecer perante os judeus.

Num certo sentido, Pilatos tinha razão; se por “verdade” entendemos a verdade última que é a fonte de tudo o que existe, a pergunta “o que é a verdade?” não pode obter resposta.

Mas se Pilatos, pensando na Verdade Primeira (ou Verdade em Si), tivesse colocado a pergunta na forma devida: “Quem é a verdade?”, teria obtido em resposta as palavras que, algum tempo antes, prevendo a pergunta de Pilatos, o Senhor dirigira aos seus discípulos amados – e através deles ao mundo inteiro – durante a Santa Ceia: “Eu sou a verdade[48]”.

A ciência e a filosofia se perguntam: “O que é a verdade?”, enquanto que uma consciência autenticamente cristã está sempre orientada para a verdade pessoal: “Quem é a verdade?”.

Os representantes da ciência e da filosofia costumam considerar os cristãos como sonhadores e veem a si mesmos firmemente ancorados sobre uma base sólida; por essa razão chamam a si próprios de “positivistas”. Coisa estranha, eles não compreendem até que ponto sua concepção da verdade impessoal é negativa; não compreendem que a Verdade autêntica e absoluta não pode ser senão uma Pessoa, um sujeito, um “quem”, e não um objeto – “o que” – porque a Verdade não é uma fórmula ou uma ideia abstrata, mas a Vida em Si, “Eu sou o que sou[49]”.

Com efeito, o que pode haver de mais abstrato e mais negativo do que uma verdade impessoal, um “o que”? Topamos com esse grande paradoxo ao longo de todo o desenvolvimento histórico da humanidade desde a queda de Adão. Fascinada por sua própria razão, a humanidade vive numa espécie de vertigem.

Assim, a ciência “positiva” e a filosofia não são as únicas que se colocam, como Pilatos, a questão: o que é a verdade? É possível observar a mesma tendência na vida religiosa da humanidade. Mesmo aqui, os homens tendem continuamente a buscar uma verdade “objetiva”.

A razão humana pressupõe que, quando estiver de posse de uma verdade objetiva, disfrutará de poderes mágicos e poderá se assenhorar da existência cósmica.

Na vida espiritual o homem que elege o caminho da busca racional cai inevitavelmente em alguma forma de panteísmo. Cada vez que um teólogo tenta conhecer a verdade a respeito de Deus por seu próprio esforço, seja consciente ou não, cai fatalmente no mesmo erro que a ciência, a filosofia e o panteísmo, a saber, a obtenção de um princípio universal transpessoal.

A “Verdade-Pessoa” não pode ser conhecida de modo algum pela razão. O Deus pessoal não pode ser conhecido senão pela Revelação[50] e por comunhão existencial, ou seja, pelo Espírito Santo.

O Senhor fala nos seguintes termos: “Se alguém me ama, guardará minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos a ele e nele faremos nossa morada”. E: “O Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, lhes ensinará todas essas coisas[51]”. O Starets Silouane sublinhava isso constantemente.

A tradição ascética ortodoxa rechaça como errôneo o caminho da contemplação abstrata. Aquele cuja meditação religiosa se detém na contemplação abstrata do Bem, da Beleza, da Eternidade, do Amor, etc., empreende um caminho falso. Quem se limita a rechaçar as imagens e os conceitos empíricos ainda não encontrou o verdadeiro caminho.

A contemplação ortodoxa não é uma contemplação abstrata do Bem, do Amor, etc. Não é uma simples recusa, exercida pelo intelecto, das imagens e conceitos empíricos. A verdadeira contemplação é dada por Deus, pela sua chegada à alma, quando essa então contempla a Deus e vê que Ele a ama, que Ele é bom, que é belo, que é eterno; ela vê sua transcendência e caráter inefáveis.

A verdadeira vida espiritual não se situa num plano imaginário; ela é plenamente concreta e positiva. A verdadeira comunhão com Deus não pode ser buscada senão por meio deu da oração pessoal dirigida ao Deus pessoal. A experiência espiritual cristã é uma comunhão absolutamente livre com Deus: ela não depende, como as experiências não cristãs, apenas do esforço e da vontade do homem.

Nossas palavras não são capazes de traduzir aquilo que nos surpreendeu em nosso trato com o Starets. Apesar da simplicidade e doçura de seu trato, sua palavra era eficaz ao extremo; palavras que brotavam de uma profunda experiência espiritual da existência, palavras de um homem que trazia em si verdadeiramente o Espírito de Vida.

A aparição de Cristo a Silouane foi um encontro pessoal; devido a ele, sua orientação para Deus adquiriu um caráter profundamente pessoal. Quando ele orava, conversava com Deus face a face. A percepção do Deus pessoal purifica a oração das imagens e especulações abstratas, e a faz penetrar no centro de uma comunhão viva e íntima. Concentrando-se no interior, a oração deixa de ser uma “chamada no espaço”, o espírito se recolhe e se dispõe a escutar. Quando invocava a Deus por meio dos Nomes divinos – Pai, Senhor ou outros – o Starets se encontrava num estado a respeito do qual “é preferível que o homem se cale[52]”; somente que houver tido a mesma experiência na presença do Deus vivo compreenderá.

Um conhecido asceta do mosteiro, o Padre Trophimo, observou esse estado no Starets Silouane; isso provocou nele um temor e uma perplexidade que ele nos comunicou somente depois da morte do Starets.

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Uma vez que veio à tona a questão da oração “face a face”, que, nos parece, assinala o começo da abertura da “imagem de Deus” no homem, cremos conveniente fazer alguns esclarecimentos que dizem respeito a esse aspecto de nossa vida espiritual.

A última etapa da Revelação consiste no Deus pessoal, hipostático[53]. O Deus hipostático não pode ser conhecido senão pela revelação; esta adquire forma numa manifestação de Deus ao homem, numa comunhão imediata “face a face”. Normalmente essa revelação é concedida ao homem em oração; em sua realidade mais profunda, essa oração é a energia do próprio Deus operando no interior do homem. É indispensável, para colocá-lo nos termos do Starets Silouane, que “Deus, primeiro, nos busque e se nos manifeste”.

Quando o Deus hipostático se revela ao homem, ainda que parcialmente, “como em um espelho[54]”, surge então nele, como uma nova luz, a consciência de seu próprio caráter hipostático, na qual acima de tudo se reflete no homem “a imagem de Deus”.

Ao homem “revestido de carne e vivendo nesse mundo” é concedida principalmente a experiência de sua limitação individual. O surgimento nele dessa nova dimensão de sua consciência é vivida como um “nascer do alto[55]”, em virtude do qual sua oração ultrapassa os limites de tudo o que é temporal e material; então, o homem sente com toda força que é introduzido na Eternidade divina.

A manifestação do Deus hipostático ao homem faz com que esse se dê conta de que o princípio hipostático é a forma de existência do Absoluto e do Eterno, de que a hipóstase não constitui uma dimensão limitativa, mas que ela é Aquele que vive realmente: “Eu sou o que sou[56]”. Fora dessa dimensão do Deus hipostático nada existe nem pode existir. Em Deus não existe uma “essência” que estaria situada mais além da hipóstase. Por esse motivo, a oração cristã se dirige ao Deus hipostático. Não se trata de uma busca orientada para uma Essência transpessoal.

Esse conhecimento nos revela que somos hipóstases criadas, dotadas de uma liberdade de autodeterminação que pode ser exercida positiva ou negativamente em relação ao nosso Modelo primeiro. No caso presente, não nos referimos senão à primeira dessas possibilidades.

Uma hipóstase livre, não determinada, não pode ser criada senão como pura potencialidade, que deverá atualizar-se mais tarde. Assim, não somos ainda hipóstases em sua plenitude; a partir de uma existência “fragmentada”, passamos por um processo mais ou menos longo de atualização do modo hipostático de nossa existência. É preciso não confundir a noção de pessoa – hipóstase – com a de indivíduo. Mais ainda, esses são os dois polos opostos do ser humano. O indivíduo expressa o extremo da indivisibilidade (em grego, o indivíduo é chamado de “átomo”; trata-se de um estado resultante da queda), enquanto que a hipóstase se refere à “imagem de Deus”, segundo a qual Adão foi criado, e em cujo seio está potencialmente concentrada toda a humanidade. É essa “imagem” que nos foi revelada pelo Verbo encarnado. Segundo isso, quando pensamos em Deus, não estamos projetando o conceito limitativo do indivíduo sobre o Ser divino para em seguida negar nele o momento hipostático e, consequentemente, cairmos num Absoluto transpessoal. O movimento de nosso espírito se expressa na oração “face a face”; vale dizer, da hipóstase criada ela se dirige à hipóstase de Deus. É essencial que se desenvolva no homem seu princípio hipostático, e por isso teremos que falar brevemente dos caminhos que conduzem a esse objetivo.

Nós, que fomos chamados do não-ser ao ser, nos sentimos cravados no tempo e no espaço relativos. Imagem do Deus absoluto, o espírito do homem sente angústia no contexto desse mundo material, se vê acorrentado nele como um prisioneiro condenado à morte. O sofrimento do espírito pode se revestir de uma forma de desespero da qual nasça uma oração que brote com intensidade desconhecida, como uma esperança além de toda esperança. É possível que para nós, filhos dessa época atual, a experiência de tal desesperança seja indispensável para a realização de nosso nascimento para a eternidade.

A partir de seu nascimento, o homem vai se instruindo à sombra de seus pais, de seus amigos e mestres; quando adulto, persegue com ardor tudo o que possa lhe trazer novos conhecimentos. Porém, mais cedo ou mais tarde, chega à conclusão de que o conhecimento “científico” não apenas não lhe permite escapar das dimensões do tempo e do espaço relativos, como ainda, ao contrário, fixam ainda mais sua consciência ao aspecto determinado da existência do mundo. A recusa do absurdo da morte, como retorno ao nada, faz nascer em nosso espírito uma oração ardente e p impulsiona a inquirir nos livros sagrados o conhecimento do Eterno. Mas nenhuma escola, mesmo que seja de teologia, nenhum livro – sequer a sagrada Escritura – são suficientes, sem uma tensão extrema de nosso ser inteiro na oração pura, para conduzir o homem à certeza íntima de que foi ouvido por Deus e aceito em sua eternidade.

Essa oração “desesperada” é com certeza um dom de Deus. Ela nos coloca nos limites do tempo e da Eternidade. O tempo, literalmente “esquecido”, fica para trás, e o olhar de nosso espírito se dirige inteiramente para a Eternidade. Uma tal translação de nosso espírito até o “final dos tempos”, na oração, abre nossa inteligência para a compreensão de numerosas expressões da sagrada Escritura, que até então pareciam puros paradoxos. Alguns exemplos: “Diante do Senhor, um dia é como mil anos e mil anos são como um dia[57]”; “Fostes libertados por um sangue precioso, como o do cordeiro sem reprovação nem mácula, Cristo, escolhido antes da fundação do mundo e manifestado nos últimos tempos[58]”; “Isso foi escrito como instrução para nós que tocamos o fim dos tempos[59]”; “Fomos eleitos nele, desde antes da criação do mundo[60]”; “Vós conheceis Aquele que é desde o começo[61]”.

Qual é o sentido dessa expressão: “últimos tempos” ou “fim dos séculos”? Ou melhor, o que significam nos textos litúrgicos as seguintes expressões: “Tu nos fizeste dom de teu Reino futuro[62]”, “vimos a imagem de Tua Ressurreição, estamos saciados de Tua vida imortal[63]”?

Devido à sua proximidade com a hipóstase divina do Verbo, mesmo vivendo na terra, os Apóstolos habitavam em espírito também na Eternidade. Para eles, como também para qualquer outro homem que tenha conhecido experimentalmente um estado semelhante, o tempo, os “éons” confluem no final. A ideia neotestamentária do tempo difere das concepções de Newton, de Einstein ou de outras diferentes perspectivas filosóficas ou gnósticas. Para os Apóstolos, o tempo se converte em algo parecido a um “espaço” no qual é possível mover-se e “onde” pode se dar o encontro original com o Criador. Nós vemos como foi concedido a certos homens “contemplar o reino de Deus que lhes chegava com força antes de que houvessem provado a morte[64]”. É a esses homens que devemos as expressões enumeradas anteriormente.

No princípio é Deus quem primeiro nos busca e nos revela seu Rosto; sem exercer violência alguma, ele atrai o homem à sua Eternidade, mas depois pode fazê-lo “retornar” aos limites do tempo. Não parece existir outra explicação para esse “retorno” senão a possibilidade brindada ao homem de manifestar no ato de sua vida terrestre seu conhecimento Daquele que é, de ser testemunho de seu Amor para com os homens. Quanto ao homem, esse vive seu retorno como um “exílio longe do Senhor”, como um ocultamento da graça, e se encontra oprimido sob o peso de seu corpo corruptível. A sede de recobrar a plenitude da união com Deus o incita a um esforço que, como obra humana, se transforma numa ciência, numa arte e numa cultura ascéticas. Para muitos homens de nossa época, essa cultura se perdeu e se transformou para eles em algo estranho e incompreensível.

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A cultura ascética ortodoxa apresenta vários aspectos; dentre esses se encontra a obediência monástica, ou mais exatamente, cristã. Como complemento daquilo que tratamos sobre a obediência em outros trechos do livro, tentaremos formular aqui alguns pontos centrais em relação ao seu sentido e resultados. Como toda grande cultura, a obediência conhece muitos graus, segundo a idade espiritual daquele que a observa. No começo ela pode assumir o caráter de um abandono passivo, por assim dizer, do próprio querer diante do pai espiritual, em virtude da confiança que se tem e com vistas a um melhor conhecimento da vontade divina. Num grau mais perfeito, é uma atividade positiva de nosso espírito em seu esforço para cumprir os mandamentos de Cristo, que amou infinitamente o mundo, é possível medir as disposições interiores de um discípulo que fez progressos, dizendo que tensiona sua atenção e vontade a fim de captar o mais profundamente possível o pensamento e a vontade de outra pessoa e de realizar logo, mediante um ato de amor espiritual, a ideia ou a vontade de seu irmão. Graças a tal ato de obediência, o coração do que obedece se abre, seu espírito se enriquece e uma vida nova penetra em sua alma. Num estágio seguinte, a obediência leva a compreender com mais sutileza e matizes a cada um dos homens, a perceber a imagem de Deus neles, o que indica no discípulo o amadurecimento de sua “humanidade”. São João Evangelista escreve: “Se alguém diz: ‘Amo a Deus’ e detesta a seu irmão, é um mentiroso; quem não ama a seu irmão, a quem vê, não saberá amar a Deus, a quem não vê. E aqui está o mandamento que recebemos dele: quem ama a Deus, que ame também a seu irmão[65]”. “Se me amais, guardareis meus mandamentos[66]”, disse Cristo.

A mesma estrutura encontramos no plano da obediência. Quem ama a seu irmão deseja agradá-lo espontaneamente, colocar-se à sua disposição; mas se não somos humildes para com nosso irmão e não nos mostramos obsequiosos com ele em coisas que são sempre mais ou menos de pouca monta, como seremos humildes diante de Deus e como o obedeceremos no cumprimento de sua magna vontade eterna? Como cumpriremos o mandamento de amar ao próximo como a nós mesmos, ou de amar os nossos inimigos? Assim, a ascese da obediência é indispensável não apenas em relação a Deus, como também em relação ao nosso irmão, quando esse nos pede algo possível e que não seja contrário aos mandamentos de Cristo. A crucificante ascese da obediência ao irmão afina ainda em nós a capacidade de perceber com maior profundidade a vontade de Deus. E isso nos torna semelhantes ao Filho único do Pai; o espírito do homem se torna capaz de assumir a humanidade inteira, ou seja, ele se torna universal à semelhança da universalidade divina de Cristo. Sem essa cultura da obediência, o homem permanece inevitavelmente “encerrado num círculo”, sempre miserável, confrontado com a Eternidade. Qualquer que seja seu grau de formação, sem a obediência evangélica o acesso ao seu próprio mundo interior permanece solidamente fechado para ele, e o amor de Cristo não pode penetrar ali, nem impregná-lo com sua presença.

O homem psiquicamente enfermo não é capaz de tornar seus o pensamento e a vontade de outra pessoa. Em consequência, a ausência de uma disposição em obedecer é o mais seguro indício de enfermidade psíquica no homem. Sem obediência, o homem está sempre no estreito nó de sua individualidade egoísta, oposto ao princípio da pessoa. Fora da cultura cristã da obediência, o princípio hipostático não se desenvolve nos homens e esses permanecem cegos e surdos à Revelação divina que nos foi dada pela encarnação do Logos que manifestou no plano histórico nossa imagem pré-eterna. Daí se pode concluir que, sem a cultura cristã da obediência, a verdadeira teologia permanece inacessível em sua profundidade última. Temos em vista uma teologia entendida como estado de comunhão com Deus, não como erudição, que pode estar inteiramente alheia à vida verdadeira.

Grande é a ciência da santa obediência; é indispensável orar muito para que nossos olhos espirituais se abram e vejam sua grandeza e santidade. Nós recordamos como o Starets Silouane, quando falava da vida oculta nos mandamentos de Cristo, ficava como que possuído por um sentimento de humilde enternecimento diante da vida que nos foi concedida em Deus.

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Eis aqui ainda outra importante derivação da ascese da obediência. Aprendendo a perceber os pensamentos e a vontade das outras pessoas, o discípulo aprende simultaneamente a viver seus diversos estados próprios não apenas como “seus” (individuais), mas também como uma espécie de revelação daquilo que acontece no conjunto da humanidade. Cada um de seus fracassos, de suas dores, de seus sofrimentos físicos e morais, bem como cada um de seus êxitos e alegrias, ele não apenas os vive em si mesmo, egoistamente, como se coloca em espírito nos sofrimentos e alegrias de todos os homens, pois a cada momento milhões de pessoas se encontram num estado similar ao seu. Isso o leva naturalmente a orar pelo mundo inteiro. Orando pelos vivos, compartilha a alegria de seu amor ou as terríveis trevas de sua desesperança. Enfermo, ora por todos os enfermos do mundo, se inclina sobre o leito dos moribundos que afundam na solidão, sem defesa diante da morte. Lembrando-se dos mortos, viaja em espírito pela noite dos séculos passados, ou se coloca no invisível mas temível caminhos por onda passam todos os dias centenas de milhares de almas que abandonaram seus corpos, na maior parte dos casos depois de uma dolorosa agonia. Assim se desenvolve na alma do discípulo a compaixão cristã por toda a humanidade; sua oração adquire um caráter cósmico e se converte em representante do Adão total, vale dizer, se torna hipostática, a imagem da oração do Getsêmani. Graças a tal oração o discípulo sente sua unidade com toda a humanidade, e lhe resulta natural amar a seu próximo, a cada ser humano. Uma oração desse gênero contribui ativamente para a salvação do mundo; todo cristão deve tender para isso, e especialmente os que possuem ordens sagradas, na celebração da Liturgia.

Convém não perder de vista que uma vida de ascese e de oração está vinculada tão estreitamente quanto possível à nossa consciência dogmática, ou seja, a uma correta compreensão da Revelação que nos foi feita pelo Deus Uno em Três Hipóstases. Fomos criados à imagem do Deus Trinitário e convidados a uma livre autodeterminação. Deus se revela ao homem, e “espera” dele uma resposta ao seu amor; ele espera que queiramos ser parecidos com ele. Da natureza de nossa resposta depende nossa eternidade. Como nosso assunto era a obediência, voltamos ao tema. Acreditamos que é necessário sublinhar que a perda do princípio da Pessoa na teologia ortodoxa leva fatalmente a outorgar um lugar proeminente ao “comum” sobre o “particular”, a buscar algum “princípio transpessoal”. Nesse caso, não se pede a obediência a um homem, a uma pessoa, mas a submissão à “Lei”, à “Regra”, à “Função”, à “Instituição”, etc. Reflitam sobre o que foi dito, e vejam como com essa maneira impessoal de abordar a estrutura da sociedade humana se perde o autêntico sentido da obediência cristã incluída nos mandamentos de Cristo, e como a “disciplina” intervém em seu lugar. Essa última é, efetivamente, indispensável e inevitável quando os homens vivem juntos, mas só até um certo limite. A perda da obediência pessoal cristã não pode ser compensada por nenhum êxito exterior da “Instituição”, nem pelas realizações provenientes da estruturação harmoniosa do conjunto.


O AMOR AOS INIMIGOS

Todo sistema racionalista possui sua própria estrutura lógica, sua dialética interna; do mesmo modo, o mundo espiritual possui também – expressando-nos de forma convencional – sua estrutura e dialética próprias. Mas a experiência espiritual possui uma dialética que lhe é inteiramente peculiar e que não coincide com o curso habitual do pensamento.

Poderá assim parecer surpreendente que o santo Starets assinale o amor aos inimigos como o critério da verdadeira fé, da verdadeira comunhão com Deus, como o da autêntica ação da graça.

Apesar de nosso desejo de sermos o mais breve possível e evitarmos o supérfluo, nos parece necessário colocar alguns esclarecimentos a esse respeito.

O homem vive com a esperança de receber, no século vindouro, o dom da semelhança com Deus e da felicidade perfeita; mas aqui na terra ele não conhece mais do que o “penhor” desse estado futuro. Nos limites da experiência terrestre, o homem revestido de carne pode, no momento da oração, permanecer em Deus, ainda que guardando a recordação do mundo; mas quando se permanece em Deus com maior plenitude, “o mundo é esquecido”, de um modo parecido a como o homem, totalmente apegado à terra, esquece de Deus.

Mas se esquecemos do mundo quando alcançamos o estado de plena imersão em Deus, como é possível falarmos ainda do amor aos inimigos como critério da verdadeira comunhão com Deus? Se esquecemos do mundo, não pensamos nem nos amigos, nem nos inimigos.

Em sua essência, Deus é supracósmico, ele transcende o mundo; mas em seu Ato, ele está no mundo, é imanente ao mundo. A absoluta transcendência do ser divino não é afetada de modo algum por sua incessante ação no mundo. Mas o homem revestido de carne e que vive na terra não tem em si mesmo tal perfeição; assim quando está totalmente absorto em Deus, vale dizer, com todas as potências de seu intelecto e de seu coração, ele perde também inteiramente a consciência do mundo. Não se deve concluir, sem embargo, que a total imersão em Deus não mantenha nenhuma conexão com o amor aos inimigos. O Starets Silouane afirmava, ao contrário, que cada um dos estados estava estreitamente vinculado ao outro.

Quando Cristo lhe apareceu, o Starets havia recebido um grau de conhecimento que exclui qualquer dúvida ou vacilação. Afirmava peremptoriamente que aquele que ama a Deus pelo Espírito Santo amará também a criação inteira e, acima de tudo, ao homem. Ele considerava esse amor como um dom do Espírito Santo; ele o recebeu como uma força vinda do alto. Inversamente, conhecia também a total imersão em Deus que procede de uma amor ao próximo suscitado pela graça.

Falando dos inimigos, o Starets empregava a linguagem de seu meio, numa época em que se falava e escrevia muito a respeito dos “inimigos da fé”. Ele não dividia os homens em amigos e inimigos, mas nos que conhecem a Deus e nos que não o conhecem. É possível supor que, em outra circunstância histórica, o Starets teria se expressado de outra maneira, o que aliás lhe ocorria muitas vezes quando falava do amor aos homens em geral, ou seja, do amor a todos os homens, tanto os que fazem o bem quanto os que fazem o mal. Na sua opinião, isso torna o homem semelhante a Cristo, que “estendeu seus braços sobre a cruz” para reunir a todos os homens, sem exceção.

Qual o sentido do mandamento de Cristo: “Amai aos vossos inimigos”? Por que o Senhor disse que aqueles que guardam seus mandamentos saberão de onde provém esse ensinamento[67]? Como o Starets entendia isso?

Deus é Amor, Amor absoluto, que, em sua superabundância, abarca a toda a criação. Deus está presente mesmo no inferno, como amor. Ao dar ao homem, na medida de sua capacidade, o conhecimento real desse Amor, o Espírito Santo revela com isso o caminho que conduz à plenitude da existência.

Aqueles que alcançaram o Reino dos Céus e os que permanecem em Deus, vem no Espírito Santo todos os abismos do inferno, pois, na realidade, considerado em sua integralidade, não existe lugar onde Deus não esteja presente. “Todo o Céu dos Santos vive pelo Espírito Santo, e nada no universo se esconde do Espírito Santo... Deus é Amor e, nos Santos, o Espírito Santo é Amor”, dizia o Starets. Estando nos Céus, os Santos veem o inferno e o abraçam também em seu amor.

Os que odeiam ao seu irmão e o rechaçam vivem como amputados em sua existência. Esses não conheceram o verdadeiro Deus, que é Amor e a tudo abraça, e não encontraram o caminho que conduz a ele.

O homem não pode a um só tempo permanecer inteiramente em Deus e inteiramente no mundo. Não é possível, portanto, discernir se a contemplação foi autêntica ou, pelo contrário, imaginária, senão depois do “retorno” à memória e à percepção do mundo. Se, depois de um estado espiritual, insistia o Starets, considerado como contemplação ou comunhão com Deus, não se professa o amor aos inimigos e, por conseguinte, a toda a criação, deduz-se daí um indício seguro de que aquela contemplação não foi autêntica, ou, dito de outro modo, de que nela não aconteceu uma comunhão autêntica com Deus.

O homem pode ser “arrebatado” em estado de contemplação antes de que se dê conta. Em estado de êxtase, ainda que não procedendo de Deus, o homem não consegue compreender o que lhe sucedeu. Se, depois de seu “retorno” à consciência normal, lhe restar na alma como fruto de sua contemplação um sentimento de orgulho ou de indiferença pela sorte do mundo e dos homens, então, sem dúvida alguma, sua contemplação foi falsa. É assim que, pelos seus frutos, se conhece a autenticidade ou o caráter enganador da contemplação.

Os dois mandamentos de Cristo, o amor a Deus e o amor ao próximo, são inseparáveis. Se cremos estar com Deus e amar a Deus, mas odiamos o irmão, vivemos em erro. Desse modo o segundo mandamento nos permite verificar em que medida permanecemos realmente em Deus.


DO DISCERNIMENTO DO BEM E DO MAL

O segundo mandamento, amar ao próximo, era aos olhos do Starets da pedra de toque que permite verificar a retidão de nosso caminho para Deus. Mesmo assim, para discernir o bem do mal, o critério seguro não é tanto o fim que pretendemos, por santo e sublime que seja, mas os meios que elegemos para alcançá-lo.

Só Deus é absoluto. O mal não é uma realidade que possua sua própria essência, mas uma resistência da criatura livre ao Ser principial, a Deus. O mal não pode, portanto, ser absoluto; por isso, o mal em estado puro não existe, nem pode existir. Todo mal realizado por criaturas livres vive necessariamente como um parasita no “corpo” do bem, ele deve encontrar uma justificação, esconder-se debaixo das aparências do bem e, às vezes, do próprio vem supremo. O mal se mostra sempre e inevitavelmente misturado com um elemento de busca positiva, e é por esse flanco que ele seduz o homem. Ele tenta apresentar ao homem seu aspecto positivo como um objetivo tão importante, que todos os meios são válidos para consegui-lo.

Em sua existência terrestre o homem não pode alcançar o bem absoluto; toda empresa humana traz em si uma certa dose de imperfeição para o bem, por um lado, e a inevitável presença de bons pretextos para o mal, por outro. Assim se torna extremamente difícil a distinção entre bem e mal.

O Starets pensava que o mal opera sempre por enganação, escondendo-se sob as aparências do bem, mas que o bem não requer concurso algum do mal para se realizar; por isso, quando recorremos a meios maus – malícia, mentira, violência, etc. – penetramos num domínio alheio ao espírito de Cristo. Não se alcança o bem por meios maus, e o fim não justifica os meios. “Um bem obtido pelo mal não é um bem”, conforme diz o preceito que nos foi legado pelos Apóstolos e pelos Santos Padres.

Embora não seja raro que o bem triunfe e que com sua presença retifique o mal, seria errôneo pensar que o bem pode resultar do mal. Isso é impossível. Mas onde intervém o poder de Deus, tudo é curado, já que Deus é plenitude de vida e suscita a vida a partir do nada.


O CAMINHO DA IGREJA

  “O Espírito Santo deu a conhecer à nossa Igreja os mistérios de Deus e ela é forte graças à santidade de seus pensamentos e à sua paciência”, dizia o Starets. O mistério divino que a Igreja conhece por intermédio do Espírito Santo é o amor de Cristo.

O pensamento da Igreja é o de que “todos se salvem”. E o caminho que a Igreja segue para alcançar esse santo objetivo é o da paciência, ou seja, do sacrifício.

Predicando no mundo o amor de Cristo, a Igreja chama a todos os homens para a plenitude da vida divina, mas os homens não compreendem essa chamada e a recusam. Convidando a todos os homens a guardar o mandamento de Cristo, “amai os vossos inimigos”, a Igreja se situa em meio às forças combatentes. O furor que anima essas forças se volta naturalmente contra a Igreja, pois essa se coloca no caminho entre elas. Nas no cumprimento da obra de Cristo na terra – a salvação do mundo inteiro – a Igreja assume conscientemente o peso do furor geral, do mesmo modo como Cristo tomou sobre si os pecados do mundo. E se, nesse mundo de pecado, Cristo foi perseguido e teve que sofrer, a verdadeira Igreja de Cristo também será inevitavelmente perseguida e deverá sofrer. O Senhor e os Apóstolos falaram dessa lei espiritual da vida de Cristo; o divino Paulo a formulou categoricamente, dizendo: “Todos os que querem viver com piedade em Jesus Cristo haverão de sofrer e ser perseguidos[68]”. E isso será sempre assim e em todas as partes, no mundo inteiro, enquanto existir o pecado.

Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados de filhos de Deus”. Com essas palavras, o Senhor dá a entender que os que predicam a paz evangélica serão semelhantes a ele, Filho único de Deus. Em tudo serão semelhantes a ele, não apenas em sua glória ou em sua Ressurreição, mas também na humilhação e na morte. A Escritura fala muito a esse respeito. Por isso, os que predicam verdadeiramente a paz de Cristo não devem jamais esquecer o Gólgota.

E tudo isso apenas por causa da sentença: “amai os vossos inimigos”. “Vós me mandais matar, porque minha palavra não está em vós[69]”, disse o Senhor aos judeus. O mesmo predica a Igreja: “amai os vossos inimigos”, mas o mundo não suporta essas palavras. Por isso, desde sempre o mundo do pecado perseguiu a verdadeira Igreja e seguirá perseguindo-a; matou seus servidores, e continuará matando-os.

***

Em nossos encontros com o Starets, jamais tivemos a menor dúvida de que suas palavras eram “palavras de vida eterna”, que ele as havia escutado do alto, de que não fôra mediante “fábulas habilmente inventadas” que aprendera a verdade que testemunhou por toda sua vida. Muita gente é capaz de falar com facilidade do amor de Cristo, mas suas obras são um escândalo para o mundo e por essa razão estão privadas de força vivificadora.

A vida do Starets, que pudemos observar de perto por vários anos, e que nos atrevemos agora a descrever, era um esforço ascético tão grande e extraordinário que não encontramos palavras para expressar nossa admiração. E ao mesmo tempo sua vida foi tão simples, tão natural e em verdade humilde, que qualquer expressão, por pouco rebuscada ou enfática que seja, introduzirá nela uma dissonância. Por essa razão é tão difícil falar dele.

Existe gente incapaz de penetrar no verdadeiro sentido de uma palavra simples; a outros, ferem as falsas notas das palavras pretensiosas. Para muitos, a santa e pura palavra do Starets era muito difícil de entender, precisamente por causa de sua simplicidade.  Daí nos permitirmos acompanhá-las de comentários, esperando, talvez erroneamente, poder ajudar a compreender o Starets para as pessoas que estão habituadas a outra maneira de viver e se expressar.

Tomemos, por exemplo, o conselho d Starets: “O que é necessário para obter a paz na alma e no corpo? Para isso, é necessário amar a todos os homens como a si mesmo, e em qualquer momento estar disposto a morrer”.

Geralmente, diante da ideia de uma morte iminente a alma do homem se enche de turvação e de angústia, às vezes até de desespero, até o ponto em que o abatimento da alma adoece o próprio corpo. Como pode então o Starets dizer que o fato de estar constantemente disposto a morrer e de amar a qualquer homem enche de paz não somente a alma, mas também o corpo? Estranho e incompreensível ensinamento!

Ao falar aqui da paz na alma e no corpo, o Starets pensava naquele estado espiritual em que a ação da graça se comunica sensivelmente não só à alma, mas também ao corpo. No caso presente, ele se referia certamente a um grau de graça menos do que havia recebido quando da aparição do Senhor. Nesse último caso, a graça que havia invadido sua alma e seu corpo era tão forte que inclusive seu corpo havia sentido claramente sua santificação. A doçura do Espírito Santo despertou em seu próprio corpo uma amor tão ardente por Cristo que ele próprio queria sofrer também pelo Senhor.


DA DIFERENÇA ENTRE O AMOR CRISTÃO E A JUSTIÇA HUMANA

Os homens têm em geral uma concepção jurídica da justiça: eles recusam como injusta a ideia de que alguém possa assumir a responsabilidade pela falta de outro. Isso não se enquadra com sua consciência jurídica. Mas o espírito do amor de Cristo tem uma linguagem diferente.

Segundo o espírito desse Amor, não é estranho, mas algo perfeitamente natural, compartilhar a responsabilidade pela falta de alguém a quem amamos, e inclusive reivindicá-la integralmente. Mais ainda, é assumindo a falta do outro que se revela a autenticidade do amor e se adquire a verdadeira consciência dele; onde estaria o sentido do amor, se só se conservasse seu lado agradável? Quando tomamos sobre nós a falta e o castigo do ser amado, o amor alcança a perfeição em todas as suas dimensões.

Muitos homens não podem ou não querem aceitar de bom grado as consequências do pecado original de Adão. O homem diz: “Adão e Eva comeram a fruta proibida, o que eu tenho com isso? Estou disposto a responder pelos meus pecados, mas apenas pelos meus e não pelos pecados dos demais”. E não compreendem que com essa reação de seu coração repetem em si mesmos o pecado de nossos primeiros pais, que se identifica assim com seu próprio pecado e queda. Adão negou sua responsabilidade desembaraçando-se sua falta em Eva e em Deus, que lhe havia dado a essa como mulher, e por causa disso ele rompeu com a unidade do ser humano e sua união com Deus. Assim, a cada vez que recusamos assumir nossa responsabilidade pelo mal universal, pelos atos de nosso próximo, repetimos o mesmo pecado e rompemos com a unidade do ser humano. No Paraíso, o Senhor chamou Adão ao arrependimento; é lícito pensar que, se em lugar de se justificar, Adão tivesse assumido a responsabilidade pelo pecado comum, seu e de Eva, o destino do mundo seria outro. Do mesmo modo, o destino do mundo será diferente, se respondermos positivamente ao Senhor vindo na carne e que renova seu chamado ao arrependimento, e se carregarmos sobre nós o peso das faltas de nosso próximo.

Cada um de nós pode invocar múltiplas razões para se justificar. Mas se observar atentamente o fundo de seu coração, verá que atua enganosamente. O homem se justifica acima de tudo por não querer se reconhecer, ainda que não seja mais do que parcialmente, culpado do mal que existe no mundo. Ele se justifica porque não é consciente de estar dotado de uma liberdade à imagem de Deus; não se percebe assim senão como um fenômeno, como um objeto desse mundo e, por conseguinte, condicionado por ele. Numa consciência desse tipo existe algo de servil; por essa razão, o querer se justificar é próprio de um escravo, não de um filho de Deus.

Nunca surpreendemos no santo Starets essa tendência a se justificar. Mas é curioso que esse modo de proceder – assumindo a falta de outro e pedindo perdão – pareça a muitos precisamente algo servil. Tal é o contraste entre a maneira de pensar dos filhos do espírito de Cristo e a dos filhos desse mundo. Ao homem não espiritual parece incrível que se possa sentir o pertencimento à humanidade em seu conjunto como uma existência integral contida na experiência pessoal de cada homem, sem que seja abolida, sem embargo, a irredutível alteridade das outras hipóstases humanas. Em conformidade com o segundo mandamento: “amarás ao próximo como a ti mesmo”, deve-se, e é possível, incluir a própria existência pessoal na totalidade da existência humana. Então, todo o mal que se realiza no mundo não será considerado apenas como algo que nos é alheio, mas como nosso próprio mal.

Se cada pessoa-hipóstase humana, criada à imagem das hipóstases divinas absolutas, é capaz de conter em si a plenitude da existência humana, assim como cada hipóstase divina é portadora de toda a plenitude do Amor – e esse é o sentido último do segundo mandamento – então cada um de nós empreenderá a luta contra o mal, contra o mal cósmico, começando por si mesmo.

O Starets não falava senão do amor de Deus e jamais de sua justiça, mas nós sabemos o que ele pensava. A respeito, ele se manifestou mais ou menos como segue.

“Não se pode dizer que Deus seja injusto, ou seja, que exista alguma injustiça nele, mas tampouco podemos dizer que seja justo no sentido da nossa justiça. Santo Isaac o Sírio disse: “Não se atreva a chamar de justo a Deus. Qual é sua justiça, se nós pecamos e é seu Filho único quem morre na Cruz?”. A isso que disse Santo Isaac, podemos acrescentar: somos nós que pecamos, e Deus colocou os santos Anjos a serviço de nossa salvação; os Anjos, cheios de Amor, desejam salvar-nos, e não economizam sofrimentos nesse serviço. O Senhor, ao contrário, entregou os animais irracionais e todo o resto da criação à corrupção; porque não convinha que a criação ficasse livre dessa lei, posto que o homem, a serviço do qual foi criada a criação, havia se convertido, por causa de seu pecado, em escravo da corrupção. Desse modo, voluntária ou involuntariamente, “toda criatura suspira e está como que em transe de parto”, segundo a palavra do Apóstolo; vale dizer, toda criatura sofre com o homem. E isso não é a lei da justiça, mas a lei do amor”.

***

O amor de Cristo, em sua condição de força divina como dom do Espírito Santo, do único Espírito que opera em todos, estabelece ontologicamente os vínculos da unidade; o amor assimila a vida do ser amado. Aquele que ama a Deus está incluído na vida da Divindade; o que ama a seu irmão inclui em sua existência pessoal (hipostática) a vida de seu irmão; quem ama o mundo inteiro abraça, graças ao Espírito, todo o universo.

A grande oração pelo mundo que o Starets Silouane dirigia a Deus, conduz precisamente a essa percepção, a dar-se conta da comunidade ontológica que existe entre cada existência pessoal e a humanidade como um todo. Se é possível dizer, como o fizeram alguns filósofos contemporâneos, que nossa percepção sensível de não importa que coisa (objeto) não é apenas uma ato psicológico subjetivo, desprendido da existência objetiva da coisa em si mesma, mas que é essa própria coisa que, ao penetrar por meio de sua ação real em nossa consciência, e estabelece assim um contato ontológico entre objeto e percepção, quanto mais se deve falar em comunhão ontológica onde opera a graça divina e onipresente do Espírito Santo, Criador de todas as coisas.


DA INCESSANTE ORAÇÃO DO STARETS

Antes de abandonar o mundo, o Senhor disse: “Eis que chega o príncipe deste mundo, e ele nada pode contra mim[70]”.

Quem se esforça por observar realmente os mandamentos de Cristo em sua vida, pode em certa medida compreender a incomensurável grandeza dessas palavras de Cristo, grandeza que sobrepuja todas as outras na história do mundo.

Durante a vida terrestre de Cristo, as pessoas que o escutavam participavam das mesma dúvidas a respeito dele que têm os nossos contemporâneos. O que Cristo dizia deixava para trás a “medida humana[71]”. Isso era evidente para todos. Mas, incapazes de penetrar o que se manifestava sob aparência tão humilde, exclamavam: “Está possuído pelo diabo”; outros, ao contrário, diziam: “Não, suas palavras não são palavras de um possuído”. Muitos diziam: “Está possuído pelo diabo e fora de si; por que o escutais?”, enquanto outros respondiam: “É verdadeiramente um profeta”. Fato é que “havia desconcerto no povo a respeito dele[72]”.

O Starets Silouane era um homem, e as palavras da oração da Igreja: “Não existe sobre a terra homem sem pecado”, se aplicavam plenamente a ele. Mas em suas conversas e escritos encontramos expressões que ultrapassam a medida de um homem comum e que se situam no plano ao qual a compreensão das pessoas “normais” não tem acesso; e, no entanto, não há nem pode haver dúvida de que, ao falar de si mesmo, dizia a verdade. Ele viveu durante meio século no mosteiro, sob os olhares de centenas de monges, dos quais muitos ainda vivem. Ele viveu em comunidade, em condições nas quais qualquer enfermidade psíquica logo adquire relevo. Muitos monges não lhe queriam, alguns o injuriavam em sua presença, chamando-o de “iluminado”, enquanto outros diziam: “Ah! Santo maldito!”. E ele nem uma só vez respondeu de forma incorreta. É certo que isso era um dom da graça, mas para conservá-lo ele teve que passar toda a sua vida num extraordinário esforço ascético.

Para não sobrecarregar nosso livro, não vamos referir aqui todas as sentenças do santo Starets, que vão além dos limites da medida humana ordinária. Um leitor atento encontrará por si mesmo essas passagens nos seus escritos; como aquela, na qual ele diz fundamentado em sua própria experiência, que a oração dos Santos jamais se interrompe. Ou então a seguinte: “Certa vez, no início, por inexperiência aceitei um pensamento impuro. Corri ao meu confessor e lhe disse: “Eu aceitei um pensamento impuro”. Meu confessor me disse: “Não o acolha mais no futuro”. Desde então transcorreram quarenta e cinco anos, e não aceitei sequer uma vez um pensamento impuro, nem me encolerizei contra ninguém, pois minha alma se lembra do amor do Senhor e da doçura do Espírito Santo, e assim esqueço as ofensas”.

Eis um caso que aconteceu no mosteiro. Entre os irmãos se encontrava um monge de grande hábito, o padre Espiridião, que vivera na comunidade por quase meio século. Era de compleição corpulenta, forte de corpo e de alma e grande trabalhador; um grande monge, adiantado no caminho da ascese. Desde os primeiros anos de sua vida monástica, ele amou a oração de Jesus e perseverava continuamente nessa ascese, que exige um longo esforço de paciência, atenção e renúncia. Como a maior parte dos monges da Montanha Santa, o padre Esperidião era um homem simples, quase inculto, o que não o impedia de ser um sábio. Graças a uma prática assídua de “cultivo espiritual”, havia adquirido uma ideia clara sobre as possibilidades humanas, bem como sobre as propriedades da alma. Compreendia que a prece do coração exige que o intelecto esteja livre de qualquer impressão exterior e, com a firmeza de uma fé profunda, levava adiante o combate ascético que a maior parte dos homens desconhece.

O padre Esperidião cumpria uma obediência não desprovida de preocupações, pois era o ecônomo de uma extensa dependência do mosteiro chamada Kroumitsa, situada na parte noroeste da península de Athos. Essa propriedade era formada principalmente por vinhedos e olivais. O padre passou os três ou quatro últimos anos de sua vida na enfermaria do mosteiro, pois sofria de um reumatismo agudo que lhe deformava os braços e as mãos, impedindo-o de trabalhar.

Num inverno, estando com gripe e permanecendo por alguns dias na enfermaria, o Starets Silouane foi instalado num leito ao lado daquele que o padre Esperidião ocupava. Naqueles mesmos dias, um hierodiácono enfermos se encontrava no quarto vizinho.

Um dia o padre Esperidião estava sentado em sua cama, voltado para o lado do padre Silouane. Esse se deitava vestido, ou seja, com a sotaina e o cinturão, prática habitual dos ascetas do Monte Athos para significar que estão sempre prontos, dia e noite, a levantarem-se para a oração. O padre Esperidião falava da oração e o Starets Silouane escutava em silêncio.

“Assim é, fazemos tantos esforços para conservar a oração, mas quando nos ocupamos com um trabalho que exige alguma reflexão, logo a oração é interrompida... basta ir poder as oliveiras para que, enquanto examinamos os ramos e pensamos na melhor maneira de podá-los, já a atenção da prece se relaxa.”

Ao ouvir essas palavras, o Starets Silouane se levantou de sua cama, colocou as botas e um jaquetão quente, pois fazia frio, e disse com doçura: “Entre nós não é isso o que acontece”. Dizendo isso, saiu da enfermaria para se dirigir à sua cela.

Muito surpreso, o padre Esperidião permaneceu alguns instantes sentado, perplexo, depois do que foi até junto do monge diácono enfermo que estava no quarto vizinho, contou-lhe a conversa com o padre Silouane e disse:

“Padre diácono, você conhece bem o padre Silouane; diga-me, o que significam as suas palavras, de que ‘entre nós não é isso o que acontece’?”

O diácono permaneceu em silêncio. O padre Esperidião prosseguiu:

“Ou bem ele está em erro, ou bem é grande”.

O hierodiácono, que conhecia o padre Esperidião e sua longa experiência de asceta, respondeu:

“Padre Esperidião, você é maior do que eu, o bastante para compreender o significado dessas palavras”.

Pensativo, o padre Esperidião permaneceu ainda um tempo sentado, e depois se retirou, dizendo:

“Sim, é algo surpreendente”.



DA DIREÇÃO ESPIRITUAL

Nossa relação assídua com o santo Starets nos permitiu chegar à convicção de que os mistérios do espírito eram-lhe conhecidos e de que, por conseguinte, era ele um mestre espiritual seguro. Depois de excepcionais visitas da graça, pouco frequentes na vida da Igreja, após um esforço ascético suportado sem desânimo durante cerca de meio século, depois de algumas faltas pelas quais teve que sofrer no decurso da primeira metade de sua longa vida ascética, o Starets se aproximava de um grau de conhecimento e de perfeição que faziam dele um sustento, em qualquer provação, dos demais.

Conhecia a hierarquia dos estados espirituais, a saber, as etapas do crescimento espiritual, que é importante e às vezes indispensável para assegurar um progresso sem tropeços. Na vida espiritual dos monges e dos demais fiéis, acontece com frequência que essa hierarquia esteja falseada e mesmo invertida. Isso acontece quando um estado espiritual ou uma prática ascética satisfazem ao homem e esse recusa o que se encontra em seu caminho e que seria a etapa seguinte, porque considera que esse novo estado seja inferior ao anterior, refreando assim travas seu progresso espiritual.

O Starets conhecia por experiência as etapas da vida espiritual. Assinalava três etapas essenciais nesse caminho: a primeira, a recepção da graça; a segunda, a perda da graça; a terceira, o retorno da graça ou sua recuperação por meio do trabalho ascético da humildade. Numerosos são os que receberam a graça, não apenas entre os que se encontram da Igreja, mas também entre os que estão fora dela, já que o Senhor não faz acepção de pessoas; mas quase ninguém soube conservar a primeira graça, e raros são os que conseguiram recobrá-la. Quem não conhece a terceira etapa, que não passou pela experiência do esforço ascético para recuperar a graça, não possui, falando com propriedade, o verdadeiro conhecimento espiritual.

O Starets não era rico apenas por sua própria experiência interior pessoal, como também, do ponto de vista teórico, estava ao par dos escritos ascéticos dos Padres da Igreja. Graças a um dom de Deus, ele não apenas era fiel à tradição da Igreja, como ainda nele se renovava a experiência dos Padres.

Lia muito pouco; não queria ler muito porque isso o impedia de orar, mas gostava de escutar a leitura, pois, sem interromper a prece de Jesus, podia ao mesmo tempo estar atento ao que estava sendo lido. Ouvia as leituras da Igreja durante os serviços noturnos, e lia um pouco na solidão de sua cela; beneficiou-se muito das conversas diretas com outros ascetas da Santa Montanha, dentre os quais se achavam pessoas que haviam sido gratificadas com bens notáveis; por volta dos anos trinta, durante um longo período, visitava com frequência a seu amigo, o padre Cassiano, quando esse morava perto do mosteiro, nos Cypros. O padre Cassiano amava o Starets e o tinha em alta estima; valorizava suas virtudes e lia com gosto em alta voz. O Starets conservou em sua memória numerosas passagens dos Santos Padres, o que era fácil para ele em virtude da similaridade ou da identidade das experiências.

Não é fácil recordar os textos espirituais, pois, situando-se esses mais além da esfera imaginativa da vida comum, não encontram facilmente no mundo de cá suportes nos quais a memória puramente psicológica possa se apoiar. Não é por isso mesmo que o Senhor onisciente ensinava ao povo os mistérios do Reino na forma de imagens extraídas da vida real ou em parábolas? Um certo sucedâneo da vida espiritual certamente é possível por meio de um “saber livresco”, como se pode observar em pessoas que possuem grande experiência espiritual; mas é evidente que só é capaz de se recordar do ensinamento dos Padres quem adquiriu todo o preço do trabalho pessoal e quem recebeu do alto um conhecimento experimental dos mistérios do mundo espiritual.

Um longo combate desse homem “simples” o colocou na posse de um vasto conhecimento dos métodos e meios ascéticos. Esse conhecimento, unido à sua própria força espiritual, o tornaram, por um lado, interiormente livre de qualquer servidão em relação às formas, mas, por outro, evitou que vagasse, presa da incerteza e da incompreensão, por “caminhos estranhos”.

Existem muitos falsos caminhos paralelos ao único caminho verdadeiro. Não poucas esferas fechadas e alheias ao cristianismo desfilam diante da vista espiritual do asceta, e esse não pode se orientar no meio delas sem a ajuda da luz divina. O Starets, que no Espírito Santo se tornara digno de ver a Cristo, que havia sido elevado pelo Espírito Santo à contemplação da luz incriada, levava em si essa luz. Por esse motivo podia descobrir com surpreendente perspicácia a autêntica verdade no meio das máscaras e fantasmas de verdade que o homem encontra inevitavelmente em seu caminho espiritual.


DA CLARIVIDÊNCIA E DE SUAS DIVERSAS FORMAS

O conhecimento das paixões que se adquire superando-as dá a clarividência nascida da experiência. Devemos advertir, no entanto, que a clarividência que provém da experiência de uma prolongada luta contra as paixões não alcança a perfeição que possui o dom da clarividência recebido por mio da graça. A primeira, adquirida pela experiência, permite conhecer o estado espiritual de um homem através de certas exteriorizações suas, pela expressão de seu rosto, por algumas palavras que pronuncia, por seu modo de falar ou calar, pela atmosfera psíquica que se desprende dele. Sem embargo, a base mais segura para formar juízo sobre um homem é conversar com ele, pois sua palavra revelará o grau de sua autêntica experiência espiritual, diferenciando-a daquilo que não passa do resultado de uma erudição superficial. O segundo tipo de clarividência, vale dizer, aquela que é recebida por intermédio da graça, conhece tudo pela oração e não necessita da presença do homem.

No decurso de seu longo combate interior, o asceta encontra, além daquela à qual nos referimos, três formas de clarividência: a primeira provém da intuição, própria de certas pessoas afiadas por uma vida de ascese; a segunda provém da ação do diabo; e a terceira é um dom especial da graça.

A primeira forma pode ajudar a um homem humilde e piedoso, que a utiliza frutiferamente, pois contribui para uma guarda mais fiel dos mandamentos de Cristo em nossas relações com o próximo. Ao contrário, é nociva para o homem orgulhoso e passional, porque favorece suas disposições passionais e oferece vastas oportunidades de satisfazê-las.

A segunda forma é extremamente perigosa para quem a aceita, pois cedo ou tarde conduzirá a um transtorno patológico de todas as faculdades psíquicas e espirituais do homem, chegando a alterar sua própria fisionomia.

A terceira forma traz consigo uma responsabilidade extraordinariamente dura para quem a aceita. É fonte de múltiplos sofrimentos espirituais para quem apossui. Jamais é dada ao orgulhoso.

As três formas de clarividência causam sofrimento. Na primeira forma, a da intuição natural, os sofrimentos são consequência de uma hipersensibilidade do aparelho neuropsicológico. Na segunda, derivam das propriedades desintegradoras da ação demoníaca, o que em geral não se detecta senão depois de muito tempo. Essa clarividência dá às vezes a possibilidade de “ler” os pensamentos do outro, mas o homem profundo, o interior, permanece sempre fora do seu alcance. Essa capacidade se manifesta às vezes com um grau mais aproximado em relação a acontecimentos que têm um caráter exterior. Quem aceita essa capacidade está sujeito à vaidade. A verdadeira clarividência espiritual é um dom da graça. Penetra nas profundidades da alma humana, que com frequência permanecem ocultas ao próprio homem. Essa clarividência não é de modo algum de natureza psicopatológica; ela causa sofrimento a que é dotado dela unicamente porque, mesmo sendo um dom de Deus e estando cheia de amor, de fato leva a contemplar toda a “feiura e ignomínia” do homem. Trata-se pois, de um sofrimento do amor. Quem recebeu esse dom jamais tenta conservá-lo para si, pois carece de presunção e vaidade.


***

Reservamos no que antecede um lugar especial à forma de clarividência que provém da experiência, a essa clarividência, unida àquela outorgada pela graça, os Santos Padres estimam como uma dos mais altos carismas e a denominam “dom do discernimento”. O essencial desse dom reside na sua capacidade de reconhecer a origem de tal ou qual fenômeno espiritual, ou seja, de reconhecer se provém da graça ou de influências demoníacas, ou ainda se se situa no plano do desenvolvimento natural do homem, Por outro lado, entende-se também por esse termo o conhecimento das etapas da vida espiritual, tanto dos estados espirituais como de seu valor e dignidade relativos.

O dom do discernimento é tão altamente apreciado pelos ascetas porque não é mais do que o resultado de uma larga experiência de luta contra as paixões, da experiência de grandes intervenções e visitas da graça, assim como de numerosas tentações e ataques demoníacos. É precioso para os mestres espirituais, porque o inimigo gosta de se disfarçar em anjo de luz, e são poucos os que são capazes de desmascará-lo.

Conhecemos casos em que a oração revelou ao santo Starets Silouane “acontecimentos longínquos como se estivessem diante de seus olhos”, o futuro daqueles que se dirigiam a ela, e também os segredos profundos de sua alma. Muitas pessoas que ainda vivem puderam constatar esse dom por experiência pessoal e dar testemunho disso. Quanto ao Starets, não apenas não buscava esse dom, como sequer lhe atribuía importância. Sua alma estava sempre cheia de compaixão pelo mundo; todo seu ser permanecia absorto na oração pelo mundo, e em sua vida espiritual esse amor era para ele o que havia de mais importante.


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[1] I João 4: 8; 1, 5.
[2] Jó17: 11. 15.
[3] Mateus 10: 30.
[4] I João 3: 14.
[5] Lucas 14: 26.
[6] Filipenses 2: 8.
[7] Atos 15: 28.
[8] Mosteiro situado no Monte Athos, a 250 mts. de altitude, muito isolado, famoso pela sua austeridade.
[9] II Coríntios 4: 13.
[10] I Coríntios 13: 9.
[11] Mateus 19: 26.
[12] Cf. I Coríntios 7: 25.
[13] I Timóteo 4: 1.
[14] Mateus 12: 22.
[15] Gálatas 1: 11-12.
[16] Notícia: em grego, plerophoria, termo ascético usado para designar um conhecimento imediato, um “sentimento” de certeza interior, recebido durante a oração e indicativo de que o objeto da oração toma ou tomará tal ou qual forma.
[17] Hebreus 13: 17.
[18] Cf. Romanos 10: 13.
[19] I Coríntios 3: 18-19.
[20] II Coríntios 3: 3-6.
[21] Judas 1: 3.
[22] Nem científica, nem mesmo teológica, aliás. (N.T.)
[23] I Coríntios 2: 16.
[24] II Timóteo 2: 15.
[25] II Pedro 3: 16.
[26] Colossenses 2: 18.
[27] II Timóteo 3: 16-17.
[28] Apocalipse 5: 1.
[29] II Pedro 1: 21.
[30] I Coríntios 9: 19-22.
[31] João 7: 15-17.
[32] Mateus 22: 40.
[33] Gênesis 2: 20.
[34] I João 3: 12.
[35] João 17: 24.
[36] João 17: 22.
[37] Mateus 26: 40.
[38] João 5: 19-20, 26.
[39] II Pedro 1: 4; I Coríntios 9: 23.
[40] I Coríntios 3: 9.
[41] João 5: 17.
[42] João 14: 12; Mateus 28: 18.
[43] O Starets conversava um dia com um estudante que visitava o Monte Athos e que falava muito de liberdade (...) Na realidade, sua concepção de liberdade se reduzia à busca de liberdades políticas e à possibilidade de trabalhar em geral segundo seus próprios impulsos e desejos. O Starets respondeu-lhe: “Quem não deseja essa liberdade? Todos a desejam, mas é necessário saber em que consiste e em como encontrá-la. Para chegar a ser livre, é preciso primeiro “amarrar-se” a si mesmo. Quanto mais você se amarrar, tanto maior será a liberdade de seu espírito. É necessário amarrar as paixões em nós, para que não nos dominem; é necessário amarrar-se para não prejudicar o próximo. Buscamos em geral a liberdade para “fazermos o que quisermos”. Isso não é liberdade, mas o domínio do pecado sobre nós. A liberdade de se entregar à fornicação, de comer sem controle, de embebedar-se; ou de guardar rancor, de cometer violência e de matar, ou outras coisas do gênero – isso, em absoluto, é liberdade. Pois, como disse o Senhor, “todo homem que peca é escravo do pecado”. É preciso orar muito para libertar-se dessa escravidão. Cremos que a verdadeira liberdade consiste em não pecar, em amar a Deus e ao nosso próximo com todo o coração e todas as nossas forças. A verdadeira liberdade consiste em permanecer constantemente em Deus”.
[44] II Coríntios 3: 17.
[45] João 8: 34-36.
[46] Hebreus 2: 15.
[47] João 17: 21.
[48] João 14: 6; 18: 37-38.
[49] Êxodo 3: 14.
[50] Cf. Mateus 11: 27.
[51] João 14: 23, 26.
[52] II Coríntios 12: 4.
[53] Nas páginas a seguir, preferimos empregar os termos “hipóstase” e “hipostático” no lugar de “pessoa” e “pessoal”, para evitar a confusão de termos teologicamente precisos com as noções de pessoa e pessoal que, em seu uso corrente, são mais ou menos sinônimos de indivíduo e individual.
[54] II Coríntios 3: 18.
[55] João 3: 3.
[56] Êxodo 3: 14; João 8: 58.
[57] II Pedro 3: 8.
[58] I Pedro 1: 18-20.
[59] I Coríntios 10: 11.
[60] Efésios 1: 4.
[61] I João 2: 13.
[62] Cânon da Liturgia de São João Crisóstomo.
[63] Oração conclusiva da Liturgia de São Basílio.
[64] Marcos 9: 1.
[65] I João 4: 20-21.
[66] João 14: 13.
[67] João 7: 17.
[68] II Timóteo 3: 12.
[69] João 8: 37.
[70] João 14: 30.
[71] Gálatas 1: 11.
[72] João 7: 20; 7: 43; 8: 48-49. 52; 9: 16; 10: 19-20.