terça-feira, 19 de novembro de 2019

Georges Florovsky - Criação e Redenção - X. Os Santos Ícones






O primeiro domingo da Quaresma é o Domingo da Ortodoxia. Ele foi estabelecido como um dia especial de rememoração do Concílio de Constantinopla em 843. Acima de tudo, ele comemora a vitória da Igreja sobre a heresia dos iconoclastas. O uso e a veneração dos Santos Ícones foram restaurados. Nesse dia cantamos até hoje o Tropário da Santa Imagem de Cristo: “Diante de Teu venerável ícone prostramo-nos...”.

À primeira vista, parece ser uma ocasião inapropriada para comemorar a glória da Igreja e todos os heróis e mártires da Fé Ortodoxa. Não seria mais razoável fazê-lo nos dias dedicados à memória dos grandes Concílios Ecumênicos, ou aos Padres da Igreja? Não será a veneração dos Ícones senão uma peça de um ritual exterior e cerimonial? Não será a pintura de Ícones apenas uma decoração, bonita sem dúvida, e instrutiva de muitas maneiras, mas dificilmente um artigo de Fé? Essa é a opinião comum, infelizmente muito difundida, mesmo entre os próprios Ortodoxos. E ela é responsável por sensível decadência da arte religiosa. Normalmente, confundem-se os Ícones com “pintura religiosa”, e assim não há dificuldades em utilizar as figuras mais inadequadas como Ícones, mesmo em nossas igrejas. Esquecemos do verdadeiro papel e do propósito último dos Ícones.

Vejamos o testemunho de São João Damasceno – um dos primeiros e maiores defensores dos Santos Ícones durante o período do Iconoclasmo – grande teólogo e poeta devocional de nossa Igreja. Em um de seus sermões em defesa dos Ícones, ele disse: “Eu vi a imagem humana de Deus, e minha alma se salvou”. Trata-se de uma colocação forte e comovente. Deus é invisível, Ele habita na luz inacessível. Como pode um frágil homem contemplá-Lo? Mas Deus manifestou-se na carne. O Filho de Deus, que está no seio do Pai, “desceu dos céus” e “se fez homem”. Ele habitou entre os homens. Esse foi o maior movimento do Amor Divino. O Pai Celestial comoveu-se com a miséria do homem e enviou Seu Filho, porque Ele amou o mundo. “Nenhum homem jamais viu a Deus; apenas o Filho Único, que está no seio do Pai, o revelou a nós[1]”. O Ícone de Cristo, Deus Encarnado, constitui um testemunho permanente da Igreja relativo ao mistério da Santa Encarnação, que é a base e a substância de nossa fé e de nossa esperança. Jesus Cristo, nosso Senhor, é o Deus Encarnado. Isso implica que desde a Encarnação, Deus é visível. Podemos agora ter uma verdadeira imagem de Deus.

A Encarnação constitui uma identificação íntima e pessoal de Deus para com o homem, para com as necessidades e a miséria do homem. O Filho de Deus “se fez homem”, conforme é declarado no Credo, “por nós e por nossa salvação”. Ele tomou sobre Si os pecados do mundo, e morreu por nós, pecadores, sobre o madeiro da Cruz, e desse modo Ele transformou a Cruz na nova árvores da vida para os fiéis. Ele se tornou o novo e Último Adão, a Cabeça de uma nova e renovada Humanidade. A Encarnação representou uma intervenção pessoal de Deus na vida do homem, uma intervenção de Amor e Misericórdia. O Santo Ícone de Cristo é um símbolo disso, mas vai além de um mero símbolo ou signo. Ele é também um sinal eficiente e uma prova da presença de Cristo na Igreja, que é Seu Corpo. Mesmo num retrato comum, sempre existe algo da pessoa representada. Um retrato não apenas nos lembra a pessoa, como, de certo modo, carrega em si alguma coisa dela, isso é, representa a pessoa, ou seja, “torna a pessoa presente”. Isso é ainda mais verdadeiro quando se trata da sagrada Imagem de Cristo. Como nos ensinaram os professores da Igreja – em especial São Teodoro Estudita, outro grande confessor e defensor dos Ícones – um Ícone, de certa forma, pertence à própria personalidade de Cristo. O Senhor está ali, em suas “Santas Imagens”.

Por isso, não é a todos que é permitido realizar ou pintar um Ícone, se é que deverá ser um verdadeiro Ícone. O iconógrafo deve ser um fiel membro da Igreja, e deve se preparar para essa tarefa sagrada por meio de jejuns e orações. Não se trata apenas de uma questão de arte, ou de habilidades artística ou técnica. Trata-se de um testemunho, de uma profissão de fé. Pela mesma razão, a arte em si deve ser subordinada em sua materialidade à regra da fé. Existem limites para a imaginação artística. Existem determinados padrões estabelecidos que devem ser seguidos. Em qualquer caso, o Ícone de Cristo deve ser executado de modo a se encaixar na verdadeira concepção de Sua pessoa, isto é, deve testemunhar Sua Divindade, ainda que Encarnada. Todas essas regras foram estritamente conservadas pela Igreja por séculos, até um momento em que foram esquecidas. Mesmo pessoas sem fé foram autorizadas a pintar ícones de Cristo nas igrejas, de tal maneira que alguns desses “ícones” modernos não passam de pinturas mostrando um homem qualquer. Essas pinturas falham em ser “Ícones” no sentido próprio e verdadeiro, e deixam de ser testemunhos da Encarnação. Em casos como esses, não se faz mais do que “decorar” nossas igrejas.

A utilização dos Santos Ícones foi sempre um dos caracteres distintivos da Igreja Ortodoxa do Oriente. O Ocidente Cristão, mesmo antes do Cisma, tinha pouco entendimento a respeito da essência dogmática e devocional da pintura de Ícones. No Ocidente eles nunca passaram de decoração. E foi sob a influência do Ocidente que a pintura de Ícones se deteriorou no Oriente Ortodoxo nos tempos modernos. A decadência da pintura de Ícones foi um sintoma do enfraquecimento da fé. A arte dos Santos Ícones não é uma questão neutra. Ela pertence à fé.

Não pode haver acaso, nem “improvisação” na pintura de nossas igrejas. Cristo jamais está sozinho, conforme o argumento de São João Damasceno. Ele está sempre com Seus santos, que são Seus amigos por todo o sempre. Cristo é a Cabeça, e os verdadeiros fiéis são Seu Corpo. Nas igrejas antigas, toda a Igreja Triunfante tinha que ser representada sobre as paredes. Repetimos, não se tratava de decoração, nem de uma mera história contada em cores e linhas para os ignorantes e os iletrados. Antes, tratava-se de uma visão da realidade invisível da Igreja. Todo o mundo celestial estava representado sobre as paredes, porque ele estava presente ali, embora invisivelmente. Nós sempre rezamos a Deus na Divina Liturgia, durante a Pequena Entrada, que “conceda que, juntamente com a nossa entrada, se realize também a dos (Teus) santos Anjos que conosco concelebram (e glorificam a Tua bondade)”. E não há dúvidas de que nossa prece é atendida. Claro, não vemos os Anjos. Nossa vista é fraca. Mas é dito que São Serafim costumava vê-los, pois eles de fato estavam lá. O eleito do Senhor podia vê-los, e a toda a Igreja Triunfante. “Quando nos encontramos no templo em Tua glória, parece-nos estarmos nos Céus”.

Assim, é quase natural que no Domingo da Ortodoxia celebremos, não apenas a restauração da veneração dos Ícones, como ainda comemoremos esse glorioso coro de testemunhos e fiéis que professaram sua fé, ainda que a custo de sua segurança terrena, de sua prosperidade e de suas próprias vidas. É um grande dia para a Igreja. De fato, nesse Domingo celebramos a Igreja do Verbo Encarnado: celebramos o Amor redentor do Pai, o Amor Crucificado do Filho e a Amizade do Espírito Santo, que se tornaram visíveis para nós, na companhia de todos os fiéis, inclusive dos que já estraram no Repouso Celestial, na Alegria eterna de seu Senhor e Mestre. Os santos Ícones são nosso testemunho da glória do Reino que virá, e que já está presente entre nós.


[1] João 1: 18.

sábado, 2 de novembro de 2019

Georges Florovisky - Criação e Redenção - IX. A Veneração dos Santos





Cristo conquistou o mundo. Essa vitória foi posteriormente revelada e realizada no fato de que Ele construiu Sua Igreja. Em Cristo e por Cristo a unidade da humanidade foi verdadeiramente realizada pela primeira vez, pois aqueles que creram em Seu Nome se tornaram o Corpo de Cristo. E ao se unirem a Cristo eles, da mesma forma, uniram-se uns aos outros na mais sincera concórdia de amor. Nessa grande unidade todas as distinções empíricas e todas as barreiras foram também afastadas: diferenças de nascimento na carne foram apagadas dentro da unidade do nascimento espiritual. A Igreja é um novo povo cheio de graça, que não coincide com nenhuma fronteira física nem com nenhuma nação terrestre – nem Gregos, nem Judeus, nem Citas, nem bárbaros – e essa nação não surge de uma relação de sangue, mas através da liberdade num Corpo. Todo o significado do Santo Batismo consiste no fato de que se trata de uma misteriosa aceitação para entrar na Igreja, na Cidade de Deus, no Reino da Graça. Através do Batismo o fiel se torna um membro da Igreja, ele entra para “a Igreja única de anjos e homens”, se torna “co-cidadão dos santos, para sempre com Deus”, de acordo com as misteriosas e solenes palavras de São Paulo – a pessoa chega ao “monte Sião, e à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celeste, a uma inumerável companhia de anjos, à assembleia geral e à Igreja do primogênito, que está inscrita nos céus, ela chega a Deus, o Juiz de todas as coisas, e aos espíritos dos homens que se tornaram perfeitos”. E em meio a essa grande multidão ela se une a Cristo. Pois “unnus Christianus, nullus Christianus[1]”.

A essência da Igreja reside em sua unidade. Pois a Igreja é a Morada do Espírito Único. Não se trata de uma unidade, ou catolicidade, externa ou empírica. O caráter Ecumênico da Igreja não é algo externo, quantitativo, espacial, nem mesmo qualquer qualidade geográfica, e de modo algum depende de uma dispersão universal de fiéis. A unidade visível da Igreja é meramente um resultado, mas nunca um fundamento para a catolicidade da Igreja. A “universalidade” geográfica é uma derivação e não uma necessidade essencial. A catolicidade da Igreja não foi menor nas primeiras eras da Cristandade, quando as comunidades dos fiéis eram espalhadas como pequenas ilhas, quase perdidas num imenso mundo de descrença e resistência. Tampouco ela se vê diminuída agora, quando a maior parte da humanidade não está com Cristo. “Embora uma cidade, ou mesmo uma província, possa abandonar a Igreja Ecumênica, diz o Metropolita Filareta, esta permanecerá sempre sendo um corpo completo e incorruptível”. Da mesma forma a Igreja continuará Ecumênica nos “últimos dias”, quando ela for reduzida ao “pequeno rebanho”, quando o mistério da “retirada” for revelado e quando a fé quase não for mais encontrada sobre a terra. Pois a Igreja é Católica de acordo com a sua natureza.

Se buscarmos por definições externas, talvez a natureza Ecumênica da Igreja possa ser melhor expressada pelo seu aspecto de “atemporalidade” (por perpassar todas as eras). Pois fiéis de todas as idades e de todas as gerações, que vivem, viveram ou viverão, pertencem a ela da mesma maneira. Todos formam um corpo, e por meio da mesma oração se veem unidos em um diante do Trono único do Senhor da Glória. A experiência dessa unidade através de todos os tempos é revelada e selada no ciclo total da adoração Divina. Na Igreja, o tempo é ultrapassado misteriosamente. O transbordamento da graça parece parar o tempo, deter a marcha dos minutos e das estações, ultrapassar inclusive a ordem geral da sucessão e da separação das coisas que parecem acontecer em tempos diferentes[2]. Numa unidade com Cristo através da graça, no dom da comunhão com o Espírito Único, homens de diferentes épocas e gerações se tornam nossos contemporâneos vivos. Cristo reina por igual na Igreja – dentre os que partiram e dentre os que estão vivos, pois Deus não é um Deus dos mortos, mas dos vivos.

A Igreja constitui um Reino que não é deste mundo, mas que é um Reino eterno, porque possui um Rei eterno: Cristo. A Igreja é uma espécie de imagem misteriosa da eternidade e uma antevisão da Ressurreição geral. Pois Cristo, a Cabeça do Corpo, é “vida e ressurreição” de Seus servos e irmãos.  O montante dos nascimentos ainda não se completou, e o rio da vida ainda corre. A Igreja continua nas suas andanças, mas mesmo agora o tempo não tem força nem poder sobre ela. É como se o momento do Apocalipse tivesse sido antecipado – quando já não houver tempo, e quando todo tempo houver cessado. A morte terrestre, a separação da alma em relação ao corpo, já não destrói o laço entre aqueles que têm fé, já não divide nem separa os que são co-membros em Cristo, já não exclui os falecidos dos limites e da composição da Igreja. Na oração pelos mortos e em outros ofícios fúnebres oramos a Cristo, “nosso Rei e Deus imortal” para que envie as almas dos falecidos para “onde vivem os santos”, “a morada dos justos”, “o seio de Abrahão”, onde todos os justos encontram o repouso. E, com particular expressividade, nessas preces fúnebres, lembramos e clamamos pelas hostes dos justos, e pela Mãe de Deus, pelos poderes celestiais, pelos santos mártires e por todos os santos, enquanto nossos concidadãos celestiais na Igreja. Com poderosa ênfase a sempre presente e católica consciência da Igreja se abre no ofício do sepultamento. O fiel que alcança uma genuína união com o próprio Cristo, em sua luta e dentro dos “mistérios” salvífico, não pode ser separado Dele, mesmo na morte. “Benditos os que morrem no Senhor, pois suas almas habitarão com o Abençoado”. E as preces pelos falecidos são a testemunha e a medida da consciência católica da Igreja.

Reverentemente, a Igreja procura quaisquer sinais da graça que testemunhem e confirmem o esforço terreno dos que partiram. Com uma visão interior a Igreja reconhece tanto os justos vivos como os falecidos, e o sentimento da Igreja é selado pelo testemunho do sacerdócio da Igreja. É nesse reconhecimento de seus irmãos e membros que “alcançaram a perfeição”, que consiste a essência mística daquilo que o Cristianismo Ocidental denominou como “a canonização dos santos”, e que é entendido pelo Oriente Ortodoxo como sua glorificação, magnificação e bênção. Primeiramente, é a glorificação do Deus – “Maravilhoso é o Senhor em Seus santos”. “Os santos de Deus, diz São João Damasceno, governaram e dominaram suas paixões e mantiveram intacta a semelhança e a imagem de Deus, segundo a qual foram criados; por sua livre vontade eles se uniram a Deus e receberam-No na morada de seus corações, e, tendo-O recebido em comunhão, através da graça, tornaram-se em suas naturezas tais como Ele”. Deus repousa neles – eles se tornaram “os tesouros e as puras moradas de Deus”. Nisso é que se realiza o mistério. Pois, como diziam os antigos Padres, o Filho de Deus se tornou homem, para que os homens pudessem ser deificados, para que os filhos dos homens pudessem se tornar filhos de Deus. E é no justo que chega a amar dessa maneira, que se realiza o crescimento e a “semelhança” em Cristo. “Durante suas vidas os santos já estavam cheios do Espírito Santo, continua São João Damasceno, e quando eles morreram a graça do Espírito Santo continuou presente em suas almas e seus corpos nos sepulcros, bem como em suas imagens e em seus santos ícones, não por causa de sua natureza, mas por causa da graça e de sua atividade (...) os santos estão vivos e com coragem e ousadia eles se postam diante do Senhor; eles não estão mortos (...) a morte dos santos se parece mais com um adormecimento do que com uma morte (...) pois eles “habitam nas mãos de Deus” – vale dizer, na vida e na luz – e “depois que Aquele que é a própria Vida e a fonte de toda vida foi contado entre os mortos, já não consideramos como mortos aqueles que partiram com a esperança da ressurreição e com fé Nele”. E não é apenas para obter ajuda e intercessão, que o Espírito Santo ensina a todos os fiéis a orar aos santos glorificados, mas também porque esse chamado, mediante a comunhão na prece, aprofunda a consciência da unidade católica da Igreja. Em nossa invocação dos santos demonstramos a medida de nosso amor Cristão, e expressa-se um sentimento vivo de unanimidade e do poder da unidade da Igreja; e, inversamente, as dúvidas e a incapacidade de sentir a intercessão da graça e a intervenção dos santos perante Deus em nosso favor mostra não apenas um enfraquecimento do amor e da fraternidade nos laços e relações da Igreja, como ainda um declínio na plenitude da fé no valor Ecumênico e no poder da Encarnação e da Ressurreição.

Uma das mais misteriosas antecipações da Igreja Ortodoxa é a contemplação do “Véu Protetor da Mãe de Deus”, de sua incansável intercessão pelo mundo, rodeada por todos os santos, diante do trono de Deus. “Hoje a Virgem se coloca na Igreja e, juntamente com as hostes invisíveis dos santos, ora a Deus por todos nós; os anjos e os altos sacerdotes adoram; os apóstolos e os profetas abraçam-se mutuamente – pois é por nós que a Mãe de Deus ora diante do Deus Eterno”. É assim que a Igreja recorda a visão que teve Santo André, o louco de Cristo. E aquilo que foi visivelmente revelado naquele momento permanece ainda e permanecerá por todas as eras. A “Contemplação do Véu Protetor” da Mãe de Deus é a visão da Igreja celestial, a visão da unidade indestrutível e duradoura entre as Igrejas celestial e terrestre. E é também uma antevisão de toda a existência de além-túmulo, dos justos e dos santos, numa prece incansável, numa incessante intercessão e mediação. Pois o amor é “a união de todas as perfeições”. E a veneração dos santos é uma espera no amor. O grande santo do Oriente, Isaac o Sírio, com ousadia incomparável, deu testemunho do abarcante poder que coroa o esforço do Cristão. De acordo com suas palavras, esse esforço por Deus adquire sua realização e plenitude, e alcança seu objetivo, na pureza – e a pureza é “um coração misericordioso para com todos os seres criados”. E o que é um coração misericordioso?, pergunta o santo, e ele próprio responde: “Um coração que queima por toda a criação, pelo homem, os pássaros, os animais, os demônios e todas as demais criaturas. E os olhos desse homem derramam lágrimas à sua recordação e à sua contemplação; por causa da enorme compaixão que esse coração possui, e por sua grande fidelidade, ele é inundado por uma terna piedade e não é capaz de suportar, nem ouvir ou ver a menor ofensa a eles, a menor tristeza sofrida por esses animais. E assim ele ora a todo momento pelos animais irracionais, pelos inimigos da Verdade e por aqueles que o prejudicam, para que eles sejam guardados e que recebam misericórdia; e ele ora também pelos répteis, por causa dessa grande compaixão que brota constantemente em seu coração à semelhança de Deus”. E se tão ardente é a oração dos santos sobre a terra, ainda mais ardentemente ela queima “lá”, no “regaço do Pai”, no seio do Amor Divino, junto a Deus, cujo Nome é Amor, cuja atenção para com o mundo é Amor. E na Igreja Triunfante jamais cessam as orações por toda a Igreja Católica. Como disse São Cipriano, “a prece Cristã é ara todo o mundo”; todos oram, não apenas por si mesmos, mas para todo o povo, pois todos formam um só, e assim oramos não com uma prece individual particular, mas com uma prece que é comum a todos, com uma só alma. Todo o ato de orar deve ser determinado por uma consciência ecumênica e um amor unânime, que inclui do mesmo modo aqueles cujos nomes são conhecidos apenas por Deus. Não é típico de um  Cristão sentir-se só e separado de todos, porque ele só pode ser salvo na unidade da Igreja. E o coroamento de todas as orações consiste nesse amor ardente que foi expresso na prece de Moisés: “Perdoa seus pecados; mas, se não o fizeres, eu Te peço, apaga-me desse livro que Tu próprio escreveste”. O centro da adoração da Igreja é a adoração Eucarística. Aqui toda a Igreja se encontra unida. Aqui se realiza o sacrifício e são oferecidas as orações “por todos e por tudo”, aqui toda a Igreja é lembrada, a militante e a triunfante. No misterioso ato da Liturgia “os poderes celestes celebram invisivelmente conosco”, eles estão presentes e celebram junto com o sacerdote celebrante. E aos grandes santos às vezes se concede pela graça de Deus contemplar de forma visível aquilo que está oculto aos olhos dos pecadores – a concelebração dos anjos. É sabido, por exemplo, que em certa ocasião foi concedido a São Serafim de Sarov ver a entrada triunfante do Senhor da Glória, rodeado pelas hostes de anjos. Essa entrada do Senhor da Glória é comumente representada na forma de ícone sobre a parede do santo Altar, e não apenas como símbolo, mas como uma indicação de que, invisivelmente, isso verdadeiramente acontece. E toda a decoração em ícones da Igreja fala da misteriosa unidade, da presença real dos santos entre nós. “Representamos a Cristo, o Rei e Senhor, sem separá-Lo de Seu exército, pois o exército do Senhor são os Seus santos”, disse São João Damasceno. Os santos ícones não são simplesmente imagens de recordação, “imagens do passado e dos justos”, eles não são meras figuras, mas são de fato objetos sagrados por intermédio dos quais, conforme explicaram os Padres, o Senhor está “presente” e, por meio da graça, ‘em comunhão” com eles. Existe uma ligação misteriosa entre a “imagem” e o “Protótipo”, entre a semelhança e aquele que está representado, coisa que é especialmente marcada nos ícones milagrosos que mostram o poder de Deus. O “culto de veneração” dos santos ícones expressa claramente a ideia que a Igreja concebe a respeito do passado: não se trata de uma recordação dirigida a algo que se passou, mas de uma visão pela graça de algo que está fixado na eternidade, uma visão de algo misterioso, uma presença pela graça daqueles que morreram e partiram, uma “alegre visão da unidade de toda a criação”.

Toda a criação tem sua Cabeça em Cristo. E por intermédio de Sua Encarnação, o Filho de Deus, de acordo com a maravilhosa expressão de Santo Irineu de Lyon, “inicia-se uma nova linhagem de seres humanos”. A Igreja constitui a posteridade espiritual do Segundo Adão, e, na sua história, Sua obra redentora se realiza e se completa, enquanto seu Amor brota nela e a inflama. A Igreja constitui a plenitude de Cristo e Seu Corpo. De acordo com as palavras de São João Crisóstomo, “somente então Aquele que a tudo preenche se torna a Cabeça, tendo formado um corpo perfeito”. Existe um movimento misterioso, que começa no formidável dia de Pentecostes, quando, na figura dos poucos primeiros escolhidos toda a criação tivesse recebido um batismo abrasador pelo Espírito, que apontou para o fim derradeiro, quando em toda a sua glória a Nova Jerusalém deverá aparecer e o Noivado do Cordeiro se iniciará. Ao longo das eras, os convidados e os escolhido vêm sendo buscados. O povo do Reino eterno está sendo reunido em assembleia. O Reino está sendo eleito e colocado além dos limites do tempo. A plenitude será realizada na ressurreição última – e então a completa plenitude, a glória e o significado total da catolicidade da Igreja serão revelados.


[1] “Um só Cristão, nenhum Cristão”.
[2] “...to overcome even the general order of consecutiveness and the disconnectedness of those things which took place at different times.”