sábado, 2 de novembro de 2019

Georges Florovisky - Criação e Redenção - IX. A Veneração dos Santos





Cristo conquistou o mundo. Essa vitória foi posteriormente revelada e realizada no fato de que Ele construiu Sua Igreja. Em Cristo e por Cristo a unidade da humanidade foi verdadeiramente realizada pela primeira vez, pois aqueles que creram em Seu Nome se tornaram o Corpo de Cristo. E ao se unirem a Cristo eles, da mesma forma, uniram-se uns aos outros na mais sincera concórdia de amor. Nessa grande unidade todas as distinções empíricas e todas as barreiras foram também afastadas: diferenças de nascimento na carne foram apagadas dentro da unidade do nascimento espiritual. A Igreja é um novo povo cheio de graça, que não coincide com nenhuma fronteira física nem com nenhuma nação terrestre – nem Gregos, nem Judeus, nem Citas, nem bárbaros – e essa nação não surge de uma relação de sangue, mas através da liberdade num Corpo. Todo o significado do Santo Batismo consiste no fato de que se trata de uma misteriosa aceitação para entrar na Igreja, na Cidade de Deus, no Reino da Graça. Através do Batismo o fiel se torna um membro da Igreja, ele entra para “a Igreja única de anjos e homens”, se torna “co-cidadão dos santos, para sempre com Deus”, de acordo com as misteriosas e solenes palavras de São Paulo – a pessoa chega ao “monte Sião, e à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celeste, a uma inumerável companhia de anjos, à assembleia geral e à Igreja do primogênito, que está inscrita nos céus, ela chega a Deus, o Juiz de todas as coisas, e aos espíritos dos homens que se tornaram perfeitos”. E em meio a essa grande multidão ela se une a Cristo. Pois “unnus Christianus, nullus Christianus[1]”.

A essência da Igreja reside em sua unidade. Pois a Igreja é a Morada do Espírito Único. Não se trata de uma unidade, ou catolicidade, externa ou empírica. O caráter Ecumênico da Igreja não é algo externo, quantitativo, espacial, nem mesmo qualquer qualidade geográfica, e de modo algum depende de uma dispersão universal de fiéis. A unidade visível da Igreja é meramente um resultado, mas nunca um fundamento para a catolicidade da Igreja. A “universalidade” geográfica é uma derivação e não uma necessidade essencial. A catolicidade da Igreja não foi menor nas primeiras eras da Cristandade, quando as comunidades dos fiéis eram espalhadas como pequenas ilhas, quase perdidas num imenso mundo de descrença e resistência. Tampouco ela se vê diminuída agora, quando a maior parte da humanidade não está com Cristo. “Embora uma cidade, ou mesmo uma província, possa abandonar a Igreja Ecumênica, diz o Metropolita Filareta, esta permanecerá sempre sendo um corpo completo e incorruptível”. Da mesma forma a Igreja continuará Ecumênica nos “últimos dias”, quando ela for reduzida ao “pequeno rebanho”, quando o mistério da “retirada” for revelado e quando a fé quase não for mais encontrada sobre a terra. Pois a Igreja é Católica de acordo com a sua natureza.

Se buscarmos por definições externas, talvez a natureza Ecumênica da Igreja possa ser melhor expressada pelo seu aspecto de “atemporalidade” (por perpassar todas as eras). Pois fiéis de todas as idades e de todas as gerações, que vivem, viveram ou viverão, pertencem a ela da mesma maneira. Todos formam um corpo, e por meio da mesma oração se veem unidos em um diante do Trono único do Senhor da Glória. A experiência dessa unidade através de todos os tempos é revelada e selada no ciclo total da adoração Divina. Na Igreja, o tempo é ultrapassado misteriosamente. O transbordamento da graça parece parar o tempo, deter a marcha dos minutos e das estações, ultrapassar inclusive a ordem geral da sucessão e da separação das coisas que parecem acontecer em tempos diferentes[2]. Numa unidade com Cristo através da graça, no dom da comunhão com o Espírito Único, homens de diferentes épocas e gerações se tornam nossos contemporâneos vivos. Cristo reina por igual na Igreja – dentre os que partiram e dentre os que estão vivos, pois Deus não é um Deus dos mortos, mas dos vivos.

A Igreja constitui um Reino que não é deste mundo, mas que é um Reino eterno, porque possui um Rei eterno: Cristo. A Igreja é uma espécie de imagem misteriosa da eternidade e uma antevisão da Ressurreição geral. Pois Cristo, a Cabeça do Corpo, é “vida e ressurreição” de Seus servos e irmãos.  O montante dos nascimentos ainda não se completou, e o rio da vida ainda corre. A Igreja continua nas suas andanças, mas mesmo agora o tempo não tem força nem poder sobre ela. É como se o momento do Apocalipse tivesse sido antecipado – quando já não houver tempo, e quando todo tempo houver cessado. A morte terrestre, a separação da alma em relação ao corpo, já não destrói o laço entre aqueles que têm fé, já não divide nem separa os que são co-membros em Cristo, já não exclui os falecidos dos limites e da composição da Igreja. Na oração pelos mortos e em outros ofícios fúnebres oramos a Cristo, “nosso Rei e Deus imortal” para que envie as almas dos falecidos para “onde vivem os santos”, “a morada dos justos”, “o seio de Abrahão”, onde todos os justos encontram o repouso. E, com particular expressividade, nessas preces fúnebres, lembramos e clamamos pelas hostes dos justos, e pela Mãe de Deus, pelos poderes celestiais, pelos santos mártires e por todos os santos, enquanto nossos concidadãos celestiais na Igreja. Com poderosa ênfase a sempre presente e católica consciência da Igreja se abre no ofício do sepultamento. O fiel que alcança uma genuína união com o próprio Cristo, em sua luta e dentro dos “mistérios” salvífico, não pode ser separado Dele, mesmo na morte. “Benditos os que morrem no Senhor, pois suas almas habitarão com o Abençoado”. E as preces pelos falecidos são a testemunha e a medida da consciência católica da Igreja.

Reverentemente, a Igreja procura quaisquer sinais da graça que testemunhem e confirmem o esforço terreno dos que partiram. Com uma visão interior a Igreja reconhece tanto os justos vivos como os falecidos, e o sentimento da Igreja é selado pelo testemunho do sacerdócio da Igreja. É nesse reconhecimento de seus irmãos e membros que “alcançaram a perfeição”, que consiste a essência mística daquilo que o Cristianismo Ocidental denominou como “a canonização dos santos”, e que é entendido pelo Oriente Ortodoxo como sua glorificação, magnificação e bênção. Primeiramente, é a glorificação do Deus – “Maravilhoso é o Senhor em Seus santos”. “Os santos de Deus, diz São João Damasceno, governaram e dominaram suas paixões e mantiveram intacta a semelhança e a imagem de Deus, segundo a qual foram criados; por sua livre vontade eles se uniram a Deus e receberam-No na morada de seus corações, e, tendo-O recebido em comunhão, através da graça, tornaram-se em suas naturezas tais como Ele”. Deus repousa neles – eles se tornaram “os tesouros e as puras moradas de Deus”. Nisso é que se realiza o mistério. Pois, como diziam os antigos Padres, o Filho de Deus se tornou homem, para que os homens pudessem ser deificados, para que os filhos dos homens pudessem se tornar filhos de Deus. E é no justo que chega a amar dessa maneira, que se realiza o crescimento e a “semelhança” em Cristo. “Durante suas vidas os santos já estavam cheios do Espírito Santo, continua São João Damasceno, e quando eles morreram a graça do Espírito Santo continuou presente em suas almas e seus corpos nos sepulcros, bem como em suas imagens e em seus santos ícones, não por causa de sua natureza, mas por causa da graça e de sua atividade (...) os santos estão vivos e com coragem e ousadia eles se postam diante do Senhor; eles não estão mortos (...) a morte dos santos se parece mais com um adormecimento do que com uma morte (...) pois eles “habitam nas mãos de Deus” – vale dizer, na vida e na luz – e “depois que Aquele que é a própria Vida e a fonte de toda vida foi contado entre os mortos, já não consideramos como mortos aqueles que partiram com a esperança da ressurreição e com fé Nele”. E não é apenas para obter ajuda e intercessão, que o Espírito Santo ensina a todos os fiéis a orar aos santos glorificados, mas também porque esse chamado, mediante a comunhão na prece, aprofunda a consciência da unidade católica da Igreja. Em nossa invocação dos santos demonstramos a medida de nosso amor Cristão, e expressa-se um sentimento vivo de unanimidade e do poder da unidade da Igreja; e, inversamente, as dúvidas e a incapacidade de sentir a intercessão da graça e a intervenção dos santos perante Deus em nosso favor mostra não apenas um enfraquecimento do amor e da fraternidade nos laços e relações da Igreja, como ainda um declínio na plenitude da fé no valor Ecumênico e no poder da Encarnação e da Ressurreição.

Uma das mais misteriosas antecipações da Igreja Ortodoxa é a contemplação do “Véu Protetor da Mãe de Deus”, de sua incansável intercessão pelo mundo, rodeada por todos os santos, diante do trono de Deus. “Hoje a Virgem se coloca na Igreja e, juntamente com as hostes invisíveis dos santos, ora a Deus por todos nós; os anjos e os altos sacerdotes adoram; os apóstolos e os profetas abraçam-se mutuamente – pois é por nós que a Mãe de Deus ora diante do Deus Eterno”. É assim que a Igreja recorda a visão que teve Santo André, o louco de Cristo. E aquilo que foi visivelmente revelado naquele momento permanece ainda e permanecerá por todas as eras. A “Contemplação do Véu Protetor” da Mãe de Deus é a visão da Igreja celestial, a visão da unidade indestrutível e duradoura entre as Igrejas celestial e terrestre. E é também uma antevisão de toda a existência de além-túmulo, dos justos e dos santos, numa prece incansável, numa incessante intercessão e mediação. Pois o amor é “a união de todas as perfeições”. E a veneração dos santos é uma espera no amor. O grande santo do Oriente, Isaac o Sírio, com ousadia incomparável, deu testemunho do abarcante poder que coroa o esforço do Cristão. De acordo com suas palavras, esse esforço por Deus adquire sua realização e plenitude, e alcança seu objetivo, na pureza – e a pureza é “um coração misericordioso para com todos os seres criados”. E o que é um coração misericordioso?, pergunta o santo, e ele próprio responde: “Um coração que queima por toda a criação, pelo homem, os pássaros, os animais, os demônios e todas as demais criaturas. E os olhos desse homem derramam lágrimas à sua recordação e à sua contemplação; por causa da enorme compaixão que esse coração possui, e por sua grande fidelidade, ele é inundado por uma terna piedade e não é capaz de suportar, nem ouvir ou ver a menor ofensa a eles, a menor tristeza sofrida por esses animais. E assim ele ora a todo momento pelos animais irracionais, pelos inimigos da Verdade e por aqueles que o prejudicam, para que eles sejam guardados e que recebam misericórdia; e ele ora também pelos répteis, por causa dessa grande compaixão que brota constantemente em seu coração à semelhança de Deus”. E se tão ardente é a oração dos santos sobre a terra, ainda mais ardentemente ela queima “lá”, no “regaço do Pai”, no seio do Amor Divino, junto a Deus, cujo Nome é Amor, cuja atenção para com o mundo é Amor. E na Igreja Triunfante jamais cessam as orações por toda a Igreja Católica. Como disse São Cipriano, “a prece Cristã é ara todo o mundo”; todos oram, não apenas por si mesmos, mas para todo o povo, pois todos formam um só, e assim oramos não com uma prece individual particular, mas com uma prece que é comum a todos, com uma só alma. Todo o ato de orar deve ser determinado por uma consciência ecumênica e um amor unânime, que inclui do mesmo modo aqueles cujos nomes são conhecidos apenas por Deus. Não é típico de um  Cristão sentir-se só e separado de todos, porque ele só pode ser salvo na unidade da Igreja. E o coroamento de todas as orações consiste nesse amor ardente que foi expresso na prece de Moisés: “Perdoa seus pecados; mas, se não o fizeres, eu Te peço, apaga-me desse livro que Tu próprio escreveste”. O centro da adoração da Igreja é a adoração Eucarística. Aqui toda a Igreja se encontra unida. Aqui se realiza o sacrifício e são oferecidas as orações “por todos e por tudo”, aqui toda a Igreja é lembrada, a militante e a triunfante. No misterioso ato da Liturgia “os poderes celestes celebram invisivelmente conosco”, eles estão presentes e celebram junto com o sacerdote celebrante. E aos grandes santos às vezes se concede pela graça de Deus contemplar de forma visível aquilo que está oculto aos olhos dos pecadores – a concelebração dos anjos. É sabido, por exemplo, que em certa ocasião foi concedido a São Serafim de Sarov ver a entrada triunfante do Senhor da Glória, rodeado pelas hostes de anjos. Essa entrada do Senhor da Glória é comumente representada na forma de ícone sobre a parede do santo Altar, e não apenas como símbolo, mas como uma indicação de que, invisivelmente, isso verdadeiramente acontece. E toda a decoração em ícones da Igreja fala da misteriosa unidade, da presença real dos santos entre nós. “Representamos a Cristo, o Rei e Senhor, sem separá-Lo de Seu exército, pois o exército do Senhor são os Seus santos”, disse São João Damasceno. Os santos ícones não são simplesmente imagens de recordação, “imagens do passado e dos justos”, eles não são meras figuras, mas são de fato objetos sagrados por intermédio dos quais, conforme explicaram os Padres, o Senhor está “presente” e, por meio da graça, ‘em comunhão” com eles. Existe uma ligação misteriosa entre a “imagem” e o “Protótipo”, entre a semelhança e aquele que está representado, coisa que é especialmente marcada nos ícones milagrosos que mostram o poder de Deus. O “culto de veneração” dos santos ícones expressa claramente a ideia que a Igreja concebe a respeito do passado: não se trata de uma recordação dirigida a algo que se passou, mas de uma visão pela graça de algo que está fixado na eternidade, uma visão de algo misterioso, uma presença pela graça daqueles que morreram e partiram, uma “alegre visão da unidade de toda a criação”.

Toda a criação tem sua Cabeça em Cristo. E por intermédio de Sua Encarnação, o Filho de Deus, de acordo com a maravilhosa expressão de Santo Irineu de Lyon, “inicia-se uma nova linhagem de seres humanos”. A Igreja constitui a posteridade espiritual do Segundo Adão, e, na sua história, Sua obra redentora se realiza e se completa, enquanto seu Amor brota nela e a inflama. A Igreja constitui a plenitude de Cristo e Seu Corpo. De acordo com as palavras de São João Crisóstomo, “somente então Aquele que a tudo preenche se torna a Cabeça, tendo formado um corpo perfeito”. Existe um movimento misterioso, que começa no formidável dia de Pentecostes, quando, na figura dos poucos primeiros escolhidos toda a criação tivesse recebido um batismo abrasador pelo Espírito, que apontou para o fim derradeiro, quando em toda a sua glória a Nova Jerusalém deverá aparecer e o Noivado do Cordeiro se iniciará. Ao longo das eras, os convidados e os escolhido vêm sendo buscados. O povo do Reino eterno está sendo reunido em assembleia. O Reino está sendo eleito e colocado além dos limites do tempo. A plenitude será realizada na ressurreição última – e então a completa plenitude, a glória e o significado total da catolicidade da Igreja serão revelados.


[1] “Um só Cristão, nenhum Cristão”.
[2] “...to overcome even the general order of consecutiveness and the disconnectedness of those things which took place at different times.”

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