Cristo conquistou o mundo. Essa vitória foi posteriormente revelada e
realizada no fato de que Ele construiu Sua Igreja. Em Cristo e por Cristo a
unidade da humanidade foi verdadeiramente realizada pela primeira vez, pois
aqueles que creram em Seu Nome se tornaram o Corpo de Cristo. E ao se unirem a
Cristo eles, da mesma forma, uniram-se uns aos outros na mais sincera concórdia
de amor. Nessa grande unidade todas as distinções empíricas e todas as
barreiras foram também afastadas: diferenças de nascimento na carne foram
apagadas dentro da unidade do nascimento espiritual. A Igreja é um novo povo
cheio de graça, que não coincide com nenhuma fronteira física nem com nenhuma
nação terrestre – nem Gregos, nem Judeus, nem Citas, nem bárbaros – e essa
nação não surge de uma relação de sangue, mas através da liberdade num Corpo.
Todo o significado do Santo Batismo consiste no fato de que se trata de uma
misteriosa aceitação para entrar na Igreja, na Cidade de Deus, no Reino da
Graça. Através do Batismo o fiel se torna um membro da Igreja, ele entra para
“a Igreja única de anjos e homens”, se torna “co-cidadão dos santos, para
sempre com Deus”, de acordo com as misteriosas e solenes palavras de São Paulo
– a pessoa chega ao “monte Sião, e à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celeste,
a uma inumerável companhia de anjos, à assembleia geral e à Igreja do
primogênito, que está inscrita nos céus, ela chega a Deus, o Juiz de todas as
coisas, e aos espíritos dos homens que se tornaram perfeitos”. E em meio a essa
grande multidão ela se une a Cristo. Pois “unnus Christianus, nullus
Christianus[1]”.
A essência da Igreja reside em sua unidade. Pois a Igreja é a Morada
do Espírito Único. Não se trata de uma unidade, ou catolicidade, externa ou
empírica. O caráter Ecumênico da Igreja não é algo externo, quantitativo,
espacial, nem mesmo qualquer qualidade geográfica, e de modo algum depende de
uma dispersão universal de fiéis. A unidade visível da Igreja é meramente um
resultado, mas nunca um fundamento para a catolicidade da Igreja. A
“universalidade” geográfica é uma derivação e não uma necessidade essencial. A
catolicidade da Igreja não foi menor nas primeiras eras da Cristandade, quando
as comunidades dos fiéis eram espalhadas como pequenas ilhas, quase perdidas
num imenso mundo de descrença e resistência. Tampouco ela se vê diminuída
agora, quando a maior parte da humanidade não está com Cristo. “Embora uma
cidade, ou mesmo uma província, possa abandonar a Igreja Ecumênica, diz o
Metropolita Filareta, esta permanecerá sempre sendo um corpo completo e
incorruptível”. Da mesma forma a Igreja continuará Ecumênica nos “últimos
dias”, quando ela for reduzida ao “pequeno rebanho”, quando o mistério da
“retirada” for revelado e quando a fé quase não for mais encontrada sobre a
terra. Pois a Igreja é Católica de acordo com a sua natureza.
Se buscarmos por definições externas, talvez a natureza Ecumênica da
Igreja possa ser melhor expressada pelo seu aspecto de “atemporalidade” (por
perpassar todas as eras). Pois fiéis de todas as idades e de todas as gerações,
que vivem, viveram ou viverão, pertencem a ela da mesma maneira. Todos formam
um corpo, e por meio da mesma oração se veem unidos em um diante do Trono único
do Senhor da Glória. A experiência dessa unidade através de todos os tempos é
revelada e selada no ciclo total da adoração Divina. Na Igreja, o tempo é ultrapassado misteriosamente.
O transbordamento da graça parece parar o tempo, deter a marcha dos minutos e
das estações, ultrapassar inclusive a ordem geral da sucessão e da separação das
coisas que parecem acontecer em tempos diferentes[2].
Numa unidade com Cristo através da graça, no dom da comunhão com o Espírito
Único, homens de diferentes épocas e gerações se tornam nossos contemporâneos
vivos. Cristo reina por igual na Igreja – dentre os que partiram e dentre os
que estão vivos, pois Deus não é um Deus dos mortos, mas dos vivos.
A Igreja constitui um Reino que não é deste mundo, mas que é um Reino
eterno, porque possui um Rei eterno: Cristo. A Igreja é uma espécie de imagem
misteriosa da eternidade e uma antevisão da Ressurreição geral. Pois Cristo, a
Cabeça do Corpo, é “vida e ressurreição”
de Seus servos e irmãos. O montante dos
nascimentos ainda não se completou, e o rio da vida ainda corre. A Igreja
continua nas suas andanças, mas mesmo agora o tempo não tem força nem poder
sobre ela. É como se o momento do Apocalipse tivesse sido antecipado – quando
já não houver tempo, e quando todo tempo houver cessado. A morte terrestre, a
separação da alma em relação ao corpo, já não destrói o laço entre aqueles que
têm fé, já não divide nem separa os que são co-membros em Cristo, já não exclui
os falecidos dos limites e da composição da Igreja. Na oração pelos mortos e em
outros ofícios fúnebres oramos a Cristo, “nosso Rei e Deus imortal” para que
envie as almas dos falecidos para “onde vivem os santos”, “a morada dos
justos”, “o seio de Abrahão”, onde todos os justos encontram o repouso. E, com
particular expressividade, nessas preces fúnebres, lembramos e clamamos pelas
hostes dos justos, e pela Mãe de Deus, pelos poderes celestiais, pelos santos
mártires e por todos os santos, enquanto nossos concidadãos celestiais na
Igreja. Com poderosa ênfase a sempre presente e católica consciência da Igreja
se abre no ofício do sepultamento. O fiel que alcança uma genuína união com o
próprio Cristo, em sua luta e dentro dos “mistérios” salvífico, não pode ser
separado Dele, mesmo na morte. “Benditos os que morrem no Senhor, pois suas
almas habitarão com o Abençoado”. E as preces pelos falecidos são a testemunha
e a medida da consciência católica da
Igreja.
Reverentemente, a Igreja procura quaisquer sinais da graça que
testemunhem e confirmem o esforço terreno dos que partiram. Com uma visão
interior a Igreja reconhece tanto os justos vivos como os falecidos, e o
sentimento da Igreja é selado pelo testemunho do sacerdócio da Igreja. É nesse
reconhecimento de seus irmãos e membros que “alcançaram a perfeição”, que
consiste a essência mística daquilo que o Cristianismo Ocidental denominou como
“a canonização dos santos”, e que é entendido pelo Oriente Ortodoxo como sua
glorificação, magnificação e bênção. Primeiramente, é a glorificação do Deus –
“Maravilhoso é o Senhor em Seus santos”. “Os santos de Deus, diz São João
Damasceno, governaram e dominaram suas paixões e mantiveram intacta a semelhança
e a imagem de Deus, segundo a qual foram criados; por sua livre vontade eles se
uniram a Deus e receberam-No na morada de seus corações, e, tendo-O recebido em
comunhão, através da graça, tornaram-se em suas naturezas tais como Ele”. Deus
repousa neles – eles se tornaram “os tesouros e as puras moradas de Deus”.
Nisso é que se realiza o mistério. Pois, como diziam os antigos Padres, o Filho
de Deus se tornou homem, para que os homens pudessem ser deificados, para que
os filhos dos homens pudessem se tornar filhos de Deus. E é no justo que chega
a amar dessa maneira, que se realiza o crescimento e a “semelhança” em Cristo.
“Durante suas vidas os santos já estavam cheios do Espírito Santo, continua São
João Damasceno, e quando eles morreram a graça do Espírito Santo continuou
presente em suas almas e seus corpos nos sepulcros, bem como em suas imagens e
em seus santos ícones, não por causa de sua natureza, mas por causa da graça e
de sua atividade (...) os santos estão vivos e com coragem e ousadia eles se postam
diante do Senhor; eles não estão mortos (...) a morte dos santos se parece mais
com um adormecimento do que com uma morte (...) pois eles “habitam nas mãos de
Deus” – vale dizer, na vida e na luz – e “depois que Aquele que é a própria
Vida e a fonte de toda vida foi contado entre os mortos, já não consideramos
como mortos aqueles que partiram com a esperança da ressurreição e com fé
Nele”. E não é apenas para obter ajuda e intercessão, que o Espírito Santo
ensina a todos os fiéis a orar aos santos glorificados, mas também porque esse
chamado, mediante a comunhão na prece, aprofunda a consciência da unidade
católica da Igreja. Em nossa invocação dos santos demonstramos a medida de
nosso amor Cristão, e expressa-se um sentimento vivo de unanimidade e do poder da
unidade da Igreja; e, inversamente, as dúvidas e a incapacidade de sentir a
intercessão da graça e a intervenção dos santos perante Deus em nosso favor
mostra não apenas um enfraquecimento do amor e da fraternidade nos laços e
relações da Igreja, como ainda um declínio na plenitude da fé no valor
Ecumênico e no poder da Encarnação e da Ressurreição.
Uma das mais misteriosas antecipações da Igreja
Ortodoxa é a contemplação do “Véu Protetor da Mãe de Deus”, de sua incansável
intercessão pelo mundo, rodeada por todos os santos, diante do trono de Deus.
“Hoje a Virgem se coloca na Igreja e, juntamente com as hostes invisíveis dos
santos, ora a Deus por todos nós; os anjos e os altos sacerdotes adoram; os
apóstolos e os profetas abraçam-se mutuamente – pois é por nós que a Mãe de
Deus ora diante do Deus Eterno”. É assim que a Igreja recorda a visão que teve
Santo André, o louco de Cristo. E aquilo que foi visivelmente revelado naquele
momento permanece ainda e permanecerá por todas as eras. A “Contemplação do Véu
Protetor” da Mãe de Deus é a visão da Igreja celestial, a visão da unidade
indestrutível e duradoura entre as Igrejas celestial e terrestre. E é também
uma antevisão de toda a existência de além-túmulo, dos justos e dos santos,
numa prece incansável, numa incessante intercessão e mediação. Pois o amor é “a
união de todas as perfeições”. E a veneração dos santos é uma espera no amor. O
grande santo do Oriente, Isaac o Sírio, com ousadia incomparável, deu
testemunho do abarcante poder que coroa o esforço do Cristão. De acordo com
suas palavras, esse esforço por Deus adquire sua realização e plenitude, e
alcança seu objetivo, na pureza – e a pureza é “um coração misericordioso para
com todos os seres criados”. E o que é um coração misericordioso?, pergunta o
santo, e ele próprio responde: “Um coração que queima por toda a criação, pelo
homem, os pássaros, os animais, os demônios e todas as demais criaturas. E os
olhos desse homem derramam lágrimas à sua recordação e à sua contemplação; por
causa da enorme compaixão que esse coração possui, e por sua grande fidelidade,
ele é inundado por uma terna piedade e não é capaz de suportar, nem ouvir ou
ver a menor ofensa a eles, a menor tristeza sofrida por esses animais. E assim
ele ora a todo momento pelos animais irracionais, pelos inimigos da Verdade e
por aqueles que o prejudicam, para que eles sejam guardados e que recebam
misericórdia; e ele ora também pelos répteis, por causa dessa grande compaixão
que brota constantemente em seu coração à semelhança de Deus”. E se tão ardente
é a oração dos santos sobre a terra, ainda mais ardentemente ela queima “lá”,
no “regaço do Pai”, no seio do Amor Divino, junto a Deus, cujo Nome é Amor,
cuja atenção para com o mundo é Amor. E na Igreja Triunfante jamais cessam as orações
por toda a Igreja Católica. Como disse São Cipriano, “a prece Cristã é ara todo
o mundo”; todos oram, não apenas por si mesmos, mas para todo o povo, pois
todos formam um só, e assim oramos não com uma prece individual particular, mas
com uma prece que é comum a todos, com uma só alma. Todo o ato de orar deve ser
determinado por uma consciência ecumênica e um amor unânime, que inclui do
mesmo modo aqueles cujos nomes são conhecidos apenas por Deus. Não é típico de
um Cristão sentir-se só e separado de
todos, porque ele só pode ser salvo na unidade da Igreja. E o coroamento de
todas as orações consiste nesse amor ardente que foi expresso na prece de
Moisés: “Perdoa seus pecados; mas, se não o fizeres, eu Te peço, apaga-me desse
livro que Tu próprio escreveste”. O centro da adoração da Igreja é a adoração
Eucarística. Aqui toda a Igreja se encontra unida. Aqui se realiza o sacrifício
e são oferecidas as orações “por todos e por tudo”, aqui toda a Igreja é
lembrada, a militante e a triunfante. No misterioso ato da Liturgia “os poderes
celestes celebram invisivelmente conosco”, eles estão presentes e celebram
junto com o sacerdote celebrante. E aos grandes santos às vezes se concede pela
graça de Deus contemplar de forma visível aquilo que está oculto aos olhos dos
pecadores – a concelebração dos anjos. É sabido, por exemplo, que em certa
ocasião foi concedido a São Serafim de Sarov ver a entrada triunfante do Senhor
da Glória, rodeado pelas hostes de anjos. Essa entrada do Senhor da Glória é
comumente representada na forma de ícone sobre a parede do santo Altar, e não
apenas como símbolo, mas como uma indicação de que, invisivelmente, isso
verdadeiramente acontece. E toda a decoração em ícones da Igreja fala da
misteriosa unidade, da presença real dos santos entre nós. “Representamos a
Cristo, o Rei e Senhor, sem separá-Lo de Seu exército, pois o exército do
Senhor são os Seus santos”, disse São João Damasceno. Os santos ícones não são
simplesmente imagens de recordação, “imagens do passado e dos justos”, eles não
são meras figuras, mas são de fato objetos sagrados por intermédio dos quais,
conforme explicaram os Padres, o Senhor está “presente” e, por meio da graça,
‘em comunhão” com eles. Existe uma ligação misteriosa entre a “imagem” e o
“Protótipo”, entre a semelhança e aquele que está representado, coisa que é
especialmente marcada nos ícones milagrosos que mostram o poder de Deus. O
“culto de veneração” dos santos ícones expressa claramente a ideia que a Igreja
concebe a respeito do passado: não se trata de uma recordação dirigida a algo
que se passou, mas de uma visão pela graça de algo que está fixado na
eternidade, uma visão de algo misterioso, uma presença pela graça daqueles que
morreram e partiram, uma “alegre visão da unidade de toda a criação”.
Toda a criação tem sua Cabeça em Cristo. E por
intermédio de Sua Encarnação, o Filho de Deus, de acordo com a maravilhosa
expressão de Santo Irineu de Lyon, “inicia-se uma nova linhagem de seres
humanos”. A Igreja constitui a posteridade espiritual do Segundo Adão, e, na
sua história, Sua obra redentora se realiza e se completa, enquanto seu Amor brota
nela e a inflama. A Igreja constitui a plenitude de Cristo e Seu Corpo. De acordo
com as palavras de São João Crisóstomo, “somente então Aquele que a tudo
preenche se torna a Cabeça, tendo formado um corpo perfeito”. Existe um
movimento misterioso, que começa no formidável dia de Pentecostes, quando, na figura
dos poucos primeiros escolhidos toda a criação tivesse recebido um batismo
abrasador pelo Espírito, que apontou para o fim derradeiro, quando em toda a
sua glória a Nova Jerusalém deverá aparecer e o Noivado do Cordeiro se iniciará.
Ao longo das eras, os convidados e os escolhido vêm sendo buscados. O povo do
Reino eterno está sendo reunido em assembleia. O Reino está sendo eleito e
colocado além dos limites do tempo. A plenitude será realizada na ressurreição última
– e então a completa plenitude, a glória e o significado total da catolicidade
da Igreja serão revelados.
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