segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Filocalia - Tomo II Volume 2 - Simeão o Novo Teólogo: Capítulos Práticos e Teológicos

SIMEÃO O NOVO TEÓLOGO



CAPÍTULOS PRÁTICOS E TEOLÓGICOS
Simeão o Novo Teólogo


Nosso santo Padre Simeão, pela graça da Teologia que lhe foi dada por Deus, foi chamado de Novo Teólogo. Ele viveu sob o reinado de Constantino Porfirogeneta, ao redor do ano mil. Ele foi discípulo de Simeão dito o Piedoso. Levado por ele aos combates da ascese, ele alcançou tamanha altura de virtude e de impassibilidade, tornando-se assim digno de uma tal graça divina, que é quase impossível transmitir aquilo que nos confiou por intermédio da Escritura e que sua biografia relata amplamente, como nenhuma outra desdobrada sobre inúmeras frentes. Pois ele recebeu, por assim dizer, todo o poder do Consolador. Tornado vaso de seu esplendor, ele foi uma fonte de teologia, um lugar de iluminação divina, uma moradia deliciosa dos mistérios indizíveis onde habitam, numa palavra, a sabedoria espiritual e o conhecimento de Deus. Iluminado por este conhecimento, ele compôs escritos de todos os tipos, fortemente confiáveis, em verso e prosa, dentre os quais escolhemos e inserimos neste livro os textos a seguir e alguns que foram traduzidos em linguagem mais simples no final desta obra, que virão em auxílio de muitos. Pois eles poderão fazer um bem imenso aos leitores.


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Um milênio depois de são João o Teólogo, com a secreta e espantosa convicção do testemunho visual e místico, são Simeão o Novo Teólogo afirma que, no coração crucificado do criado, Deus é um corpo de luz inacessível e perceptível, e que este corpo de Cristo, por pura graça, é também o nosso. Mensagem crucial, que, depois da “implosão” hesiquiasta dos séculos XIII e XIV, secretamente irrigou até os nossos dias o coração do abismo histórico no qual afundou profeticamente a civilização bizantina. Mas em primeiro lugar, mensagem de toda uma vida dedicada ao amor da beleza última.

Nascido em 949 na Ásia Menor, Simeão foi enviado com a idade de onze anos a Constantinopla, para fazer aí seus estudos e servir no ambiente da Corte imperial. Durante toda a sua juventude e até a idade de vinte e sete anos ele foi um homem “do mundo”. Mas ele havia conhecido no mosteiro de Stoudios, em Constantinopla, um velho monge, Simeão o Piedoso, que se tornou seu pai espiritual, e ele acabou por viver invisivelmente ligado a este monge e fecundado por seu exemplo. Foi durante este período, e em plena Constantinopla, que ele teve a dupla experiência – fundamental – das beatitudes da teofania luminosa e das angústias da solidão moral em Deus. Tornando-se monge, primeiro no mosteiro de Stoudios onde encontrara Simeão o Piedoso, depois no mosteiro de São Mamas, do qual foi higoumeno de 980 a 1009 e enfim no mosteiro de Santa Marina em Palukiton, às margens do Bósforo, onde permaneceu até sua morte em 1022, ele viveu sempre o amor louco por Deus e pregou suas consequências evangélicas. Pois este penitente, este asceta, este místico, este poeta, era também um apóstolo, um construtor, um reformador dedicado a transmitir aos demais e a permitir aos outros, tanto dentro dos limites da vida monástica como além destes limites, alcançar as graças que ele mesmo recebera, mas que não queria nem poderia impor. Seu apostolado, ou sua catequese, não fazia senão preparar o caminho, dar sentido à ascese, abrir para a obediência, deplorar o pecado, pedir a libertação do mal. Ao final, só importava o selo do Espírito Santo: o amor à beleza, a imagem de Deus encarnada no pai espiritual. A lição é precisa e imensa: estamos no coração da mensagem filocálica

A Filocalia grega nos fornece sob o nome de Simeão o Novo Teólogo uma coletânea composta, bastante limitada mas significativa: 153 capítulos (número “triangular” que lembra os 153 peixes da pesca milagrosa após a ressurreição de Cristo).

Recentemente foram realizadas pesquisas sobre estes “capítulos”. Em especial, o hieromonge russo Hilarion (Alfeev), ao preparar uma tese de doutorado em Oxford sobre a obra espiritual de Simeão o Piedoso, tende a demonstrar que os capítulos 121 a 152 (e não apenas os capítulos 127 a 152 como pensava Hausherr) pertencem a este e entram no escopo de seu Discurso Ascético; dele seriam também os capítulos 119 e 120, que não fazem parte do Discurso.

Quanto ao capítulo 153, ele foi tirado da Vida de são Simeão o Novo Teólogo, composta por seu discípulo Nicetas Stethatos. Os últimos capítulos são como um manual de moral prática para uso por monges cenobitas, e testemunham desta sabedoria que permite viver com toda humildade e com toda paz na fronteira entre a solidão e a vida comunitária. Assim, a mensagem de Simeão o Novo Teólogo – esta abertura profética, escancarada sobre o advento do Outro – pode se enraizar e se provar na estrita e justa necessidade das relações humanas.

A coletânea termina no capítulo 153 com a lembrança e o apelo desta abertura. Mas desde antes os 118 capítulos “práticos e teológicos” de próprio punho de Simeão, já deram o tom: somente um amor louco pode ao mesmo tempo separar e unir na vida eterna o século presente e o século futuro. Quem ama o outro a ponto de renunciar a si mesmo, à sua própria vontade, à sua própria alma, morre para o mundo inteiro: diante de si, ao seu redor e em si próprio ele não tem senão o Deus vivo. Tal amor aqui se assemelha à luz que criou o mundo, e ele conduz para além do mundo. Pois daí em diante, o olho do intelecto, diz Simeão, não vê em tudo senão a luz. E o próprio homem, conforme ele afirma no fio tenso dos anacoretas, se torna como luz. Mas paradoxalmente – e este paradoxo é sua profecia e sua modernidade – Simeão retoma o testemunho mais estreito dos anacoretas para fazê-lo seu no coração da vida comunitária, onde as falsificações e as alterações do amor perfuram os olhos, se podemos nos exprimir assim. Daí vem, nestes capítulos, a denúncia constante de toda vaidade e de toda mentira, e esta exigência total da mais estrita ascese. Mas o Reino de Deus é como um casamento prometido. A ascese não tem aqui outro sentido que o de ser uma garantia de amor: ela significa a fidelidade absoluta do homem. Ela é inteiramente absorvida pelo amor louco por Deus, que é em si sua própria via e sua própria porta. Só uma coisa é necessária, e esta é a mensagem de Simeão: manter a chama.


DE NOSSO SANTO PADRE SIMEÃO O NOVO TEÓLOGO



CAPÍTULOS PRÁTICOS E TEOLÓGICOS




1. A fé consiste em morrer por Cristo e por seus mandamentos; é acreditar que esta morte é uma fonte de vida; é considerar a pobreza como uma riqueza, a baixeza e a humilhação como uma verdadeira glória e uma honraria real; é acreditar que se tem tudo quando não se possui nada[1]; e acima de tudo, é possuir a insondável riqueza do conhecimento de Cristo[2] e ver todas as coisas visíveis como fumaça ou lama.

2. A fé em Cristo consiste não apenas em desprezar os prazeres desta vida, mas, na medida em que o queira Deus e até que ele nos visite, também aguentar e suportar pacientemente toda provação que nos aconteça e nos mergulha na tristeza, na aflição e na infelicidade. Pois foi dito: “Eu tive paciência, esperei pelo Senhor e ele se voltou para mim[3]”.

3. Aqueles que de alguma forma preferem seus pais aos mandamentos de Deus não têm fé em Cristo[4]. Em todo caso, ele serão julgados por sua própria consciência, caso tenham uma consciência viva de sua infidelidade. Pois esta é a marca dos fiéis: jamais transgredir em nada os mandamentos de nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo[5].

4. A fé em Cristo, verdadeiro Deus, engendra o desejo pelo bem e o temor do castigo. O desejo pelo melhor e o temor do castigo fazem com que sejam observados os mandamentos, e esta guarda ensina aos homens sua própria fraqueza. O conhecimento de nossa fraqueza engendra a lembrança da morte. E quem chega a viver com esta lembrança se esforçará por tentar saber o que lhe acontecerá quando deixar e partir desta vida. Ora, quem se dedica sem cessar a conhecer as coisas do século futuro deve antes de tudo se liberar das coisas do século presente. Pois quem permanece passionalmente ligado a estas não conseguirá obter o perfeito conhecimento daquelas. Mas se a economia de Deus lhe permite experimentar as primeiras e se ele não abandona rapidamente aquilo pelo quê e a quê ele se encontra ligado passionalmente, se ele não se aplica por inteiro a este conhecimento, aceitando não pensar em nada senão nele, mesmo a ciência que ele imagina ter lhe será tirada[6].

5. A renúncia ao mundo e a anacorese total, que objetivam nos tornar estrangeiros a todas as coisas desta vida, aos costumes, às opiniões e às pessoas, e que nos levam a negar o corpo e a vontade, se tornam em pouco tempo, para quem fez esta renúncia com ardor, a fonte de um grande benefício.

6. Você que foge do mundo, acima de tudo guarde-se de dar à sua alma a consolação de fazer nele sua morada, ainda que todos os seus pais, parentes e amigos tentem constrangê-lo ao contrário. Isto é o que o demônio lhes sugere para extinguir o fervor do seu coração. Pois mesmo que eles não entravem completamente a resolução, em todo caso eles a tornarão mais débil e fraca.

7. Quando, diante de todos os encantos desta vida você se mantém firma e não se deixa prender, então os demônios, sugerindo aos seus próximos uma suposta compaixão, os fazem chorar e se lamentar diante dos seus olhos, por sua causa. Você saberá o quanto isto é verdade quando, perseverando sem se dobrar a estes ataques, verá de repente os outros se inflamarem com furor e ódio contra você, afastando-se de você como se fosse um inimigo e se recusando a voltar a vê-lo.

8. Quando você vir seus pais, irmãos e amigos aflitos por sua causa, ria-se do demônio que, com suas mentiras, suscita estas coisas contra você. Afaste-se com temor e pressa e ore com fervor a Deus, a fim de alcançar o mais breve possível o porto de um bom pai espiritual, que conceda o repouso à sua alma fatigada e exausta[7]. Pois o oceano desta vida está repleto de causas de perigo e de extrema perdição.

9. Quem quer odiar o mundo deve amar a Deus do fundo da alma e se lembrar sempre dele. Nada como este amor e esta lembrança para nos fazer abandonar todas as coisas com alegria e nos desviarmos delas como se fossem lixo[8].

10. Não vá, por boas ou más intenções [ou: por boas razões que seriam na verdade maus pretextos] se ligar ao mundo, por pouco que seja. Quando for chamado, obedeça prontamente. Nada agrada mais a Deus do que esta prontidão. Pois mais vale uma obediência rápida feita com pobreza, do que uma lentidão feita na abundância de bens.

11. Se o mundo passa e passa tudo o que existe no mundo[9], e se Deus [único eterno] é incorruptível e imortal, alegrem-se, vocês que por ele deixaram as coisas corruptíveis. Não apenas as riquezas e os bens são corruptíveis, mas ainda todo prazer e fruição ligados ao pecado são também corrupção. Somente os mandamentos de Deus são luz e vida, e são assim chamados por todos.

12. Se você recebeu a chama, irmão, se por causa disto correu para um mosteiro ou para junto de um pai espiritual, ainda que este ou os irmãos que lá estarão se exercitando com você lhe aconselharem a tomar banho, a se alimentar bem ou tomar outros cuidados corporais para seu alívio, não aceite, mas prepare-se sempre para o jejum, a vida dura, a temperança mais extrema. Entretanto, obedeça se seu pai no Senhor lhe ordenar tomar algo para seu conforto, obedeça-o mesmo não fazendo nisto sua própria vontade. Na falta disto, suporte com alegria aquilo que você mesmo se determinou fazer pelo bem de sua alma. Observando esta regra, você será sempre como um homem temperante, que jejua e que renunciou em tudo à própria vontade. Mais ainda: você manterá inextinguível a chama que existe em seu coração e que o obriga a desprezar todas as coisas.

13. Quando os demônios ativaram todos os recursos que estavam em seu poder e não conseguiram reverter o objetivo assinalado por Deus para nós, nem nos impedir de alcançá-lo, eles penetram naqueles que mascaram a piedade e por meio deles se esforçam por criar obstáculos aos ascetas. Primeiro, como se fossem movidos pelo amor ou pela compaixão, eles os exortam a dar repouso a seus corpos para que estes não se enfraqueçam e para que, segundo eles, o asceta não caia na acídia. Depois convidam para conversas inúteis que tomam e desperdiçam todo o dia. Se alguém vendo os monges ferventes, tenta imitá-los, eles se afastam e riem de sua perdição. Se um não se submeter aos seus discursos, mas permanecer estranho a todos, recolhido e reservado, eles farão tudo, usarão de todos os recursos até conseguirem expulsá-lo do mosteiro. Pois a vanglória desprezada não suporta ver diante de si a humildade honrada.

14. O vaidoso engasga ao ver o humilde verter lágrimas e delas receber um duplo benefício: pelas lágrimas, o humilde atrai sobre si a piedade de Deus e, mesmo sem querer, leva os homens a louvá-lo.

15. Uma vez que você se entregou inteiramente ao seu pai espiritual, saiba que você se tornou um estranho a tudo o que você possuía exteriormente, vale dizer, aos afazeres e às riquezas dos homens. Sem seu pai espiritual não tente fazer nada, não se ocupe de nada entre os homens. Não peça a ele que lhe deixe seja lá o que for, pequeno ou grande, se ele espontaneamente não lhe ordenar tomá-la, ou se ele próprio não lha entregar de suas mãos.

16. Sem seu pai espiritual, não faça esmolas dos bens que você trouxe consigo. Também não aceite que sem ele alguém receba destes bens por um intermediário. É melhor ser pobre e estrangeiro e ter esta reputação do que distribuir riquezas e dar aos pobres, quando se pretende entrar para um mosteiro. É próprio de uma fé pura remeter tudo à vontade do pai espiritual, como se fossem as próprias mãos de Deus.

17. Não peça para beber água, ainda que a sede queime, enquanto seu pai espiritual não o convidar. Reprima-se e violente-se em todas as coisas, dissuadindo seu desejo dizendo-lhe: “Se Deus quiser!”. Se você for digno de beber, Deus o revelará a seu pai de um modo ou de outro, e este lhe dirá: “Beba!”. Então você beberá com a consciência pura, mesmo que a hora de beber chegue extemporaneamente.

18. Alguém que adquiriu a experiência e o benefício espiritual e possuía uma fé a toda prova disse, tomando a Deus por testemunho da verdade: “Eu pus em mim o pensamento de jamais pedir a meu pai para comer ou beber, ou de tomar qualquer coisa na sua ausência, enquanto Deus não o inspirasse a me ordenar estas coisas”. E ele acrescentava: “Agindo assim, jamais faltei ao meu objetivo”.

19. Quem adquiriu uma clara confiança em seu pai em Deus, quando este quer alguma coisa é como se o próprio Cristo a quisesse. Quando está com ele ou o segue, crê firmemente estar com Cristo e seguir a Cristo. Este homem jamais desejará conversar com outra pessoa, e não trocará nada por sua lembrança e seu amor. Pois o que pode existir de maior ou de mais vantajoso, nesta vida como na vida futura, do que estar com Cristo? O que pode haver de mais belo e mais doce do que a sua visão? E se somos dignos de estarmos e conversarmos com ele, neste entretenimento estaremos a caminho da vida eterna.

20. Aquele que por sua virtude ama aos que o ultrajam, ou o detestam, que o prejudicam ou o despojam, e que ora por eles[10], logo faz grande progressos. Pois esta atitude, assumida com um coração consciente mergulha o pensamento no abismo da humildade e na fonte das lágrimas, onde ele banha as três partes da alma. Ele eleva o intelecto até o céu da impassibilidade e o torna capaz de contemplar. Pela doçura que este homem experimenta lá em cima, ele o faz considerar como lixo todas as coisas da vida presente[11]. E já não será com o mesmo prazer, nem com a mesma frequência, que ele se aproximará de comidas e bebidas.

21. Não devemos simplesmente nos abster de más ações. O asceta deve também de dedicar a se liberar dos pensamentos e das reflexões contrárias, e sempre se ligar a considerações espirituais que ajudam as almas, a fim de permanecer sem nenhuma preocupação a respeito das coisas desta vida.

22. Do mesmo modo como alguém que desnudou todo o corpo mas mantém os olhos cobertos por um véu que não pode erguer ou retirar não poderá ver a luz apenas por estar nu no resto do corpo, também aquele que desprezou todas as coisas e todas as riquezas, e que se despojou até das paixões, se não livrar os olhos da alma das lembranças desta vida e dos maus pensamentos, jamais conseguirá ver a luz inteligível, Jesus Cristo, nosso Senhor e Deus.

23. Os pensamentos terrestres e os cuidados com esta vida são para a reflexão e o intelecto como um véu colocado sobre os olhos, no caso, os olhos da alma. Enquanto permanecer aí, não seremos capazes de ver. Somente quando a lembrança da morte o retirar é que veremos claramente a verdadeira luz, que ilumina todos os homens e que provém do mundo[12] do alto.

24. O cego de nascença não poderá conceber nem acreditar naquilo que aqui está escrito. Mas quem algum dia viu testemunhará que o que foi dito é verdadeiro.

25. Quem enxerga com os olhos sensíveis sabe quando é noite e quando é dia. Mas o cego ignora uma e outra coisa. Da mesma forma, quem recebeu a visão espiritual, que vê através dos olhos do intelecto, que contempla a verdadeira luz, se por negligência retornar à antiga cegueira e ficar privado desta luz, terá consciência desta privação e saberá de onde ela lhe vem. Mas quem é cego de nascença não sabe nada dessas coisas, nem efetivamente, nem por experiência, salvo se tiver ouvido falar sobre aquilo que nunca viu e, com isto, aprender. Ele contará aos outros o que escutou, mas nem ele, nem os que o escutarem, saberão de que coisas estão falando.

26. É impossível encher a carne de alimentos até a saciedade e ao mesmo tempo desfrutar da divina doçura do intelecto. Pois quanto mais cuidarmos do ventre, mais privaremos o corpo de tal doçura. Mas na medida em que tratarmos duramente o corpo[13] nos encheremos do alimento e da consolação espirituais.

27. Deixemos tudo o que existe sobre a terra. Não apenas a riqueza, o ouro e outros bens desta vida, mas expulsemos de nossas almas o próprio desejo por estas coisas. Detestemos não apenas os prazeres do corpo, mas também seus movimentos irracionais. Esforcemo-nos por mortificar o corpo com penas, pois é por meio dele que agem e acontecem as coisas relativas à concupiscência. Enquanto o corpo estiver vivo, nossa alma estará morta: dificilmente ela seguirá os mandamentos de Deus, se é que os seguirá seja do modo que for.

28. Assim como a chama do fogo se eleva sempre para cima, e tanto mais na medida em que você colocar mais lenha para queimar, também o coração vaidoso será incapaz de se tornar humilde. Pois quanto mais você lhe disser coisas para ajudá-lo, mais ele se elevará. Se repreendido ou chamado à atenção, ele se oporá com violência; mas louvado ou encorajado, ele se inchará desmesuradamente.

29. O homem habituado à contradição é para si mesmo uma espada de dois gumes. Sem o saber, ele destrói sua alma e a torna estranha à vida eterna.

30. O homem que contradiz é semelhante a alguém que se atira voluntariamente aos inimigos opostos ao rei. Pois a contradição é uma armadilha, que tem como isca a justificação por meio da qual, iludidos, nos atiramos ao anzol do pecado. A pobre alma fica presa pela língua e pela garganta aos espíritos do mal. Ela é erguida até as alturas do orgulho ou mergulhada no caos do abismo do pecado, e se vê condenada junto com aqueles que foram precipitados do céu.

31. Quem foi desprezado ou ultrajado e que experimenta em seu coração um duro sofrimento, saiba por este indício que ainda traz em seu seio a antiga serpente. Se ele permanecer em silêncio ou se responder com humildade, ele enfraquecerá e esgotará a serpente. Mas se replicar com azedume ou se falar com arrogância, dará à serpente força para despejar seu veneno no coração e ferir cruelmente o que existe dentro dele. A partir daí, fortalecendo-se dia após dia, a serpente devoradora o impedirá de se reerguer para o bem e engolirá o vigor de sua pobre alma. Deste momento em diante, o homem viverá para o pecado, e estará totalmente morto para a justiça[14].

32. Se você quiser renunciar ao mundo e aprender a viver segundo o Evangelho, não se confie a um mestre sem experiência ou passional. Senão, em lugar da vida evangélica, você será instruído na vida diabólica. Pois os ensinamentos dos bonés mestres são bons. E os dos maus, são maus. E quando as sementes são más, maus serão também os frutos.

33. Em orações e lágrimas suplique a Deus para que lhe envie um guia impassível e santo. Mas examine você mesmo as divinas Escrituras[15] e em especial os escritos práticos dos santos Padres, a fim de que, comparando-o com o que lhe ensina e com o que faz seu mestre e seu superior, você possa ver e aprender suas lições como em um espelho, recolher e reter em seus pensamentos o que concorda com as divinas Escrituras, ao mesmo tempo em que distingue e rejeita o que é bastardo e alterado, para nunca se perder[16]. Saiba que hoje em dia existem muitos enganadores e falsos mestres[17].

34. Qualquer um que, se enxergar, se arvora em conduzir os outros, é um enganador. Ele conduz ao abismo da perdição os que o seguem, conforme as palavras do Senhor: “Se um cego conduz a outro, ambos cairão na vala[18]”.

35. Aquele que é cego diante do Um estará também inteiramente cego diante de tudo. Mas quem vê o Um está em estado de contemplar o todo. Ele se abstém de contemplar o todo, mas entra na contemplação do todo. Mas ele está fora daquilo que contempla. Assim sendo, quando ele está no Um, ele vê o todo, e quando ele está no todo, ele não vê nada dele. Quem olha o Um vê a si próprio e vê tudo e todos através do Um. Oculto no Um, ele já não vê nada de tudo o que está no mundo.

36. Não passa de sangue e carne, aquele que, no homem dotado de razão e inteligência, não se revestiu, sentindo-a e conhecendo-a, da imagem do celeste, da imagem de nosso Senhor Jesus Cristo, homem e Deus. Será impossível para ele receber pelas palavras a sensação da glória espiritual, tanto quanto não podem conhecer a luz do sol pelas palavras aqueles que são cegos de nascença.

37. Quem ouve, quem vê, quem sente assim compreende o que eu digo. Pois este já traz em si a imagem do celeste[19] e alcançou o estado de homem perfeito na plenitude de Cristo[20]. A partir daí ele pé capaz de conduzir com sucesso o rebanho de Cristo pelo caminho dos mandamentos de Deus[21]. Mas é evidente que quem não compreendeu isto e não chegou a este ponto tampouco terá clareza e sanidade nos sentidos de sua alma[22]. Para este, será sempre melhor ser conduzido do que conduzir, expondo-se ao perigo.

38. Quem vê a seu mestre e guia como o próprio Deus não pode contradizê-lo. Mas se ele pensa e diz que pode fazer ambas as coisas, saiba que está perdido. Pois ele ignora como se comportam diante de Deus os homens de Deus.

39. Quem acredita que sua vida e sua morte estão nas mãos do seu pastor, não pode jamais contradizer. É a ignorância destas coisas que engendra a contradição, a qual provoca a morte inteligível, a morte eterna.

40. Antes de receber a sentença, o culpado tem a possibilidade, para sua defesa, de dizer ao tribunal aquilo que fez. Mas depois da exposição dos fatos e da sentença do juiz ele já não poderá replicar ao carrasco, seja longamente, seja com brevidade.

41. Antes de se apresentar diante deste tribunal e de revelar o fundo de seu coração, talvez ainda seja permitido ao monge contradizer, seja por ignorância, seja por imaginar que é capaz de ocultar aquilo que traz em si. Mas depois da revelação de seus pensamentos e de sua confissão sincera, já não mais lhe será permitido, até a morte, contradizer aquele que, diante de Deus, é seu juiz e seu mestre. Pois desde que ele entrou neste tribunal e pôs a nu os segredos de seu coração[23], o monge é imediatamente persuadido de que é digno de mil mortes, por pouco conhecimento que tenha. Mas ele crê que por sua obediência e sua humildade ele saberá como viver este mistério, e se libertará de toda pena e de todo castigo.

42. Instruído, chamado às falas ou repreendido, aquele que reflete sobre as coisas e as guarda sem apagá-las não terá jamais a revolta em seu coração. Pois quem cai nestes males, ou seja, na contradição e no desafio contra seu pai espiritual e mestre, será piedosamente precipitado desta vida para a trampa[24] e a garganta do inferno. Ali ele se tornará a moradia de Satanás e de todos os poderes impuros, como um filho indócil, infiel, um filho da perdição.

43. Eu o exorto, filho da obediência, a refletir continuamente sobre estas coisas, a lutar ardentemente para não cair nos males do inferno que mencionei acima, e a orar com fervor a Deus a cada dia, dizendo-lhe: “Deus e Senhor do universo, que tem poder sobre todo sopro e toda alma, único que pode me curar, escute a prece do infeliz que sou eu. Pela vinda do seu Espírito Santo faça com que morra e desapareça o dragão que se esconde em mim. Torne-me digno, a mim que sou pobre e desprovido de qualquer virtude, de cair em lágrimas aos pés de meu santo pai. E conduza sua santa alma à compaixão, para que ele tenha piedade de mim. Senhor, dê ao meu coração a humildade e os pensamentos que convêm ao pecador que promete se arrepender em sua presença, e não abandone jamais a alma que de uma vez por todas se votou e confessou a você, que o escolheu e preferiu ao mundo inteiro. Senhor, você sabe o quanto eu quero ser salvo, ainda que meus maus hábitos sejam obstáculos para mim. Pois a você, Mestre, tudo é possível dentre o que é impossível ao homem[25]”.

44. Aqueles que, com temor e tremor, colocaram o belo fundamento da fé e da esperança na moradia da piedade, que, sobre a pedra da obediência aos pais espirituais, firmaram seus pés, que escutam como se viesse da boca de Deus as ordens que lhes transmitem seus pais, e que, sem hesitar, constroem assim, na humildade de suas almas e sobre o fundamento da obediência, estes conduzem com sucesso a obra do bem. Eles levam a bom termo esta grande e primeira obra: renunciar a si mesmos. Pois cumprir a vontade de outro e não a sua obriga não apenas a renunciar à própria alma, mas sobretudo morrer para o mundo inteiro.

45. Quem contradiz a seu mestre faz a alegria dos demônios. Mas os anjos admiram aquele que se humilha até a morte. Pois este homem faz a obra de Deus[26] tornando-se semelhante ao Filho de Deus, que levou a obediência até a morte, e morte de cruz[27].

46. Quando são frequentes e intempestivas, as aflições que ferem o coração entenebrecem a reflexão do intelecto. Elas apagam da alma a prece pura, a humildade e a compunção. Elas afadigam o coração e o fazem se tornar duro e insensível como nunca. É assim que os demônios se empenham em desencorajar os espirituais.

47. Quando estas coisas acontecem, monge, e no entanto você descobrir em sua alma um tal ardor e um tal desejo de perfeição que o façam querer cumprir todos os mandamentos de Deus, e não cair nem pecar – ainda que por uma palavra vã[28] –, bem como não estar em dívida com os antigos santos na ordem da ação, do conhecimento e da contemplação, mas se achar entravado por aquele que semeia a erva daninha[29] do desencorajamento e não lhe permite alcançar tal altura de santidade, insuflando em você pensamentos de desespero dizendo-lhe: “É impossível, no meio deste mundo, ser salvo e guardar sem falta todos os mandamentos de Deus”, então, só e sentado a um canto, recolha-se, concentre seu pensamento e dê um bom conselho à sua alma, dizendo-lhe: “Por que está tão triste, alma minha? E por que me perturba assim? Espere em Deus, por que eu o louvarei[30]. A salvação de minha face não está em minhas obras, mas em meu Deus. Que, de fato, será justificado pelas obras da Lei[31]? Nenhum ser vivo será justificado diante de Deus[32]. Pela fé em meu Deus, espero que sua inefável misericórdia me salve gratuitamente. Retire-se de mim, Satanás! Eu adoro ao Senhor meu Deus[33] e o sirvo desde minha juventude, a ele que pode me salvar apenas com sua piedade. Afaste-se de mim. Deus, que me fez à sua imagem e semelhança[34], abolirá seu poder”.

48. Deus não nos pede nada, a nós homens, senão que não pequemos, só isto e nada mais. Isto não é obra da Lei, mas da guarda constante da imagem e da dignidade do alto. Por nossa natureza em pé nesta imagem e nesta dignidade e vestindo a túnica branca do Espírito, permaneceremos em Deus e ele em nós[35], chamados de filhos de Deus por adoção, marcados pelo sinal da luz do conhecimento de Deus[36].

49. A acídia e a pesandez do corpo que, através da preguiça e da negligência, atingem a alma, afastam-na da regra habitual, entenebrecem e desencorajam a reflexão. A partir daí, os pensamentos de desleixo e de blasfêmia submergem o coração. Quem é tentado pelo demônio da acídia já não consegue sequer se dirigir ao lugar habitual da oração, mas apenas se deixa levar, e permite que lhe cheguem pensamentos tolos contra o Criador do universo. Assim, se você perceber a causa e souber de onde vêm estas coisas, entre sem tardança no lugar de oração e, prosternado diante de Deus que ama os homens, ore com gemidos do coração, com dor e lágrimas, peça para ser aliviado do peso da acídia e dos maus pensamentos; à custa de bater e perseverar, lhe será concedido libertar-se rapidamente.

50. Quem alcançou a pureza do coração venceu a covardia. Quem ainda está se purificando, ora derruba a covardia, ora é derrubado por ela. Mas quem absolutamente não combate, ou se tornou por completo insensível, até por ser amigo das paixões e dos demônios, além de estar doente de vaidade está enfermo de presunção, pois crê ser grande coisa quando na realidade nada é[37]; ou é escravo da covardia, submisso a ela, tremendo como uma criança com medo diante daquilo que não é razão para medo[38], e nem razão para covardia para os que temem ao Senhor.

51. Quem teme o Senhor não teme as agressões dos demônios, nem seus ataques impotentes e menos ainda as ameaças dos homens sem valor. Como se fosse uma chama ou um fogo ardente, percorrendo noite e dia lugares inacessíveis e sem luz, ele expulsa os demônios que fogem dele para não serem queimados pelo raio flamejante, o raio do fogo divino que se desprende dele.

52. Quem caminha no temor de Deus não teme viver entre homens sem valor, por que traz em si este temor a Deus e veste a armadura invencível da fé, que lhe dá força para poder fazer tudo, mesmo as coisas que parecem impossíveis à maioria. Ele caminha como um gigante entre macacos ou como um leão bravio no meio de cães e raposas: ele se confia ao Senhor. Pela firmeza de sua resolução ele enche de terror os vagabundos e aterroriza seus corações, pois traz como uma barra de ferro[39] a palavra que dá a sabedoria.

53. Não apenas o hesiquiasta, ou aquele que está submetido a um pai, mas também o higoumeno, o que está à frente de numerosos irmãos, e o encarregado de algum ofício, devem permanecer sem preocupações, ou seja, devem ser livres e incontestavelmente desembaraçados de todos os negócios desta vida. Pois se nos preocupamos transgredimos a ordem de Deus, que disse: “Não se preocupem com relação àquilo que irão comer ou beber, ou com que se vestirão. Tudo isto são preocupações dos pagãos[40]”. E também: “Guardem seus corações, e não se tornem pesados com o deboche, a embriaguez e os cuidados com esta vida[41]”.

54. Aquele cujo pensamento se preocupa com os afazeres desta vida não é livre. Pois ele é retido e sujeitado por tal preocupação, quer se inquiete por si, quer por outros. Mas quem é livre, desembaraçado dos negócios desta vida, não se preocupará com estas coisas mundanas, nem por si, nem pelos demais, ainda que seja um bispo, um diácono ou um higoumeno. Entretanto, jamais ele negligenciará ou menosprezará nenhum homem, por simples e pequeno que seja[42]. Fazendo tudo e trabalhando todo o tempo para agradar a Deus, ele permanecerá em todas as coisas e em toda sua vida desembaraçado de preocupações.

55. Não destrua sua casa querendo edificar a do próximo. Avalie o quanto a obra é penosa e difícil, para evita que, depois de havê-la começado, você não destrua a sua casa e ainda seja incapaz de edificar a do próximo.

56. Se você não adquiriu uma perfeita indiferença em relação aos negócios e aos bens desta vida, não tome afazeres para si a fim de não acabar preso a eles. Ao invés de receber a recompensa por seu serviço, você será condenado como ladrão e sacrílego. Mas se a ordem do seu superior o obrigar a tanto, aja como quem maneja um fogo ardente. Refreando por meio da confissão e do arrependimento o ímpeto de seu pensamento, você se manterá são e salvo graças às orações de seu superior.

57. Quem ainda não se tornou impassível sequer imagina que exista uma impassibilidade. Ele não consegue crer que sobre a terra possa haver semelhante coisa. De fato, como alguém que, para começar, não renunciou a si mesmo[43] nem se ofereceu para derramar seu sangue por esta vida verdadeiramente bem-aventurada, poderá imaginar que alguém outro tenha feito tais coisas a fim de adquirir a impassibilidade? Da mesma forma, quem acha que possui o Espírito Santo quando na realidade não possui nada, jamais acredita quando ouve que as energias do Espírito Santo se revelam naqueles que o possuem verdadeiramente. Ele não crê que possa existir alguém desta geração que, como os apóstolos de Cristo e os santos de antigamente, receba a energia e o movimento do Espírito divino, ou sua visão, de maneira consciente e sensível. Com efeito, cada qual, seja na ordem das virtudes, seja na dos vícios, julga as coisas do próximo de acordo com seu próprio estado.

58. Uma coisa é a impassibilidade da alma, outra a impassibilidade do corpo. A primeira santifica também o corpo por seu próprio flamejamento e pela efusão da luz do Espírito. A segunda, sozinha, não pode por si só ajudar em nada aquele que a possui.

59. Do mesmo modo como alguém que foi elevado pelo rei de um estado de extrema pobreza à riqueza, que dele recebeu uma dignidade gloriosa e que foi por ele vestido com ricas vestimentas, que foi convidado a permanecer em pé diante dele, olha para este rei com enorme afeição e o ama acima de tudo como seu benfeitor, considera com atenção as vestes com as quais foi trajado, reconhece sua dignidade e a riqueza que lhe foi concedida, também o monge que verdadeiramente se retirou do mundo e das coisas que estão no mundo e se dirigiu para Cristo, que se sentiu chamado e que, pela prática dos mandamentos se elevou às alturas da contemplação espiritual, vê sem erro possível o próprio Deus e considera com toda atenção a transformação que se deu em si. Pois ele não cessa de ver a graça do Espírito envolvendo-o com sua luz, esta graça que é chamada de vestimenta e púrpura real, e que na verdade é o próprio Cristo, o Senhor, tão verdadeiro quanto dele se revestem aqueles que nele creem[44].

60. Muitos leem as divinas Escrituras. Outros ouvem a leitura. Mas são pouco numerosos os que conseguem saber corretamente o sentido e a ideia daquilo que leem. Pois aquilo que as divinas Escrituras dizem, às vezes parece impossível ao leitor, às vezes parece pouco digno de fé. Às vezes os que leem as alegorizam de qualquer jeito: atribuem ao tempo futuro o que é dito das coisas do tempo presente, e entendem as coisas futuras como fatos passados ou como eventos cotidianos. Desta forma, não há neles julgamento correto, nem verdadeiro discernimento das coisas divinas e humanas.

61. Nós, os fiéis, devemos ver a todos os fiéis como se fossem um único homem, considerando que cada um é Cristo, e, por amor a ele, devemos nos colocar num estado tal que estejamos prontos a dar por ele nossa própria vida[45]. Pois jamais devemos dizer ou pensar que quem quer que seja é mau, mas devemos ver todos os homens como bons, como já dissemos. Ainda que você veja alguém atormentado por paixões, não deteste seu irmão, mas as paixões que lhe fazem guerra. Ainda que ele esteja tiranizado por concupiscências e alucinações, seja ainda mais compassivo, para que não seja você também provado[46], exposto como está às mudanças da matéria que se modifica com tanta facilidade.

62. Se alguém se encontra alterado pela hipocrisia, ou se é culpado por suas obras, ou se foi ferido rapidamente por uma simples paixão, ou se se tornou deficiente por negligência, não será contado entre os perfeitos. Será rejeitado como um homem inútil que não foi testado, a fim de que nos momentos de tensão ele não leve à ruptura do elo da corrente e não provoque a divisão naquilo que não é para ser dividido nem leve aflição de um lado e de outro. Os que vão à frente sofrerão por se verem separados daqueles que os seguem, e estes sofrerão por serem separados dos que os precedem.

63. Assim como extinguimos a chama de uma fornalha ardente se atirarmos pó e poeira sobre a flama, também os cuidados desta vida e toda ligação às coisas inferiores, por pequenas que sejam, destroem o fervor que acaba de ser aceso no coração.

64. Quem traz em si o temor da morte não sente gosto por nenhum alimento, nenhuma bebida, nenhum enfeite. Não sente prazer em comer pão nem em beber água. Este homem não dará ao corpo senão o estritamente necessário, o que basta para viver. Ele renunciará a toda vontade própria, e será o servidos de todos discernindo aquilo que lhe é ordenado.

65. Quem se entregou como um servidor a seus pai em Deus por temor ao castigo, mesmo que isto lhe tenha sido ordenado, não escolherá nada que alivie suas penas ou desfaça o nó do temor. Ele não escutará aos que, por amizade, por diversão ou imperativamente o empurram a isto. Ele preferirá tudo o que aumenta o temor, quererá o que estreita o nó, amará aquilo que fortifica a quem o atormenta. Ele permanecerá diante de tudo isto como alguém que não espera ser libertado jamais. Pois a esperança da libertação torna a pena mais leve, mas não traz nenhum benefício para quem se arrepende com fervor.

66. O temor do castigo e os esforço que ele engendra são úteis a todo homem que começa a viver segundo Deus. Quem imagina poder começar sem este esforço e sem esta ligação não apenas coloca sobre a areia o fundamento[47] de suas ações, como ainda pretende construir uma morada nos ares, sem fundação alguma, o que é impossível. De fato, é este esforço que produz logo toda alegria. É esta ligação que destrói os entraves de todos os pecados e de todas as paixões. Agora, aquele que atormenta dá não mais a morte, mas a vida eterna.

67. Aquele que não quiser se evadir nem fugir do esforço suscitado pelo temor do castigo eterno, mas que o siga de todo seu coração e ainda aperte ainda mais os elos deste temor, avançará cada vez mais depressa e isto o levará a comparecer diante da face do Rei dos reis. Uma vez que ele perceba, ainda que obscuramente, a glória do Rei, então cairão os liames, o temor que o atormenta fugirá para longe, toda pena que havia em seu coração[48] se transformará em alegria e começará a jorrar a fonte que derramará de maneira sensível lágrimas como um rio transbordante, enquanto em seu intelecto surgirá a serenidade, a doçura, uma suavidade inefável e também a coragem e a liberdade para correr sem entraves para a mais completa obediência aos mandamentos de Deus[49]. Tal coisa ainda é impossível aos noviços: ela é própria dos que se elevaram em seu progresso até o meio do caminho. Quanto aos que chegaram à perfeição, esta fonte se torna luz, quando seu coração é subitamente mudado e transformado.

68. Quem possui dentro de si a luz do Santíssimo Espírito, é como se não conseguisse suportar vê-la; ele cai com o rosto por terra, chama e chora, no paroxismo do temor, a tal ponto transtornado por ver e sentir uma coisa que ultrapassa a natureza, a razão e o entendimento. Ele se torna como alguém cujas entranhas foram incendiadas por um fogo abrasador. Incapaz de suportar a queimação da chama[50] ele fica fora de si e não consegue se dominar e é inundado por lágrimas transbordantes que o refrescam. Ele atiça cada vez mais o fogo de seu desejo e cada vez mais lágrimas correm. Banhado nesta torrente ele próprio brilha com uma luz mais vívida. Depois de inteiramente inflamado ele se torna como que uma luz e então se cumpre o que foi dito: “Deus unido aos deuses e dos deuses conhecido”, ao menos na medida em que ele Deus já se encontra unido àqueles que foram abrasados e se revelou aos que o conheceram.

69. Antes da tristeza e das lágrimas, que ninguém nos engane com palavras vãs[51], e não nos percamos por nós mesmos. Não existe em nós arrependimento, nem autorreprovação verdadeira, nem temor a Deus em nossos corações, nem acusamos a nós mesmos, nem nossa alma tomou consciência do Julgamento futuro e dos tormentos eternos. Pois, se tivéssemos acusado a nós próprios, se houvéssemos adquirido estas virtudes e se vivêssemos nelas, teríamos logo vertido lágrimas em abundância. Sem elas é impossível que nosso coração endurecido amoleça, e que nossa alma possa adquirir a humildade espiritual. Nós mesmos somos incapazes de nos tornarmos humildes.  Quem não chegou a esse ponto, não poderá se unir ao Espírito Santo. E quem não se encontrar unido a ele por intermédio da purificação também não poderá alcançar a contemplação e o conhecimento de Deus, nem será digno de ser secretamente instruído nas virtudes da humildade.

70. Aqueles que imitam a virtude e se apresentam com a tonsura[52] do hábito monástico, embora não tenham alcançado o homem interior[53], mas estejam ainda cheios de toda iniquidade, inveja[54], ciúmes, prazeres infectos, são, entretanto, honrados como se fossem impassíveis e como santos pela maioria dos que não possuem o olho da alma suficientemente purificado e que não conseguem reconhece-los por seus frutos[55]. Quanto aos que levam suas vidas na piedade e na virtude, na simplicidade de seus corações[56], e que são realmente santos, muitas vezes são erroneamente considerados como todos os homens, são deixados de lado, não recebem outra coisa que o desprezo e não considerados menos do que nada.

71. Aqueles costumam considerar como mestre espiritual algum falador cheio de ostentação. Mas quem se cala e toma cuidado com palavras vãs[57] em sua opinião não passa de um homem inculto, incapaz de se expressar.

72. Os vaidosos, doentes do orgulho do diabo, evitam como se fosse vaidoso e orgulhoso aquele que fala no Espírito Santo. Pois suas palavras os agridem, mais do que lhes causam compunção. Mas eles colocam nas nuvens e acolhem de bom grado quem, falando por si ou graças a lições humanas, sabem ornar as frases e os enganam sobre sua salvação. Assim é que nenhum de tais homens será capaz de discernir ou perceber a realidade na qual se encontra.

73. “Bem-aventurados, disse Deus, os de coração puro, por que estes verão a Deus[58]”. Ora, o coração puro não consiste numa virtude, nem em duas, nem em dez que podem ser cumpridas, mas no conjunto de todas as virtudes, por assim dizer reunidas como se fossem uma só e cumpridas até o fim. Mesmo assim, elas são incapazes por si sós de tornar o coração puro sem a ação e a presença do Espírito Santo. Assim como o ferreiro exerce seu ofício graças aos seus utensílios, mas não pode realizar nenhum trabalho sem a ação do fogo, também o homem realiza sua obra servindo-se das virtudes como ferramentas, mas sem a presença do fogo espiritual estas ferramentas nada podem e permanecem inúteis, incapazes de purificar as manchas e a purulência da alma.

74. Através do batismo divino recebemos a remissão das faltas, somos libertos na antiga maldição[59] e nos tornamos santificados pela vinda do Espírito Santo. Mas a graça perfeita, segundo a promessa: “Eu habitarei e caminharei com eles[60]” – esta não é recebida neste momento. Pois ela é concedida aos que creem firmemente e que o demonstram por meio de suas obras. Depois do batismo, se nos deixarmos levar por ações más e infames, perderemos completamente a santificação. Mas por meio do arrependimento, da confissão, das lágrimas, recebemos em proporção primeiro a remissão das faltas e depois a santificação da graça do alto.

75. É por meio do arrependimento que são lavadas as manchas das ações infames. Depois poderemos participar do Espírito Santo, não simplesmente, mas segundo a fé, a disposição, a humildade dos que se arrependerem de toda sua alma, e também depois de havermos recebido do pai que responde por nós a completa absolvição das faltas. É por isso que é bom nos arrependermos diariamente, por causa do mandamento que nos foi dado: “Arrependam-se, por que o Reino dos céus está próximo[61]”. Isto significa que nossa tarefa é sem limite.

76. A graça do Santíssimo Espírito é dada como garantia[62] às almas que desposam a Cristo. Assim como, sem uma garantia, a mulher não terá nenhuma certeza de que se unirá a seu esposo, também a alma não tem certeza alguma de estar por toda a eternidade com seu Mestre e seu Deus, nem de se unir a ele mística e inefavelmente, nem de desfrutar de sua beleza inacessível, se não receber a garantia de sua graça e não a trouxer consigo de maneira consciente.

77. E do mesmo modo como a garantia não é certa a menos que o contrato escrito traga a assinatura de testemunhas dignas de fé, também a iluminação da graça não será certa enquanto não forem cumpridos os mandamentos ou adquiridas as virtudes. Aquilo que as testemunhas representam num contrato a prática dos mandamentos e as virtudes representam em relação à garantia espiritual. Com efeito, é por intermédio destas coisas que aqueles que deverão ser salvos recebem a total posse da garantia.

78. Por assim dizer, o contrato é primeiramente escrito pela prática dos mandamentos, depois selado e assinado pelas virtudes. Então Cristo, o esposo, dá à alma, a esposa, o anel, ou seja, a garantia do Espírito[63].

79. Assim como a noiva, antes das bodas, não recebe senão a garantia do noivo, e deve aguardar até o casamento para receber o dote combinado e os dons prometidos, também a Igreja dos fiéis e a alma de cada um de nós – a esposa – não recebe inicialmente de Cristo – o esposo – mais do que a garantia do Espírito[64]. Ela espera até a partida deste mundo para receber os bens eternos e o Reino dos céus, plenamente assegurado pela garantia que estes bens lhe mostram como que num espelho[65], confirmando-lhe o que foi combinado com seu Mestre e Deus.

80. Se o noivo é retido numa viagem[66] ou fica preso por outros negócios ele posterga a celebração das bodas, e se a noiva irritada duvida de seu amor e rasga ou apaga o contrato que os une, ela perde imediatamente as esperanças que depositara no noivo. O mesmo acontece com a alma. Com efeito, quando um asceta diz: “Até quando deverei sofrer?”, quando ele desleixa dos esforços, negligencia os mandamentos e abandona o arrependimento contínuo, é como se rasgasse ou apagasse o contrato. Logo ele perde a própria garantia e a esperança em Deus.

81. Se a noiva dedica a outro o amor devido ao noivo a quem está prometida, e se se deita com este outro aberta ou secretamente, não apenas não receberá nada do que lhe foi prometido pelo noivo como ainda incorre merecidamente no castigo e na condenação da lei. O mesmo acontece conosco. Se alguém, aberta ou secretamente, deseja e dedica a outro ser o amor devido a Cristo, seu noivo, e se seu coração se deixa prender por este ser, ele se tornará abominável e odioso aos olhos do noivo e indigno de se unir a ele. Pois está dito: “Eu amo aos que me amam[67]”.

82. Existem sinais como os descritos para cada um compreender se recebeu de Cristo, do esposo e mestre, a garantia do Espírito[68]. Se a recebeu, que se dedique em conservá-la. Se ainda não foi considerado digno de recebê-la, que se esforce por obtê-la logo por meio de obras e ações boas e pelo mais fervoroso arrependimento, e que guarde e pratique os mandamentos e adquira as virtudes.

83. Assim como o teto de uma casa repousa sobre fundações como o restante do edifício, e que as fundações são escavadas para suportar o teto – esta é sua necessidade e sua utilidade –, assim como o teto não pode se sustentar sem fundações nem estas produzem benefício algum à vida nem prestam o menor serviço sem ele, também a graça do Espírito é mantida pela prática dos mandamentos e as obras dos mandamentos são colocadas como fundação graças ao dom de Deus. Nem a graça do Espírito permanece em nós sem a prática dos mandamentos, nem a obra dos mandamentos é útil e proveitosa sem a graça de Deus.

84. Assim como uma casa sem teto, assim deixada pela negligência do construtor, não somente é inútil como ainda expõe ao ridículo aquele que a construiu, também quem que coloca as fundações da prática dos mandamentos e ergue as paredes das mais altas virtudes é imperfeito e despertará a piedade dos perfeitos se não receber na contemplação e no conhecimento da alma a graça do Espírito Santo. Esta graça lhe faltará por um destes dois motivos: ou ele negligenciou o arrependimento, ou, recuando diante da colheita das virtudes como se diante de uma matéria infinita, ele relaxou alguma das que parecem menores, mas que são necessárias para completar a morada das virtudes, pois, sem estas, ela não poderá ser coberta pela graça do Espírito.

85. Se o Filho de Deus e Deus desceu sobre a terra para nos reconciliar por meio de si com seu próprio Pai, a nós que éramos seus inimigos[69], e para nos unir a si mesmo de modo consciente por intermédio de seu Espírito Santo e consubstancial, que outra graça poderá obter aquele que perde esta graça? Certamente, o Filho não se reconciliará com ele nem se unirá a ele pela comunhão do Espírito.

86. Quem participa do Espírito Santo está livre dos desejos e dos prazeres passionais, mas não das necessidades corporais da natureza. Liberto dos laços da concupiscência passional e unido à glória e à doçura imortais, ele se esforça sem cessar por estar nas alturas e por conduzir sua vida a Deus, sem se subtrair, ainda que por um instante, a esta contemplação e às suas delícias inesgotáveis. Mas, entravado pelo corpo e pela corrupção ele é por isso atraído para baixo, amarrado e levado às coisas da terra. Penso que ele experimenta então tanta dor quanto a alma do pecador quando se separa do corpo.

87. Do mesmo modo que para alguém que ama o corpo e a vida, que ama o prazer e o mundo, separar-se disto é a morte, para quem ama a pureza e ama a Deus, que ama a imaterialidade e a virtude, a morte consiste em separar-se disto, ainda que por um instante em pensamento. Se quem vê a luz sensível fecha os olhos ou os tem cobertos por alguém logo se sente oprimido e aflito e não consegue suportar sentir-se cegado – e mais ainda se estivesse na expectativa de contemplar coisas necessárias e maravilhosas –, quanto mais quem é iluminado pelo Espírito Santo, que vê em realidade e em espírito, dormindo ou acordado, os bens que o olho não viu, que o ouvido não escutou e que não subiram ao coração do homem[70], estes bens para o qual voltam os olhares e desejam os próprios anjos[71], se sentirá oprimido e aflito se for arrancado por alguém desta contemplação. Parecer-lhe-á morrer e sentir-se-á rejeitado da vida eterna.

88. Muitos chamam de bem-aventurada a vida eremítica, outros a vida comum ou cenobita. Outros louvam o fato de dirigir o povo, exortar, ensinar e fundar Igrejas. Diversos homens nutrem seus corpos e suas almas destas obras. Quanto a mim, não saberia apontar uma preferência por qualquer destas coisas, nem declarar que tal ou qual gênero de vida é digno de louvor ou de censura. Quaisquer que sejam as obras e as ações, a vida por Deus e segundo Deus é a mais bem-aventurada.

89. A vida humana é feita da diversidade das ciências e das artes, e cada qual trabalha em sua própria obra e traz sua contribuição. É assim que os homens vivem, comunicando uns com os outros e atendendo às necessidades naturais do corpo. Podemos ver o mesmo nas coisas espirituais. Um busca uma virtude, outro outra. Este segue a vida por um caminho, aquele por outro. Mas para todos estes caminhos convergem para um mesmo objetivo.

90. O objetivo de todos os que levam sua vida segundo Deus é de agradar a Cristo nosso Deus, obter a reconciliação com o Pai pela comunhão do Espírito e assim alcançar a própria salvação. Pois esta é a salvação de toda alma e de todos os homens. Se este objetivo não é atingido todo esforço foi vão, todo trabalho, todo caminho vida afora que não conduziu à finalidade última aquele que o percorreu.

91. Quem deixou o mundo inteiro e partiu para a montanha da hesíquia, e que de lá escreveu ostensivamente àqueles que ficaram no mundo, abençoando a uns, elogiando e louvando a outros, lembra o homem que se separou de uma mulher prostituída, mal vestida, desonesta, e se foi para um país distante para esquecê-la, apenas para adiante, esquecendo-se de por que se retirara, escrever para os que gravitavam por assim dizer ao redor da prostituta sujando-se com ela, abençoando-os. Mesmo que não seja em seu corpo, no mínimo em seu coração e em seu intelecto ele partilha das intenções passionais destes homens, pois ele aprova que se unam à prostituta.

92. Na mesma medida em que aqueles que vivem no mundo e que mantêm seus corações puros de todo desejo mau são bem-aventurados e dignos de louvor, merecem a censura e a reprovação os que habitam nas montanhas e nas cavernas[72] mas procuram os louvores e os elogios dos homens. Diante de Deus, que sonda nossos corações[73], eles serão como adúlteros. Pois quem deseja que sua vida, seu nome e sua conduta sejam louvados pelo mundo, se prostitui longe de Deus[74], como outrora o fez o povo judeu, como disse Davi[75].

93. Aquele que, pela firmeza de sua fé em Deus, renunciou ao mundo e ao que existe no mundo, acredita que o Senhor é compassivo e misericordioso[76] e que recebe aos que a ele vão por meio do arrependimento. Sabendo que é pela desonra que Deus honra aos seus servidores, que ele os enriquece com a pobreza, os glorifica com os ultrajes e as humilhações e que pela morte ele os estabelece na comunhão e na herança da vida eterna, este homem percorre o caminho como o cervo sedento corre para a fonte imortal[77], e ganha as alturas como se subisse pela escada sobre a qual sobem e descem os anjos em socorro daqueles que se elevam. Deus está no cume[78], aguardando nossa boa vontade e os esforços que fazemos na medida do nosso possível, não por gostar de nos ver penar, mas por que, em seu amor pelo homem, ele quer nos dar as recompensas como coisas a nós devidas.

94. Deus não permite sucumbir àqueles que se dirigem resolutamente a ele. Se os vê em dificuldades, os assiste e auxilia. Ele estende desde o alto sua mão poderosa e os faz subir até si. Ele os assiste de modo visível e invisível, consciente e inconsciente, até que, depois de ter galgado todos os degraus da escada, eles se aproximem, inteiramente unidos a ele, esquecidos de todas as coisas terrestres, vivendo com ele nas alturas, se no corpo e fora do corpo não sei[79], mas partilhando sua existência e usufruindo dos bens inefáveis.

95. É justo que acima de tudo coloquemos nosso pescoço sob o jugo dos mandamentos de Cristo, sem resistir nem recuar, que andemos reta e ardentemente por esta via até a morte e que façamos de nós mesmos o Paraíso de Deus verdadeiramente renovado, até que, com o Pai, o Filho, por intermédio do Espírito Santo, entre e habite em nós. Então, quando o tivermos por inteiro em nós, como nosso anfitrião e mestre, aqueles dentre nós a quem ele der uma ordem ou confiar um ofício, qualquer que seja, o assumirá e cumprirá de todo coração, como ele próprio desejou. Mas não é permitido buscar tal ofício antes do tempo, nem aceitar recebê-lo das mãos dos homens. Devemos perseverar nos mandamentos de nosso Mestre e nosso Deus, e aguardar suas ordens.

96. Se, depois de haver assumido um ofício nos haveres de Deus e nele nos distinguirmos, recebermos do Espírito ordem de passar a outro serviço, a outra tarefa, a outra obra, não recusemos. Pois Deus não quer, nem que permaneçamos sem fazer nada, nem que fiquemos até o fim na mesma tarefa com a qual começamos, mas que façamos progresso e estejamos sempre em movimento a fim de alcançarmos o melhor, ou seja, que sigamos a vontade de Deus e não a nossa.

97. Quem se aplica em fazer morrer a própria vontade deve cumprir a vontade de Deus, fazer penetrar em si mesmo esta vontade de Deus em lugar da sua, plantá-la e enxertá-la em seu coração, e ainda observar se o que foi plantado criou raízes em profundidade, se o que foi enxertado cicatrizou, uniu-se à árvore e se tornou uno com ela, e se tudo cresce, floresce e dá frutos bons e doces. Assim este homem já não reconhecerá em si nem a terra que recebeu a semente, nem a raiz na qual foi enxertada esta planta incompreensível e inefável que traz em si a vida.

98. A quem recusa sua própria vontade por temor a Deus, de uma maneira por assim dizer inconsciente e sem que se saiba como Deus concede sua própria vontade e a mantém indelével em seu coração, abrindo os olhos de sua reflexão para que ele a reconheça, e lhe concedendo a força para cumpri-la. É a graça do Espírito Santo que age aqui, e nada se pode fazer sem ela[80].

99. Se você recebeu o perdão de todos os pecados, seja pela confissão, seja revestindo-se do santo hábito angélico[81], quanto amor, quanta ação de graças, quanta humildade não engendrará em você tal perdão? Você merecia mil castigos; e agora, não apenas você se livrou deles, como ainda foi considerado digno da filiação, da glória do Reino dos céus. Considerando estas coisas em sua reflexão e nelas pensando todo o tempo, esteja pronto, prepare-se desde já para não ultrajar aquele que o criou, que o honrou, que perdoou seus milhares de faltas. Em todas as suas obras glorifique-o e honre-o, a fim de que em troca ele próprio o glorifique, a você a quem ele glorificou mais do que a toda a criação visível, e para que ele o chame de verdadeiro amigo.

100. Na mesma medida em que a alma é mais preciosa do que o corpo, o homem dotado de razão é mais elevado do que o resto do mundo inteiro. Considerando a imensidade das criaturas que estão no mundo, homem, não pense que por causa disto elas sejam mais preciosas do que você. Contemplando a graça que lhe foi concedida e reconhecendo a dignidade de sua alma dotada de intelecto e de razão, celebre a Deus que o honrou mais do que todo o universo visível.

101. Examinemos o modo como glorificamos a Deus. Ele não pode ser glorificado por nós diferentemente do que o foi pelo Filho. Pois as vias pelas quais o Filho glorificou a seu Pai[82] são as mesmas pelas quais o Pai glorificou o Filho. Sigamo-las portanto, com fervor, a fim de glorificarmos por meio delas aquele que aceitou ser chamado nosso Pai nos céus[83], para que sejamos glorificados por ele com a glória que o Filho possuía diante dela antes que o mundo existisse[84]. Estas vias são a cruz, ou seja, a morte para o mundo inteiro, as aflições, as tentações e os demais sofrimentos de Cristo. Se suportarmos estas coisas com paciência imitaremos os sofrimentos de Cristo. E por meio delas glorificaremos nosso Pai e nosso Deus, como seus filhos pela graça e como co-herdeiros de Cristo[85].

102. A alma que ainda não se liberou perfeita e conscientemente da ligação com as coisas visíveis e do pendor que sente por elas não pode suportar sem dor as aflições que lhe chegam e os ultrajes que vêm dos demônios e dos homens. Ela permanece ligada por causa de seu pendor pelas coisas humanas. Perder dinheiro a fere como uma mordida, sentir-se privada dos bens a atormenta e as feridas em seu corpo a fazem sofrer em demasia.

103. Se alguém arrancou sua alma dos laços e do desejo das coisas sensíveis e a uniu a Deus, não apenas desprezará o dinheiro e os bens que o cercam e, como se estas coisas pertencessem a outros e a estranhos, não sofrerá com sua falta, como também suportará as aflições do corpo com alegria e ação de graças como convém. Pois ele verá continuamente, segundo o Apóstolo divino, o homem exterior fenecer e o homem interior se renovar dia após dia[86]. De nenhum outro modo é possível suportar com alegria os sofrimentos que aguentamos por Deus. Pois é preciso ter um conhecimento perfeito e uma sabedoria espiritual para tanto. Quem está privado destas coisas não cessa de caminhar nas trevas[87] do desespero e da ignorância, incapaz de ver a luz da paciência e da consolação[88].

104. Todo homem que parece erudito por se dedicar à ciência matemática jamais será digno de se debruçar[89] sobre os mistérios de Deus e enxerga-los, enquanto não aceitar ser humilhado, enquanto não se tornar louco[90], rejeitando tanto a presunção quanto o conhecimento que possui. Quem age desta maneira e com a fé firme acompanha os verdadeiros sábios nas coisas divinas, é por eles guiado e com eles penetra na cidade do Deus vivo[91]. Conduzido e iluminado pelo Espírito divino[92], ele vê e aprende o que nenhum homem jamais pode ver ou aprender[93]. Por que então ele é ensinado por Deus[94].

105. Os discípulos dos homens eruditos deste século tomam por loucos aqueles que são ensinados por Deus[95]. Na verdade são eles os loucos, reduzidos à impotência pela sabedoria profana que se tornou patética, esta sabedoria que Deus converteu em loucura[96], segundo o Apóstolo divino, esta sabedoria voz teológica sabia ser terrestre, material, demoníaca[97], cheia de disputa e de invejas. Pois estes homens que estão fora da luz divina, que são incapazes de ver as maravilhas que ela ilumina, consideram como perdidos os que permanecem na luz e que enxergam e ensinam o que nela existe, sendo que os perdidos são eles próprios, que jamais provaram dos bens inefáveis de Deus.

106. Existem ainda, e mesmo agora, vivendo no meio de nós, homens impassíveis e santos, seres repletos da luz de Deus. Eles fizeram a tal ponto morrer seus membros a toda impureza e toda concupiscência sobre a terra[98], que, não apenas jamais pensarão nem farão mal algum por si mesmos, como ainda, se arrastados a isto por alguém, não sofrerão a menor modificação em sua impassibilidade. Eles sabem, com efeito, que são estes homens – ainda que tivessem eles a ciência das palavras divinas que leem e cantam todo dia – que lhes aconselham relaxar e não acreditam nos mestres que ensinam as coisas de Deus na sabedoria do Espírito. Ora, estes, se tivessem adquirido um conhecimento perfeito da divina Escritura, acreditariam nos bens que Deus disse que nos concederá. Mas, por presunção e negligência, eles acabam por não participar de nenhum destes bens. E, por não acreditarem nos que receberam o ensinamento de tais bens, eles os caluniam.

107. Aqueles que estão repletos da graça de Deus e que alcançaram a perfeição pelo conhecimento e pela sabedoria do alto não tentam se aproximar nem ver os homens do mundo senão para beneficiá-los com a lembrança dos mandamentos de Deus e pela benevolência, se a estes for possível ouvir, compreender e se deixar convencer. Pois os que não são conduzidos pelo Espírito de Deus[99] caminham nas trevas e não sabem aonde vão[100], nem em quais mandamentos devem progredir, nem contra quais obstáculos avançam. Talvez algum dia, regressando da presunção em que estão mergulhados, possam receber o verdadeiro ensinamento do Espírito Santo, e, ouvindo sem falsificação nem alteração a vontade de Deus, se arrependam e cumpram finalmente com esta vontade, podendo assim participar de alguns dons espirituais. E, se os perfeitos não conseguem levar a tais homens este benefício, chorando pelo endurecimento de seus corações eles regressam às suas celas e oram noite e dia por sua salvação. Esta é a única aflição que sofrem aqueles que estão todo o tempo com Deus e que transbordam de todos os seus bens.

108. Qual é o objetivo da encarnação de Deus o Verbo, proclamado em toda a divina Escritura, que nos foi dado conhecer pela leitura, mas que não reconhecemos, senão certamente nos dar a comungar o que pertence a ele depois que ele tenha partilhado o que é nosso? Pois o Filho de Deus se tornou Filho do homem para fazer de nós, os homens, filhos de Deus, elevando por meio da graça a nossa raça até aquilo que ele próprio é por natureza, enfim, engendrando-nos a partir do alto[101] no Espírito Santo e nos permitindo entrar rapidamente no Reino dos céus[102], ou melhor, permitindo-nos tê-lo em nós[103]. Assim sendo, não é em esperança que entramos no Reino, mas desfrutamos dele e proclamamos: “Nossa vida é oculta com Cristo em Deus[104]”.

109. O batismo não suprime nosso livre arbítrio nem nossa livre escolha. Mas ele nos concede a liberdade para que não mais sejamos submetidos, ainda que contra nossa vontade, à tirania do diabo. Depois do batismo, está em nosso poder ou bem deliberadamente perseverar nos mandamentos de Cristo nosso Mestre e nosso Deus, em quem fomos batizados[105], e caminharmos sobre a via de seus preceitos, ou nos desviarmos deste caminho reto e retornarmos ao diabo por nossas más ações, nosso adversário e nosso inimigo.

110. Aqueles que, depois do santo batismo, cedem às vontades do maligno e fazem o que ele aconselha, se separam da santa matriz do batismo, como disse Davi[106]. Pois nenhum de nós pode se tornar outra coisa do que é ou sair da natureza segundo a qual foi criado. Mas, criado bom por Deus (pois Deus nada fez de ruim), o homem, imutável em sua natureza tal como esta foi criada e imutável em sua essência, faz de si mesmo o que escolher e quiser, para o bem e para o mal. Sirva ao bem ou ao mal, a espada não muda sua natureza, e permanece de ferro. O mesmo acontece com o homem. Como foi dito, ele faz acontecer e faz o que bem entender, mas sem jamais sair de sua natureza.

111. Sentir piedade de um único ser não salva, mas desprezar um só ser envia para a fornalha[107]. “Tive fome e tive sede[108]”, evidentemente não foi dito uma única vez. Estas palavras não significam “tal dia”, mas se estendem a toda a vida. Alimentar a Cristo, dar-lhe de beber, vesti-lo e tudo o que se segue, nosso Senhor e nosso Deus não declarou receber de seus servidores estas coisas uma vez, mas para sempre e em todos.

112. Aquele que deu esmola a cem, mas que, ainda podendo dar a outros e oferecer-lhes o que comer e beber, despacha a quem lhe pede e implora, será julgado por Cristo por não tê-lo alimentado. Pois o próprio Cristo está em todos eles, ele que é por nós alimentado em cada um destes pequenos.

113. Aquele que hoje dá a todos tudo de que necessita o corpo, mas que amanhã, podendo fazê-lo, negligencia de seus irmãos e os deixa para morrer de fome, sede ou frio, este homem não viu que era Cristo quem morria e desprezou aquele que disse: “Na medida em que fizerem isto a um destes pequeninos, a mim o terão feito[109]”.

114. Se Cristo aceitou tomar o rosto de cada pobre e se fez semelhante a todo pobre, foi para que nenhum dos que nele creem se eleve acima de seu irmão, mas que cada qual, vendo a seu irmão e a seu próximo como seu Deus, considere a si mesmo como o menor de todos, a si e não ao seu irmão, que é como se fosse seu Criador, e que o acolha e honre como se Deus fosse, e se despoje de tudo o que possui para servi-lo, como Cristo nosso Deus verteu todo seu sangue por nossa salvação.

115. Quem recebeu a ordem de considerar o próximo como a si mesmo[110] deve considerá-lo assim não por um dia ou dois, mas por toda a existência. A quem foi prescrito dar a quem pedir[111] deve agir assim durante toda sua vida. E quem quiser que os demais lhe façam o bem que deseja[112] deve exigir de si fazer este mesmo bem a eles.

116. Portanto, aquele que considera o próximo como a si mesmo[113] não suporta possuir mais do que ele. Se tiver e se não partilhar com abundância até se tornar pobre também e parecido com os que lhe são próximos, não terá cumprido o mandamento do Mestre. Como também não o cumpre aquele que dá a todos que lhe pedem, mas recusa a um apenas, enquanto possui ainda um óbolo ou um pedaço de pão; ou aquele que não faz ao próximo o que gostaria que este lhe fizesse[114]. Assim, aquele que alimentou, deu de beber e vestiu a todos os pobres, mesmo os mais pequeninos, e que tudo fez por eles, mas que desprezou a um apenas e o negligenciou, considere a si mesmo como o homem que desprezou a Cristo Deus faminto e sedento[115].

117. Talvez essas coisas pareçam difíceis para estas pessoas. Parecer-lhes-á razoável dizer: “Quem poderá fazer tudo isso, cuidar e alimentar todos os homens sem negligenciar absolutamente nenhum dentre eles?”. Que então escutem a Paulo, que disse textualmente: “Pois o amor de Cristo nos pressiona quando pensamos nisto: se um só morreu por nós, então estamos todos mortos[116]”.

118. Assim como os mandamentos gerais contêm em si todos os mandamentos particulares, também as virtudes gerais englobam em si as virtudes particulares. Aquele que vendeu tudo o que tinha[117] e distribuiu aos pobres e que de um só golpe se tornou indigente, cumpriu de uma vez tudo o que exigem os mandamentos particulares. Ele já não precisa dar a quem pede, nem se afastar de quem vem lhe pedir emprestado[118]. Também aquele que ora todo o tempo[119] encerrou a tudo nesta prece. Ele já não tem necessidade de louvar o Senhor sete vezes por dia[120], no por do sol, pela manhã e ao meio-dia[121], por que já cumpriu tudo o que a regra nos manda orar e cantar nos momentos e nas horas determinadas. Também alguém que tenha recebido em si conscientemente de Deus, que dá o conhecimento aos homens[122], este percorreu toda a Sagrada Escritura e colheu todos os frutos da leitura: ele já não terá necessidade da leitura de livros. Como poderia precisar, ele que desfruta continuamente da companhia e da conversa com Deus, que inspirou os homens que escreveram as divinas Escrituras, ele que foi pelo próprio Deus iniciado nos arcanos dos mistérios ocultos? Este será para os outros como que um livro inspirado por Deus, que traz em si, escrito pelo próprio dedo de Deus[123], os novos e os antigos mistérios[124]. Pois ele cumpriu tudo, e na perfeição original, em Deus, e repousa de todas as suas obras.

119. O corrimento seminal durante o sono tem habitualmente muitas razões. Ele pode advir da gulodice, da vanglória, da inveja dos demônios. Mas também pode nascer de um excesso de vigília, quando, por temor de experimentar tal coisa, o corpo relaxa durante o sono. Ou ainda, aquele que, por causa da divina Liturgia, se é padre, ou por causa da comunhão, se liga a estes pensamentos, por tanto temer a coisa em seu leito – e a experimenta assim que adormece. Também isto provém da inveja dos demônios. Outra coisa que acontece: alguém viu um belo rosto durante o dia, depois o imagina em espírito e vai dormir com pensamentos prostituídos; incapaz de expulsá-los em seu relaxamento, ele tomba durante o sono, e às vezes acordado em seu leito. Outra: alguns negligentes da minha espécie estão sentados conversando sobre coisas que excitam as paixões, quer o façam com paixão ou não; depois, deitados, eles trazem estas coisas de volta ao intelecto, e adormecem unindo-se a elas durante o sono. É provável que no decurso desta conversa, cada qual tenha recebido do outro algo prejudicial. É por isso que devemos sempre vigiar e meditar sobre o que disse o Profeta: “Eu tive constantemente o Senhor diante de meus olhos, e por isso ele permanece à minha direita para que eu não caia[125]”. E devemos fechar os ouvidos a tudo o q eu diz respeito à paixão. Muitos, recém-saídos da oração, foram empurrados aos movimentos da carne. É isto que mostramos no capítulo sobre a oração.

120. Irmão, quando você debutar na vida monástica, vigie para plantar em si as mais belas virtudes, a fim de ser útil à comunidade e para que ao final você seja magnificado pelo Senhor. Não tome nenhuma liberdade com o higoumeno, como já dissemos. Não procure honrarias junto a ele. Não faça amizade com os que estão à sua frente. Não circule ao redor de suas celas, sabendo que, com isto, não apenas a vanglória começará a tomar raízes em você, como também o superior se desagradará de você. Como? Compreenda, é assim. Sente-se em sua cela, onde quer que seja, e em paz. Não fuja de quem vier conversar com você, por causa da piedade. Se você o encontrar com a permissão de seu pai espiritual, ele não o prejudicará, mesmo se for pouco piedoso. E se você achar que isto não é bom para você, siga o caminho que lhe fizer bem.

121. Você precisa manter continuamente em si o temor a Deus e examinar a si mesmo todos os dias para saber o que você faz de bem ou de mal. Depois você deve esquecer o que fez de bom, para não cair na paixão da vanglória. Confessando suas faltas e orando ardentemente, chore pelo que fez de mal. Examine a si próprio assim. Ao cair do dia, diga a si mesmo: como, com a graça de Deus, eu passe este dia? Terei eu condenado, injuriado, escandalizado alguém? Terei eu contemplado um rosto com paixão? Em meu ofício, terei desobedecido a que me dirige? Será que negligenciei meu ofício? Ou fiquei irritado com alguém? Será que, durante a assembleia litúrgica, deixei meu intelecto passear por pensamentos inúteis? Ou, sob o peso da irresponsabilidade, terei abandonado a igreja e o serviço divino? Se, em todas estas coisas, você não teve nenhuma culpa (o que é impossível, pois ninguém está puro e sem mácula, mesmo que por um só dia na vida[126], e ninguém pode se glorificar por possuir um coração casto[127]), então clame a Deus vertendo muitas lágrimas: “Senhor, perdoe os pecados que cometi em atos e palavras, com conhecimento e por ignorância”. Pois cometemos muitas faltas[128] sem sabê-lo.

122. Devemos a cada dia confiar todos os nossos pensamentos ao pai espiritual; aquilo que ele disser deve ser recebido com plena segurança, como se fosse da boca de Deus. Não se deve falar dessas coisas a outros, declarando, por exemplo: “Eu perguntei a meu pai tal ou tal coisa, e ele me respondeu assim e assim. Terá sido uma boa resposta? Que devo fazer para me cuidar?”.  Estas palavras estão cheias de desconfiança em relação ao pai e prejudicam a alma. Normalmente, este tipo de coisa acontece aos noviços.

123. É preciso que cada um de nós veja como santos a todos os que vivem na comunidade, e que nos consideremos cada qual como o único pecador e o último. Pois todos serão salvos, e só nós seremos castigados neste dia. Quem pensa nisto durante a assembleia litúrgica não deixe de verter lágrimas abrasadoras na compunção de seu coração, sem levar em conta outros que, vendo-o, possam se escandalizar ou rir-se. Mas se você perceber que, ao se expor assim, você se deixa levar pela vanglória, saia da igreja e vá chorar em segredo, retornando o mais depressa possível à sua cela. Sobretudo aos noviços esta atitude é boa, em especial durante o hexassalmo, as leituras do katisma, as leituras litúrgicas da Bíblia e a divina Liturgia. Vigie para nunca condenar ninguém. Diga para si mesmo: os que me veem gemendo assim, compreendendo que sou um grande pecador, rezam pela minha salvação. Em todo caso, se você pensar sempre nisso e se o fizer sem descanso, extrairá daí um grande benefício, atrairá a graça de Deus e participará da beatitude divina.

124. Não entre na cela de ninguém, salvo na do higoumeno, e, mesmo nesta, raramente. Se você quiser interrogá-lo a respeito de algum pensamento, faça-o na igreja. Depois da assembleia litúrgica retire-se rapidamente para a sua cela, depois vá fazer seu ofício. Depois das orações das horas faça uma metania diante do trono do higoumeno, peça sua benção e logo, baixando a cabeça e em silêncio, retire-se para sua cela. Mais vale um trisságio dito com atenção ao se deitar do que velar por quatro horas em conversas inúteis. Numa palavra: onde estiver a compunção e a tristeza espiritual, ali estará a iluminação divina. E quando esta vem habitar em nós afastam-se a acídia e as enfermidades.

125. Não sinta afeição especial por nada nem ninguém, sobretudo por um noviço, mesmo que lhe pareça que ele leva uma vida excelente, e mais ainda se ele lhe desperta alguma suspeita. Sem este cuidado você poderá ser levado da afeição espiritual à paixão, e cair em inúteis aflições. Isto acontece principalmente aos ascetas. Mas a humildade e a oração contínua o ensinarão. Não é agora o momento de detalhar estas coisas. Basta compreender que elas existem.

126. Você deve considerar como estranhos a todos os irmãos da comunidade, e mais ainda as pessoas que você conheceu no mundo. Você deve amar a todos os homens de maneira igual, e ver como santos os que conduzem o bom combate da piedade. Quanto aos negligentes, como eu, você deve rezar por eles continuamente. Entretanto, como dissemos acima, considere a todos os outros como santos e apresse-se a se purificar das paixões pela tristeza, a fim de que, recebendo da graça a luz que lhe permitirá ver a todos os homens de maneira igual, você alcance igualmente a beatitude dos corações puros[129].

127. Considere, irmão, que aquilo que se chama de perfeita anacorese fora do mundo consiste em morrer completamente para as próprias vontades, depois cessar de ser atraído pelos pais, próximos e amigos até renunciar completamente a eles.

128. Depois você deve se despojar de todos os seus bens e distribuí-los aos indigentes, segundo Aquele que disse: “Venda tudo o que tem e dê o dinheiro aos pobres[130]”. E esqueça todos os rostos amados de modo particular, tanto corporal como espiritualmente.

129. Tudo o que está oculto em seu coração, desde a infância até agora, confesse-o ao seu pai espiritual ou ao higoumeno, como se fosse ao próprio Deus que sonda os corações e os rins[131], pois você sabe que João batizava com um batismo de arrependimento[132] e que todos iam a ele confessar seus pecados[133]. A alma recebe disto uma grande alegria e a consciência se sente aliviada, segundo as palavras do Profeta: “Diga primeiro seus pecados, a fim de ser justificado[134]”.

130. Você deve ter esta certeza no espírito: depois de sua entrada na comunidade monástica, todos os seus parentes e amigos estarão mortos. Você deve considerar que seus únicos Pai e Mãe são Deus e seu superior, e jamais pedir aos seus que satisfaçam as necessidades do seu corpo. Se eles, de moto próprio, lhe enviarem qualquer coisa, receba-a, ore por sua solicitude e entregue-a à hotelaria ou à enfermaria, com toda humildade. Pois você não se deve considerar entre os perfeitos, mas entre os menores.

131. Você deve fazer com humildade tudo o que for bom, dirigindo-se em espírito Àquele que disse: “Quando vocês tiverem feito tudo, digam: somos servidores inúteis, pois fizemos o que deveríamos ter feito[135]”.

132. Se você está em conflito com alguém, ainda que pela sugestão de um pensamento, evite tomar a comunhão até se reconciliar com ele pelo arrependimento. Também isto você terá que aprender por meio da oração.

133. É preciso estar pronto a cada dia para acolher toda aflição, compreender que as aflições resgatam numerosas dívidas, e dar graças ao Santo Deus. É por meio destas coisas que se adquire uma certeza que ninguém pode confundir, conforme o grande Apóstolo: “Pois a aflição engendra a paciência; a paciência engendra a experiência; a experiência engendra a esperança; e a esperança nunca decepciona[136]”. Com efeito, “aquilo que o olho não viu, que o ouvido não escutou, o que não subiu ao coração do homem[137]”, estas coisas, segundo a promessa infalível, serão dadas aos que, com a ajuda da graça, mostraram paciência em meio às aflições. Pois sem a graça, nada pode ser conduzido com sucesso.

134. Não mantenha afazeres na sua cela, nem mesmo uma agulha. Nada senão um lençol, uma coberta, uma manta e suas roupas. Se possível, nenhum calçado. Tudo isto já foi dito. Compreenda quem puder.

135. De resto, você não deve pedir coisa alguma ao higoumeno, ainda que lhe pareça útil, fora das que lhe foram prescritas. Mesmo estas, não as pegue enquanto ele próprio não as der, depois de havê-lo chamado. E nunca obedeça ao pensamento que lhe sugere trocar alguma das coisas que lhe foram fornecidas. Receba-as tais como vierem às suas mãos, com gratidão, como se viessem de Deus, e trabalhe com elas. Não saia à procura de outras. Quando suas roupas estiverem sujas, lave-as, duas vezes ao ano. Como um pobre e um estrangeiro, com toda humildade, peça uma roupa emprestada a um irmão enquanto espera a sua, lavada, secar ao sol. Depois devolva a roupa emprestada, agradecendo. Faça o mesmo com o manto, ou com qualquer outra peça.

136. Na medida de suas forças, não tente diminuir sua pena quando cumpre um ofício. Você deve perseverar na prece com compunção e atenção, chorando sempre. E não ponha ideias na sua cabeça: “Hoje estou indisposto devido à fadiga do corpo, então reduzirei alguma coisa das orações”. Pois eu lhe digo que se alguém se esforça para cumprir seu ofício mas se priva da oração está sofrendo uma grande perda. Esta é a verdade.

137. Você deve chegar antes de todos às assembleias eclesiais e sair por último, salvo em caso de grande necessidade. Sobretudo nas matinas e na Liturgia.

138. Você deve se submeter totalmente ao seu higoumeno, de quem recebeu a tonsura, e fazer sem refletir, até a morte, o que ele ordenar, mesmo que isto lhe pareça impossível. Pois nisto você estará imitando Aquele que obedeceu até a morte, e morte de cruz[138]. Você não deve desobedecer, não apenas ao higoumeno, mas a toda a fraternidade e ao responsável pelos ofícios. Se aquilo que lhe for ordenado ultrapassar suas forças, faça uma metania e peça para ser dispensado. E se isto lhe for recusado, faça uma violência consigo mesmo, lembrando que o Reino dos céus pertence aos que se fazem violência, e que são estes que o conquistam[139].

139. É preciso rolar aos pés de toda a fraternidade, com o coração quebrantado, como um homem sem aparência, desconhecido, que é menos do que nada. Quem se conduz assim nesta vida, ouso dizê-lo, receberá o dom da visão profética e predirá muitas coisas com a ajuda da graça. Este homem também chorará pelas faltas dos outros. Ele estará separado das paixões materiais, pois o amor espiritual a Deus o impedirá de cair nelas. De resto, predizer não tem nada de espantoso: muitas vezes isto provém dos demônios. Mas existem aqueles que podem. Porém, se alguém começa a receber confissões, talvez acabe se privando destas coisas, ocupado que está em examinar os pensamentos de outros. Se, com muita humildade, ele deixar de fazer isto – ou seja, de falar e ouvir – ele se restabelecerá em seu primeiro estado. Mas somente Deus tem o conhecimento destas coisas. Quanto a mim, sinto-me impedido pelo temor e não ouso dizer nada.

140. É preciso ter o intelecto constantemente voltado para Deus, dormindo ou acordado, comendo ou falando, trabalhando com as mãos ou fazendo qualquer outra coisa. É o que mandam as palavras proféticas: “Eu tive sempre o Senhor diante dos meus olhos[140]”. Considere que você é mais pecador do que qualquer homem. Se você conservar isto por tempo suficiente na sua memória, uma luz que não vem de parte alguma começará a brilhar em seu pensamento. Quanto mais você a buscar, com grande atenção e sem se deixar distrair, esforçando-se muito e com muitas lágrimas, mais ela lhe parecerá viva. Ora, se ela lhe aparecer, você a amará; se você a amar, ela o purificará; e se ela o purificar, irá torná-lo semelhante a Deus, iluminando-o e ensinando-o a discernir o bem e o mal. Mas é preciso muito esforço, meu irmão, para que, com a ajuda de Deus, esta luz venha enfim a habitar totalmente em sua alma, para que ela o ilumine como a lua que ilumina as trevas da noite. É preciso também que você esteja atento ao que lhe sugerem seus pensamentos, a vanglória e a presunção, e não condenar a quem você vê fazendo algo errado. Pois, vendo a alma liberta das paixões e das tentações pela graça que habita nela e por este estado de paz, os demônios colocam estas coisas no seu caminho. Mas o socorro vem de Deus. Mas que você se mantenha constantemente de luto, sem jamais se saciar de lágrimas. Vigie para não ser afetado nem pelo excesso de alegria nem pelo excesso de compunção. Cuide também para não considerar que estas coisas provêm de seu próprio esforço e não da graça de Deus. Cuidado para que elas não lhe sejam tiradas, por que então você as buscará exaustivamente pela oração e não as encontrará, e saberá quantos dons perdeu. Senhor, que jamais sejam privados de sua graça. Porém, irmão, se isto lhe acontecer, atire diante de Deus sua fraqueza, depois se levante, estenda as mãos e ore assim: “Senhor, tenha piedade de mim que sou pecador, fraco e infeliz, envie-me sua graça, não permita que eu seja tentado além das minhas forças[141]. Veja, Senhor, a que ponto de desencorajamento e a que pensamentos me conduziram meus numerosos pecados. Senhor, ainda que eu quisesse considerar que fui privado de seu consolo por causa dos demônios e da presunção, não consigo. Eu sei que aqueles que cumpriram ardentemente sua vontade se opõem a eles. Mas eu, que a cada dia faço as vontades do demônio, como poderia ser tentado por eles? Na verdade, sou tentado por meus próprios pecados. Agora, meu Senhor, Senhor, se esta é sua vontade e se isto é bom para mim, que venha novamente sobre seu servidor sua graça, para que, vendo-a, eu me regozije, cheio de compunção e gemidos, iluminado por este esplendor sempre luminoso, protegido da imundície dos pensamentos impuros, de toda coisa má, de tudo o que eu possa fazer de falso a cada dia, consciente ou inconscientemente, e depois receba a plenitude da confiança em meu Deus, Senhor, quando a cada dia os demônios e os homens oprimem com aflições seu servidor e quando minha própria vontade se quebra, enfim, que eu considere ainda, Senhor, os bens que aguardam aqueles que o amam[142]. Pois você disse, Senhor: ‘Quem pedir, receberá, quem buscar, encontrará, e a quem bater, ser-lhe-á aberto’[143]”. Enfim, irmão, persevere pedindo ainda tudo o que Deus lhe inspirar, sem se deixar levar pela acídia. E o bom Deus não o abandonará[144].

141. Permaneça até o fim na cela que você recebeu do superior no início. Mas, se você se sentir perturbado pensando na decrepitude ou na sua precariedade, faça uma metania diante do superior e diga-lhe com toda humildade. Se ele o escutar, regozije-se; senão dê graças da mesma maneira, lembrando-se de seu Mestre, que não tinha onde repousar a cabeça[145]. Pois se você importunar seu superior duas, três, quatro vezes, nascerá daí a impertinência, daí a desconfiança e por fim o desprezo. Se você quiser levar uma vida calma e reclusa, jamais reclame coisa alguma ao higoumeno para confortar seu corpo. Pois não é isto que você prometeu a princípio, mas sim ser desprezado e desdenhado por todos, segundo o mandamento do Senhor, e a tudo suportar corajosamente. Assim, se você quiser preservar sua confiança e seu amor para com o higoumeno e considera-lo como um santo, lembre-se destas três coisas: nada reclamar para seu conforto, não tomar nenhuma liberdade em relação a ele e não ficar muito tempo junto a ele, como fazem alguns que, pensam eles, recebem seus cuidados; este comportamento, embora humano, carece de firmeza. Mas não é condenável contar-lhe todos os pensamentos que lhe ocorram. Se você observar estas coisas, você atravessará sem tempestades o mar desta vida, e considerará como santo seu pai espiritual, seja ele quem for. Se, tendo ido à igreja consultar seu pai a propósito de algum pensamento você encontrar junto a ele outro monge que chegou antes para tratar do mesmo assunto ou de outro, e se, por causa deste monge, o pai o ignorar por um momento, não fique contrariado nem tenha nenhum pensamento hostil. Mantenha-se de parte, as mãos postas, até que ele termine a conversa e o chame. Esta é uma atitude que os pais têm para conosco, às vezes inadvertidamente, para nos testar e nos afastar dos pecados.

142. É preciso jejuar durante as três Quaresmas, duplamente durante a grande, salvo nas grandes festas e fora sábados e domingos. Durante as duas outras Quaresmas deve-se jejuar simplesmente. Nos outros dias do ano deve-se comer uma vez por dia, salvo nos sábados, domingos e nos dias de festas, mas nunca até a saciedade.

143. Esforce-se para ser um modelo útil a toda a fraternidade com toda virtude, com humildade e doçura, compaixão e obediência até nas menores coisas, ausente de cólera e de paixão, na pobreza e na compunção, na inocência e na discrição, na simplicidade do comportamento e na reserva para com todos os homens, na visita aos doentes e no consolo aos aflitos. Não se desvie de nenhum dos que precisam de sua ajuda sob pretexto de estar com Deus: pois o amor vale mais do que a prece. Esforce-se por ser compassivo para com todos, livre de vanglória e discreto. Tente jamais ser peremptório, jamais reclamar ao superior nem a ninguém que tenha um cargo, honre a todos os padres, esteja atento durante as suas orações, rejeite a afetação, ame a todos e não procure, por vaidade, perscrutar e sondar as Escrituras. É a oração dita em meio às lágrimas e a iluminação que lhe virá da graça que lhe ensinarão estas coisas. Se você for interrogado a respeito de alguma coisa do que devemos fazer, ensine as ações divinas – aquilo que a graça lhe disser que diga – com muita humildade, a partir de sua vida, como se se tratasse da vida de outro, sem nenhuma vaidade, quem quer que seja que pediu sua ajuda. E não dê as costas a quem lhe pedir que o assista a respeito de um pensamento, mas tome sobre si suas faltas, quaisquer que sejam, chorando e orando por ele. Este é um sinal de amor e de total compaixão. Não afaste que vem a você, não pense que lhe será prejudicial ouvir tais coisas. Porém, para não prejudicar aos demais, estas conversas devem se dar num lugar longe dos olhares, mesmo que você, não sendo mais do que um homem, venha a ser assaltado por algum pensamento. Por que se a graça lhe conceder, você não se deixará prender por este pensamento. De fato, nos é prescrito buscar não o nosso bem, mas o bem dos outros, para que eles sejam salvos[146]. Como dissemos, você deve manter uma vida pacífica e pobre. Então você considerará a si mesmo como submetido à ação da graça, quando se vir como o mais pecador dos homens. Não posso lhe dizer como isto acontecerá, mas Deus sabe.

144. Durante as vigílias noturnas você deve ler por duas horas e orar por duas horas, com compunção e lágrimas, dizer o cânon que escolher e, se você quiser, os doze salmos, o Amômos[147] e a oração de santo Eustrate[148]. Isto nas noites longas. Nas noites curtas faça um ofício mais curto, conforme a força que Deus lhe der. Sem ele, com efeito, é impossível alcançar qualquer bem, como disse o Profeta: “Os passos do homem são dirigidos pelo Senhor[149]”. E o próprio Senhor disse: “Sem mim vocês nada podem[150]”. Jamais comungue sem derramar lágrimas.

145. Você deve comer de tudo o que lhe for proposto e beber vinho moderadamente, sem murmurar. Mas se estiver enfermo e vivendo à parte, coma alguns legumes crus com azeite. Se um dos irmãos lhe enviar qualquer coisa para comer, receba-a com gratidão e humildade, como um estrangeiro. Seja como for, receba-a. O que restar envie a outro irmão pobre e piedoso. Se um padre o chamar para uma consolação[151], tome tudo o que lhe for oferecido, mas sempre pouco, segundo o mandamento que manda manter a temperança. Quando se levantar, depois de fazer uma metania como faria um estrangeiro ou um pobre, exprima sua gratidão e diga: “Padre santo, que Deus o recompense”. E guarde-se de contar aos outros, mesmo que isto posse vir a ser útil.

146. Se vier a você um irmão que foi repreendido pelo superior, pelo ecônomo ou por qualquer outro, console-o assim: “Irmão, acredite que isto lhe aconteceu para prová-lo. Também eu conheci essa humilhação em outras circunstâncias e, em minha fraqueza, fiquei triste. Mas depois que tive certeza de que essas coisas só aconteceram para me testar, passei a suportá-las com gratidão. Faça o mesmo, e você se regozijará com tais aflições”. Se ele próprio começar a fazer reprimendas ferinas, não se afaste, mas console-o como a graça lhe permitir. Numerosos são os discernimentos. E na medida em que você compreender o estado de seu irmão e seus pensamentos, reencontre-o e não o deixe partir sem tê-lo confortado.

147. Se você demorar a visitar um irmão enfermo, avise-o: “Creia-me, santo pai, soube hoje de sua doença e peço seu perdão”. Depois, quando for vê-lo, faça uma metania diante dele, espere que ele lhe dê a sua bênção e diga: “Como Deus o socorreu, santo pai?”. Sentado, com as mãos postas, permaneça calado. Mas, se houver outros que vieram visitar o doente, cuide para não conversar, nem sobre as Santas Escrituras, nem sobre as ciências da natureza, não coloque nenhuma questão a fim de não se tornar presa da aflição. Pois é isto que, na maior parte das vezes, acontece aos irmãos mais simples.

148. Se lhe ocorrer de tomar refeição com irmãos piedosos, aceite os alimentos que lhe forem apresentados, sejam quais forem, sem fazer diferença. Se você recebeu do pai espiritual ordem para não comer peixe ou outro alimento e estas coisas lhe forem oferecidas e se quem lhe deu a ordem não estiver longe, procure-o para obter sua licença para comer estes alimentos. Se ele não estiver próximo ou se você souber que ele não lhe dará aprovação, e se você não quiser escandalizar seus irmãos, depois da refeição conte a ele o que aconteceu e peça seu perdão. Mas se você quiser evitar tanto uma como outra coisa, o melhor é não comer com os irmãos. Pois então seu benefício será duplo: você escapará do demônio da vanglória e evitará para os irmãos o escândalo e a aflição. Enfim, se lhe oferecerem alimentos mais ricos, mantenha a regra. Diante de tais alimentos, o melhor é tomar um pouco de tudo. Faça o mesmo se alguém o convidar, conforme recomendou o Apóstolo: “É preciso comer de tudo o que for oferecido, sem colocar questão alguma por motivo de consciência[152]”.

149. Se no momento em que você faz suas orações em sua cela alguém bater à porta, abra. Sente-se, fale com humildade. Talvez você possa concorrer para o bem de quem o procurou. Se ele se acha oprimido por uma aflição, tente confortá-lo por palavras ou ações. Quando ele partir, feche a porta, retome e termine sua oração. Pois cuidar dos que vêm é uma obra semelhante à reconciliação. Porém, se vier um homem do mundo você não deve agir assim, mas falar-lhe apenas depois de terminada sua oração.

150. Se ao orar você sentir certo medo, seja por que ouviu um ruído, seja por que brilhou algo semelhante a uma luz, seja por que aconteceu algo do gênero, não se perturbe. Antes persevere com mais ardor ainda na prece. Pois às vezes acontece, vindo dos demônios, uma agitação, um arrepio, uma vertigem, para que você relaxe e negligencie a oração, e para que, caindo em seu poder, você se torne daí por diante cativo deles. Mas se ao terminar a prece brilhar sobre você outra luz da qual lhe é impossível expressar em palavras, se sua alma se enche de alegria, se você deseja o melhor, se derrama lágrimas compungidas, saiba que se trata de uma visita de Deus e de um auxílio[153]. Se você permanecer longo tempo neste estado, por não lhe acontecer mais nada, embora suas lágrimas o oprimam, mantenha cativo seu intelecto em qualquer trabalho manual para se sentir humilhado. Tome cuidado para não desleixar a oração por causa do medo que lhe causam os inimigos. Assim como uma criança atemorizada por espantalhos deixa de temer quando se refugia nos braços da mãe ou do pai, também você, se correr para Deus por meio da oração, escapará ao temor que lhe infligem os seus inimigos.

151. Se quando você se encontra sentado em sua cela um irmão vem interroga-lo a respeito de um combate de sua carne, não o despache. Cheio de compunção ajude-o com aquilo que a graça de Deus e sua própria experiência lhe permitirem dizer e só então despeça-o. Quando ele sair, faça uma metania diante dele e diga: “Creia-me, irmão, eu espero que o amor de Deus afastará de você este combate, desde que você não ceda nem relaxe”. Depois de sua partida, de pé, recorde seu combate e, elevando as mãos para Deus, chorando e gemendo, peça por seu irmão dizendo: “Senhor Deus, que não deseja a morte do pecador[154], faça como só você sabe, e do modo que for melhor para este irmão”. E Deus, que sabe a confiança que o irmão depositou em você, que conhece sua compaixão por amor e a oração sincera por ele, aliviará seu combate.

152. Todas estas coisas, irmão, convêm à compunção. É preciso conduzi-las com o coração quebrantado[155], paciência e ação de graças. Elas são verdadeiras fontes de lágrimas que purificam das paixões e abrem o Reino dos céus. Pois o Reino dos céus é dos que se fazem violência, e são os que se violentam que o ganham[156]. Se você chegar até aí você estará completamente desembaraçado do modo como vivia antigamente, e talvez até das sugestões do pensamento. As trevas se retiram naturalmente diante da luz, e a sombra diante do sol. Pois se alguém negligencia estas coisas no início, relaxando o pensamento, se ocupando com o que é supérfluo, ficará privado da graça. Então, caindo sob as paixões do mal, conhecerá sua própria fraqueza, cheio de terror. Mas, por outro lado, é preciso que quem chegou a realizar tais coisas não considere tê-las feito por seu próprio esforço, mas pela graça de Deus. É preciso começar pela autopurificação, conforme aquele que disse: “Você deve primeiro se purificar, para depois se encontrar com o Puro”. De fato, quando o intelecto foi purificado por meio de muitas lágrimas e acolhe o esplendor da luz divina, esta luz que nem todo o mundo é capaz de atenuar, quando ele a recebe, ele permanece em espírito com prazer nos bens do século futuro.

153. Um dia perguntaram a este santo e bem-aventurado Simeão que tipo de homem deveria ser um sacerdote. Ele respondeu: “Eu não sou digno de ser sacerdote. Mas quem é aquele que irá celebrar o culto divino, isto eu sei com certeza. Primeiro ele deve ser casto, não apenas no corpo, mas também na alma. Por outro lado, ele deve estar desembaraçado de todo pecado. Em segundo lugar ele deve ser humilde, tanto em seu comportamento exterior como nas atitudes interiores de sua alma. Depois, quando ele estiver diante do santo altar, ele deverá enxergar sem a menor dúvida por meio dos olhos do intelecto a Divindade, e pelos olhos sensíveis os santos dons expostos. Mais ainda, ele deve ter em si conscientemente, habitando em seu próprio coração, Aquele que está invisivelmente presente nos dons, a fim de poder oferecer as demandas com segurança e, falando como um amigo a outro[157], dizer: Pai nosso que está no céu, santificado seja o seu nome[158], e esta oração significará que ele possui em si, junto com o Pai e o Espírito Santo, Aquele que por natureza é em verdade o Filho de Deus. Eu já vi sacerdotes assim. Perdoem-me, pais e irmãos”.

Como se falasse de outra pessoa, escondendo-se e fugindo da glória dos homens, mas forçado por seu amor aos homens, ele se desvelou e disse: “De um monge e sacerdote que se confiou a mim como a um amigo, eu ouvi o seguinte: ‘Eu jamais celebrei a Liturgia sem ver o Espírito Santo, como o vi chegar sobre mim quando o metropolita me consagrou dizendo a oração de ordenação sacerdotal com o eucológio[159] sobre minha pobre cabeça’. Quando eu lhe perguntei como ele vira o Espírito Santo, e sob que forma, ele me disse: ‘Simples e sem forma. Mas ele era como que uma luz. No começo, eu me espantei de ver o que jamais contemplara e me perguntei o que poderia ser aquilo. Mas então ouvi uma voz que me dizia secretamente: É assim que eu visito todos os profetas e os apóstolos, os eleitos e os santos de Deus até hoje. Pois eu sou o Santo Espírito de Deus’.” A ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém.







[1] Cf. II Coríntios 6: 10.
[2] Cf. Efésios 3: 8.
[3] Salmo 39 (40): 2.
[4] Cf. Mateus 10: 37.
[5] Cf. Tito 2: 13.
[6] Cf. Lucas 19: 26.
[7] Cf. Mateus 11: 28.
[8] Cf. Filipenses 3: 8.
[9] Cf. I Coríntios 7: 31.
[10] Cf. Mateus 5: 44.
[11] Cf. Filipenses 3: 8.
[12] Cf. João 1: 9.
[13] Cf. I Coríntios 9: 27.
[14] Cf. Romanos 6: 11.
[15] Cf. João 5: 39.
[16] Cf. Tiago 1: 23.
[17] Cf. Mateus 24: 5-24.
[18] Mateus 15: 14.
[19] Cf. I Coríntios 15: 49.
[20] Cf. Efésios 4: 13.
[21] Cf. Salmo 118 (119): 32.
[22] Cf. Hebreus 5: 14.
[23] Cf. I Coríntios 14: 25.
[24] Cf. Provérbios 9: 18.
[25] Cf. Lucas 18: 27.
[26] Cf. João 6: 28.
[27] Cf. Filipenses 2: 8.
[28] Cf. Mateus 12: 36.
[29] Cf. Mateus 13: 25.
[30] Salmo 41 (42): 6.
[31] Cf. Romanos 3: 20 e Gálatas 2: 16.
[32] Salmo 142 (143): 2.
[33] Cf. Mateus 4: 10.
[34] Cf. Gênesis 1: 26-27.
[35] Cf. I João 4: 13.
[36] Cf. Salmo 4: 7.
[37] Cf. Gálatas 6: 3.
[38] Cf. Salmo 13 (14): 5.
[39] Cf. Salmo 2: 9
[40] Mateus 6: 25.31.32.
[41] Lucas 21: 34.
[42] Cf. Mateus 18: 10.
[43] Cf. Mateus 16: 24.
[44] Cf. Gálatas 3: 27.
[45] Cf. João 15: 13-14.
[46] Cf. Gálatas 6: 1.
[47] Cf. Mateus 7: 26.
[48] Cf. João 16: 20.
[49] Cf. Salmo 118 (119): 32.
[50] Cf. Jeremias 20: 9.
[51] Cf. Efésios 5: 6.
[52] Cf. Mateus 7: 15.
[53] Cf. Romanos 7: 22.
[54] Cf. Romanos 1: 29.
[55] Cf. Mateus 7: 20
[56] Cf. Atos 2: 46.
[57] Cf. Mateus 12: 36.
[58] Mateus  5: 8.
[59] Cf. Gálatas 3: 13.
[60] II Coríntios 6: 16.
[61] Mateus 3: 2.
[62] Cf. II Coríntios 1: 22; Efésios 1: 14.
[63] Cf. II Coríntios 1: 22.
[64] Id.
[65] Cf. I Coríntios 13: 12.
[66] Cf. Mateus 25: 5.
[67] Provérbios 8: 17.
[68] Cf. II Coríntios 1: 22.
[69] Cf. Romanos 5: 10.
[70] Cf. I Coríntios 2: 9.
[71] Cf. I Pedro 1: 12.
[72] Cf. Hebreus 11: 38.
[73] Cf. Romanos 8: 27.
[74] Cf. Oséias 4: 12.
[75] Cf. Salmo 105 (106): 39.
[76] Cf. Salmo 102 (103): 8.
[77] Cf. Salmo 41 (42): 2.
[78] Cf. Gênesis 28: 12-13.
[79] Cf. II Coríntios 12: 2-3.
[80] Cf. João 1: 3 e 15: 5.
[81] O hábito monástico.
[82] Cf. João 17: 4.
[83] Cf. Mateus 6: 9.
[84] Cf. João 17: 5.
[85] Cf. Romanos 8: 17.
[86] Cf. II Coríntios 4: 16.
[87] Cf. João 12: 35.
[88] Cf. Romanos 15: 5.
[89] Cf. I Pedro 1: 12.
[90] Cf. I Coríntios 3: 18.
[91] Cf. Hebreus 12: 22.
[92] Cf. João 16: 3.
[93] Cf. I Timóteo 6: 16.
[94] Cf. João 6: 45.
[95] Id.
[96] Cf. I Coríntios 1: 20.
[97] Cf. Tiago 3: 15.
[98] Cf. Colossenses 3: 5.
[99] Cf. Romanos 8: 14.
[100] Cf. João 12: 35.
[101] Cf. João 3: 3-7.
[102] Cf. João 3: 5.
[103] Cf. Lucas 17: 21.
[104] Colossenses 3: 3.
[105] Cf. Gálatas 3: 27.
[106] Cf. Salmo 57 (58): 4.
[107] Cf. Mateus 18: 10.
[108] Mateus 25: 35.
[109] Mateus 25: 40.
[110] Cf. Levítico 19: 18.
[111] Cf. Mateus 5: 42.
[112] Cf. Mateus 7: 12.
[113] Cf. Levítico 19: 18.
[114] Cf. Mateus 7: 12.
[115] Cf. Mateus 25: 45.
[116] II Coríntios 5: 14.
[117] Cf. Mateus 19: 21.
[118] Cf. Mateus 5: 42.
[119] Cf. I Tessalonicenses 5: 17.
[120] Cf. Salmo 118 (119): 164.
[121] Cf. Salmo 54 (55): 18.
[122] Cf. Salmo 93 (94): 10.
[123] Cf. Êxodo 31: 18.
[124] Cf. Mateus 13: 52.
[125] Salmo 15 (16): 8.
[126] Cf. 14: 4.
[127] Cf. Provérbios 20: 9.
[128] Cf. Tiago 3: 2.
[129] Cf. Mateus 5: 8.
[130] Mateus 19: 21.
[131] Cf. Salmo 7: 9.
[132] Cf. Atos 19: 4.
[133] Cf. Mateus 3: 6.
[134] Isaías 43: 26.
[135] Lucas 17: 10.
[136] Romanos 5: 3-5.
[137] I Coríntios 2: 9.
[138] Cf. Filipenses 2: 8.
[139] Cf. Mateus 11: 12.
[140] Salmo 15 (16): 8.
[141] Cf. I Coríntios 10: 13.
[142] Cf. I Coríntios 2: 9.
[143] Mateus 7: 8.
[144] Cf. Gênesis 28: 15.
[145] Cf. Mateus 8: 20.
[146] Cf. I Coríntios 10: 24. 33.
[147] O homem íntegro; designa o Salmo 118 (119).
[148] Esta oração se encontra no ofício bizantino da meia-noite de sábado.
[149] Salmo 36 (37): 23.
[150] João 15: 5.
[151] Um antepasto.
[152] I Coríntios 10: 25.
[153] Cf. Salmo 21 (22): 19; 88 (89): 18.
[154] Cf. Ezequiel 18: 23.
[155] Cf. Salmo 50 (51): 19.
[156] Cf. Mateus 11: 12.
[157] Cf. Êxodo 33: 11.
[158] Mateus 6: 9.
[159] Livro que contém as orações ditas durante as liturgias dos sacramentos.