segunda-feira, 16 de abril de 2018

Arquimandrita Sofronio - Excertos do Ensinamento de São Silouane o Athonita: Da Luz Incriada e dos Modos de Sua Contemplação



Sendo Deus “a Luz na qual não existem trevas”, ele se manifesta sempre na luz e como luz. A luz divina é a energia incriada. O homem que a contempla experimenta antes de tudo uma sensação que o penetra inteiramente: a presença do Deus Vivo. Trata-se de uma sensação imaterial do Imaterial, de uma “sensação intelectual”, mas não mental. Ela transporta o homem a um universo distinto com tanta força e ao mesmo tempo com tanta delicadeza, que este não se dá conta do instante em que lhe ocorreu e tampouco sabe se foi em seu corpo ou fora dele. Nesse momento, o homem tem uma consciência de seu ser que é mais lúcida e profunda do que em qualquer momento anterior de sua vida ordinária; ele se esquece, no próprio tempo, se si e do mundo, imerso como está na doçura do amor divino. Em espírito, vê o Invisível, respira-o, está por inteiro nele.

Essa sensação supramental do Deus Vivo vem acompanhada de uma luz radicalmente diferente, por sua própria natureza, da luz física. O homem então experimenta essa luz, se identifica com ela e já não experimenta nem sua própria materialidade, nem a do mundo.

A visão sobrevém quando menos se espera, e de modo incompreensível; ninguém pode dizer se ela provém do interior ou do exterior; mas ela penetra e envolve inefavelmente o espírito e faz com que ele sinta a irradiação da glória divina, sem que se possa falar propriamente de “êxtase”, pois não se percebe que a alma abandone o corpo e a seguir volta para ele. Não existe nisso, portanto, nada de patológico.

É Deus quem atua, e o homem recebe. O homem não conhece então nem espaço nem tempo, nem nascimento, nem morte, nem sexo ou idade, nem situação social ou hierárquica, nem outros condicionamentos ou relações desse mundo.

Deus, Senhor da vida e luz eterna, visitou em sua misericórdia a alma arrependida.

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A contemplação da luz divina não depende de condições alheias a ela. Às vezes a benevolência divina visita o homem sem que suas percepções do corpo e do mundo sejam abolidas. Nesses casos o homem pode permanecer com os olhos abertos e ver duas luzes simultaneamente, a natural e a divina. Os Santos Padres chamam a uma visão com essas características de “visão pelos olhos naturais”. Isso não quer dizer, porém, que o ato da visão da luz divina seja análogo ao processo psicofisiológico da visão natural. Não se supõe, em outras palavras, que a luz divina – seja lá qual for a teoria científica da luz que aceitemos – produza, tal como a luz física, uma excitação específica do nervo ótico, que por sua vez se transformaria num processo psicológico da visão, pois a luz divina é de outra natureza: luz do intelecto, luz do espírito, luz do amor, luz da vida.

No universo físico, a luz natural é a imagem da luz divina. Assim sendo, a visão das coisas que nos rodeiam é impossível sem a luz. Se a luz é fraca, o olho apenas consegue distinguir os objetos; se a luz é mais viva, ela os vê melhor e, por fim, em plena luz do sol, a visão alcança uma certa perfeição. O mesmo acontece no mundo espiritual, onde a visão autêntica só é possível a partir da luz divina. Mas essa luz não é concedida aos homens por igual: a fé é luz, mas fraca; a esperança também é luz, mas ainda imperfeita; só na plenitude do amor a luz alcança sua perfeição.

A luz incriada, de modo semelhante ao sol, ilumina o mundo espiritual e permite ver os caminhos invisíveis do espírito. Sem ela o homem não pode conhecer nem contemplar, e menos ainda cumprir os mandamentos de Cristo, pois permanece nas trevas. A luz incriada traz consigo a vida eterna e a força do amor divino; ou melhor, ela é essa vida eterna e esse divino amor.

Quem nunca contemplou com vigor e certeza a luz incriada não alcançou a verdadeira contemplação. Aquele que, antes de ter visto a luz incriada, ousa sondar “com sua inteligência” os mistérios divinos, não apenas não os vê, como ainda fecha o caminho que conduz a eles, não verá mais do que máscaras ou espectros da verdade, forjado por si mesmo, ou mesmo suscitados pela energia hostil das fantasias demoníacas.

A contemplação autêntica provém do alto, doce e suavemente. Não é abstrata nem intelectual, mas distinta qualitativamente da mais aguda das intelecções. É a luz da vida, concedida pela benevolência de Deus. O caminho q eu conduz a ela não é o raciocínio nem um procedimento “psicotécnico”, mas a compunção.

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Vida eterna, Reino de Deus, “Energia incriada”, a luz divina não é algo inerente à natureza criada do homem; sendo de natureza distinta da sua, ela não pode ser atualizada por ele por esforços ascéticos: é sempre um dom da misericórdia divina.

Perguntamos ao Starets: “Como pode o homem conhecer isso por experiência própria?”. O santo Starets dizia que quando Deus aparece na grande luz, é impossível duvidar que seja o Senhor, o Criador Pantocrator. Mas aquele que não contemplou senão um “resplendor” dessa luz, e que, em lugar de cimentar a fé no testemunho dos Padres, interpreta isso a partir de sua própria experiência, não saberá diferenciar a natureza heterogênea dessa luz em relação à natureza da alma. Somente as alternâncias de visitas e abandonos lhe permitirão distinguir entre a ação divina e o mais elevado esforço do espírito.

Quando o homem, no momento da oração, vê pela primeira vez a luz incriada, aquilo que ele contempla e experimenta é tão novo para ele, tão insólito, que não é capaz de conceber; sente que os limites de seu ser se dilatam indizivelmente, que a luz que se mostra a ele o transporta da morte para a vida, mas a imensidão de sua experiência o surpreende e o enche de estranheza; somente a repetição dessas visitas lhe revela a magnitude e o sentido do dom.

Durante e depois da visão, a alma permanece embargada por uma paz profunda e um doce amor divino, que a desapegam de todo desejo terrestre, do desejo de glória, de riqueza, de felicidade, mesmo do desejo de viver; tudo lhe parece insípido e ela não aspira a outra coisa senão a infinitude viva de Cristo, onde não existe começo nem fim, nem trevas, nem morte.


Dentre os modos de contemplação descritos, o Starets preferia aquele no qual “o mundo fica inteiramente esquecido”, onde o intelecto, vazio de imagens, é introduzido na luz infinita, pois tal visão revela como maior plenitude os mistérios do “século futuro”. A alma sente ativamente, nesse sentido, sua comunhão com a vida divina e participa verdadeiramente da chegada de Deus, que não é possível expressar com palavras humanas.

Quando, por razões que o homem desconhece, a visão cessa – tão independente de sua vontade quanto se deu sua chegada – então, com certa preguiça, a alma retorna à percepção do mundo exterior; e à doce alegria do amor divino se junta uma dor sutil por ver de novo a luz do sol criado.

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O homem é a imagem de Deus. Mas nós nos perguntamos: o que é que nele constitui a imagem de Deus? Ou, em outras palavras, onde está inscrita essa imagem? No corpo? Na estrutura psíquica ou psicossomática do homem? Na tríade de potências da alma? Estará ela, de forma genérica, na estrutura ternária de seu ser? A resposta a essa pergunta é extremamente complexa. As frações e reflexos da imagem de Deus não estão fora das coisas que acabamos de enumerar, mas o essencial é o “modo de existência”. O ser criado entra, graças ao dom da benevolência divina, em comunhão com o ser incriado e eterno. Como isso é possível? É algo tão incompreensível e insondável quanto o mistério da criação ex nihilo. E no entanto, a benevolência do Pai eterno para com o homem, criado à sua imagem e semelhança, é tamanha, que ele lhe concedeu a capacidade de receber a deificação; vale dizer, de se tornar partícipe da vida divina, de receber o modo de existência divina, de converter-se em um deus pela graça.

O homem recebe a deificação; ou seja, Deus é o princípio ativo no ato da deificação, enquanto que o homem é o princípio receptivo. Essa recepção, porém, não consiste num estado passivo, porquanto o ato deificante não pode se realizar sem o consentimento do homem; caso contrário, a própria possibilidade da deificação estaria excluída. Aqui reside a diferença entre o ato inicial da criação e sua etapa última: a deificação dos seres pessoais.

Se a criação do universo é um mistério de grandeza inconcebível, o mistério da criação de deuses eternos é incomparavelmente superior em majestade. Se a vida do mundo inteiro que nos rodeia é um milagre surpreendente, o milagre divino que se opera quando o homem é introduzido no mundo da luz incriada é infinitamente mais profundo.

O próprio fato de existir enche o homem de admiração a partir do momento em que ele cai em si. Conhecemos homens que, elevando-se até a esfera do intelecto próprio à natureza humana criada, ficaram deslumbrados diante de seu esplendor luminoso. Mas quando o homem é introduzido no mundo da luz incriada, sua admiração diante de Deus é indizível e ele não encontra palavras nem imagens, nem suspiros para expressar sua gratidão.


DA IMPASSIBILIDADE À IMAGEM DE DEUS

Deus carece de paixão. A luz incriada que dele procede comunica ao homem, com sua aparição, uma impassibilidade semelhante à de Deus, que constitui o objetivo final da ascese cristã. Mas podemos nos perguntar: o que é a impassibilidade? Segundo sua acepção filológica, trata-se de um conceito negativo – assim, não será então igualmente negativa sua acepção real? Não suporá uma renúncia à nossa existência? Não, a impassibilidade cristã não renuncia à existência, antes ela se reveste de uma nova vida, santa, eterna: vale dizer, de Deus. O apóstolo Paulo diz: “Com efeito, não queremos despir-nos, mas nos revestirmos com essa segunda vestimenta, a fim de que o mortal seja absorvido pela vida[1]”.

Em sua busca da impassibilidade, o asceta ortodoxo aspira a uma comunhão viva e real com Deus, que ele sabe ser impassível. A impassibilidade de Deus não é algo morto, estático; ela não se caracteriza como uma indiferença diante da sorte do mundo e do homem. A impassibilidade de Deus não é uma ausência de movimento, de compaixão, de amor. Mas apenas pronunciamos essas palavras, que evocam em nosso espírito conceitos tão limitados em seu uso ordinário, e surge uma porção de problemas insolúveis. Movimento, compaixão, amor, etc. – não introduzem esses termos um elemento de relatividade no ser divino? Ao falarmos assim, não estramos aplicando a Deus um antropomorfismo indigno dele?

Deus é Vida, Amor; Deus é a Luz na qual não existem trevas, vale dizer, as trevas de sofrimentos entendidos como desintegração e morte, trevas de ignorância, de não-ser ou de mal, trevas de imperfeições e de contradições não resolvidas, de rupturas ou de descontinuidades ontológicas. Deus é um Deus vivo, dinâmico; mas o dinamismo da vida divina é a plenitude de uma Existência que, por não possuir começo nem fim, exclui qualquer processo teogônico.

A impassibilidade de Deus não implica uma transcendência absoluta que exclua sua participação na vida da criatura. Deus ama, tem piedade, se compadece, se alegra; mas nada disso introduz em seu Ser a desintegração, a relatividade, a paixão. Deus, na sua Providência, se preocupa com sua criatura até o menor detalhe, com precisão matemática. Salva como um pai, como um amigo; consola como uma mãe, participa intimamente de toda a história da humanidade, da vida de não importa qual homem, mas essa participação não implica nem mudança, nem flutuação, nem processo evolutivo do ser divino.

Deus vive toda a tragédia do mundo, mas isso não significa que no próprio Deus, no seio da Divindade, se desenrole uma tragédia ou uma luta que seria consequência de alguma carência sua ou de quaisquer trevas que não estivessem ainda superadas nele.

Deus ama o mundo: veio ao mundo, se encarnou, sofreu e inclusive morreu em sua carne, sem deixar de permanecer imutável em seu Ser supracósmico. Ele realizou a tudo impassivelmente, do mesmo modo como abraça em sua Eternidade, de modo integral e não espacial, todas as extensões temporais do ser criado. Em Deus o momento estático e o dinâmico formam uma unidade tão absoluta que não é possível aplicar ao seu Ser nenhum de nossos conceitos distintos e separados.

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Em seu constante esforço para alcançar a impassibilidade divina, o asceta ortodoxo não concebe essa impassibilidade como “fria indiferença”, nem como “despreocupação de uma existência ilusória”, nem como uma contemplação “além do bem e do mal”, mas a concebe como a vida no Espírito Santo.

O impassível está cheio de amor, de compaixão, de participação, mas tudo isso provém de Deus que atua nele. Podemos definir a impassibilidade como sendo a “aquisição do Espírito Santo”, como Cristo “vivo em nós”. A impassibilidade é a luz de uma vida nova, uma vida que faz brotar no ser humano sentimentos novos e santos, novos pensamentos divinos, uma nova luz do conhecimento eterno.

Os santos Padres da Igreja definem a impassibilidade como sendo a “ressurreição da alma antes da ressurreição universal dos mortos[2]”, como “entrada na infinita Infinitude[3]”.

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O caminho ordenado da aquisição da impassibilidade passa pelas seguintes etapas: a primeira é a fé, entendida não como convicção racional, mas como experiência do Deus Vivo; da fé nasce o temor ao juízo de Deus; do temor, o arrependimento; do arrependimento, a oração, a confissão, as lágrimas. Crescendo e se aprofundando, o arrependimento, a oração e as lágrimas realizam uma primeira libertação das paixões, de onde nasce a esperança. A esperança redobra os esforços ascéticos, as orações e as lágrimas, afina e aprofunda a experiência do pecado, coisa que faz crescer o temor, que se transforma em profundo arrependimento, o qual atrai a misericórdia divina, e então a alma recebe a graça do Espírito Santo, cheia da luz do amor divino.

Também a fé é amor, mas débil ainda; a esperança é amor, mas imperfeito. Cada vez que a alma se eleva de um grau inferior a outro superior passa inevitavelmente pelo crisol do temor. O amor, com sua aparição, afasta o temor; mas o temor, afastado por um amor débil, renasce de novo na subida da alma a um amor maior, e novamente é superado pelo amor; somente o amor perfeito, segundo o testemunho do grande Apóstolo do amor, varre por completo o temor, que comporta tormentos.

Existe outro temor a Deus, no qual não existem tormentos, mas o sopro da Eternidade santa. Eis como se expressava o Starets a propósito desse temor que não abandona o homem durante toda sua existência terrestre: “Diante de Deus, é necessário viver em temor e amor. Em temor, porque é o Senhor; em temor, para não ofender o Senhor com maus pensamentos; e em amor, porque o Senhor é Amor”.

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O silêncio interior, a hesíquia do monge ortodoxo nasce ordenadamente de um profundo arrependimento e de seu esforço para observar os mandamentos de Cristo. Não se trata em absoluto de uma aplicação artificial da teologia areopagita à vida espiritual. É certo que as teses teológicas do Areopagita não contradizem os resultados da hesíquia e que, nesse sentido, existem relações e coincidências com ela. Acreditamos ser indispensável insistir, porém, num ponto de extrema importância: não é a filosofia abstrata da teologia apofática, mas o arrependimento e a luta contra “a lei do pecado[4]” que atua em nós, que está na raiz da hesíquia. E a incognoscibilidade da Divindade pode ser conhecida precisamente nesse caminho, na aspiração a fazer dos mandamentos de Cristo a única lei de nossa existência eterna. Nesse caminho, o espírito humano se despoja de todas as imagens do mundo e o transcende.

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Deus é Amor e, enquanto amor infinito, quis se dar por inteiro ao homem: “Eu lhes dei a glória que me deste[5]”. E quando essa glória é dada ao homem, embora continue sendo criatura devido à sua natureza, este, pelo conteúdo de sua vida, se converte verdadeiramente em um deus, na medida mesma de Cristo, Filho do homem.

Assim como no ato da Encarnação o Verbo coeterno ao Pai, tomando a forma de ser humano, se encarnou[6], também o homem toma em Cristo a forma do ser divino em sua infinitude, até chegar a se identificar com o Criador no ato de sua Existência.

O ser divino, absolutamente atualizado, exclui em si a presença de potencialidades não realizadas, e nessa medida pode ser chamado de “Ato puro”.

O ser divino, como Ser em si, não tendo uma causa exterior a si mesmo, sendo absolutamente perfeito desde toda eternidade e excluindo qualquer processo teogônico, é para o ser criado algo irredutível e pode ser chamado, nesse sentido, de “Realidade irredutível”.

Enquanto Ato (“energia”), o ser divino é comunicável à criatura racional em toda sua plenitude e infinitude. Enquanto Realidade irredutível (“essência”) ele é absolutamente transcendente e incomunicável à criatura, e segue sendo um Mistério selado para sempre[7].

Que o Ato do ser divino seja comunicável à natureza humana em toda sua plenitude, isso foi demonstrado pelo “homem Jesus Cristo[8]”, que é a medida de todas as coisas e o fundamento último de todo juízo. O apóstolo Felipe disse a Cristo: “Mostra-nos o Pai”, e recebeu a resposta: “Quem me viu, viu o Pai[9]”. Mas também se poderia dizer: aquele que viu a Cristo viu a si próprio tal como deveria ser segundo a intenção do Pai “desde antes da criação do mundo[10]”. E assim como Cristo, em sua natureza humana, contém “corporalmente a plenitude da divindade[11]”, e está “sentado no trono do Pai[12]”, do mesmo modo todo homem é chamado “ao talhe que convém à plenitude de Cristo[13]”. É para isso que somos chamados por Cristo: “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito[14]”.

Os santos, plenamente deificados pelo dom da graça, são introduzidos no ato divino de modo a que todos os atributos da divindade lhes sejam outorgados, até a identidade[15], sendo esta segundo o Ato, porém jamais segundo a Natureza. Por sua natureza, Deus segue sendo Deus eterna e imutavelmente para os seres criados, até que esses alcancem a identidade perfeita.

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Criado à imagem de Deus, o homem é chamado a viver segundo sua semelhança. A salvação consiste em receber uma vida idêntica à de Deus. Deus é onipresente e onisciente, e o Espírito Santo outorga aos Santos algo parecido a essa onipresença e onisciência. Deus é Verdade e Vida, e nele os Santos se tornam verdadeiros e vivos. Deus é Bondade absoluta e Amor envolvente de tudo o que tem vida, e no Espírito Santo os Santos abraçam amorosamente o mundo inteiro. Somente Deus é Santo, e os Santos são santificados pelo Espírito Santo. A noção de santidade não é de índole ética, mas ontológica. Santo não é aquele que alcançou um elevado grau no domínio da moral humana, ou uma vida de ascese, ou mesmo de oração (os fariseus também jejuavam e recitavam longas orações), mas aquele que leva consigo o Espírito Santo. O Ato do Ser divino é sem começo, e os deificados, ao participarem desse Ato, tornam-se também sem começo. Deus é a Luz na qual não existem trevas, e faz dos Santos, que são sua morada, pura luz. O Ser divino é Ato puro, e o homem, criado no princípio como simples potencialidade, ao ser deificado, se atualiza por inteiro e se converte, também ele, em Ato puro. A natureza criada do homem é inteiramente dependente do Ser absoluto do Criador, mas os partícipes do Ato divino se tornam tais, não em razão de sua “dependência”, mas por causa de sua livre determinação no ato do Amor perfeito.

O Ato do Ser divino é Luz pura. Quando o Senhor se digna aparecer ao homem, ele o faz sempre na luz e como luz. A santa Escritura diz: “Em sua Luz veremos a Luz[16]”, pois a visão da luz divina incriada é impossível a menos que se dê num estado de iluminação pela graça, um estado em virtude do qual o ato de contemplação é, antes de tudo, de “comunicação com Deus[17]”, de união com a vida divina. Mas quando o intelecto em estado de contemplação de Deus busca conhecê-lo em essência, topa com o Mistério absolutamente infranqueável da Realidade irredutível. A contemplação da incognoscibilidade da natureza divina é designada simbolicamente como “trevas divinas”. Esse termo se encontra pela primeira vez na literatura cristã do século IV, quando São Gregório de Nazianze e São Gregório de Nissa foram obrigados a refutar as pretensões que tinham alguns hereges de conhecer também a essência divina. Um deles, Aécio, afirmava conhecer a Deus melhor do que conhecia a si mesmo, e chegava a pretender estabelecer uma equação matemática de Deus. Outro, Eunômio, dizia que era possível um conhecimento adequado de Deus e afirmava que ele conhecia a Deus como o próprio Deus se conhecia.

Os Padres da Igreja chamavam as trevas divinas de “trevas transluminosas”. A propósito do mesmo tema, São Paulo diz que o “Senhor dos senhores (...) habita numa Luz inacessível[18]”, enquanto que, por sua vez, São João o Teólogo proclama: “Ninguém jamais viu a Deus; o Filho Único, que está no seio do Pai, é quem O revelou[19]”. O Filho Único “revela” a Deus no Ato de sua existência eterna como Luz em que não há treva alguma, mas, apesar da Encarnação hipostática, não tornou conhecida a essência de Deus.

AS TREVAS DA RENÚNCIA

Sendo Deus Luz em que não há trevas, ele aparece sempre na luz e como luz. Mas na realização da oração em sua forma hesiquiasta, a alma daquele que ora se encontra com travas de uma natureza particular, cuja descrição será tão contraditória e paradoxal quanto a de outros aspectos da experiência cristã. Essa contradição provém, por um lado, da natureza dessa experiência e, por outro, do ponto de vista desde o qual se considera ou se define o fato espiritual.

Nessas trevas a alma do asceta submerge interiormente, ao se despojar, mediante um ato voluntário e recorrendo a métodos ascéticos especiais, de qualquer representação ou imagem de coisas visíveis, bem como de conceitos e reflexões mentais; vale dizer, de tudo quanto “contêm” sua inteligência e sua imaginação; por essa razão, podemos chamá-las de “trevas da renúncia”. É costume denominar-se “metódica” essa oração, pois ela é praticada seguindo um método especialmente ordenado a esse fim.

Se quisermos especificar o “lugar espiritual” dessas trevas, é possível dizer que elas se encontram nos confins da aparição da luz incriada; mas quando se pratica a oração hesiquiasta sem o arrependimento requerido e sem que a oração esteja totalmente orientada para Deus, então a alma, desnuda de representações, pode seguir durante algum tempo nessas “trevas da renúncia” sem ver a Deus, pois Deus não está nelas.

Permanecendo nas trevas da renúncia, o espírito sente uma doçura e um repouso de índole particular; se nesse momento retorna a si, pode perceber algo parecido com a luz, mas que ainda não é a luz incriada da Divindade, mas um atributo do espírito criado à imagem de Deus. Franqueando os limites da condição temporal, tal contemplação aproxima o intelecto daquilo que é imutável e coloca assim o homem na posse de um novo conhecimento. Claro que se trata ainda de um conhecimento abstrato. Desgraçado daquele que toma essa sabedoria pelo conhecimento do Deus verdadeiro e essa contemplação pela comunhão com a vida divina: desgraçado, porque nesse caso a noite da renúncia, situada no umbral da verdadeira visão de Deus, se transformará numa cortina impenetrável e num muro que separará de Deus mais do que as trevas das paixões grosseiras, mais do que as dos combates demoníacos ou que as da perda da graça e do abandono de Deus; desgraçado, porque isso seria um erro, uma ilusão, já que Deus se manifesta na luz e como luz.

A ação da luz divina consome as paixões do homem pecador; daí que, durante certos períodos, possa ser sentida como um fogo devorador. Nenhum cristão que queira viver na ascese e nma piedade poderá evitar as feridas desse fogo.

As trevas da renúncia não são o único “lugar” onde se manifesta a luz incriada da Divindade. Deus pode aparecer também àqueles que o perseguem. Mediante sua aparição, é certo, ele transporta o homem para fora desse mundo, derivando daí igualmente, nesse sentido, uma renúncia às imagens sensíveis e aos conceitos racionais, mas a ordem de sucessão desses estados será inversa. O homem a quem Deus quis manifestar sua Luz já não será vítima da aberração de confundir a luz natural do intelecto com a luz incriada da Divindade. Esse extravio, portanto, só pode se produzir no caso em que o homem alcança as trevas da renúncia por meio de alguma “técnica” apropriada, antes de haver contemplado a luz incriada, confiando em si mesmo ao invés de se deixar guiar pelos Padres.

Quando a luz que aparecera ao homem o abandona, a alma suspira por ela e a busca de novo por todos os meios ao seu alcance, bem como pelas indicações dos Padres da Igreja e, dentre essas, pelo método da oração hesiquiasta. O recurso a essa arte – ou a essa ciência ascética – como o demonstra a experiência secular, é plenamente legítimo, mas não convém exagerar sua relevância; do mesmo modo como, em sentido inverso, ele não deve ser irrefletidamente rechaçado, como querem alguns. Essa arte não constitui uma condição sine qua non para a salvação, não consiste mais do que “muletas” para quando a ação da graça, que une sem esforço o intelecto ao coração, se reduz ou diminui; a união entre o intelecto e o coração passa então a ser buscada pelo próprio esforço.

Normalmente, a oração hesiquiasta deve conter algo positivo. Vale dizer, ela dever ser precedida por um sentimento de arrependimento e por um impulso em direção a Deus. Quando isso não acontece, ela não vai além de uma ação ascética e negativa, e não pode, nesse sentido, constituir um fim em si mesma. Poderá no máximo ser considerada como um meio de nossa condição decaída, quando as paixões nos dominam; em outras palavras, quando o pecado que opera em nós se converte quase que na lei de nossa existência.

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O Starets amava o silêncio do intelecto e durante muitos anos recorreu constantemente ao método de oração hesiquiasta. Isso lhe foi facilitado pelo fato de que a prece do coração não se interrompeu nele a partir do momento em que recebeu esse dom da Mãe de Deus. A calma resultante da redução, o mais completa possível, de todas as impressões sensoriais, e sobretudo a escuridão e o silêncio, constituem as condições exteriores favoráveis à oração hesiquiasta. O Starets, do mesmo modo como todos que vivem como hesiquiasta, teve que buscar ajuda externa. Vamos nos referir, a esse respeito, a alguns breves detalhes de sua vida. Quando era relativamente jovem, ele obteve permissão do higoumeno para se dirigir ao Velho Rossikon a fim de viver na solidão. Construiu ali uma pequena kalyha, não muito distante do pavilhão da comunidade. Foi ali que ele recebeu a visita do Padre Estratonico. Ele não permaneceu por muito tempo no Velho Rossikon: logo foi chamado ao mosteiro e nomeado ecônomo. Nessa época ele se trancava em sua cela e guardava o despertador no fundo do armário para não escutar o tic-tac; às vezes enfiava na cabeça seu espesso gorro de lã, de modo a cobrir os olhos e ouvidos. Quando começou a dirigir o armazém de víveres, que se encontrava fora dos muros, arrumou no vasto espaço do armazém um canto cômodo para a oração hesiquiasta e ali passava suas noites, indo à igreja ´para as matinas e a liturgia diária. Nesse armazém passou muito frio e sofreu muito de reumatismo. Durante os anos seguintes de sua vida, a enfermidade o obrigou a passar os invernos em sua cela, onde se aquecia, no interior do mosteiro. Sua última cela estava situada no mesmo piso que a do higoumeno. Durante a noite ia com frequência a outra pequena cela onde se guardava lenha; essa se encontrava no mesmo piso, junto a outras celas parecidas convertidas também em depósitos de lenha, devido à diminuição do número de monges, e que ficavam num corredor separado, longo e sem saída cujos muros de pedra eram de uma espessura extraordinária. Nessa espécie de masmorra, ele desfrutava de maior solidão, e de escuridão e silêncio quase completos.

Aos olhos de um observador superficial, o Starets foi até o fim de seus dias um homem “normal”. Vivia como vivem geralmente os bons monges; cumpria com sua obediência, guardava sobriedade em tudo, observava as regras e tradições monásticas. Comungava duas vezes por semana; em tempos de jejum, três vezes. Seu trabalho no armazém não era complicado, mas fácil para sua constituição; ocupava relativamente pouco do seu tempo, mas exigia sua presença durante o dia. Até o final de sua vida foi suave e amável, e se manteve à margem das preocupações mundanas e indiferente às coisas desse mundo. Como asceta verdadeiramente experiente, sabia não parecê-lo. Permanecendo silenciosamente diante de Deus, guardava sem cessar no fundo do coração o fogo do amor de Cristo.


[1] II Coríntios 5: 4.
[2] João Clímaco 29, 2.
[3] Abade Talássio 1, 56.
[4] Romanos 7: 23.
[5] João 17: 22.
[6] Filipenses 2: 6-7.
[7] Essas categorias palamitas, centrais para a compreensão do hesiquiasmo, não devem ser identificadas à distinção tomista entre Ato e Essência.
[8] I Timóteo 2: 5.
[9] João 14: 8-9.
[10] Efésios 1: 4.
[11] Colossenses 2: 9.
[12] Apocalipse 3: 21.
[13] Efésios 4: 13; cf. 3: 19.
[14] Mateus 5: 48.
[15] I Coríntios 15: 28.
[16] Salmo 35: 10.
[17] I João 1: 3.
[18] I Timóteo 6: 16.
[19] João 1: 18.