quinta-feira, 26 de março de 2020

Nikolai Berdiaev - O Divino e o HUmano - Capítulo VI




O mal


O sofrimento e o mal estão conectados, mas não são a mesma coisa. O sofrimento pode não ser um mal, e pode mesmo vir para o bem. A existência do mal é o maior mistério da vida do mundo e causa um enorme embaraço para a doutrina teológica oficial e para a filosofia monística. Uma solução racionalista do problema do mal está tão cheia de dificuldades quanto a solução do problema da liberdade. Podemos estabelecer, e com boa base, que o mal não possui uma existência positiva, e que ele só pode seduzir por aquilo que ele furta do bem. Não obstante, o mal não só existe, como ainda prevalece no mundo. O que pode ser chamado de não-ser pode possuir um significado existencial; uma entidade negativa pode ter grande significado existencial, ainda que seja falso afirmar que exista. Uma das tentativas para a resolução do problema do mal, e para reconciliá-lo com a possibilidade de uma teodiceia[1], consiste em afirmar que o mal está presente apenas nas partes, enquanto que no todo existe apenas o bem. É o que pensava Santo Agostinho, assim como Leibnitz; de fato, em última análise, muitas das formas de teodiceia adotam a mesma posição, admitindo que Deus se utiliza do mal para propósitos bons. Mas esse tipo de doutrina se baseia na negação do significado incondicional da personalidade, e é mais característica das antigas filosofias morais do que do Cristianismo. Ela implica a prevalência de um ponto de vista estético sobre o ponto de vista ético.

É um fato verdadeiro que nesse mundo empíreo não existe um princípio teleológico divino bom, e menos ainda poderá existir num mundo que é reconhecidamente decaído. Devemos dizer que isso pode existir para grupos isolados de fenômenos, mas não para todo o mundo fenomênico, nem como uma ligação entre esses fenômenos por causa de Deus. A tradicional doutrina da Providência é forçada a negar o mal e a injustiça do mundo, e ela traça um caminho fora da dificuldade na medida em que, ao invés do mal, ela reconhece apenas a existência do pecado. Em nosso mundo existe um conflito impossível de ser superado, entre o indivíduo e a raça. A vida individual, tanto humana como animal, é frágil e está ameaçada em grau extraordinário, mas, ao mesmo tempo, nossa vida enquanto raça possui um poder produtivo igualmente extraordinário, e ele está sempre gerando nova vida. A doutrina que vê o mal apenas nas partes e não no todo, é complacente com a raça e indiferente ao indivíduo. O gênio da raça é astucioso; ele está sempre sugerindo ao homem infeliz falsas justificativas, e, por meio dessas, ele o mantém cativo; assim, a vida histórica e social permanece baseada numa acumulação de falsidades. Uma mentira pode ser um autoengano, quando um homem se torna um joguete dos lugares comuns sociais das forças da vida. Uma mentira também pode tomar a forma da defesa da vida contra ataques a ela. A questão da verdade e da falsidade é um problema moral fundamental.

O homem busca encontrar refúgio em relação à atormentadora questão do mal no domínio da neutralidade, e com isso ele tenta esconder sua traição a Deus. Mas num sentido profundo, não existe neutralidade: a neutralidade só existe na superfície. É preciso que se diga, que o diabo é neutro. É um erro supor que o diabo constitui o polo oposto a Deus. O polo que está em direta oposição é Deus ainda é Deus, a outra face de Deus, onde os extremos se encontram. O diabo é o príncipe deste mundo, e ele se oculta na neutralidade. Na vida religiosa em geral, e na vida Cristã, a crença nos demônios e no diabo sempre desempenhou um enorme papel. Ela foi uma das soluções para o problema do mal. Quando o diabo é visto como a fonte do mal, entra em cena a objetificação do drama interior da alma humana. O diabo é uma realidade existencial, mas certamente não uma realidade objetiva no mundo das coisas, como o são as realidades do mundo natural. Ele é uma realidade da experiência espiritual, do caminho que um homem escolhe para si. A ideia do diabo foi demasiado abusada socialmente. Homens e mulheres foram alimentados com o medo dela, e o reino do diabo se expandiu enormemente, anexando cada vez mais áreas para si. Dessa maneira, estabeleceu-se um verdadeiro reino de terror espiritual. A libertação da alma dos demônios que a atormentam é possível somente por meio de uma religião espiritualmente purificada. A demonologia e a demonolatria só existem no caminho que o homem percorre em direção ao reino do espírito, ao reino da liberdade e do amor, ao Reino de Deus.

A luta contra o demônio adquire facilmente um caráter diabólico: ela é infectada pelo mal. Existe uma dialética moral sinistra no dualismo Maniqueísta. Dois grandes focos do mal se tornam o mal em si próprios. Esse é o paradoxo do conflito contra o mal, contra os homens maus e contra as coisas más. O bom se torna mau com vistas à vitória sobre outro mal, por não acreditar na utilização de outros meios senão o mal, para vencer o conflito contra o próprio mal. A doçura, a mansidão provocam desdém, elas parecem desinteressantes e insípidas. Por sua vez, a malícia se impõe e parece mais interessante e atrativa. Os que se engajam na luta pensam que a malícia é mais inteligente do que a mansuetude. Aqui o problema reside no fato de que atualmente é impossível efetivar os bons propósitos, os bons fins; é muito mais fácil conduzir-se por meio do mal e empregar os meios que o mal oferece. Mas é necessário estar-se dentro do bem, e irradiar o bem. Somente o Evangelho possibilita superar esse renascimento constante do conflito com o mal na forma de um novo mal, e da condenação do pecador como um novo pecado. É preciso comportar-se com humanidade e doçura, mesmo diante do diabo. Existe uma dialética do comportamento das pessoas diante dos inimigos e do diabo. Começa-se uma luta em nome do bem contra o inimigo, contra o diabo, mas acaba-se permeado pelo mesmo mal. O problema de nossa atitude diante dos inimigos é uma questão moral fundamental de nosso tempo. O inimigo deixa de ser visto como humano, e assim não existe mais atitude humana em relação a ele. É nesse contexto que surge a grande apostasia das verdades do Evangelho. Não acredito que existam naturezas desesperançadamente demoníacas, vale dizer, naturezas sobre as quais pesa uma sentença de dominação demoníaca, assim como penso que não existem nações demoníacas. O que existe é simplesmente uma condição demoníaca de pessoas e nações, de modo que é impossível estabelecer-se um julgamento final sobre quem quer que seja.

Assim como existe uma dialética na atitude perante o inimigo em virtude da qual aquele que luta contra um inimigo maligno em nome do bem se torna ele próprio mau, existe também uma dialética da humildade, em virtude da qual ela se torna passividade e acomodação diante do mal. Da mesma forma, existe uma dialética da punição pelo crime, que torna crime essa mesma punição. Existe nos seres humanos uma necessidade irresistível de bodes expiatórios, de um inimigo que possa ser culpado de todos os transtornos, e a quem se possa inclusive odiar. Podem ser os Judeus, os heréticos, os maçons, os Jesuítas, os Jacobinos, os Bolcheviques, os burgueses, as sociedades secretas, e por aí vai. As revoluções sempre requerem um inimigo para dele se alimentarem, e se nenhum inimigo for encontrado, algum será inventado. O mesmo é válido para a contrarrevolução. Quando o homem encontra o bode expiatório ele se sente melhor. Isso constitui uma objetificação do mal, sua expulsão para a realidade externa. O Estado conduz corretamente uma luta contra o crime e contra as expressões exteriores do mal, uma luta vigorosa, mas, não obstante, o próprio Estado comete crimes e pratica o mal. Como o “monstro de maior sangue-frio” (na expressão de Nietsche) ele comete crimes, cria o mal sem paixão alguma e de maneira abstrata. Sendo o dono das leis e do direito, o Estado defende o bem ao mesmo tempo em que cria seu mal particular. A necessidade maligna de experimentar a alegria da crueldade é objetificada, o senso comum se satisfaz em ser causa de dor, em ter o direito de punir e de estar presente ao ato da punição.

As relações entre o bem e o mal não são simples, e existe uma complexa dialética existencial entre os dois. O bem pode renascer como mal, e vice-versa. A própria distinção entre o bem e o mal consistiu numa divisão doentia e mórbida que carregou a marca de ter passado pela Queda. Existe algo de servil na intepretação do pecado como um crime que infringe a vontade de Deus e pede por procedimentos legais da parte de Deus. Superar essa concepção servil implica um movimento interior, um movimento em profundidade. O pecado é divisão, um estado de deficiência, de incompletude, de dissociação, de escravidão, de ódio, mas não constitui uma desobediência, nem uma violação formal da vontade de Deus. É impossível e inadmissível construir uma ontologia do mal. A ideia do inferno eterno é, portanto, absurda e maligna. O mal não passa de um caminho, de uma prova, de uma interrupção: cair no pecado é, acima de tudo, um teste de liberdade. O homem se move da escuridão para a luz. Dostoievski demonstrou isso com mais profundidade do que qualquer outro.

O mal costuma ser explicado em termos de liberdade. Essa é a explicação mais disseminada sobre o mal. Mas a liberdade é um mistério que não se deixa levar pela racionalização. A doutrina acadêmica tradicional sobre o livre arbítrio é estática e revela muito pouco do mistério que envolve o surgimento do mal. Permanece incompreensível como, fora da boa natureza do homem, e do próprio diabo, fora da existência celestial sob a luz de Deus, é possível surgir – graças à liberdade da criatura (liberdade que deve ser entendida como o dom maior de Deus, e um sinal da semelhança do homem para com Ele) – como é possível surgir o mal, e uma existência má, para o homem e para o mundo, um mal que é uma reminiscência do inferno. É preciso conceder a existência de uma liberdade incriada que precede a existência, e que está submersa numa esfera irracional, naquilo que Boehme chama de Ungrund, embora com um sentido um pouco diverso. O reconhecimento dessa liberdade, que precede a existência e a criação, que é pré-mundana, coloca diante do homem a tarefa criativa de continuar a criação do mundo, e torna o próprio mal um caminho, uma experiência dolorosa e cruel, mas não um princípio ontológico que chega até a eternidade (o inferno). A liberdade deve ser entendida dinamicamente, engajada num processo dialético. Existem contradições na liberdade, e diferentes leis e condições podem ser atribuídas a ela. O mal coloca a questão escatológica de forma aguda, e só pode ser eliminado e superado escatologicamente.

É preciso sustentar a luta contra o mal, e esse deve ser finalmente derrotado, e, ao mesmo tempo, a experiência do mal se mostra um caminho que conduz tanto para baixo como para cima. O mal em si não constitui um caminho ascensional, mas sim o esforço espiritual de resistência que ele provoca, e o conhecimento que daí advém. O mal não tem sentido, ao mesmo tempo em que possui um alto significado. Também a liberdade é a antítese da necessidade e da escravidão, mas ela pode renascer como necessidade e escravidão, ela pode ser transposta ao seu oposto. O homem deve passar pelo teste de todas as possibilidades, ele deve passar pela experiência do conhecimento do bem e do mal, e esse último pode se transformar num momento dialético do bem. E o mal pode ser superado de forma imanente, vale dizer, deve se apresentar aquilo q eu Hegel chamava de Aufhebung[2], quando o negativo é superado, e todo o positivo entra num estágio subsequente. Dessa forma, mesmo o ateísmo pode se tornar um momento dialético no conhecimento de Deus. É um fardo do homem que ele tenha que passar pelo ateísmo, pelo comunismo e por tantas outras coisas, para poder sair delas na direção da luz por um ato de superação imanente e enriquecedor. O que é preciso não é a destruição dos “maus” por meio de sua iluminação. O mal só pode ser vencido desde dentro, não por uma simples proibição, nem pode ele ser destruído pela força. E ao mesmo tempo devem ser impostos limites exteriores às manifestações do mal, àquelas que são destruidoras da vida. Um conflito tanto espiritual quanto social deve ser estabelecido contra o mal, e o conflito social não pode se impedir de recorrer à força, pelo menos não nas condições desse mundo. Mas o conflito espiritual, por sua vez, só pode ser sustentado com o recurso a um processo de iluminação e de transfiguração, não pelo uso da violência.

A experiência do mal pode não enriquecer a pessoa, se essa se render ao mal. Somente o poder espiritual positivo e radiante, que nasce da superação do mal, pode enriquecer. A luz pressupõe as trevas, o bem pressupõe o mal, o desenvolvimento criativo pressupõe não apenas o “isso”, como também o “outro”. Foram Boehme e Hegel que melhor entenderam isso. O mal possui o domínio sobre esse mundo, mas a última palavra não caberá a ele. O mal pode constituir um momento dialético no desenvolvimento das coisas criadas, mas apenas na medida em que, através dele, se revela o bem que lhe é oposto. A ideia do inferno e dos tormentos do inferno constituem uma eternização do mal; ela representa uma derrota do esforço diante dele. O mal pressupõe a liberdade e não pode existir liberdade sem a liberdade do mal, ou seja, não pode existir liberdade dentro de um estado de bem compulsório.  Mas o mal se volta contra a liberdade; ele tenta destruí-la e entronizar a escravidão. De acordo com Kierkegaard, o homem se torna um ego por intermédio do pecado; somente quem desceu aos infernos pode conhecer o céu, e quem estiver mais afastado de Deus estará mais perto Dele. Na visão de Kierkegaard a geração dos filhos constitui o pecado primário. Baader diz que a vida nasce na dor, e que ela só surge depois de uma descida ao inferno. Existe um lampejo de luz na fronteira entre o mundo das trevas e o mundo da luz. No início o mal se comporta em relação a nós como diante de um senhor, depois nos trata como companheiros de trabalho, e por fim se torna nosso senhor. Todas as ideias são dinâmicas, elas pressupõem a contradição e um processo que nasce da contradição.

Duas causas opostas fazem surgir o mal no homem. Tanto pode um vácuo se formar na alma, atraindo o mal, com pode uma paixão se tornar uma ideia fixa e, expulsando todo o resto, degenerar em mal. Essas paixões são, por exemplo, a ambição, a avareza, a inveja, o ódio. A paixão não é um mal em si, mas ela se torna facilmente um mal e conduz à perda da liberdade interior. Também é possível que surja uma paixão pela morte. É difícil para um homem formado com uma consciência moral e religiosa cometer a primeira transgressão, mas da primeira ofensa é muito fácil passar segunda, e daí mergulhar numa atmosfera mágica de delinquência. Isso foi admiravelmente representado por Shakespeare em Macbeth. É difícil entrar no caminho do terrorismo, mas depois é difícil parar e encerrar esse caminho. O mal é, acima de tudo, a perda da integridade; ele consiste num rompimento com o centro espiritual, e na formação de partes autônomas que começam a levar uma vida independente por si próprias. Por outro lado, o bem no homem constitui uma integridade interior, uma unidade interior, a subordinação da vida da alma e do corpo a um princípio espiritual. O mal pertence a esse mundo e, dentro de uma interpretação apofática do Divino, ele não pode ser transferido para a vida além daqui. A ideia do inferno não é uma vitória sobre o mal – ela antes corresponde à imortalização do mal.

Em face ao torturante problema do mal, tanto o otimismo como o pessimismo são igualmente falsos. É preciso ser mais do que pessimista para reconhecer o mal nesse mundo fenomênico sobre o qual reina o “príncipe desse mundo”, e mais do que otimista para negar isso no mundo além. O conhecimento concreto da vida, a visão detalhada de todos os seus segredos, é um conhecimento amargo. O advento de uma vida melhor é apenas simbolizado pelas revoluções, políticas ou religiosas, mas essa vida melhor não chega nunca, e o homem novo nunca aparece. Sempre as mesmas expressões básicas da vida humana aparecem renovadas; seja na opressão, na perseguição, religiosa, nacional ou política, seja pelo levante de sentimentos de classe ou pertencendo ao mundo das ideias. O entusiasmo coletivo facilmente acaba no estabelecimento de uma Gestapo ou de uma Cheka. A vida do homem civilizado possui uma irresistível tendência à desintegração, à corrupção, ao colapso e à insensatez. Daí surge o desejo de se salvar por meio do movimento na direção oposta, de buscar refúgio na natureza, no campo, no trabalho, no ascetismo, no monasticismo; mas esse movimento facilmente conduz à ossificação ou à dissolução.

É uma coisa surpreendente que, quando as pessoas se arrependem, elas não se arrependem daquilo de que deveriam se arrepender. Torquemada não se arrependia de seu verdadeiro pecado como inquisidor, pois ele estava convencido de que estava servindo a Deus. Os Cristãos não desejam tanto uma transformação real de sua natureza, mas a absolvição de seus pecados. As ideologias religiosas e as crenças se tornam questão de novos ódios e hostilidades. A religião do amor e do perdão abriga uma luta pelo poder. Estados e sociedades são sempre ofensivos e agressivos, de modo que a personalidade humana é obrigada a se colocar sempre na defensiva. O amor de uma mulher pode conter um significado de redentora salvação. Aqui, é como se a imagem da Mãe de Deus viesse sempre ao nosso encontro. Mas o amor de uma mulher também pode, e até mais, se causa de ruína. Os sacrifícios sangrentos propiciatórios deveriam possuir um significado redentor, mas acabavam por expressar apenas a crueldade e a sede de sangue dos homens. E até hoje os sacrifícios de sangue humano são oferecidos em razão de ideias e crenças que possuem toda a aparência de nobreza. Todo esse amargo conhecimento da vida não constitui um conhecimento final, não é o conhecimento das últimas coisas. Por trás de toda a escuridão do mundo e da vida humana se esconde uma luz, e houveram momentos em que essa luz era tão forte que chegava a nos cegar. O homem podia encarar o mal de frente, sem se iludir a respeito dele, e sem jamais sucumbir a ele. a verdade reside além do otimismo e do pessimismo. O absurdo do mundo não consiste numa negação da existência de significado. A exposição de uma falta de sentido pressupõe a existência de sentido. O mal do mundo pressupõe a existência de Deus, sem o que seria impossível conhecê-Lo.

A nobreza, qualidade que eu considero como sendo a verdadeira aristocracia, requer do homem o reconhecimento de sua culpa. Nas profundezas de sua consciência, que muitas vezes se encontra coberta ou mesmo suprimida, sempre é possível encontrar a consciência da culpa. O q eu e necessário é tomar sobre si tanta culpa quanto possível, e colocar sobre os outros o mínimo de culpa possível. O aristocrata não é alguém orgulhosamente consciente de si próprio em primeiro lugar, como um ser privilegiado, e que defende ao máximo sua posição. O aristocrata é um homem consciente da culpa e da pecaminosidade dessa sua posição, desse privilégio. A sensação de ser constantemente afrontado é, por outro lado, precisamente um traço plebeu. Mas é muito fácil condenar o ressentimento do oprimido e daqueles que vem por último na escala social. Mas Scheler fez isso, injustificadamente, do ponto de vista de um Cristianismo embebido de Nietscheanismo. O ressentimento, que inclui a inveja, não é, indubitavelmente, um sentimento nobre, mas existem bons motivos para sua existência, e não cabe culpar de ressentimentos quem é humilhado, nem sobrecarregá-lo com acusações. Não obstante, a coisa mais profunda não é a consciência do próprio pecado (que pode permanecer na esfera da psicologia e da ética), mas a consciência metafísica da posição do homem no mundo, desse homem que possui infinitas aspirações ao mesmo tempo em que se vê colocado em circunstância de uma existência finita e opressiva. Nisso reside a queda do homem, e nisso reside a origem e a formação das obscuras paixões dos mundos falsos e ilusórios.

O homem tem dificuldade em suportar o fato de que ele está nesse mundo como uma criatura mortal e que tudo o que acontece nele e com ele é mortal. Por isso o problema do mal é antes de tudo um problema da morte. O mal é a morte; a vitória sobre o mal é a ressurreição da vida, o renascimento para uma nova vida. Assassinato, ódio, vingança, traição, perfídia, deboche, escravidão, são formas de morte. A vitória do Deus-homem sobre o último inimigo, a morte, foi uma vitória sobre o mal. Foi a vitória do amor, da liberdade e da criatividade, sobre o ódio, a escravidão e a inércia, a vitória da personalidade sobre a impessoalidade. Mas o último inimigo, a morte, possui também seu significado positivo. O trágico sentido da morte está conectado com um agudo senso de personalidade, de destino pessoal. Para a existência da raça, não há nada de trágico na morte. A vida da raça sempre se renova e continua, ela encontra formas de compensação para si própria. A morte apavora o mais desenvolvido e individualizado organismo de todos. Ao sentido agudo de personalidade associa-se igualmente um agudo sentido do mal. O significado positivo da morte reside no fato de que sua inevitabilidade para a existência pessoal e individual é a evidência de impossibilidade de alcançar as empreitas infinitas da vida, da impossibilidade de realizar a plenitude da vida dentro dos limites desse mundo e desse tempo.

A morte, o mal definitivo, é um dos caminhos para a eternidade. Uma vida sem fim, dentro das condições de nossa existência limitada, seria um pesadelo. Passar pela morte é tão necessário para nosso destino pessoal na eternidade, como o fim do mundo é necessário para a realização de seu destino eterno. As antinomias e problemas da vida humana e da vida do mundo não podem ser resolvidas no presente éon, e, assim, torna-se necessária a transição para um outro éon. Por essa razão o medo da morte não é a única possibilidade que se apresenta: existe também a atração da morte. O pensamento da morte é, muitas vezes, um consolo para o homem, quando as contradições da vida se tornam intoleráveis, quando o mal que o rodeia cresce e se intensifica. Freud via o instinto da morte não apenas como sendo de uma ordem mais elevada do que o instinto sexual, como ainda sendo o único instinto realmente elevado no homem. Da mesma forma, Heidegger foi compelido a reconhecer a morte como superior ao Dasein, o qual está submerso na monotonia e no prosaico, no das Man. Nessa filosofia, a última palavra cabe à morte. É um fato interessante, que para o espírito Germânico exista, em geral, algo de atrativo na morte, na vitória e na morte. A música de Wagner estava permeada pelos sentidos da vitória e da morte; Nietsche pregava o desejo pelo poder e uma alegria extática da vida, mas em seu sentimento perpetuamente trágico sobre a vida, a coisa mais profunda e final era o Amor fati. Havia profundidade no espírito Germânico, mas não havia a força da ressurreição.

A força da ressurreição existe no espírito Russo, e Fedorov representa o ápice de sua expressão. E não é por acaso que a principal festa da Ortodoxia Russa seja a da Ressurreição de Cristo. É assim que o Cristianismo é entendido. A fonte da vitória sobre o mal da vida nesse mundo não está na morte, nem no nascimento, mas na ressurreição. A experiência do mal do mundo destrói, mas o poder criativo da ressurreição derrota o mal e a morte. A ética Cristã em relação ao mal como um todo e em relação ao mal individual não pode deixar de ser paradoxal. Em Cristo, o Deus-homem, e no processo divino-humano, a transfiguração de todo o cosmo se torna realizada. É impossível pensar no mal e na liberdade, que está ligada ao mal, de uma maneira estática e ontológica. Eles devem ser pensados dinamicamente, na linguagem de uma experiência existencial espiritual.



[1] Teodiceia: a justificação da bondade e da onipotência divinas diante da existência do mal.
[2] O substantivo Aufhebung se origina do verbo alemão aufheben, sendo de uso muito comum neste idioma. Este verbo tem pelo menos três significados distintos: 1) negar (no sentido de anular ou cancelar, como quando suspendemos ou cancelamos um passeio por causa do mau tempo); 2) preservar; e também 3) elevar a um nível superior. Hegel foi inovador ao utilizar o termo Aufhebung para significar não apenas um destes sentidos de cada vez, mas os três ao mesmo tempo.

terça-feira, 17 de março de 2020

Nikolai Berdiaev - O Divino e o Humano - Capítulo V





Sofrimento


Eu sofro, portanto, existo. Isso é mais profundo e mais verdadeiro do que o cogito de Descartes. O sofrimento está ligado à própria existência da personalidade e da consciência pessoal. Qual, Quelle, Qualität,[1] é a fonte da criação das coisas. O sofrimento está associado não apenas à desesperançada condição animal do homem, ou seja, com sua natureza inferior, mas também com sua espiritualidade, sua liberdade, sua personalidade, vale dizer, com sua natureza superior. A recusa da espiritualidade e da liberdade, a recusa da personalidade pode mitigar o sofrimento e diminuir a dor, mas isso equivale a uma recusa da dignidade do homem. E, de fato, a precipitação do homem ao estado animal inferior não o salva de nada, porque a vida nesse mundo não se importa com ele, nem o protege. A perda de vidas nesse mundo é apavorante, assim como o extermínio sem sentido de inúmeras vidas, que estão condenadas a sustentar uma torturante luta pela existência. Não existe salvação alguma em relação ao sofrimento, apenas por se mergulhar na esfera biológica da existência. O sofrimento é um elemento básico da existência humana. Nesse mundo, o destino de todas as vidas que alcançaram a individualidade é o sofrimento. O homem nasce com dor, e com dor morre, e assim o sofrimento acompanha os dois mais notáveis eventos da vida humana. A doença, talvez o maior dos males, está sempre aguardando o homem.

Não é sem uma boa base, que a psicanálise fala do traumático processo do nascimento, do medo e da angústia que o homem experimenta assim que chega a este mundo. Buda pensava que todo desejo origina sofrimento; mas a vida é desejo; a aceitação da vida constitui a aceitação do sofrimento. A inquietude que anda de mãos dadas com a vida, ou a simpatia, não devem se limitar apenas ao mundo humano. O medo dos animais é horrível e eles são ainda mais desesperançados do que 0os seres humanos. Não existe nada mais absurdo do que a ideia Cartesiana de que os animais são meros autômatos. A responsabilidade do homem perante o mundo animal não foi adequadamente esclarecida pelo Cristianismo. A esse respeito, o Budismo atingiu um patamar superior. O homem tem uma obrigação para com a vida cósmica; a culpa bate à sua porta. Quando Muri, meu querido gato, morreu, eu chorei com a agonia de sua morte, eu senti o sofrimento do mundo, o sofrimento de todas as coisas vivas, e partilhei desse sofrimento. Todos deviam partilhar ou tentar partilhar do sofrimento dos outros e de todo o mundo.

O sofrimento é um tema fundamental em todas as religiões de redenção, e, de fato, trata-se de um rema religioso básico em geral. No sofrimento o homem para por momentos de abandono de Deus. Por outro lado, através do sofrimento ele alcança a comunhão com Deus. O sofrimento pode se transformar em alegria. O homem é terrivelmente infeliz nessa terra, terrivelmente aterrorizado; ele experimenta o terror e a agonia; e todas as coisas vivas estão na mesma condição. Mas o homem possui o poder de criar, de obter heroicas aquisições, de experimentar o êxtase. Ele é a um tempo uma criatura degradada e uma criatura exaltada. Pascal entendeu isso melhor do que ninguém. A impossibilidade do entusiasmo e do êxtase é uma fonte de sofrimento, um estado de divisão, um enfraquecimento da vida criativa. A infelicidade é, acima de tudo, um estado de rompimento e de divisão. A questão mais séria e fundamental da existência humana é saber como superar o sofrimento, como suportar o sofrimento, como evitar ser destruído por ele, e como diminuir a quantidade de sofrimento que se abate sobre todos os homens e sobre toda a vida. Antes do Cristianismo já existiam religiões de deuses sofredores, como as religiões de Osíris, de Dionísio e outras. Os próprios deuses sofriam e esse sofrimento era salvador. O mistério do Cristianismo nasceu daí. Mas as doutrinas teológicas sempre tiveram medo de reconhecer o sofrimento em Deus, e condenaram aquilo que ficou conhecido como “patripassionismo”. Mas também aqui, assim como em todos os casos que nos colocam em contato com o mistério, tudo se passa no fio da navalha, pois o sofrimento do Filho de Deus, do Deus-homem, é bem conhecido. Aqui todas as coisas se voltam para a união do sofrimento do humano com o sofrimento do divino, pois é aqui que se supera o rompimento e a alienação entre o humano e o divino.

Por que tanto sofre o homem nesse mundo? E como justificar a Deus, tendo em vista todo o sofrimento que existe? Essa é a questão que Dostoievski colocou dolorosamente para si mesmo. Radishchev, o pai da intelligentsia Russa, foi profundamente chocado pelo sofrimento humano. Trata-se de um tema verdadeiramente Russo. A misericórdia pelos que sofrem, a simpatia em relação aos que sofrem injustamente, é sentida a princípio como um abandono de Deus, e conduz a uma luta contra Deus. A questão fundamental aqui é o tema do sofrimento imerecido. Ele está colocado no Livro de Jó, e Deus nos proíbe que sejamos como os que consolaram Jó[2]. Existem sofrimentos no mundo que não constituem punição dos pecados. O sofrimento mais obvio é o que está conectado com o corpo, esse corpo que limita a infinita aspiração do homem, e que fica doente, que envelhece, que morre, e ao qual está associada toda a dolorosa luta pela existência. O homem carrega consigo a maldição do corpo, que promete prazeres ilusórios e passageiros, e é a causa de muitos sofrimentos. O homem nasce porque existe o sexo, e morre pela mesma razão. Existem momentos de alegria, mas o pano de fundo fundamental da vida é feito de ansiedade e sofrimento. Os Gregos, que são considerados como desfrutadores da vida, deixaram escrito através de sua maior obra criativa, na voz da tragédia Grega, que teria sido melhor para o homem não nascer. Goethe e Tolstoy foram, dentre os gênios, dos mais afortunados e externamente felizes, mas sabemos que ao longo de suas vidas os momentos felizes foram poucos, sendo que o último tentou colocar um fim à própria vida.

Mas de que forma se pode explicar o sofrimento? O filósofo Indiano contemporâneo, Aurobindo, diz que o sofrimento é a réplica do Todo à vã tentativa do ego de colocar o universal dentro dos limites possíveis de uma alegria puramente individual. Max Scheler diz que o sofrimento é a experiência do sacrifício da parte pela salvação do todo, o sacrifício dos valores inferiores pela salvação dos superiores; ele liga o sofrimento ao sacrifício. A possibilidade do sofrimento está conectada também com o desencontro entre as partes independentes e sua posição funcional dentro do todo. Essas soluções não podem satisfazer a personalidade humana colocada face a face com seu próprio destino individual. Elas estão baseadas na completa subjugação do individual-pessoal pelo universal-comum. O pensamento de Kierkegaard vai mais fundo quando ele diz que o sofrimento do homem está ligado com o fato de que ele é solitário. É como se os seres humanos fossem divididos em duas classes. Existem aqueles que estão dolorosamente conscientes dos sofrimentos do mundo e dos homens, e aqueles que são comparativamente indiferentes a eles. Na história do homem Europeu através dos séculos, a sensibilidade diante do sofrimento e o sentimento de que ele é intolerável cresceu muito. Isso é verdade, no mínimo, com relação a um setor mais sofisticado da humanidade. Foi preciso um grande lapso de tempo para que o homem se tornasse consciente de que a tortura, a execução e o tratamento cruel de criminosos eram coisas que não deviam ser permitidas. Mas, ao mesmo tempo, vivemos um período que é muito cruel, uma época de sofrimentos sem precedentes.

Devemos ver a fonte do sofrimento na ausência de correspondência entre a natureza do homem e o objeto “mundo” que o rodeia, e no qual ele se viu atirado; é preciso ver isso no incessante embate entre o ego e o não-ego – que é estranho e indiferente a ele –, com a oposição da objetividade; vale dizer, é preciso ver isso na objetificação da existência humana. Se podemos falar na distinção entre tipos e estados humanos harmônicos e desarmônicos, o fato de que o homem, por sua posição no mundo se encontra num estado de desarmonia, vai ainda mais fundo. A dolorosa autocontradição no homem, que é a causa do sofrimento, consiste nisso, em que ele é, nas suas profundezas ocultas, um ser infinito e que se esforça para alcançar o infinito; um ser que busca o infinito e que está condenado a essa busca; e, ao mesmo tempo, pela própria condição de sua existência, um ser que é finito, limitado, temporal e mortal. O homem se choca contra um muro que não permite passagem. Nas profundezas do sofrimento humano está a experiência da insuperabilidade, da inevitabilidade e da irrevocabilidade.

O dualismo no qual o homem vive nesse mundo é também fonte de incalculável sofrimento. A experiência do sofrimento é a antítese da experiência da integridade. A violação da integridade e da harmonia também conduz ao sofrimento. Mas isso acontece porque o homem encontra um mundo de objetos, e apenas raramente consegue superá-lo e avançar para o mundo das subsistências. Dentro de mim existem muitas coisas que são estranhas a mim, que não são minhas (o Es de Freud[3]), e esses elementos dentro de mim e que me são estranhos são fonte de sofrimento. A luta pela realização da personalidade é uma luta contra esse estranho que existe em mim, que faz de mim seu escravo. Em mim deveria estar presente a totalidade do mundo de Deus, mas ao invés disso encontro esse não-ego, essa objetificação mortal. A fonte do sofrimento no homem é dupla: ela reside num muro insuperável fora dele, e em outro muro insuperável dentro dele; na degradante escravidão imposta a ele pela natureza estranha do mundo, e pela mais degradante ainda escravidão imposta a ele por esse não-ego, que nele adquire a aparência de, e se torna, seu ego. Podemos aceitar fora de dúvida que uma grande quantidade de sofrimento e infelicidade se deve ao fato do homem ser engolido pelo seu ego, pelo egoísmo. No limite, isso conduz à loucura, que consiste sempre num estado em que se é engolido pelo ego, em que se é incapaz de sair dele. A capacidade de escapar ao ego, de fugir a ser engolido por ele, é uma condição para a realização da personalidade. O ego não é a personalidade. Pascal diz que “le moi est haïssable” – “o eu é detestável. Isso não pode ser dito da personalidade.

O organismo físico e psíquico do homem está apenas parcialmente adaptado ao meio, que para ele representa sempre uma ameaça. De fato, é incrível como o homem adquiriu a possibilidade de uma existência estável no mundo fenomênico, no qual ele encontra tão poucos pontos de apoio, e encontra tão poucos a quem pode chamar de vizinhos. Quando ele experimenta todo o cosmo como sendo seu vizinho, como algo divino, ele então encontra, não um mundo de objetos, esse mundo que é estranho para ele, mas outro mundo, que está para além desse. E a dissociação do homem em relação à fonte primária da vida, em relação aos outros seres humanos, à vida cósmica, faz nascer nele o sofrimento. Ao mesmo tempo, a comunhão, o encontro da vizinhança e da fraternidade, são o reverso do sofrimento. A morte é o maior sofrimento, provavelmente porque ela consiste em passar por um momento de, por assim dizer, absoluta dissociação, ruptura e isolamento. Um estado de harmonia, ou seja, a descoberta da proximidade e da comunhão, são a antítese do sofrimento. O maior sacramento é o sacramento da Comunhão, que não é apenas humano, mas também cósmico. O destino do homem, do nascimento até a morte é incompreensível para nós, assim como incompreensíveis são os sofrimentos que dele nos advêm. Mas existem apenas uns poucos fragmentos do destino humano na eternidade, de sua jornada através de tantos mundos. Se tomarmos um único dia da vida humana, separadamente em relação aos dias precedentes e seguintes, pouquíssimo poderemos entender do que acontece ao homem. Mas toda a vida do homem, do nascimento até a morte, é como se fosse um curto dia em seu destino, do ponto de vista da eternidade.

Hegel possui algumas ideias notáveis a respeito da “consciência infeliz”. Essa consciência infeliz e a separação, a divisão. Ela deve ser superada para que seja possível alcançar uma consciência mais elevada. Mas não será toda forma de consciência, infeliz? A consciência sempre pressupõe a divisão, a separação entre sujeito e objeto e uma dolorosa dependência em relação ao objeto. Dostoievsky considerava o sofrimento como a única causa do despertar da consciência. Ele, Kierkegaard e Nietsche são de grande interesse nessa conexão.  A luta de Nietsche contra o sofrimento, contra sua doença e solidão terríveis, sua resistência a elas, é a coisa mais notável em sua vida, e que confere a ela um caráter heroico. A ética da antiguidade e, em especial, a ética clássica de Aristóteles, via no homem um ser que busca a felicidade, a bendição, a harmonia, e que é capaz de encontrá-las. essa visão permaneceu em São Tomás de Aquino e na teologia oficial da Igreja Católica. Mas na verdade o Cristianismo abriu brechas nessa concepção.  A esse respeito, os testemunhos de Kant, Schopenhauer, Dostoievski, Kierkegaard e Nietsche são importantes. Não é por acaso que o homem, para mitigar a dor e extinguir o sofrimento, procura esquecer-se de si mesmo e recusa a consciência, para cegar seu gume. Ele tenta fazer isso, seja afundando no subconsciente, por exemplo, com o uso de narcóticos, seja através do êxtase que obtém pela imersão no animal elemental; ou então, elevando-se ao superconsciente, ao êxtase espiritual, à fusão com o divino. Existe um limite à capacidade de suportar o sofrimento. Além desse limite o homem perde a consciência, como que salvando-se por esse meio.

Não são as piores pessoas as que mais sofrem; os que mais sofrem são os bons. A capacidade de sofrer pode ser um sinal de grande profundidade. O desenvolvimento do pensamento e o refinamento da alma vão de mãos dadas com a intensificação do sofrimento, com a grande sensibilidade à dor, não apenas espiritual como física. A infelicidade, o sofrimento, o mal, não são causas diretas do despertar da força no homem, nem do seu crescimento espiritual, mas são fatores que podem contribuir para o surgimento de sua força interior. Sem a dor e o sofrimento nesse mundo, o homem iria amolecer e o animal que nele existe seria vitorioso. Isso nos obriga a pensar que o sofrimento nesse mundo não é meramente um mal, nem o resultado do mal, nem a expressão do mal. É inteiramente errado supor que o sofrimento cai sobre o destino do homem na proporção de sua culpa ou de seu pecado, embora esse seja o tema de inúmeros sermões. Quando pensamos assim, somos como aqueles que queriam consolar a Jó; mas Deus justificou Jó, não os que tentavam consolá-lo. O Livro de Jó é o grande testemunho da existência de sofrimento não merecido, do sofredor inocente. A tragédia Grega também nos fornece testemunhos disso. Édipo não era culpado, ele foi uma vítima do destino. Mas o mais importante de todos foi o sofrimento sem culpa do Filho de Deus, do homem justo, Jesus. O sofrimento divino existe, e esse sofrimento divino é evocado pela falta de congruência entre Deus e a condição do mundo e do homem. Existe um sofrimento obscuro que conduz à ruína, e um sofrimento brilhante que conduz à salvação. O Cristianismo muda o caminho do sofrimento em caminho de salvação. Trata-se de um sofrimento divino-humano, e isso responde à tormentosa questão da teodiceia. A vida humana está cheia da dialética existencial do sofrimento e da alegria, da infelicidade e da felicidade.

Em todo esse questionamento humano sobre o sofrimento, o maior interesse está no Budismo, no Estoicismo e no Cristianismo, e as três respostas dadas por eles são fundamentais hoje em dia. O conflito Estoico com o sofrimento pode ser encontrado na experiência de alguém que não saiba nada a respeito dos Estoicos. O Budismo e o Estoicismo não aceitam o sofrimento: eles procuram livrar-se dele e garantir assim um alívio. O Cristianismo aceita o sofrimento; ele aceita a Cruz e busca a libertação e a salvação suportando esclarecidamente o sofrimento. O Budismo não aceita o mundo. Ele pretende conquistar o desejo que amarra a pessoa ao mundo e tenta atingir o Nirvana, que não consiste no não-ser, como os Ocidentais costumam imaginar, mas que se coloca além do ser e do não-ser: ele não é nem a existência, nem a não-existência. O Budismo Japonês, o Zen, expõe os ensinamentos de Buda não como o repúdio ao desejo, mas como iluminação, vale dizer, acima de tudo, como uma vitória sobre o egocentrismo. Ele pode ser chamado de modernismo. O Budismo possui algumas vantagens sobre o Brahmanismo, na medida em que envolve a simpatia, por exemplo, como uma sensação do mal no mundo; existe uma forte ausência de ritualismo nele, e desse intolerável orgulho que é a hierarquia Brahmânica. Mas o Budismo se move fora da vida dos homens e do mundo; ele não quer que no homem sobre si tome seu fardo e carregue sua cruz. O Estoicismo aceita o mundo e busca reconciliar a vida do homem com a lei da mente cósmica. Mas ele tenta alcançar uma libertação interior do sofrimento através de uma mudança de atitude em relação a todas as coisas que provêm da vida no mundo e que podem trazer sofrimento ao homem; ele busca alcançar a “apatia”. Nem o Budismo, nem o Estoicismo procuram mudar o mundo, ou transformá-lo. Eles o aceitam como ele é, e tratam o sofrimento pela mudança de atitude em relação ao mundo, seja repudiando-o, seja atingindo um estado de indiferença em relação a ele. a filosofia moral Estoica foi uma coisa nobre, mas a “apatia” do Estoicismo e não-criativa e decadente em seu caráter.

Tanto o Budismo quanto os elementos Estoicos podem ser igualmente encontrados na filosofia moral inteiramente diversa do Cristianismo e na atitude Cristã diante do sofrimento. Cristo nos ensinou a suportar a cruz da vida. Significaria isso que devemos aumentar o sofrimento, e sair à procura dele? Com certeza, esse não é o significado de suportar a cruz. Suportar a cruz que nos cabe implica uma experiência esclarecida do sofrimento, e isso significa uma diminuição do sofrimento em comparação com a experiência não esclarecida, sombria e lúgubre do sofrer.

Elementos de sadismo e de masoquismo desempenham uma parte significativa na vida religiosa, e essa é uma das razões por que a história do Cristianismo é tão complicada. Cristo transformou o sofrimento num caminho de salvação. Tudo o que é verdadeiro e justo é crucificado no mundo. O único Homem justo e sem pecado foi crucificado. Mas isso não significa que o sofrimento deva ser buscado, que devamos nos torturar; tampouco significa que devamos infligir sofrimento aos demais visando a sua salvação. Mesmo assim, numerosos Cristãos convictos foram, em seu tempo, muito cruéis, precisamente como resultado de sua fé e de sua crença nisso. A Inquisição, o emprego da tortura, a justificação da pena de morte, as punições cruéis, tudo isso esteve baseado nessa crença da natureza salvífica do sofrimento. São Domingos de Gusmão foi um inquisidor cruel, Santa Tereza comportava-se cruelmente, Joseph Volotskoy foi muito cruel e pedia a tortura e a execução. Theophan Zatvornik propagou uma politica de crueldade na qual os Cristãos buscavam o sofrimento, a doença, a autotortura e a tortura dos demais. Tudo isso foi devido a um sentido distorcido do pecado e do medo. Nos inquisidores, uma compaixão pessoal e individual podia se combinar com o sadismo. A fonte primária desse terrível e fúnebre erro residia na convicção de que o sofrimento do homem era agradável e aceitável a Deus, ou seja, havia uma transferência dos sentimentos sádicos para Deus. As almas Cristãs dos primeiros dias sofreram menos agudamente do que aquelas dos dias de hoje. Elas estavam mais cônscias do significado do pecado; dessa forma, elas eram menos sensíveis ao sofrimento. Mas a vida humana não depende apenas da necessidade; ela depende mais de mudanças que não podem ser explicadas, daquilo que podemos chamar de coincidência perversa de circunstâncias. O problema que o homem enfrenta não reside em encontrar uma explicação para o sofrimento da vida, do acaso inexplicável, da necessidade devastadora, nem no fato de seus pecados, nem em ver em tudo isso uma punição para eles. Trata-se do problema espiritual de suportar o sofrimento condignamente e de transformar o escura e lúgubre sofrimento que conduz à perdição, num sofrimento esclarecido que leve à salvação.

O homem é uma criatura inconscientemente sonsa e furtiva e um mau entendedor, e que possui um sofrível entendimento a respeito de si próprio. Ele pode intensificar seu sofrimento, de modo a que possa sofrer menos – trata-se de um paradoxo psicológico. Essa é a dialética existencial do sofrimento: ao mesmo tempo em que o homem sofre por uma razão qualquer, ele se consola sofrendo por outra. Ele é capaz de realizar feitos heroicos, de modo a sofrer menos. Ele vai para a guerra, e realiza milagres de bravura; ele se torna monge e desempenha grandes feitos de ascetismo, para encontrar distração do sofrimento que teve por um caso de amor infeliz, ou causado pela morte de alguém próximo e querido. Ou ele pode atormentar o local da dor, intensificando a dor para aliviar a dor. Ele não apenas foge daquilo que lhe causa dor, mas também é atraído pela dor e se concentra nela. O masoquismo é quase que inerente ao homem, e, como o sadismo, ele é uma perversão que nasce do sofrimento. E tudo isso possui uma misteriosa conexão com o sexo, que é também algo que fere o ser humano.

O homem é uma criatura enferma, e a isso se deve o fato de terem sido as maiores descobertas psicológicas todas feitas no campo da psicopatologia. A um tempo ele é facilmente disposto tanto à mania persecutória quanto à mania de grandeza; essas duas manias estão ligadas de tal maneira que um homem possuído pela mania de perseguição acaba por perseguir os outros. O conflito humano com o sofrimento possui reiteradamente um caráter patológico. A loucura pode ser as vezes um caminho para escapar dos conflitos irresolvidos da vida, e ela pode trazer alívio. A coisa mais horrível na vida do homem é a autonomia e o isolamento das diferentes esferas da vida e da alma, a ruptura com o centro que lhes daria um sentido mais elevado, e a formação de mundos isolados. Dessa forma a autonomia e o isolamento da vida sexual conduz ao mundo monstruoso representado pelo Marquês de Sade. Na opinião de Sade, o homem é essencialmente mau, cruel e sensual. Ele pensava que o vício e a virtude eram indiferentes do ponto de vista da Providência. Mas a formação de outros mundos espirituais, autônomos e isolados, é tão horrível, por exemplo, como o mundo da ambição e do amor pelo poder, o mundo do ganho e do enriquecimento, ou o mundo do ódio. O homem que, presa da paixão, formou em si seu próprio mundo autônomo, sofre e causa sofrimento aos demais. Uma paixão isolada e desespiritualizada evoca uma avidez interminável e intolerável: é o surgimento de uma ruptura com o centro espiritual do homem e uma ruptura entre esse próprio centro e a força primária da vida no mundo, ou seja, algo que, ao final, conduzirá à ruptura com o próprio Deus-homem.

O medo da morte é o medo do mais intenso dos sofrimentos. Morrer é passar pela separação da alma e do corpo, do mundo e do homem, e pelo rompimento com Deus. O sofrimento que provém da partida e da separação é do tipo mais intenso. Porém, maior ainda é o sofrimento do remorso da consciência e do sentido acusador da culpa, o sofrimento que nasce do irrevogável e do irreparável. Esse constitui, por assim dizer, uma antecipação das dores do inferno. O homem busca a restauração e a preservação na memória das experiências do passado, e muitas memórias são doces para ele. Mas, em maior grau, ele busca esquecer, afastar da memória o que é mau e degradante; se a memória retivesse intacto todo o passado, o homem não seria capaz de suportá-la. Do mesmo modo, ele não seria capaz de suportar o conhecimento e a previsão do futuro, os sofrimentos por vir, e a hora da morte. O homem e o mundo passarão inevitavelmente pela crucificação e a morte, e isso deve ser aceito de uma maneira esclarecida. A morte existe não apenas por ser o homem uma criatura mortal nesse mundo, mas também porque ele é um ser imortal que não pode, dentro das condições desse mundo, realizar agora a plenitude da eternidade da vida.

A ideia da punição dos pecados através do sofrimento é meramente exotérica. As perversões demoníacas do Cristianismo foram resultado da persuasão de que o sofrimento e uma consequência merecida do pecado, de que ele é uma punição da parte de Deus. A partir daí segue-se a conclusão de que é preciso causar o maior sofrimento possível. Na França e na Inglaterra medievais era recusada ao condenado qualquer oportunidade de confissão sacramental, para assegurar que as penas infernais eternas se somassem às dores da morte. A sublimidade dos Ofícios Cristãos para os mortos e dos ritos funerários Cristãos mostram um contraste absoluto com essa perversão do Cristianismo que é cruel e desprovida de piedade.

Existem dois tipos de sofrimento. Existem sofrimentos que podem ser removidos e sobrepujados por mudanças na ordem social e por desenvolvimentos do conhecimento científico; é uma coisa necessária permanecer lutando contra as causas sociais do sofrimento e contra aqueles que se devem à rude ignorância do homem. A abolição da escravidão social (à qual pertence a escravidão que persiste n capitalismo), a garantia do direito ao trabalho e a uma vida digna, a difusão da educação e dos conhecimentos técnicos e médicos, a vitória sobre as forças elementares da natureza – tudo isso diminui o sofrimento. Mas não é possível organizar a oferta de felicidade, assim como não é possível organizar a verdade. A felicidade é concedida apenas como um momento benigno. O dom da verdade só aparece como resultado de uma busca e de uma aspiração ao infinito; ele é dado como um caminho e como uma vida, e sempre é passível de discussão. É somente o inferior, nunca o superior, que pode ser organizado. Os momentos em que se experimenta a felicidade possuem algo de estranho em si, eles são como reminiscências do paraíso, ou um pressentimento dele.

Mas existe um tipo de sofrimento que está conectado com a base trágica da vida e que possui uma origem profundamente enraizada. Não se trata da irrupção de uma ordem social perversa, e não pode ser removido com a melhoria desta. Trata-se do sofrimento que constitui nosso fardo trágico no mundo: é o nosso destino, e esse destino não podemos superar apenas vencendo esse mundo. Um grande número de Marxistas e Comunistas estão chegando a um novo humanismo e alegando uma vitória final sobre o destino, sem terem recorrido aos mitos (pois, em sua opinião, o Cristianismo vence o destino por meio de mitos). Eles teriam conquistado a fonte do sofrimento e organizado a felicidade universal da humanidade. É um erro imaginar que o Marxismo é uma utopia social. Existem muitos desejos dentro do Marxismo que são possíveis de serem socialmente realizados, e eles devem ser realizados. Mas o Marxismo é uma utopia espiritual, porque se baseia numa falha do entendimento da condição espiritual da existência humana. É impossível, por meios sociais, subjugar esse trágico conflito fundamental que nasce do fato de que o homem é um ser espiritual que possui em si aspirações ao infinito e ao eterno, e que ao mesmo tempo se vê colocado nas restritas condições de existência desse mundo. O sofrimento da morte, o que deriva do amor, o que vem do conflito entre o amor e as convicções políticas e religiosas, da natureza enigmática da vida, da inabilidade em compreender o próprio destino, o sofrimento que provém de um desejo maligno por poder e violência, o que nasce da inveja, do amor próprio, da cobiça, de sentimentos feridos por não conseguir o que se pensa ser seu de direito, da perda de posição social, o sofrimento que provém do medo quando o homem tem que encarar a vida e a morte, o que é devido a acidentes inexplicáveis, às desilusões em relação às pessoas, à perfídia dos amigos, ao temperamento melancólico, e muitas outras formas de sofrimento, nenhuma dessas pode ser afastada por mudanças na ordem social. Ainda que os problemas sociais tenham sido resolvidos, que todos os homens tenham sido elevados a condições dignas de vida, quando já não existir o sofrimento devido à perda da garantia de uma posição estável da sociedade, ou devido à fome, ao frio, ao analfabetismo, à doença, à injustiça, nesse momento, o sentimento e a consciência da inumerável natureza trágica da vida serão intensificados. Será precisamente nesse momento que uma angústia agonizante colocará suas mãos, não apenas sobre os poucos escolhidos, mas sobre todos. O conflito social que envolve sofrimento fornece uma resposta ao tema do sofrimento em termos gerais, mas não à questão do sofrimento das criaturas concretas. As leis da sociedade pode ser uma garantia contra as manifestações sociais de crueldade, mas elas são incapazes de destruir a crueldade dentro dos corações humanos, e essa sempre conseguirá encontrar meios que não são sociais em seu modo de expressão. Do mesmo modo, o estabelecimento de uma ordem social garantidora da liberdade do homem e da cidadania, não será capaz de libertar o homem de todas as outras possibilidades de escravidão.

Disso não se deduz que não haja necessidade de promover radicais mudanças sociais para a redução do sofrimento humano e da escravização do homem. Ao contrário, é preciso fazer de tudo para alcançar esses objetivos, e os problemas espirituais do homem devem ser liberados das influências sociais distorcidas. A teoria otimista do progresso que surgiu no século XIX estava  permeada pela crença na possibilidade de abolição do sofrimento e do progressivo aumento da felicidade. Essa crença foi abalada por eventos mundiais catastróficos. A velha ideia de progresso é inadmissível. Mas nisso havia também uma verdade Cristã, uma imperceptível aspiração ao Reino de Deus. A existência de um princípio irracional na vida do mundo tinha que ser admitida, algo que não era passível de racionalização e que não cabia em nenhuma espécie de progresso. Nenhuma forma de progresso, ou de reconstrução social, é capaz de vencer a morte, a principal fonte do sofrimento, ou abolir o medo do futuro. Nikolai Fiodorov entendeu isso melhor do que ninguém.

A intensidade do sofrimento está ligada à intensidade da vida, à expressão da personalidade. Recusar a intensidade da vida, recusar a personalidade, pode mitigar a dor. Nesse caso, o homem se afasta do mundo para dentro de si mesmo, ele se afasta de um mundo cheio de sofrimento e que o faz sofrer, mas ao fugir e isolar-se dentro de si ele começa a experimentar um novo sofrimento, e a sentir a necessidade de fugir mais além, de escapar do torturante sufocamento de si próprio. O homem que sofre procura superar seu sofrimento, e encontra alívio de diversas formas, e nem sempre volta sua atenção para o mais alto, nem sempre, nessas tentativas, ele percebe a elevada estatura que é ser homem. A vitória sobre o sofrimento é tentada por meio de uma fusão com o grupo social, com a vida coletiva. Alguns homens tentam obtê-la por meio da indiferença e da apatia. Pode-se tentá-la por meio da regulamentação da vida, ou submergindo a si próprio na monotonia, no trivial e no banal. Pode-se tentá-la pelo esquecimento dos momentos. Os homens tentam vencer o sofrimento desgastando o fio da lâmina da consciência, por meio de um retorno ao subconsciente, e rarissimamente eles buscam alívio e libertação no impulso ascensional em direção ao superconsciente e ao supra-humano. Seu sofrimento pessoal é aliviado quando ele experimenta a simpatia de alguém outro. Mas, acima de tudo, o sofrimento é superado pela contemplação da Cruz.

Mas o homem é uma criatura tão estranha, que ele não apenas busca a libertação do sofrimento: ele também busca sofrer, e está sempre pronto a se torturar e a torturar os demais. Dostoievski entendeu isso melhor do que ninguém. Mesmo na vida religiosa, em sua forma mais elevada, na vida Cristã, os homens contemplam não só a libertação do sofrimento que foi prometida ao homem, como também uma intensificação do sofrimento, pregando a autotortura e a tortura dos outros. Existe nos seres humanos como que uma necessidade de matar e torturar em nome de uma ideia ou de uma fé. Uma nova consciência Cristã terá que libertar o homem desses pesadelos. Não são apenas as torturas externas e físicas que são repulsivas, mas as torturas interiores e espirituais também o são. Trata-se, acima de tudo, de uma questão de libertar o conhecimento de Deus e a apreensão de Deus dos instintos sádicos e vingativos que foram transferidos para Ele. As formas mais sádicas de crueldade são vistas nas pessoas que exercem o poder, de qualquer espécie que seja – religioso, nacional, político, econômico, familiar – e elas são estabelecidas como uma base de apoio no domínio das ideias. O poder torna loucos os homens, constituindo-se como um interminável desejo. Alguns imperadores Romanos chegaram a loucuras de crueldade. Existem regimes que representam a cristalização da crueldade sádica.

O homem experimenta o sofrimento de diferentes maneiras na medida em que ele o aceita para o bem de sua fé ou de suas ideias, e então ele é capaz de suportar torturas; ou ele pode sofrer por conta de circunstâncias perversas e da crueldade sem sentido das pessoas que o rodeiam, ou do regime sob o qual ele vive. Existe uma diferença entre o sofrimento no qual o homem se considera culpado, ou rebaixado, ou envilecido, e o sofrimento no qual ele suporta heroicamente a pressão e a perseguição. O sofrimento não pode ser medido e comparado, assim como não se pode comparar e medir a alegria e a felicidade. O sofrimento é sentido de maneira diferente pelas mulheres, por pessoas que trabalham intelectual e criativamente, pelas pessoas simples do povo, e assim por diante. É difícil para o homem contemporâneo, complicado, refinado, fisicamente fraco, entender como é possível suportar um sofrimento como o que suportaram o Protopresbítero Avvakum[4] ou Stenka Razin[5]. Mesmo no homem civilizado subsiste, dos tempos antigos, uma sede por sangue, uma “saudade” dos espetáculos cruéis, das lutas de gladiadores, das touradas, etc. Mefistófeles disse: Blut ist ein ganz besonderer Saft[6]. Existe um elemento de mistério no sangue. Os antigos situavam a alma no sangue; a cessação da vida estava conectada com isso. Foi um enorme passo, em termos morais, quando se superou a convicção dos povos primitivos de que os desafortunados eram esquecidos pelos deuses e que deviam, portanto, ser banidos pelos homens. O sofrimento pode ser vencido pelo amor, mas ao mesmo tempo o amor pode ser a causa do sofrimento. Não estou falando do amor enquanto eros, mas do amor caritativo, daquele que é feito de piedade e de simpatia. É muito difícil para um homem atravessar o sofrimento sozinho e sem manifestar isso exteriormente. A solidão é uma das fontes do sofrimento. Podemos dizer, em certo sentido, que o criador está sempre só e que ele sempre passa pelo sofrimento. A necessidade de partilhar o sofrimento com outros é expressado nas lamentações, nas lágrimas e no pranto. É desse modo, podemos dizer, que o homem pede por socorro. Mas existem pessoas reservadas que orgulhosamente carregam seu sofrimento consigo, que procuram não o revelar de modo algum. Por essa razão podemos sempre pensar que as pessoas são infelizes e que sofrem, embora não possamos perceber diretamente esse fato. Por isso deveríamos nos comportar perante os demais como se cada homem estivesse morrendo. Não existe nada mais doloroso do que ver o vigor, o florescimento, a alegria de uma vida exuberante lado a lado com o enfraquecimento da vida, com o desvanecimento que acompanha o processo da morte. Mas esse é o destino da vida, o destino de cada individualidade. O sofrimento e a morte estão ligados ao amor, que deve ser conquistado, seja pelo sofrimento, seja pela morte, ou por ambos.

A felicidade não é um objetivo consciente da vida humana, e eu já disse que a felicidade não pode ser administrada. A beatitude pode ser vista como o atingimento da plenitude da perfeição, mas ela não pode ser alcançada sobre a terra. Aqui, apenas momentos esparsos desse sentimento podem ser alcançados. Mas podemos nos esforçar para diminuir a quantidade de sofrimento, e devemos fazê-lo. A compaixão é um mandamento absoluto. Ninguém precisa aumentar seu próprio sofrimento, nem infligir sofrimento sobre si mesmo, mas devemos suportar o sofrimento que nos sobrevém desde fora com uma mente esclarecida, recebendo-o como algo que possui um sentido em nosso destino. O tormentoso problema do sofrimento não pode ter sua solução final dentro dos confins desse mundo fenomênico. A contradição entre as necessidades do homem e as condições de sua existência finita dentro do mundo natural é insolúvel e pressupõe a necessidade de um ato de transcendência, e de um fim. É possível ao Bem salvar do sofrimento? Ele não salva, nem pode salvar, e por isso mesmo é necessária a Redenção; é o amor divino, e não apenas o humano, que é necessário. Existe uma impotência do homem face ao mal e ao sofrimento. Mas mesmo para o próprio Deus, enquanto Poder Criador, essa impotência existe. Somente o Deus que se fez Homem e que tomou sobre Si o sofrimento do homem e de toda a criação pode vencer a fonte do mal que dá origem ao sofrimento. Nenhum sistema teológico, nenhuma autoridade, pode dar fim ao sofrimento humano e ao tormento. Somente as realidades primárias da religião, somente a ligação divino-humana, somente o amor divino-humano, podem dar-lhes fim. O homem, que acabou por romper essa ligação divino-humana, vê-se diante o abismo do não-ser, e seu sofrimento se torna assim insuportável.

Todo amor traz consigo novos sofrimentos, e ao mesmo tempo somente o amor pode vencer o sofrimento. Mas é o amor divino-humano que pode fazer isso. O amor-eros carrega em si um sofrimento interminável, pois nele existe um elemento de insaciabilidade. O amor-ágape, que vem de cima para baixo, não de baixo para cima, não inclui em si esse desejo infinito. Por essa razão os dois tipos de amor precisam ser combinados, pois, de outra maneira, a plenitude não pode ser atingida. O poder criativo do homem também pode vencer o sofrimento, embora a criatividade tenha seu próprio sofrimento. O sentido do sofrimento precisa ser encontrado onde está sua causa. Se, dadas as condições de disparidade entre o aspecto mais elevado da natureza humana e as circunstâncias de sua existência nesse mundo, não houvesse o sofrimento, o homem poderia sucumbir a uma condição desventurada. Seja lá o que for que se diga, o sofrimento permanece sendo um mistério para nós. De fato, ele é o mistério da redenção.

A própria palavra redenção está demasiadamente associada a um conceito antropomórfico e sociomórfico de resgate. Para entender a redenção como o pagamento de um resgate a Deus, a fim de aplacar Sua ira, equivale a degradar tanto a Deus, como o homem; significa assumir que os sofrimentos de todos os seres vivos do mundo são agradáveis e aceitáveis a Deus. Mas uma concepção mais profunda e digna do que essa é possível. O sofrimento testa o homem, avalia sua força espiritual enquanto ele caminha pelas vias da liberdade. O que agrada a Deus não é o sofrimento humano, mas a transfiguração dos poderes espirituais pelas provas geradas pelo sofrimento, pelos resultados inevitáveis da liberdade direcionada para essa ou aquela direção, de uma liberdade cujas origens são pré-mundanas. Toda a ênfase deve sempre ser colocada na iluminação e na transfiguração.  



[1] Jacob Boehme, interpreta o termo Quelle (em Alemão), Qualität (em Latim), como semanticamente relacionados. Na sua obra Aurora, ele define a “qualidade” como sendo “a mobilidade, o surgimento, aquilo que impele uma coisa”, exemplificando com o fogo. Mas também a cor, o calor, o frio, a harmonia, a ressonância, a solidez e a impenetrabilidade são por ele consideradas dinâmicas, e não estáticas. É como se fossem manifestações do impulso e do fluxo das coisas, que emanam e se misturam com outras forças para produzir os perpétuos nascimentos e renascimentos da natureza.
[2] Jó 42: 11.
[3] Cf. manuscrito inédito comparativo de O Ego e o Id, cap. II, Das Ich und das Es (O Eu e o isso). In Manuscritos freudianos inéditos: das ich und das es*, por Juan Carlos Cosentino, UFRJ, 2011.
[4] Avvakum Petrov (1620-1681), Protopresbítero de Moscou, opôs-se às reformas do Patriarca Thikon, e, por conta disso, passou mais de 40 anos encerrado num cubículo da prisão de Pustozyorsk, próxima ao círculo Ártico, terminando por ser queimado amarrado a uma estaca.
[5] Stephan Razin (1630-1671), rebelde cossaco que liderou uma campanha contra a burocracia do Czar, foi preso e executado, sendo cortado em pedaços até a morte.
[6] Goethe, Fausto: “O sangue e um suco precioso”.