O mal
O sofrimento e o mal estão conectados, mas não são a mesma coisa. O
sofrimento pode não ser um mal, e pode mesmo vir para o bem. A existência do
mal é o maior mistério da vida do mundo e causa um enorme embaraço para a
doutrina teológica oficial e para a filosofia monística. Uma solução
racionalista do problema do mal está tão cheia de dificuldades quanto a solução
do problema da liberdade. Podemos estabelecer, e com boa base, que o mal não
possui uma existência positiva, e que ele só pode seduzir por aquilo que ele furta
do bem. Não obstante, o mal não só existe, como ainda prevalece no mundo. O que
pode ser chamado de não-ser pode possuir um significado existencial; uma
entidade negativa pode ter grande significado existencial, ainda que seja falso
afirmar que exista. Uma das tentativas para a resolução do problema do mal, e
para reconciliá-lo com a possibilidade de uma teodiceia[1],
consiste em afirmar que o mal está presente apenas nas partes, enquanto que no
todo existe apenas o bem. É o que pensava Santo Agostinho, assim como Leibnitz;
de fato, em última análise, muitas das formas de teodiceia adotam a mesma
posição, admitindo que Deus se utiliza do mal para propósitos bons. Mas esse
tipo de doutrina se baseia na negação do significado incondicional da personalidade,
e é mais característica das antigas filosofias morais do que do Cristianismo.
Ela implica a prevalência de um ponto de vista estético sobre o ponto de vista
ético.
É um fato verdadeiro que nesse mundo empíreo não existe um princípio
teleológico divino bom, e menos ainda poderá existir num mundo que é
reconhecidamente decaído. Devemos dizer que isso pode existir para grupos
isolados de fenômenos, mas não para todo o mundo fenomênico, nem como uma
ligação entre esses fenômenos por causa de Deus. A tradicional doutrina da
Providência é forçada a negar o mal e a injustiça do mundo, e ela traça um
caminho fora da dificuldade na medida em que, ao invés do mal, ela reconhece
apenas a existência do pecado. Em nosso mundo existe um conflito impossível de
ser superado, entre o indivíduo e a raça. A vida individual, tanto humana como
animal, é frágil e está ameaçada em grau extraordinário, mas, ao mesmo tempo,
nossa vida enquanto raça possui um poder produtivo igualmente extraordinário, e
ele está sempre gerando nova vida. A doutrina que vê o mal apenas nas partes e
não no todo, é complacente com a raça e indiferente ao indivíduo. O gênio da
raça é astucioso; ele está sempre sugerindo ao homem infeliz falsas
justificativas, e, por meio dessas, ele o mantém cativo; assim, a vida
histórica e social permanece baseada numa acumulação de falsidades. Uma mentira
pode ser um autoengano, quando um homem se torna um joguete dos lugares comuns
sociais das forças da vida. Uma mentira também pode tomar a forma da defesa da
vida contra ataques a ela. A questão da verdade e da falsidade é um problema
moral fundamental.
O homem busca encontrar refúgio em relação à atormentadora questão do
mal no domínio da neutralidade, e com isso ele tenta esconder sua traição a
Deus. Mas num sentido profundo, não existe neutralidade: a neutralidade só
existe na superfície. É preciso que se diga, que o diabo é neutro. É um erro
supor que o diabo constitui o polo oposto a Deus. O polo que está em direta
oposição é Deus ainda é Deus, a outra face de Deus, onde os extremos se
encontram. O diabo é o príncipe deste mundo, e ele se oculta na neutralidade.
Na vida religiosa em geral, e na vida Cristã, a crença nos demônios e no diabo
sempre desempenhou um enorme papel. Ela foi uma das soluções para o problema do
mal. Quando o diabo é visto como a fonte do mal, entra em cena a objetificação
do drama interior da alma humana. O diabo é uma realidade existencial, mas
certamente não uma realidade objetiva no mundo das coisas, como o são as
realidades do mundo natural. Ele é uma realidade da experiência espiritual, do
caminho que um homem escolhe para si. A ideia do diabo foi demasiado abusada
socialmente. Homens e mulheres foram alimentados com o medo dela, e o reino do
diabo se expandiu enormemente, anexando cada vez mais áreas para si. Dessa
maneira, estabeleceu-se um verdadeiro reino de terror espiritual. A libertação
da alma dos demônios que a atormentam é possível somente por meio de uma
religião espiritualmente purificada. A demonologia e a demonolatria só existem
no caminho que o homem percorre em direção ao reino do espírito, ao reino da
liberdade e do amor, ao Reino de Deus.
A luta contra o demônio adquire facilmente um caráter diabólico: ela é
infectada pelo mal. Existe uma dialética moral sinistra no dualismo
Maniqueísta. Dois grandes focos do mal se tornam o mal em si próprios. Esse é o
paradoxo do conflito contra o mal, contra os homens maus e contra as coisas
más. O bom se torna mau com vistas à vitória sobre outro mal, por não acreditar
na utilização de outros meios senão o mal, para vencer o conflito contra o
próprio mal. A doçura, a mansidão provocam desdém, elas parecem
desinteressantes e insípidas. Por sua vez, a malícia se impõe e parece mais
interessante e atrativa. Os que se engajam na luta pensam que a malícia é mais
inteligente do que a mansuetude. Aqui o problema reside no fato de que
atualmente é impossível efetivar os bons propósitos, os bons fins; é muito mais
fácil conduzir-se por meio do mal e empregar os meios que o mal oferece. Mas é
necessário estar-se dentro do bem, e irradiar o bem. Somente o Evangelho
possibilita superar esse renascimento constante do conflito com o mal na forma
de um novo mal, e da condenação do pecador como um novo pecado. É preciso
comportar-se com humanidade e doçura, mesmo diante do diabo. Existe uma
dialética do comportamento das pessoas diante dos inimigos e do diabo.
Começa-se uma luta em nome do bem contra o inimigo, contra o diabo, mas
acaba-se permeado pelo mesmo mal. O problema de nossa atitude diante dos
inimigos é uma questão moral fundamental de nosso tempo. O inimigo deixa de ser
visto como humano, e assim não existe mais atitude humana em relação a ele. É
nesse contexto que surge a grande apostasia das verdades do Evangelho. Não
acredito que existam naturezas desesperançadamente demoníacas, vale dizer,
naturezas sobre as quais pesa uma sentença de dominação demoníaca, assim como
penso que não existem nações demoníacas. O que existe é simplesmente uma
condição demoníaca de pessoas e nações, de modo que é impossível estabelecer-se
um julgamento final sobre quem quer que seja.
Assim como existe uma dialética na atitude perante o inimigo em
virtude da qual aquele que luta contra um inimigo maligno em nome do bem se
torna ele próprio mau, existe também uma dialética da humildade, em virtude da
qual ela se torna passividade e acomodação diante do mal. Da mesma forma,
existe uma dialética da punição pelo crime, que torna crime essa mesma punição.
Existe nos seres humanos uma necessidade irresistível de bodes expiatórios, de
um inimigo que possa ser culpado de todos os transtornos, e a quem se possa inclusive
odiar. Podem ser os Judeus, os heréticos, os maçons, os Jesuítas, os Jacobinos,
os Bolcheviques, os burgueses, as sociedades secretas, e por aí vai. As
revoluções sempre requerem um inimigo para dele se alimentarem, e se nenhum
inimigo for encontrado, algum será inventado. O mesmo é válido para a
contrarrevolução. Quando o homem encontra o bode expiatório ele se sente
melhor. Isso constitui uma objetificação do mal, sua expulsão para a realidade
externa. O Estado conduz corretamente uma luta contra o crime e contra as
expressões exteriores do mal, uma luta vigorosa, mas, não obstante, o próprio
Estado comete crimes e pratica o mal. Como o “monstro de maior sangue-frio” (na
expressão de Nietsche) ele comete crimes, cria o mal sem paixão alguma e de maneira
abstrata. Sendo o dono das leis e do direito, o Estado defende o bem ao mesmo
tempo em que cria seu mal particular. A necessidade maligna de experimentar a
alegria da crueldade é objetificada, o senso comum se satisfaz em ser causa de
dor, em ter o direito de punir e de estar presente ao ato da punição.
As relações entre o bem e o mal não são simples, e existe uma complexa
dialética existencial entre os dois. O bem pode renascer como mal, e
vice-versa. A própria distinção entre o bem e o mal consistiu numa divisão
doentia e mórbida que carregou a marca de ter passado pela Queda. Existe algo
de servil na intepretação do pecado como um crime que infringe a vontade de
Deus e pede por procedimentos legais da parte de Deus. Superar essa concepção
servil implica um movimento interior, um movimento em profundidade. O pecado é
divisão, um estado de deficiência, de incompletude, de dissociação, de
escravidão, de ódio, mas não constitui uma desobediência, nem uma violação
formal da vontade de Deus. É impossível e inadmissível construir uma ontologia
do mal. A ideia do inferno eterno é, portanto, absurda e maligna. O mal não
passa de um caminho, de uma prova, de uma interrupção: cair no pecado é, acima
de tudo, um teste de liberdade. O homem se move da escuridão para a luz.
Dostoievski demonstrou isso com mais profundidade do que qualquer outro.
O mal costuma ser explicado em termos de liberdade. Essa é a
explicação mais disseminada sobre o mal. Mas a liberdade é um mistério que não
se deixa levar pela racionalização. A doutrina acadêmica tradicional sobre o
livre arbítrio é estática e revela muito pouco do mistério que envolve o
surgimento do mal. Permanece incompreensível como, fora da boa natureza do
homem, e do próprio diabo, fora da existência celestial sob a luz de Deus, é
possível surgir – graças à liberdade da criatura (liberdade que deve ser
entendida como o dom maior de Deus, e um sinal da semelhança do homem para com
Ele) – como é possível surgir o mal, e uma existência má, para o homem e para o
mundo, um mal que é uma reminiscência do inferno. É preciso conceder a
existência de uma liberdade incriada que precede a existência, e que está
submersa numa esfera irracional, naquilo que Boehme chama de Ungrund,
embora com um sentido um pouco diverso. O reconhecimento dessa liberdade, que
precede a existência e a criação, que é pré-mundana, coloca diante do homem a
tarefa criativa de continuar a criação do mundo, e torna o próprio mal um
caminho, uma experiência dolorosa e cruel, mas não um princípio ontológico que
chega até a eternidade (o inferno). A liberdade deve ser entendida
dinamicamente, engajada num processo dialético. Existem contradições na
liberdade, e diferentes leis e condições podem ser atribuídas a ela. O mal
coloca a questão escatológica de forma aguda, e só pode ser eliminado e
superado escatologicamente.
É preciso sustentar a luta contra o mal, e esse deve ser finalmente
derrotado, e, ao mesmo tempo, a experiência do mal se mostra um caminho que
conduz tanto para baixo como para cima. O mal em si não constitui um caminho
ascensional, mas sim o esforço espiritual de resistência que ele provoca, e o
conhecimento que daí advém. O mal não tem sentido, ao mesmo tempo em que possui
um alto significado. Também a liberdade é a antítese da necessidade e da
escravidão, mas ela pode renascer como necessidade e escravidão, ela pode ser
transposta ao seu oposto. O homem deve passar pelo teste de todas as
possibilidades, ele deve passar pela experiência do conhecimento do bem e do
mal, e esse último pode se transformar num momento dialético do bem. E o mal
pode ser superado de forma imanente, vale dizer, deve se apresentar aquilo q eu
Hegel chamava de Aufhebung[2],
quando o negativo é superado, e todo o positivo entra num estágio subsequente.
Dessa forma, mesmo o ateísmo pode se tornar um momento dialético no
conhecimento de Deus. É um fardo do homem que ele tenha que passar pelo
ateísmo, pelo comunismo e por tantas outras coisas, para poder sair delas na
direção da luz por um ato de superação imanente e enriquecedor. O que é preciso
não é a destruição dos “maus” por meio de sua iluminação. O mal só pode ser
vencido desde dentro, não por uma simples proibição, nem pode ele ser destruído
pela força. E ao mesmo tempo devem ser impostos limites exteriores às
manifestações do mal, àquelas que são destruidoras da vida. Um conflito tanto
espiritual quanto social deve ser estabelecido contra o mal, e o conflito
social não pode se impedir de recorrer à força, pelo menos não nas condições
desse mundo. Mas o conflito espiritual, por sua vez, só pode ser sustentado com
o recurso a um processo de iluminação e de transfiguração, não pelo uso da
violência.
A experiência do mal pode não enriquecer a pessoa, se essa se render
ao mal. Somente o poder espiritual positivo e radiante, que nasce da superação
do mal, pode enriquecer. A luz pressupõe as trevas, o bem pressupõe o mal, o
desenvolvimento criativo pressupõe não apenas o “isso”, como também o “outro”.
Foram Boehme e Hegel que melhor entenderam isso. O mal possui o domínio sobre
esse mundo, mas a última palavra não caberá a ele. O mal pode constituir um
momento dialético no desenvolvimento das coisas criadas, mas apenas na medida
em que, através dele, se revela o bem que lhe é oposto. A ideia do inferno e
dos tormentos do inferno constituem uma eternização do mal; ela representa uma
derrota do esforço diante dele. O mal pressupõe a liberdade e não pode existir
liberdade sem a liberdade do mal, ou seja, não pode existir liberdade dentro de
um estado de bem compulsório. Mas o mal
se volta contra a liberdade; ele tenta destruí-la e entronizar a escravidão. De
acordo com Kierkegaard, o homem se torna um ego por intermédio do
pecado; somente quem desceu aos infernos pode conhecer o céu, e quem estiver
mais afastado de Deus estará mais perto Dele. Na visão de Kierkegaard a geração
dos filhos constitui o pecado primário. Baader diz que a vida nasce na dor, e
que ela só surge depois de uma descida ao inferno. Existe um lampejo de luz na
fronteira entre o mundo das trevas e o mundo da luz. No início o mal se
comporta em relação a nós como diante de um senhor, depois nos trata como
companheiros de trabalho, e por fim se torna nosso senhor. Todas as ideias são
dinâmicas, elas pressupõem a contradição e um processo que nasce da
contradição.
Duas causas opostas fazem surgir o mal no homem. Tanto pode um vácuo
se formar na alma, atraindo o mal, com pode uma paixão se tornar uma ideia fixa
e, expulsando todo o resto, degenerar em mal. Essas paixões são, por exemplo, a
ambição, a avareza, a inveja, o ódio. A paixão não é um mal em si, mas ela se
torna facilmente um mal e conduz à perda da liberdade interior. Também é
possível que surja uma paixão pela morte. É difícil para um homem formado com
uma consciência moral e religiosa cometer a primeira transgressão, mas da
primeira ofensa é muito fácil passar segunda, e daí mergulhar numa atmosfera
mágica de delinquência. Isso foi admiravelmente representado por Shakespeare em
Macbeth. É difícil entrar no caminho do terrorismo, mas depois é difícil parar
e encerrar esse caminho. O mal é, acima de tudo, a perda da integridade; ele
consiste num rompimento com o centro espiritual, e na formação de partes
autônomas que começam a levar uma vida independente por si próprias. Por outro
lado, o bem no homem constitui uma integridade interior, uma unidade interior,
a subordinação da vida da alma e do corpo a um princípio espiritual. O mal
pertence a esse mundo e, dentro de uma interpretação apofática do Divino, ele não
pode ser transferido para a vida além daqui. A ideia do inferno não é uma
vitória sobre o mal – ela antes corresponde à imortalização do mal.
Em face ao torturante problema do mal, tanto o otimismo como o
pessimismo são igualmente falsos. É preciso ser mais do que pessimista para
reconhecer o mal nesse mundo fenomênico sobre o qual reina o “príncipe desse
mundo”, e mais do que otimista para negar isso no mundo além. O conhecimento
concreto da vida, a visão detalhada de todos os seus segredos, é um conhecimento
amargo. O advento de uma vida melhor é apenas simbolizado pelas revoluções,
políticas ou religiosas, mas essa vida melhor não chega nunca, e o homem novo
nunca aparece. Sempre as mesmas expressões básicas da vida humana aparecem
renovadas; seja na opressão, na perseguição, religiosa, nacional ou política,
seja pelo levante de sentimentos de classe ou pertencendo ao mundo das ideias.
O entusiasmo coletivo facilmente acaba no estabelecimento de uma Gestapo ou de
uma Cheka. A vida do homem civilizado possui uma irresistível tendência à
desintegração, à corrupção, ao colapso e à insensatez. Daí surge o desejo de se
salvar por meio do movimento na direção oposta, de buscar refúgio na natureza,
no campo, no trabalho, no ascetismo, no monasticismo; mas esse movimento
facilmente conduz à ossificação ou à dissolução.
É uma coisa surpreendente que, quando as pessoas se arrependem, elas
não se arrependem daquilo de que deveriam se arrepender. Torquemada não se
arrependia de seu verdadeiro pecado como inquisidor, pois ele estava convencido
de que estava servindo a Deus. Os Cristãos não desejam tanto uma transformação
real de sua natureza, mas a absolvição de seus pecados. As ideologias
religiosas e as crenças se tornam questão de novos ódios e hostilidades. A
religião do amor e do perdão abriga uma luta pelo poder. Estados e sociedades
são sempre ofensivos e agressivos, de modo que a personalidade humana é
obrigada a se colocar sempre na defensiva. O amor de uma mulher pode conter um
significado de redentora salvação. Aqui, é como se a imagem da Mãe de Deus
viesse sempre ao nosso encontro. Mas o amor de uma mulher também pode, e até
mais, se causa de ruína. Os sacrifícios sangrentos propiciatórios deveriam
possuir um significado redentor, mas acabavam por expressar apenas a crueldade
e a sede de sangue dos homens. E até hoje os sacrifícios de sangue humano são
oferecidos em razão de ideias e crenças que possuem toda a aparência de nobreza.
Todo esse amargo conhecimento da vida não constitui um conhecimento final, não
é o conhecimento das últimas coisas. Por trás de toda a escuridão do mundo e da
vida humana se esconde uma luz, e houveram momentos em que essa luz era tão
forte que chegava a nos cegar. O homem podia encarar o mal de frente, sem se
iludir a respeito dele, e sem jamais sucumbir a ele. a verdade reside além do
otimismo e do pessimismo. O absurdo do mundo não consiste numa negação da
existência de significado. A exposição de uma falta de sentido pressupõe a
existência de sentido. O mal do mundo pressupõe a existência de Deus, sem o que
seria impossível conhecê-Lo.
A nobreza, qualidade que eu considero como sendo a verdadeira
aristocracia, requer do homem o reconhecimento de sua culpa. Nas profundezas de
sua consciência, que muitas vezes se encontra coberta ou mesmo suprimida,
sempre é possível encontrar a consciência da culpa. O q eu e necessário é tomar
sobre si tanta culpa quanto possível, e colocar sobre os outros o mínimo de
culpa possível. O aristocrata não é alguém orgulhosamente consciente de si
próprio em primeiro lugar, como um ser privilegiado, e que defende ao máximo
sua posição. O aristocrata é um homem consciente da culpa e da pecaminosidade
dessa sua posição, desse privilégio. A sensação de ser constantemente afrontado
é, por outro lado, precisamente um traço plebeu. Mas é muito fácil condenar o
ressentimento do oprimido e daqueles que vem por último na escala social. Mas
Scheler fez isso, injustificadamente, do ponto de vista de um Cristianismo
embebido de Nietscheanismo. O ressentimento, que inclui a inveja, não é,
indubitavelmente, um sentimento nobre, mas existem bons motivos para sua
existência, e não cabe culpar de ressentimentos quem é humilhado, nem sobrecarregá-lo
com acusações. Não obstante, a coisa mais profunda não é a consciência do
próprio pecado (que pode permanecer na esfera da psicologia e da ética), mas a
consciência metafísica da posição do homem no mundo, desse homem que possui infinitas
aspirações ao mesmo tempo em que se vê colocado em circunstância de uma
existência finita e opressiva. Nisso reside a queda do homem, e nisso reside a
origem e a formação das obscuras paixões dos mundos falsos e ilusórios.
O homem tem dificuldade em suportar o fato de que ele está nesse mundo
como uma criatura mortal e que tudo o que acontece nele e com ele é mortal. Por
isso o problema do mal é antes de tudo um problema da morte. O mal é a morte; a
vitória sobre o mal é a ressurreição da vida, o renascimento para uma nova
vida. Assassinato, ódio, vingança, traição, perfídia, deboche, escravidão, são
formas de morte. A vitória do Deus-homem sobre o último inimigo, a morte, foi
uma vitória sobre o mal. Foi a vitória do amor, da liberdade e da criatividade,
sobre o ódio, a escravidão e a inércia, a vitória da personalidade sobre a
impessoalidade. Mas o último inimigo, a morte, possui também seu significado positivo.
O trágico sentido da morte está conectado com um agudo senso de personalidade,
de destino pessoal. Para a existência da raça, não há nada de trágico na morte.
A vida da raça sempre se renova e continua, ela encontra formas de compensação
para si própria. A morte apavora o mais desenvolvido e individualizado
organismo de todos. Ao sentido agudo de personalidade associa-se igualmente um
agudo sentido do mal. O significado positivo da morte reside no fato de que sua
inevitabilidade para a existência pessoal e individual é a evidência de
impossibilidade de alcançar as empreitas infinitas da vida, da impossibilidade
de realizar a plenitude da vida dentro dos limites desse mundo e desse tempo.
A morte, o mal definitivo, é um dos caminhos para a eternidade. Uma
vida sem fim, dentro das condições de nossa existência limitada, seria um
pesadelo. Passar pela morte é tão necessário para nosso destino pessoal na
eternidade, como o fim do mundo é necessário para a realização de seu destino
eterno. As antinomias e problemas da vida humana e da vida do mundo não podem
ser resolvidas no presente éon, e, assim, torna-se necessária a transição para
um outro éon. Por essa razão o medo da morte não é a única possibilidade que se
apresenta: existe também a atração da morte. O pensamento da morte é, muitas
vezes, um consolo para o homem, quando as contradições da vida se tornam
intoleráveis, quando o mal que o rodeia cresce e se intensifica. Freud via o
instinto da morte não apenas como sendo de uma ordem mais elevada do que o
instinto sexual, como ainda sendo o único instinto realmente elevado no homem.
Da mesma forma, Heidegger foi compelido a reconhecer a morte como superior ao Dasein,
o qual está submerso na monotonia e no prosaico, no das Man. Nessa filosofia,
a última palavra cabe à morte. É um fato interessante, que para o espírito
Germânico exista, em geral, algo de atrativo na morte, na vitória e na morte. A
música de Wagner estava permeada pelos sentidos da vitória e da morte; Nietsche
pregava o desejo pelo poder e uma alegria extática da vida, mas em seu
sentimento perpetuamente trágico sobre a vida, a coisa mais profunda e final
era o Amor fati. Havia profundidade no espírito Germânico, mas não havia
a força da ressurreição.
A força da ressurreição existe no espírito Russo, e Fedorov representa
o ápice de sua expressão. E não é por acaso que a principal festa da Ortodoxia
Russa seja a da Ressurreição de Cristo. É assim que o Cristianismo é entendido.
A fonte da vitória sobre o mal da vida nesse mundo não está na morte, nem no
nascimento, mas na ressurreição. A experiência do mal do mundo destrói, mas o
poder criativo da ressurreição derrota o mal e a morte. A ética Cristã em
relação ao mal como um todo e em relação ao mal individual não pode deixar de
ser paradoxal. Em Cristo, o Deus-homem, e no processo divino-humano, a
transfiguração de todo o cosmo se torna realizada. É impossível pensar no mal e
na liberdade, que está ligada ao mal, de uma maneira estática e ontológica. Eles
devem ser pensados dinamicamente, na linguagem de uma experiência existencial
espiritual.
[1]
Teodiceia: a justificação da bondade e da onipotência divinas diante da
existência do mal.
[2]
O substantivo Aufhebung se origina do verbo alemão aufheben,
sendo de uso muito comum neste idioma. Este verbo tem pelo menos três
significados distintos: 1) negar (no sentido de anular ou cancelar, como quando
suspendemos ou cancelamos um passeio por causa do mau tempo); 2) preservar; e
também 3) elevar a um nível superior. Hegel foi inovador ao utilizar o termo Aufhebung
para significar não apenas um destes sentidos de cada vez, mas os três ao mesmo
tempo.
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