quinta-feira, 26 de março de 2020

Nikolai Berdiaev - O Divino e o HUmano - Capítulo VI




O mal


O sofrimento e o mal estão conectados, mas não são a mesma coisa. O sofrimento pode não ser um mal, e pode mesmo vir para o bem. A existência do mal é o maior mistério da vida do mundo e causa um enorme embaraço para a doutrina teológica oficial e para a filosofia monística. Uma solução racionalista do problema do mal está tão cheia de dificuldades quanto a solução do problema da liberdade. Podemos estabelecer, e com boa base, que o mal não possui uma existência positiva, e que ele só pode seduzir por aquilo que ele furta do bem. Não obstante, o mal não só existe, como ainda prevalece no mundo. O que pode ser chamado de não-ser pode possuir um significado existencial; uma entidade negativa pode ter grande significado existencial, ainda que seja falso afirmar que exista. Uma das tentativas para a resolução do problema do mal, e para reconciliá-lo com a possibilidade de uma teodiceia[1], consiste em afirmar que o mal está presente apenas nas partes, enquanto que no todo existe apenas o bem. É o que pensava Santo Agostinho, assim como Leibnitz; de fato, em última análise, muitas das formas de teodiceia adotam a mesma posição, admitindo que Deus se utiliza do mal para propósitos bons. Mas esse tipo de doutrina se baseia na negação do significado incondicional da personalidade, e é mais característica das antigas filosofias morais do que do Cristianismo. Ela implica a prevalência de um ponto de vista estético sobre o ponto de vista ético.

É um fato verdadeiro que nesse mundo empíreo não existe um princípio teleológico divino bom, e menos ainda poderá existir num mundo que é reconhecidamente decaído. Devemos dizer que isso pode existir para grupos isolados de fenômenos, mas não para todo o mundo fenomênico, nem como uma ligação entre esses fenômenos por causa de Deus. A tradicional doutrina da Providência é forçada a negar o mal e a injustiça do mundo, e ela traça um caminho fora da dificuldade na medida em que, ao invés do mal, ela reconhece apenas a existência do pecado. Em nosso mundo existe um conflito impossível de ser superado, entre o indivíduo e a raça. A vida individual, tanto humana como animal, é frágil e está ameaçada em grau extraordinário, mas, ao mesmo tempo, nossa vida enquanto raça possui um poder produtivo igualmente extraordinário, e ele está sempre gerando nova vida. A doutrina que vê o mal apenas nas partes e não no todo, é complacente com a raça e indiferente ao indivíduo. O gênio da raça é astucioso; ele está sempre sugerindo ao homem infeliz falsas justificativas, e, por meio dessas, ele o mantém cativo; assim, a vida histórica e social permanece baseada numa acumulação de falsidades. Uma mentira pode ser um autoengano, quando um homem se torna um joguete dos lugares comuns sociais das forças da vida. Uma mentira também pode tomar a forma da defesa da vida contra ataques a ela. A questão da verdade e da falsidade é um problema moral fundamental.

O homem busca encontrar refúgio em relação à atormentadora questão do mal no domínio da neutralidade, e com isso ele tenta esconder sua traição a Deus. Mas num sentido profundo, não existe neutralidade: a neutralidade só existe na superfície. É preciso que se diga, que o diabo é neutro. É um erro supor que o diabo constitui o polo oposto a Deus. O polo que está em direta oposição é Deus ainda é Deus, a outra face de Deus, onde os extremos se encontram. O diabo é o príncipe deste mundo, e ele se oculta na neutralidade. Na vida religiosa em geral, e na vida Cristã, a crença nos demônios e no diabo sempre desempenhou um enorme papel. Ela foi uma das soluções para o problema do mal. Quando o diabo é visto como a fonte do mal, entra em cena a objetificação do drama interior da alma humana. O diabo é uma realidade existencial, mas certamente não uma realidade objetiva no mundo das coisas, como o são as realidades do mundo natural. Ele é uma realidade da experiência espiritual, do caminho que um homem escolhe para si. A ideia do diabo foi demasiado abusada socialmente. Homens e mulheres foram alimentados com o medo dela, e o reino do diabo se expandiu enormemente, anexando cada vez mais áreas para si. Dessa maneira, estabeleceu-se um verdadeiro reino de terror espiritual. A libertação da alma dos demônios que a atormentam é possível somente por meio de uma religião espiritualmente purificada. A demonologia e a demonolatria só existem no caminho que o homem percorre em direção ao reino do espírito, ao reino da liberdade e do amor, ao Reino de Deus.

A luta contra o demônio adquire facilmente um caráter diabólico: ela é infectada pelo mal. Existe uma dialética moral sinistra no dualismo Maniqueísta. Dois grandes focos do mal se tornam o mal em si próprios. Esse é o paradoxo do conflito contra o mal, contra os homens maus e contra as coisas más. O bom se torna mau com vistas à vitória sobre outro mal, por não acreditar na utilização de outros meios senão o mal, para vencer o conflito contra o próprio mal. A doçura, a mansidão provocam desdém, elas parecem desinteressantes e insípidas. Por sua vez, a malícia se impõe e parece mais interessante e atrativa. Os que se engajam na luta pensam que a malícia é mais inteligente do que a mansuetude. Aqui o problema reside no fato de que atualmente é impossível efetivar os bons propósitos, os bons fins; é muito mais fácil conduzir-se por meio do mal e empregar os meios que o mal oferece. Mas é necessário estar-se dentro do bem, e irradiar o bem. Somente o Evangelho possibilita superar esse renascimento constante do conflito com o mal na forma de um novo mal, e da condenação do pecador como um novo pecado. É preciso comportar-se com humanidade e doçura, mesmo diante do diabo. Existe uma dialética do comportamento das pessoas diante dos inimigos e do diabo. Começa-se uma luta em nome do bem contra o inimigo, contra o diabo, mas acaba-se permeado pelo mesmo mal. O problema de nossa atitude diante dos inimigos é uma questão moral fundamental de nosso tempo. O inimigo deixa de ser visto como humano, e assim não existe mais atitude humana em relação a ele. É nesse contexto que surge a grande apostasia das verdades do Evangelho. Não acredito que existam naturezas desesperançadamente demoníacas, vale dizer, naturezas sobre as quais pesa uma sentença de dominação demoníaca, assim como penso que não existem nações demoníacas. O que existe é simplesmente uma condição demoníaca de pessoas e nações, de modo que é impossível estabelecer-se um julgamento final sobre quem quer que seja.

Assim como existe uma dialética na atitude perante o inimigo em virtude da qual aquele que luta contra um inimigo maligno em nome do bem se torna ele próprio mau, existe também uma dialética da humildade, em virtude da qual ela se torna passividade e acomodação diante do mal. Da mesma forma, existe uma dialética da punição pelo crime, que torna crime essa mesma punição. Existe nos seres humanos uma necessidade irresistível de bodes expiatórios, de um inimigo que possa ser culpado de todos os transtornos, e a quem se possa inclusive odiar. Podem ser os Judeus, os heréticos, os maçons, os Jesuítas, os Jacobinos, os Bolcheviques, os burgueses, as sociedades secretas, e por aí vai. As revoluções sempre requerem um inimigo para dele se alimentarem, e se nenhum inimigo for encontrado, algum será inventado. O mesmo é válido para a contrarrevolução. Quando o homem encontra o bode expiatório ele se sente melhor. Isso constitui uma objetificação do mal, sua expulsão para a realidade externa. O Estado conduz corretamente uma luta contra o crime e contra as expressões exteriores do mal, uma luta vigorosa, mas, não obstante, o próprio Estado comete crimes e pratica o mal. Como o “monstro de maior sangue-frio” (na expressão de Nietsche) ele comete crimes, cria o mal sem paixão alguma e de maneira abstrata. Sendo o dono das leis e do direito, o Estado defende o bem ao mesmo tempo em que cria seu mal particular. A necessidade maligna de experimentar a alegria da crueldade é objetificada, o senso comum se satisfaz em ser causa de dor, em ter o direito de punir e de estar presente ao ato da punição.

As relações entre o bem e o mal não são simples, e existe uma complexa dialética existencial entre os dois. O bem pode renascer como mal, e vice-versa. A própria distinção entre o bem e o mal consistiu numa divisão doentia e mórbida que carregou a marca de ter passado pela Queda. Existe algo de servil na intepretação do pecado como um crime que infringe a vontade de Deus e pede por procedimentos legais da parte de Deus. Superar essa concepção servil implica um movimento interior, um movimento em profundidade. O pecado é divisão, um estado de deficiência, de incompletude, de dissociação, de escravidão, de ódio, mas não constitui uma desobediência, nem uma violação formal da vontade de Deus. É impossível e inadmissível construir uma ontologia do mal. A ideia do inferno eterno é, portanto, absurda e maligna. O mal não passa de um caminho, de uma prova, de uma interrupção: cair no pecado é, acima de tudo, um teste de liberdade. O homem se move da escuridão para a luz. Dostoievski demonstrou isso com mais profundidade do que qualquer outro.

O mal costuma ser explicado em termos de liberdade. Essa é a explicação mais disseminada sobre o mal. Mas a liberdade é um mistério que não se deixa levar pela racionalização. A doutrina acadêmica tradicional sobre o livre arbítrio é estática e revela muito pouco do mistério que envolve o surgimento do mal. Permanece incompreensível como, fora da boa natureza do homem, e do próprio diabo, fora da existência celestial sob a luz de Deus, é possível surgir – graças à liberdade da criatura (liberdade que deve ser entendida como o dom maior de Deus, e um sinal da semelhança do homem para com Ele) – como é possível surgir o mal, e uma existência má, para o homem e para o mundo, um mal que é uma reminiscência do inferno. É preciso conceder a existência de uma liberdade incriada que precede a existência, e que está submersa numa esfera irracional, naquilo que Boehme chama de Ungrund, embora com um sentido um pouco diverso. O reconhecimento dessa liberdade, que precede a existência e a criação, que é pré-mundana, coloca diante do homem a tarefa criativa de continuar a criação do mundo, e torna o próprio mal um caminho, uma experiência dolorosa e cruel, mas não um princípio ontológico que chega até a eternidade (o inferno). A liberdade deve ser entendida dinamicamente, engajada num processo dialético. Existem contradições na liberdade, e diferentes leis e condições podem ser atribuídas a ela. O mal coloca a questão escatológica de forma aguda, e só pode ser eliminado e superado escatologicamente.

É preciso sustentar a luta contra o mal, e esse deve ser finalmente derrotado, e, ao mesmo tempo, a experiência do mal se mostra um caminho que conduz tanto para baixo como para cima. O mal em si não constitui um caminho ascensional, mas sim o esforço espiritual de resistência que ele provoca, e o conhecimento que daí advém. O mal não tem sentido, ao mesmo tempo em que possui um alto significado. Também a liberdade é a antítese da necessidade e da escravidão, mas ela pode renascer como necessidade e escravidão, ela pode ser transposta ao seu oposto. O homem deve passar pelo teste de todas as possibilidades, ele deve passar pela experiência do conhecimento do bem e do mal, e esse último pode se transformar num momento dialético do bem. E o mal pode ser superado de forma imanente, vale dizer, deve se apresentar aquilo q eu Hegel chamava de Aufhebung[2], quando o negativo é superado, e todo o positivo entra num estágio subsequente. Dessa forma, mesmo o ateísmo pode se tornar um momento dialético no conhecimento de Deus. É um fardo do homem que ele tenha que passar pelo ateísmo, pelo comunismo e por tantas outras coisas, para poder sair delas na direção da luz por um ato de superação imanente e enriquecedor. O que é preciso não é a destruição dos “maus” por meio de sua iluminação. O mal só pode ser vencido desde dentro, não por uma simples proibição, nem pode ele ser destruído pela força. E ao mesmo tempo devem ser impostos limites exteriores às manifestações do mal, àquelas que são destruidoras da vida. Um conflito tanto espiritual quanto social deve ser estabelecido contra o mal, e o conflito social não pode se impedir de recorrer à força, pelo menos não nas condições desse mundo. Mas o conflito espiritual, por sua vez, só pode ser sustentado com o recurso a um processo de iluminação e de transfiguração, não pelo uso da violência.

A experiência do mal pode não enriquecer a pessoa, se essa se render ao mal. Somente o poder espiritual positivo e radiante, que nasce da superação do mal, pode enriquecer. A luz pressupõe as trevas, o bem pressupõe o mal, o desenvolvimento criativo pressupõe não apenas o “isso”, como também o “outro”. Foram Boehme e Hegel que melhor entenderam isso. O mal possui o domínio sobre esse mundo, mas a última palavra não caberá a ele. O mal pode constituir um momento dialético no desenvolvimento das coisas criadas, mas apenas na medida em que, através dele, se revela o bem que lhe é oposto. A ideia do inferno e dos tormentos do inferno constituem uma eternização do mal; ela representa uma derrota do esforço diante dele. O mal pressupõe a liberdade e não pode existir liberdade sem a liberdade do mal, ou seja, não pode existir liberdade dentro de um estado de bem compulsório.  Mas o mal se volta contra a liberdade; ele tenta destruí-la e entronizar a escravidão. De acordo com Kierkegaard, o homem se torna um ego por intermédio do pecado; somente quem desceu aos infernos pode conhecer o céu, e quem estiver mais afastado de Deus estará mais perto Dele. Na visão de Kierkegaard a geração dos filhos constitui o pecado primário. Baader diz que a vida nasce na dor, e que ela só surge depois de uma descida ao inferno. Existe um lampejo de luz na fronteira entre o mundo das trevas e o mundo da luz. No início o mal se comporta em relação a nós como diante de um senhor, depois nos trata como companheiros de trabalho, e por fim se torna nosso senhor. Todas as ideias são dinâmicas, elas pressupõem a contradição e um processo que nasce da contradição.

Duas causas opostas fazem surgir o mal no homem. Tanto pode um vácuo se formar na alma, atraindo o mal, com pode uma paixão se tornar uma ideia fixa e, expulsando todo o resto, degenerar em mal. Essas paixões são, por exemplo, a ambição, a avareza, a inveja, o ódio. A paixão não é um mal em si, mas ela se torna facilmente um mal e conduz à perda da liberdade interior. Também é possível que surja uma paixão pela morte. É difícil para um homem formado com uma consciência moral e religiosa cometer a primeira transgressão, mas da primeira ofensa é muito fácil passar segunda, e daí mergulhar numa atmosfera mágica de delinquência. Isso foi admiravelmente representado por Shakespeare em Macbeth. É difícil entrar no caminho do terrorismo, mas depois é difícil parar e encerrar esse caminho. O mal é, acima de tudo, a perda da integridade; ele consiste num rompimento com o centro espiritual, e na formação de partes autônomas que começam a levar uma vida independente por si próprias. Por outro lado, o bem no homem constitui uma integridade interior, uma unidade interior, a subordinação da vida da alma e do corpo a um princípio espiritual. O mal pertence a esse mundo e, dentro de uma interpretação apofática do Divino, ele não pode ser transferido para a vida além daqui. A ideia do inferno não é uma vitória sobre o mal – ela antes corresponde à imortalização do mal.

Em face ao torturante problema do mal, tanto o otimismo como o pessimismo são igualmente falsos. É preciso ser mais do que pessimista para reconhecer o mal nesse mundo fenomênico sobre o qual reina o “príncipe desse mundo”, e mais do que otimista para negar isso no mundo além. O conhecimento concreto da vida, a visão detalhada de todos os seus segredos, é um conhecimento amargo. O advento de uma vida melhor é apenas simbolizado pelas revoluções, políticas ou religiosas, mas essa vida melhor não chega nunca, e o homem novo nunca aparece. Sempre as mesmas expressões básicas da vida humana aparecem renovadas; seja na opressão, na perseguição, religiosa, nacional ou política, seja pelo levante de sentimentos de classe ou pertencendo ao mundo das ideias. O entusiasmo coletivo facilmente acaba no estabelecimento de uma Gestapo ou de uma Cheka. A vida do homem civilizado possui uma irresistível tendência à desintegração, à corrupção, ao colapso e à insensatez. Daí surge o desejo de se salvar por meio do movimento na direção oposta, de buscar refúgio na natureza, no campo, no trabalho, no ascetismo, no monasticismo; mas esse movimento facilmente conduz à ossificação ou à dissolução.

É uma coisa surpreendente que, quando as pessoas se arrependem, elas não se arrependem daquilo de que deveriam se arrepender. Torquemada não se arrependia de seu verdadeiro pecado como inquisidor, pois ele estava convencido de que estava servindo a Deus. Os Cristãos não desejam tanto uma transformação real de sua natureza, mas a absolvição de seus pecados. As ideologias religiosas e as crenças se tornam questão de novos ódios e hostilidades. A religião do amor e do perdão abriga uma luta pelo poder. Estados e sociedades são sempre ofensivos e agressivos, de modo que a personalidade humana é obrigada a se colocar sempre na defensiva. O amor de uma mulher pode conter um significado de redentora salvação. Aqui, é como se a imagem da Mãe de Deus viesse sempre ao nosso encontro. Mas o amor de uma mulher também pode, e até mais, se causa de ruína. Os sacrifícios sangrentos propiciatórios deveriam possuir um significado redentor, mas acabavam por expressar apenas a crueldade e a sede de sangue dos homens. E até hoje os sacrifícios de sangue humano são oferecidos em razão de ideias e crenças que possuem toda a aparência de nobreza. Todo esse amargo conhecimento da vida não constitui um conhecimento final, não é o conhecimento das últimas coisas. Por trás de toda a escuridão do mundo e da vida humana se esconde uma luz, e houveram momentos em que essa luz era tão forte que chegava a nos cegar. O homem podia encarar o mal de frente, sem se iludir a respeito dele, e sem jamais sucumbir a ele. a verdade reside além do otimismo e do pessimismo. O absurdo do mundo não consiste numa negação da existência de significado. A exposição de uma falta de sentido pressupõe a existência de sentido. O mal do mundo pressupõe a existência de Deus, sem o que seria impossível conhecê-Lo.

A nobreza, qualidade que eu considero como sendo a verdadeira aristocracia, requer do homem o reconhecimento de sua culpa. Nas profundezas de sua consciência, que muitas vezes se encontra coberta ou mesmo suprimida, sempre é possível encontrar a consciência da culpa. O q eu e necessário é tomar sobre si tanta culpa quanto possível, e colocar sobre os outros o mínimo de culpa possível. O aristocrata não é alguém orgulhosamente consciente de si próprio em primeiro lugar, como um ser privilegiado, e que defende ao máximo sua posição. O aristocrata é um homem consciente da culpa e da pecaminosidade dessa sua posição, desse privilégio. A sensação de ser constantemente afrontado é, por outro lado, precisamente um traço plebeu. Mas é muito fácil condenar o ressentimento do oprimido e daqueles que vem por último na escala social. Mas Scheler fez isso, injustificadamente, do ponto de vista de um Cristianismo embebido de Nietscheanismo. O ressentimento, que inclui a inveja, não é, indubitavelmente, um sentimento nobre, mas existem bons motivos para sua existência, e não cabe culpar de ressentimentos quem é humilhado, nem sobrecarregá-lo com acusações. Não obstante, a coisa mais profunda não é a consciência do próprio pecado (que pode permanecer na esfera da psicologia e da ética), mas a consciência metafísica da posição do homem no mundo, desse homem que possui infinitas aspirações ao mesmo tempo em que se vê colocado em circunstância de uma existência finita e opressiva. Nisso reside a queda do homem, e nisso reside a origem e a formação das obscuras paixões dos mundos falsos e ilusórios.

O homem tem dificuldade em suportar o fato de que ele está nesse mundo como uma criatura mortal e que tudo o que acontece nele e com ele é mortal. Por isso o problema do mal é antes de tudo um problema da morte. O mal é a morte; a vitória sobre o mal é a ressurreição da vida, o renascimento para uma nova vida. Assassinato, ódio, vingança, traição, perfídia, deboche, escravidão, são formas de morte. A vitória do Deus-homem sobre o último inimigo, a morte, foi uma vitória sobre o mal. Foi a vitória do amor, da liberdade e da criatividade, sobre o ódio, a escravidão e a inércia, a vitória da personalidade sobre a impessoalidade. Mas o último inimigo, a morte, possui também seu significado positivo. O trágico sentido da morte está conectado com um agudo senso de personalidade, de destino pessoal. Para a existência da raça, não há nada de trágico na morte. A vida da raça sempre se renova e continua, ela encontra formas de compensação para si própria. A morte apavora o mais desenvolvido e individualizado organismo de todos. Ao sentido agudo de personalidade associa-se igualmente um agudo sentido do mal. O significado positivo da morte reside no fato de que sua inevitabilidade para a existência pessoal e individual é a evidência de impossibilidade de alcançar as empreitas infinitas da vida, da impossibilidade de realizar a plenitude da vida dentro dos limites desse mundo e desse tempo.

A morte, o mal definitivo, é um dos caminhos para a eternidade. Uma vida sem fim, dentro das condições de nossa existência limitada, seria um pesadelo. Passar pela morte é tão necessário para nosso destino pessoal na eternidade, como o fim do mundo é necessário para a realização de seu destino eterno. As antinomias e problemas da vida humana e da vida do mundo não podem ser resolvidas no presente éon, e, assim, torna-se necessária a transição para um outro éon. Por essa razão o medo da morte não é a única possibilidade que se apresenta: existe também a atração da morte. O pensamento da morte é, muitas vezes, um consolo para o homem, quando as contradições da vida se tornam intoleráveis, quando o mal que o rodeia cresce e se intensifica. Freud via o instinto da morte não apenas como sendo de uma ordem mais elevada do que o instinto sexual, como ainda sendo o único instinto realmente elevado no homem. Da mesma forma, Heidegger foi compelido a reconhecer a morte como superior ao Dasein, o qual está submerso na monotonia e no prosaico, no das Man. Nessa filosofia, a última palavra cabe à morte. É um fato interessante, que para o espírito Germânico exista, em geral, algo de atrativo na morte, na vitória e na morte. A música de Wagner estava permeada pelos sentidos da vitória e da morte; Nietsche pregava o desejo pelo poder e uma alegria extática da vida, mas em seu sentimento perpetuamente trágico sobre a vida, a coisa mais profunda e final era o Amor fati. Havia profundidade no espírito Germânico, mas não havia a força da ressurreição.

A força da ressurreição existe no espírito Russo, e Fedorov representa o ápice de sua expressão. E não é por acaso que a principal festa da Ortodoxia Russa seja a da Ressurreição de Cristo. É assim que o Cristianismo é entendido. A fonte da vitória sobre o mal da vida nesse mundo não está na morte, nem no nascimento, mas na ressurreição. A experiência do mal do mundo destrói, mas o poder criativo da ressurreição derrota o mal e a morte. A ética Cristã em relação ao mal como um todo e em relação ao mal individual não pode deixar de ser paradoxal. Em Cristo, o Deus-homem, e no processo divino-humano, a transfiguração de todo o cosmo se torna realizada. É impossível pensar no mal e na liberdade, que está ligada ao mal, de uma maneira estática e ontológica. Eles devem ser pensados dinamicamente, na linguagem de uma experiência existencial espiritual.



[1] Teodiceia: a justificação da bondade e da onipotência divinas diante da existência do mal.
[2] O substantivo Aufhebung se origina do verbo alemão aufheben, sendo de uso muito comum neste idioma. Este verbo tem pelo menos três significados distintos: 1) negar (no sentido de anular ou cancelar, como quando suspendemos ou cancelamos um passeio por causa do mau tempo); 2) preservar; e também 3) elevar a um nível superior. Hegel foi inovador ao utilizar o termo Aufhebung para significar não apenas um destes sentidos de cada vez, mas os três ao mesmo tempo.

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